Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Fotografia de viagem e turismo: estratégias para cultivo e fruição do patrimônio imaterial
Caderno Virtual de Turismo, vol. 22, núm. 2, 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro



‘Being here is a kind of spiritual surrender. We see only what the others see. The thousands who were here in the past, those who will come in the future. We’ve agreed to be part of a collective perception. This literally colors our vision. A religious experience in a way, like all tourism’. Another silence ensued. ‘They are taking pictures of taking pictures’, he said.” (Don DeLillo, White Noise)

Conheço artistas-fotógrafo-a-s que fazem uma distinção bastante nítida entre os projetos fotográficos que desenvolvem e as fotografias que eventualmente fazem durante um passeio ou viagem turística. Isso significa que os efêmeros momentos de lazer não contemplariam a disposição e o aprofundamento necessários para a elaboração de objetos artísticos. Afinal de contas, fazer arte é um trabalho e férias não combinam exatamente com atividades laborais. Para mim, no entanto, essas fronteiras sempre foram porosas.

Como para a grande maioria das pessoas, considero fotografia e viagem como atividades estreitamente relacionadas. No início, minha afinidade com a fotografia era muito pautada pela vontade de viajar e trazer de volta imagens. Esse impulso documental não é nada estranho à cultura ocidental e seu ímpeto de registrar, catalogar e conservar imagens. Contudo, o que se fotografa em uma viagem nada mais é do que uma distante referência a um passado que já não existe, ou como colocou Barthes, a presença de uma ausência (Barthes 1980). Essa desconexão entre a assimilação das fotografias e a experiência do momento em que elas foram feitas é latente nas fotografias de viagens e de férias. Nada garante que a emoção que alguém sentiu ao ver e fotografar um pôr-do-sol em uma paisagem única será fielmente restituída para mim que observa a fotografia.

Já em 1977, Susan Sontag ponderou sobre o papel da fotografia como rito social que permite às pessoas tomar posse, através da imaginação, de um passado irreal e de um espaço não-familiar (Sontag 2005, 23). Por insinuar uma impressão de participação nos eventos, a fotografia se tornou provavelmente o principal processo técnico através do qual o ser humano busca atestar a vivência de situações e experiências e compartilhá-las com outros da sua espécie (Ibid., 25). Segundo Sontag, devido a essas características, a fotografia vai se desenvolver em sintonia com uma das atividades mais características da época moderna: o turismo. Contudo, em sua visão, a associação turismo-fotografia vai restringir a experiência da viagem, ao invés de expandi-la.

“A way of certifying experience, taking photographs is also a way of refusing it—by limiting experience to a search for the photogenic, by converting experience into an image, a souvenir. Travel becomes a strategy for accumulating photographs. [...] Most tourists feel compelled to put the camera between themselves and whatever is remarkable that they encounter. Unsure of other responses, they take a picture. This gives shape to experience: stop, take a photograph, and move on”. (Sontag 2005, 6-7)

Como seria então possível expressar simultaneamente a vivência espaçotemporal de uma viagem e sua carga afetiva e sensorial através de fotografias? Apesar da perspectiva de Sontag soar pessimista em relação às possibilidades expressivas da mídia disponíveis ao turista, é necessário sublinhar que apesar de restringir (e condicionar) a experiência, essa não desaparece por completo. No campo da fotografia, uma série de discursos são baseados em dicotomias do tipo: fotografia profissional e fotografia amadora; fotografia artística e fotografia documental; fotografia informativa e fotografia plástica. Enquanto essas distinções têm suas razões de existir, o lugar comum entre elas – a relevância da experiência fotográfica - é frequentemente esquecido. Na verdade, a prática com diferentes categorias de imagens pressupõe uma relação experiencial estabelecida entre os diferentes participantes do evento fotográfico: fotógrafo-a-s, sujeitos fotografados e espectadores da imagem resultante (Azoulay 2008). A busca por um lugar comum, baseado na experiência compartilhada entre esses atores, pode atenuar a rigidez das dicotomias e fazer com que a fotografia atue como uma ferramenta de produção de conhecimento tanto para o artista-fotógrafo quanto para o turista-fotógrafo amador.

Em março de 2019 passei quatro dias em Soure, na Ilha de Marajó (Pará). Esse curto período foi um pequeno apêndice em uma viagem de Belo Horizonte a Belém com minha companheira. Fizemos vários selfies, tiramos fotos em museus e monumentos, além de registrarmos algumas refeições memoráveis. Também fotografamos paisagens fotogênicas e certamente algum por do sol eloquente, forçosamente mal restituído pela tecnologia das câmeras de nossos telefones. As circunstâncias da viagem eram propícias a esse tipo de registo, já que havíamos celebrado nosso casamento menos de um mês antes. Porém esse pequeno apêndice na Ilha de Marajó, me proporcionou uma experiência turística e patrimonial mais aprofundada do que os outros registros triviais e românticos dessa viagem.

Apesar da fotografia ter se tornado uma atividade tão natural quanto fazer uma lista de compras ou almoçar com amigos, durante uma viagem o instinto fotográfico fica mais aguçado pois saímos do nosso espaço e rotinas habituais. Isso em si não é nenhuma garantia de uma experiência turística mais intensa ou reveladora. No entanto, a fotografia pode ser uma ferramenta para uma proporcionar percepção sensorial mais complexa. Esse refinamento das sensações e da experiência não vem naturalmente. É necessário um comprometimento que significa sair da zona de conforto do turista. Os franceses usam o verbo reflexivo se dépayser para indicar essa tentativa de compreender melhor um espaço desconhecido e novo. Não há uma tradução exata para o temo em Português: significa o ato de se desconectar de hábitos e costumes quando o individuo se encontra em um país ou região muito diferente do seu local usual de vida. No entanto, essa mudança de ares não é algo imposto, mas um processo voluntário do individuo. É sem dúvida um processo desconcertante, mas que também carrega em si a possibilidade enriquecedora da mudança, do deslumbramento com o novo e da manifestação de pequenas epifanias que dão sentido a experiência humana.

Enquanto os blogs e guias turísticos alimentam as expectativas sensoriais de uma viagem à ilha com imagens de búfalos pastando livremente, tranquilas praias fluviais de areia branca, o refinamento geométrico da cerâmica marajoara e a famosa especialidade gastronômica do filé marajoara, existem outras camadas de percepção disponíveis ao viajante atento e sensível. Na minha experiência de dépaysement[1], o que me chamou atenção à primeira vista foi o ritmo desacelerado da vida no pequeno centro urbano de Soure. As pessoas vivem numa cadência sincronizada com as fortes pancadas de chuva e seus intervalos que permitem que grupos se reúnam no espaço público para conversar, beber um suco ou tomar um açaí. Esses espaços de socialização são bem distribuídos pela cidade. Em geral, são quiosques na calçada da rua, sorveterias ou casas de suco. Percebi menos bares (e os que existiam que eram discretos) do que minha vivência das cidades e vilarejos do interior do sudeste brasileiro me faria supor. Na minha experiência visual de Soure, os únicos estabelecimentos que rivalizavam em número com as casas de suco e sorveterias eram os locais de devoção religiosa. Talvez essa seja uma das explicações para a escassez de bares. Não verifiquei a hipótese, mas pelo menos encontrei um primeiro tema para minha investigação visual através da fotografia.

Inicialmente, me concentrei na arquitetura das inúmeras igrejas católicas e de vertentes evangélicas que são onipresentes em Soure (figuras n°5, 7, 8 e 9). Do ponto de vista arquitetônico é uma investigação muito estimulante pois cada construção segue um padrão diferente, algo entre o improvisado e o funcional, mas com uma tentativa de se destacar umas das outras. Sair da zona da minha zona de conforto de turista significou vaguear pela cidade sozinho, acordar mais cedo para fotografar uma igreja que tinha visto no dia anterior enquanto minha companheira ainda dormia ou andar ao acaso e me perder pelas ruas de Soure sem a garantia de voltar com uma foto. Significou também parar em alguns estabelecimentos, beber um suco e conversar com as pessoas. Até mesmo perguntar informações que já sabia através dos guias, mas não com a riqueza do relato dos moradores locais.

Nas andanças e encontros, minha ideia foi fazer um inventário dessas igrejas, através de um registro metódico e meticuloso, baseado em uma visão frontal e arquitetônica dessas construções. Me interessava poder comparar essas igrejas, identificar traços característicos, comparar as soluções criativas, os diferentes estilos e cores. Há uma riqueza visual nesses objetos que não encontra paralelo em outras construções recentes da ilha, que seguem uma linha muito mais discreta. O polimorfismo das igrejas de destacavam justamente por não seguir nenhum padrão e ocupar o espaço urbano de maneira provocativa.

Com o passar dos dias, o exercício de exploração fotográfica se expandiu. Comecei a notar outras construções que se distinguiam na paisagem urbana. Fotografei um prédio Art Deco de dois andares, em estado bem deteriorado, já sem portas e janelas, que jazia imponente em uma das principais avenidas da cidade (figura n°4). Da platibanda da fachada outrora robusta[2] sobreviveram detalhes como frisos e um brasão já dominado pelas plantas rasteiras que nele encontram um suporte. Essa arquitetura suntuosa, concebida sob medida para as dimensões da cidade, reaparece na mesma rua no nostálgico Soure Hotel (figura n°1). O pequeno estabelecimento também possui uma ornamentação Art Deco. Trata- se de um desses antigos hotéis populares localizados no centro das cidades que servem a viajantes de passagem ou àqueles sem planos precisos que ficam semanas, às vezes meses. A mim, esse objeto evocava nostalgicamente a viagem como um espaço-tempo anacrônico: uma experiência necessariamente analógica, onde seria possível não somente transitar, mas também se apropriar e “habitar o espaço da viagem” (Depardon 2006, 106).

Entre os prédios que mantém a sua função original e os que perderam o sentido de ser ocupados, uma outra categoria surgiu ao longo das minhas digressões. Nas esquinas de ruas secundárias, pequenas mercearias reforçavam a sensação anacrônica de uma funcionalidade que perdeu o vigor, mas que insiste em existir. Essas casas de rés de chão contam com uma entrada principal voltada para a esquina e portas laterais secundárias no nível de cada uma das ruas perpendiculares, mas que também dão acesso ao único espaço interior que é limitado pelo balcão do comerciante. As mercearias são exemplos da arquitetura vernacular de Soure que evocam uma temporalidade diferente das igrejas, como que para nos lembrar de um patrimônio arquitetônico mais antigo que ainda sobrevive. Esses estabelecimentos funcionam como uma tomada de fôlego na aleatoriedade colorida das lojas mais recentes, com suas publicidades berrantes, seus contatos de whatsapp e acesso wifi, decoradas por painéis plastificados com desconexas fotos provenientes de bancos de imagens.

Não bastasse tal visualidade vernacular persuasiva, essas mercearias são batizadas com seus nomes escritos nas platibandas, por vezes inseridos entre as almofadas decorativas que ornam a edificação. Foi assim que descobri a “Casa Deus te Ajude” e a “Casa Paraíso”. Essa última, localizada em uma esquina de terra batida, me chamou atenção pela sua fachada com diferentes tonalidades de azul e pelo nome alegórico. O impacto visual foi tal que decidi entrar e nesse momento iniciou-se uma terceira linha do meu exercício de turismo não-passivo.

A foto n°12 é um retrato do Sr. Castro, proprietário da Casa Paraíso. Em suas prateleiras já não havia muitos produtos e durante o tempo que estive com ele, nenhum cliente entrou na mercearia. Por detrás do balcão, ele me fala do seu negócio, da vida em Soure e de outras coisas que esqueci. Senti a necessidade de fazer um retrato desse homem, porque para mim essa imagem representa o conteúdo imaterial da viagem que são os encontros e as trocas com os habitantes locais. Essa vida humana que habitava a Casa Paraíso dá outra dimensão ao patrimônio arquitetônico de Soure. Ao adentrar o estabelecimento e conversar com seu dono, uma outra gama de experiências se tornou ativa; dessa vez, se manifestaram vivências intersubjetivas que proporcionam conhecimento através de processos de alteridade.

Nos últimos dias da viagem, foquei em produzir retratos dos habitantes locais com quem me encontrava e conversava durante meus passeios. Assim, fotografei Lorena, funcionária da casa de sucos e açaí onde ia diariamente; Seu Jorge, em frente a seu rústico e colorido bar na praia de Barra Velha, e Rosângela, que nos vendeu cerâmicas marajoaras no atelier do seu marido. Essas pessoas vão habitar a narrativa fotográfica da minha viagem: são personagens que conheci (mesmo que superficialmente) e que conectam a arquitetura vernacular das construções mais antigas com a funcionalidade e o apelo dos locais de cultos religiosos. Como personagens da minha narrativa visual, suas histórias são maleáveis e se misturam com minha experiência turística. Para que façam sentido, dependem sobretudo de um exercício de imaginação aos olhos de quem observa a série em conjunto.

Por fim, volto a reflexão inicial, de como a fotografia pode ser um instrumento de fruição turística. Além de estar ligada ao registro de memórias e eventos, a fotografia permite também o livre exercício da curiosidade pois nos ajuda (e as vezes nos impele) a tentar perceber melhor as coisas. Isso ocorre não somente no âmbito visual, mas pode abrir portas para percepções culturais e antropológicas aprofundadas, afinal de contas, fotografamos no mundo e não é possível ficar indiferente a sua complexidade, contradições e mistérios. A fotografia de viagem não é por si só uma arte e, como documentação, carregará sempre o viés de quem observa e registra. No entanto, a sua prática consciente pode tornar a experiência do patrimônio imaterial mais palpável e enriquecedora para o turista. No meu caso, ela aprofundou minha percepção da riqueza material e humana do patrimônio de Soure, me proporcionando não só uma experiência turística, mas uma experiência cultural.































Referências

Azoulay, Ariella. (2008). The Civil Contract of Photography. New York: Zone Books.

Barthes, Roland. (1980). Camera Lucida: Reflections on Photography. London: Vintage.

DeLillo, Don. (2016). White Noise. New York: Penguin Books.

Depardon, Raymond. (2006). La solitude heureuse do voyageur –précédé de Notes. Paris: Points.

Sontag, Susan. (2005). On Photography. New York: Rosetta Books.

Notas

[1] O verbo dépayser se desdobra no adjetivo dépaysante (aquilo que transporta a um outro lugar, outra atmosfera) e no substantivo dépaysement (resultado da ação de dépayser, ou seja, o resultado da mudança de ambiente, o estado de quem passou por esse processo).
[2] Trata-se da sede social do Esporte Clube Marajó, um antigo clube desportivo de Soure. A sede era usada para eventos como festas de debutantes, carnaval infantil entre outros. A edificação está abandonada há cerca de vinte anos.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por