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Festa étnica como bem cultural: A Kerbfest de São Paulo das Missões - RS
Ethnic party as a cultural asset: The Kerbfest in São Paulo das Missões - RS
Fiesta étnica como bien cultural: La Kerbfest en São Paulo das Missões – RS
Caderno Virtual de Turismo, vol. 22, núm. 3, 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Artigos originais



Recepción: 10 Junio 2022

Aprobación: 26 Octubre 2022

DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.22n3.2022.2018

Resumo: Nosso objeto de pesquisa é a Kerbfest, festa alemã que ocorre anualmente, no último final de semana de janeiro, em São Paulo das Missões, município do noroeste do Rio Grande do Sul, Brasil. A festa ocorre desde 1994, promovendo a participação de munícipes, visitantes e turistas, os quais se deslocam até o município para vivenciar a cultura e tradições da etnia alemã. O objetivo deste artigo é descrever a Kerbfest, destacando sua história, significados e impactos sob o olhar de alguns integrantes da comunidade, bem como sua importância para o turismo. Foi elaborada uma pesquisa sobre a história da festa, referencial teórico sobre festas étnicas como bens culturais e coleta de dados através de questionário disponibilizado a autóctones, organizadores e participantes da festa, além de coleta de antigas fotografias e descrição de atrações da Kerbfest. Foi possível observar que a Kerbfest proporciona trocas de experiências, alegria e a celebração vinculadas à cultura alemã, fortalecendo a identidade social local. O evento oferece aos visitantes e turistas experiências diversas ligadas à cultura alemã, como música, gastronomia, jogos, apresentações artísticas e outros. O artigo demonstra a importância das festas étnicas como patrimônios imateriais, colaborando para sua preservação.

Palavras-chave: Kerbfest, Festa Étnica, Patrimônio.

Abstract: Our object of research is Kerbfest, a German festival that takes place annually, on the last weekend of January, in São Paulo das Missões, a municipality in the northwest of Rio Grande do Sul, Brazil. The party has been taking place since 1994, promoting the participation of citizens, visitors and tourists, who travel to the municipality to experience the culture and traditions of the German ethnic group. The purpose of this article is to describe Kerbfest, highlighting its history, meanings and impacts from the perspective of some members of the community, as well as its importance for tourism. A research was carried out on the history of the party, theoretical reference on ethnic parties as cultural goods and data collection through a questionnaire made available to natives, organizers and participants of the party, in addition to collecting old photographs and description of Kerbfest attractions. It was possible to observe that Kerbfest provides exchanges of experiences, joy and celebration linked to German culture, strengthening the local social identity. The event offers visitors and tourists diverse experiences linked to German culture, such as music, gastronomy, games, artistic performances and others. The article demonstrates the importance of ethnic festivals as intangible heritage, contributing to their preservation.

Keywords: Kerbfest, Ethnic Party, Heritage.

Resumen: Nuestro objeto de investigación es el Kerbfest, festival alemán que se realiza anualmente, el último fin de semana de enero, en São Paulo das Missões, municipio del noroeste de Rio Grande do Sul, Brasil. La fiesta se lleva a cabo desde 1994, promoviendo la participación de ciudadanos, visitantes y turistas, que viajan al municipio para vivir la cultura y tradiciones de la etnia alemana. El propósito de este artículo es describir Kerbfest, destacando su historia, significados e impactos desde la perspectiva de algunos miembros de la comunidad, así como su importancia para el turismo. Se realizó una investigación sobre la historia de la fiesta, referencia teórica sobre las fiestas étnicas como bienes culturales y recolección de datos a través de un cuestionario puesto a disposición de los nativos, organizadores y participantes de la fiesta, además de la recolección de fotografías antiguas y descripción de las atracciones de Kerbfest. Se pudo observar que Kerbfest brinda intercambios de experiencias, alegría y celebración ligados a la cultura alemana, fortaleciendo la identidad social local. El evento ofrece a visitantes y turistas diversas experiencias vinculadas a la cultura alemana, como música, gastronomía, juegos, espectáculos artísticos y otros. El artículo demuestra la importancia de las fiestas étnicas como patrimonio inmaterial, contribuyendo a su preservación.

1. Introdução

São Paulo das Missões localiza-se na região das Missões, ao noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil (Figura 1), e tem população de 5,5 mil habitantes (IBGE, 2021). Observa-se no local a prevalência da cultura e tradições trazidas por imigrantes alemães no começo do século XX, sobretudo na gastronomia, onde se destaca o consumo de batatas, cerveja, salsichas, cucas e outros alimentos, no idioma alemão, utilizado pelas famílias, tanto na zona rural quanto na zona urbana em lugares como o comércio local, igreja, mercados, entre outros.


Figura 1
Mapa de localização de São Paulo das Missões, RS
Abreu, 2006

Nosso objeto de pesquisa é a festa de tradição alemã intitulada Kerbfest[1], a qual ocorre anualmente em São Paulo das Missões, no último final de semana do mês de janeiro, de quinta-feira até o domingo. A festa ocorre no Clube 7 de Setembro desde sua primeira edição, em 1994, atingindo amplo público, entre munícipes e visitantes oriundos de localidades da região e turistas. Conforme a fala dos habitantes locais e organizadores, participam da festa inclusive estrangeiros do Paraguai, Argentina e até da Alemanha.

A programação da Kerbfest envolve diversas atividades, iniciando com uma missa celebrada na igreja católica, em idioma alemão, o Jogo do Barril, bailes com bandas e animação alemã, café colonial com quitutes tradicionais da cultura alemã, o “Chopp em metro” para adultos e o “refrigerante em metro” para as crianças, dentre outras atrações. O “jogo do barril”, por exemplo, acontece durante as tardes do sábado e do domingo e consiste em um jogo de futebol onde, a cada parada no jogo (cobrança de falta, gol, pênalti, etc.), os jogadores param para tomar um chopp de um carrinho que fica em meio ao campo, o que deixa o jogo mais divertido, tanto para os jogadores, quanto para os espectadores. Durante os dias de Kerbfest, também ocorrem brincadeiras que lembram como era perniciosa a vida dos colonos alemães quando chegaram na região. Um exemplo de atividade com esse intuito consiste em serrar um tronco com uma serra dupla. A dupla que mais rápido conseguir serrar todo o tronco ganha a brincadeira. A Kerbfest, além de proporcionar momentos de celebração da cultura alemã entre membros da comunidade, também movimenta a economia do município, devido ao fluxo de turistas e visitantes que vem até a cidade para prestigiar o evento.

O objetivo do artigo é descrever a Kerbfest de São Paulo das Missões, destacando alguns significados e a importância desta festa étnica como um bem cultural a ser preservado. O estudo contribui para demonstrar a importância das festas étnicas para as comunidades, pois elas proporcionam trocas de experiências, aprendizados culturais, alegria, camaradagem, onde se fortalecem os laços de amizade e, juntos, os moradores podem se ajudar, se apoiar em projetos e ações comunitárias, além de ser salutar também para a saúde, bem-estar e para o desenvolvimento turístico (Gastal e Macchiavelli, 2012).

A Kerbfest transmite, de geração em geração, bens imateriais, cultura alemã, através da indumentária, da música, idioma e dialeto alemão, receitas de gastronomia, a memória da imigração, brincadeiras, dentre outros. Esse compartilhamento da cultura étnica se faz na festa com alegria e descontração, gerando memórias afetivas sobre o lugar e as pessoas, incentivando a continuidade da tradição. Entende-se assim o valor cultural da Kerbfest e seu potencial como um dos símbolos da cidade de São Paulo das Missões. Entende-se que a presente pesquisa pode contribuir para constituir uma memória da festa, e assim contribuir para a sua preservação. Conforme Santos (2012), é fundamental registrar as festas das comunidades, sua programação e organização, para que no futuro seja minimizado o risco de perda do sentido original e a descaracterização da festa. A produção cultural, a comoção social desenvolvida durante e depois da realização da festa gera bens econômicos, desde o preparo dos alimentos, a ornamentação, até as vestimentas e produção das soberanas (jovens da comunidade, rainhas e princesas selecionadas previamente para representar a festa), fomentando assim o comércio e prestação de serviços em nível regional, algo que não se deve negligenciar.

A metodologia pode ser caracterizada como exploratória e qualitativa, envolvendo pesquisa bibliográfica, elaboração de referencial teórico sobre festas étnicas, coleta e análise de questionários realizados com alguns munícipes que se relacionam ou já se relacionaram com a organização da festa. Também foi feita coleta e análise de antigas fotografias da Kerbfest, o que contribuiu para a descrição dos atrativos da festa. Para contextualização, foi feita uma pesquisa histórica sobre o município de São Paulo das Missões e a Kerbfest. Ressalta-se a escassez de trabalhos acadêmicos que se referem ao município e à festa, o que também justifica esta pesquisa. Os informantes foram selecionados por sua atuação junto à Kerbfest, na organização, gestão, dentre outros. Entre os meses de março e abril de 2021 foi enviado um questionário para estas pessoas, com questões sobre a Kerbfest, seus significados, relevância como um bem cultural e impactos junto à comunidade. Foi utilizado o Google forms para disponibilizar as questões da pesquisa. As respostas e as fotografias foram dispostas e analisadas, demonstrando a relevância do estudo de festas como patrimônio, e o papel da festa étnica para a cultura e a importância de serem viabilizadas maneiras de possibilitar a continuidade desse legado cultural.

2. São Paulo das Missões e a Kerbfest: Aspectos Históricos

O município de São Paulo das Missões foi fundado no ano de 1912. A ocupação do território ocorreu por colonos de origem alemã, vindos da "Colônia Velha", que se localizava nas proximidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo, municípios da região metropolitana do Rio Grande do Sul (Kohler, 2010). Outrora o território de São Paulo das Missões pertencia aos municípios de Rio Pardo, São Luiz Gonzaga e Cerro Largo.

Kohler (2010) afirma que o nome "São Paulo" foi adotado para a localidade, pois foi no dia 25 de janeiro a data oficial de chegada dos primeiros imigrantes alemães, e nesse dia é comemorado o dia da conversão de São Paulo, apóstolo de Jesus Cristo. Mais tarde foi acrescido ao nome "das Missões", por situar-se na Região Missioneira do Rio Grande do Sul[2]. São Paulo das Missões é conhecida na região como "Cantão Suíço das Missões", pois a sua produção de flores supostamente lhe confere semelhança paisagística com a Suíça. Conforme dito, é um município onde a cultura é marcante pela presença dos descendentes de imigrantes alemães e essa característica se apresenta também nas festas da comunidade. A Kerbfest, desde sua idealização, tem o intuito de reunir a comunidade de imigrantes e seus descendentes para celebrar as tradições alemãs.

São Paulo das Missões, através da Kerbfest, comemora a chegada dos imigrantes alemães e o processo de emancipação do município, celebrando a cultura do Kerb. Assim, a Kerbfest promove o reencontro de famílias paulistanas, celebrando tradições alemãs através de missa festiva, danças folclóricas, comidas típicas, desfile de carros alegóricos, a celebração da Kerbmesse, o Kerball e outras atrações com a animação das soberanas e do Casal Her Schmidt e Frau Lisbeth, uma tradição da Kerbfest. Segundo o Sr. Airton Moacir Nedel, um dos idealizadores da festa, o Casal Herr Schmidt e Frau Lisbeth simboliza um tradicional casal alemão, com vestimentas alemãs e sua função, especificamente, é animar os participantes durante a Kerbfest.

A Figura 2 apresenta uma fotografia do casal Herr Schmidt e Frau Lisbeth com seus “filhos” Hanna e Stefan, que são crianças da comunidade, geralmente parentes de organizadores ou parentes dos mesmos. A prefeita do ano em que ocorreu a festa aparece na Figura 2, à direita, com sua neta, no centro da fotografia. A fotografia foi registrada no salão de festas do Clube 7 de setembro, no primeiro dia da Kerbfest de 2018, momento em que se anuncia o começo da Kerbfest. Segundo a Sra. Noeli Maria Borré Ruwer, de 62 anos, ex-prefeita do município, os bonecos foram fabricados por encomenda em uma costureira especializada na cidade de Gramado no ano de 1998, e a partir de então passaram a ser uma das atrações da festa.


Figura 2
Bonecos do casal Herr Schmidt e Frau Lisbeth com seus filhos (2018)
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer.

Observa-se na Figura 2 que todos os que aparecem na fotografia vestem a indumentária típica alemã, algo comum durante a festa. De acordo com Kohler (2010), ao longo dos anos, estiveram à frente da organização da Kerbfest: o Grupo de Bolão[3] Quinta-Nobre; a Paróquia São Paulo Apóstolo; e o Clube de Mães Orquídea (Culinária Alemã). Atualmente o Grupo de Bolão Quinta-Nobre e a Sociedade Clube Sete de Setembro são as entidades responsáveis pela organização da festa. Conforme dito, a Kerbfest recebe os visitantes e turistas, inclusive de países vizinhos, Argentina, Paraguai e da Alemanha, os quais, durante os três dias de festa, divertem-se com as atrações da Kerbfest. Os familiares dos moradores do município que residem em outras localidades aproveitam a ocasião da Kerbfest para retornar e reencontrar a família. Conforme Gastal e Machiavelli (2012), para os descendentes de imigrantes europeus, a festa era esperada e prestigiada, pois era um momento de celebrar a fé, marcar nascimentos, casamentos e outros ritos de passagem, compartilhando a sua cultura imaterial através da música, das rezas, da culinária e outros. Nos dias da Kerbfest, os descendentes de imigrantes alemães e os visitantes têm a oportunidade de experienciar aspectos culturais da etnia alemã.

3. Festas: o patrimônio e a valorização da comunidade étnica

As festas são fenômenos sociais permeados de significados, que ocorrem pelos mais diversos tipos de comemorações, que por sua vez são a evocação de uma determinada memória. A comemoração de uma festa se apropria de um tempo histórico, construindo e transmitindo a memória de um determinado coletivo. A festa é “comemorada”, é uma rememoração que sintetiza os valores de uma determinada comunidade, construindo, ressignificando crenças e valores, solidificando não apenas uma tradição, mas a memória social local como um todo. Funari (2009, p. 47) afirma que na Grécia antiga quase todas as festas tinham caráter local e eram ligadas ao calendário agrícola, como festas de renascimento da vida e da vegetação, marcando o final do inverno e o começo do ano agrícola. Assim, pode se afirmar que as festas se originam de ritos que buscavam interferir nos ciclos naturais para o provimento da subsistência.

As festas são inerentes à humanidade, sejam elas sagradas ou profanas, para marcar datas consideradas especiais para determinada comunidade. Conforme Gastal e Machiavelli (2012), as festas envolvem a famílias, empresas e comunidades, reafirmando laços de afetividade, conduzindo relações de reciprocidade. Para o turismo, as festas representam mais do que isso: a oportunidade de interação entre visitantes/turistas e comunidade receptora, desenvolvimento econômico e valorização sociocultural dessas comunidades. No estado do Rio Grande do Sul, desde a chegada dos primeiros imigrantes europeus, a festa marcou diversos momentos das comunidades, cada qual conforme as características culturais e étnicas.

A festa pode ser vista como um conjunto de atos cerimoniais de caráter coletivo pela sua colocação dentro de um tempo delimitado, tido como um diferencial da continuidade. Em qualquer tipo de festa, o grupo ou a comunidade interrompe o tempo ordinário para entrar, na dimensão de um tempo carregado de implicação cultural e de conotação psíquica própria, diferente daquele tempo ordinário ou cotidiano (Ferreira, 2005, p. 112).

As festas, de certo modo, determinam o rompimento do cotidiano, apresentando possibilidades lúdicas, onde a alegria e a diversão são a ordem. De acordo com Ferreira (2005), nas festas, a relação entre tradição e inovação pode ser visível para os participantes, indicando as mudanças, permanências e rupturas, mostrando o dinamismo e a vitalidade da festa. De acordo com Fochesatto (2016), a organização de uma festa como a Kerb deve privilegiar elementos da cultura alemã, oferecendo variedade de comidas típicas alemãs, como as cucas, pães e bolos, as linguiças, pois a diversidade e a fartura alimentar é uma das características da festa, assim como as cervejas alemãs, em especial a malzbier. Encontra-se também outros atrativos que buscam relembrar aspectos da história da imigração alemã. Conforme dito, na Kerbfest, os descendentes de imigrantes alemães e os visitantes têm a oportunidade de comemorar a cultura e tradições alemãs, pois é criado um ambiente, decoração, música, comidas típicas, idioma, que se pode chamar de um simulacro da Alemanha, naquele espaço / tempo. Os bailes da Kerb outrora também desempenhavam um importante papel para os imigrantes alemães, para socializar entre eles, pois além de ser um ambiente para conversar e dançar, podendo ocorrer arranjos de casamentos e outras negociações durante a festa.

Na Kerbfest a religiosidade é fundamental, uma vez que está vinculada à sua origem. Segundo Wolf (1999), a festa tinha, no catolicismo, relevantes significados para os lavradores: “[...] pois trariam proteção ao seu gado e às suas plantações. Seria uma forma de ressaltar a sua identidade com aquela comunidade simbolizada pelo santo que a todos abençoaria [...]” (Wolf, 1999, p. 82). A festa é também um momento para a renovação dos votos com o santo da comunidade, momento de pedir intercessão por uma boa colheita, algo estimulado pelos clérigos, visando também que os fiéis seguissem os passos de seu santo padroeiro (Wolf, 1999).

De acordo com Fochesatto (2016), as festas étnicas, antes relacionadas ao catolicismo e a encontros da comunidade, hoje também podem representar um bem cultural da comunidade, um atrativo turístico, contribuindo para a preservação da cultura germânica por meio de elementos culturais como gastronomia, músicas e indumentária, tais como a Bauernfest (Petrópolis, RJ), a Octoberfest (Santa Cruz, RS; Blumenau, SC), a Südoktoberfest (São Lourenço do Sul, RS) e outras. A autora ressalta que a Kerb passa por transformações, adaptações, outros significados, e afirma que se deve ter atenção para não dar ênfase para a festa enquanto produto comercial, mas à comemoração da cultura. Gastal e Machiavelli (2012) afirmam que deve se dar atenção à festa organizada pela comunidade, à festa que surge pela vontade, sentimento e empenho dos membros de um coletivo, pois estas ocupam lugar privilegiado na cultura brasileira. As autoras salientam que é importante que se mantenham as raízes, as motivações culturais, artísticas e étnicas que fazem parte dos bens culturais de um local.

Assim, as festas fazem parte do patrimônio cultural de uma comunidade pela expressão de seus bens culturais, selecionados e transmitidos em uma memória geracional. Assim, a festa pode ser considerada como um elemento fundamental para a construção e a consolidação das identidades e das memórias locais. As festas e celebrações do Brasil são registradas pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) desde o ano 2000, após passarem por processo de cadastramento, estudos e registros junto à comunidade. As festas alemãs podem ser consideradas patrimônios, pois são um legado de brasileiros, mesmo que tenham origem em outro país. Deve ser feita ampla reflexão sobre o patrimônio cultural, não a partir do valor material, e sim numa relação da sociedade com sua cultura, salientando os modos de fazer. A festa é expressão de significados e espaços de vivências sociais, onde se revela uma área de investigação importante para a análise das formas de apropriação do lugar e de compreensão das práticas sociais e culturais, contribuindo com uma noção de patrimônio como um bem relativo, que contempla as diversidades culturais.

A festa revela a relação entre o homem e o meio, o modo como os grupos sociais pensam, percebem e trazem ao seu ambiente, valorizam mais ou menos certos lugares. Nesse sentido “a festa torna-se lugar de memória, de construção e de atualização de um passado que não pertence apenas aos seus cidadãos, mas mostrou-se capaz de atribuir identidade e setores amplos da sociedade” (Cavalcanti, 2001, p. 74). Como citado, as festas têm papel fundamental para unir a comunidade, a exemplo da Kerbfest em São Paulo das Missões, pois ela celebra a cultura alemã, oportunizando que os descendentes de imigrantes possam celebrar memórias que foram dos seus antepassados, passando isso de geração em geração.

Assim, a festa faz com que a comunidade se organize, se envolva em torno do planejamento, na apresentação de sua identidade, algo que motiva e valoriza os munícipes em seus saberes e sua cultura. O município de São Paulo das Missões tem seu cotidiano alterado pela Kerbfest, a cidade fica enfeitada com as cores da festa (amarelo, vermelho e preto, as cores da bandeira nacional alemã), assim marcando cada espaço, as casas, igreja, ruas e o comércio, transformando-os para receber a festa. Gastal e Machiavelli (2012) chamam a atenção para o conceito de festa temática, aquela que se destaca junto à comunidade como a quebra do cotidiano, com caráter de entretenimento e que atrai turistas. As autoras afirmam que o enfoque turístico leva à promoção da integração social entre participantes, aliado a ofertas gastronômicas e culturais. Assim, as festas podem ser o principal produto ou atrativo turístico dos municípios, e essa é a relevância da pesquisa e estudos das festas: equilibrar a gestão cultural, a forma de produzir atrativos étnicos sem gerar impactos negativos junto à comunidade receptora.

No decorrer da pesquisa, observou-se que, individualmente, cada indivíduo pode contribuir com sua história familiar, seu saber fazer, sua identidade, sua arte, dentro das atividades que a festa apresenta, e se sente, assim, parte do processo. Silveira (2012) afirma que na festa se pode reconhecer e promover a cultura e a memória de determinada comunidade. Cada cultura gera e seleciona seu próprio sistema de valores, determinando o que é ou não seu patrimônio cultural, através do qual o povo reconhece- se a si mesmo em sua identidade social, em sua memória coletiva formada pela sua história e nos traços sociais manifestados na vida cotidiana. A festa é uma das formas de expressão de diversas culturas ao longo dos tempos, seja religiosa, étnica, gastronômica, é uma maneira de mostrar a identidade e o patrimônio de um coletivo. Pode se observar que a Kerbfest remete ao passado, as comemorações se renovam a cada geração e assim alimentam uma reinvenção, movimentando as manifestações culturais na cidade. Portanto pode-se afirmar que existem dois aspectos na festa que devem ser examinados: o fator econômico, que visa resultados positivos com o turismo, e também como um instrumento privilegiado para se obter um entendimento entre membros da comunidade.

4. Registros e descrição da Kerbfest: a festa étnica e o legado cultural

Durante a pesquisa foi possível observar que na Kerbfest de São Paulo das Missões há expressiva participação e colaboração da comunidade, sendo uma festa de características religiosa e profana, que foi incorporada como atividade característica das comunidades de alemães, tendo sido introduzida em território brasileiro pelos imigrantes. Para atingir ao objetivo proposto, foram selecionados munícipes para responder ao formulário sobre os significados da Kerbfest de São Paulo das Missões. Entre os respondentes, houve uma variação da idade dos participantes, uma das participantes tem 17 anos, é estudante e ex-rainha da Kerbfest de 2019 e os demais acima de 60 anos, já aposentados. Todos os informantes são descendentes de alemães e foram selecionados para a pesquisa por sua atuação junto à Kerbfest. Os depoentes idosos afirmaram que frequentam a festa desde sua primeira edição e a jovem comentou que participa da festa desde pequena. Uma informante disponibilizou antigas fotografias da Kerbfest para contribuir com a pesquisa. As fotografias e os depoimentos, bem como sua análise e interpretação encontram-se a seguir.

O principal motivo dos respondentes gostarem de participar da festa é pela cultura que ela celebra. Enfatizaram que a Kerbfest é um momento de confraternização entre amigos, familiares e também de conhecer pessoas novas. Um dos respondentes mencionou o fato da festa recordar os tempos da colonização, memórias de antepassados e também da cultura e tradição dos imigrantes, corroborando com o que foi mencionado anteriormente, a festa é uma evocação memorial. As Figuras 3 e 4 mostram fotografias desses momentos de confraternização em bailes da Kerbfest.


Figura 3
Dança em círculo durante baile na Kerbfest na década de 1990
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer


Figura 4
Dança de casais durante baile na Kerbfest na década de 1990
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer

Pode-se perceber na Figura 3 que há a interação e alegria na dança com homens e mulheres, jovens e adultos dançando em círculo. Também se percebe a participação da boneca de Frau Lisbeth, dançando com os participantes no clube durante uma música alemã. A Figura 4 mostra uma fotografia do sarau de encerramento da Kerbfest de 1990. Se pode observar que alguns participantes estão vestindo a indumentária típica alemã, costume recorrente em diversos ambientes durante a festa. Se observa também a decoração do salão, com laços vermelhos e amarelos e também a presença do casal Herr e Frau, interagindo com os participantes, como anfitriões da festa.

Sobre a organização da festa, conforme os depoimentos, a Kerbfest atualmente tem uma Comissão Central e também subcomissões para organizar cada serviço: Comissão de Gastronomia, Comissão de Divulgação, Comissão Social, Comissão de Ornamentação, entre outras. Na chegada, os visitantes recebem materiais de divulgação de hotéis e restaurantes da cidade. Alguns visitantes vêm para a Kerbfest e são acolhidos na casa dos amigos e parentes, promovendo o reencontro de familiares e criando memórias afetivas que circundam a festa. Durante o ano, grupos de danças, banda e folclore alemão ensaiam músicas típicas para se apresentar durante os dias da festa. Ou seja, a organização da festa estimula o envolvimento diversos atores sociais, e torna-se importante para os munícipes por razões distintas. A festa é uma motivação para o encontro, a celebração da cultura alemã durante todo o ano.

A Figura 5 mostra um desfile da Kerbfest nas ruas de São Paulo das Missões. O objetivo do desfile é convidar os munícipes a participar da festa, percorrendo as principais ruas da cidade, pelo centro administrativo até chegar à praça principal, onde é feita a abertura oficial da Kerbfest. Esse ritual ocorre durante a manhã da sexta-feira, primeiro dia de festa. Durante o desfile são entoadas músicas alemãs, e as rainhas e membros da organização distribuem chopp aos munícipes.


Figura 5
Desfile da Kerbfest em São Paulo das Missões (2007)
Aarquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer

Se observa na Figura 5 as soberanas no primeiro carro alegórico do desfile e logo o carro atrás o casal Her Schmidt e Frau Lisbeth. Os carros encontram-se decorados com flores, fitas e bandeiras e todos os integrantes do desfile vestem a indumentária típica alemã. Na opinião da respondente Sra. Noeli Maria Borré Ruwer, de 62 anos, a abertura oficial é a melhor parte da festa, momento que se revive a Kerbfest com a comunidade. Também ressalta que: “a Kerbfest celebra danças e músicas típicas, trajes típicos e culinária alemã”. E que também os principais motivos para celebrar a Kerbfest é “o reencontro da família paulistana, enaltecendo as origens e cultura de nossos antepassados”. A depoente destaca a importância das atividades que são desenvolvidas na festa e também como os munícipes gostam de celebrar a cultura alemã relembrando seus antepassados e sua trajetória. Sobre a experiência de trabalhar na festa, o Sr. Airton comenta:

Trabalhei praticamente em todas. Várias vezes como auxiliar de tesouraria, tesoureiro titular e por 06 vezes presidente da comissão central. Nas reuniões de planejamento sempre estive presente e estas se iniciam logo após o término de uma festa. Apresentado o resultado, avaliações, normalmente iniciam as tratativas da seguinte festa, como contratação de músicas e principais tópicos. Na organização, como trata-se de serviço voluntário, sempre é preciso ter as pessoas certas para cada comissão. Aí tem setor de alimentação, jogos germânicos, apresentações culturais, outros esportes, bailes, infraestrutura em geral. A organização exige bastante de seus organizadores. Dificilmente consegue- se um valor expressivo de uma empresa ou apoio cultural a nível de município, estado ou união. Aí consegue-se pequenos valores de empresas e voluntários que ajudam a abater nas despesas. (Depoimento do Sr. Airton Moacir Nedel de 65 anos)

Pode se pode observar que o Sr. Airton é um participante ativo na organização da Kerbfest no decorrer dos anos. Ele destaca a importância do planejamento e avaliação da festa para que sejam atingidos os objetivos e as expectativas da comunidade. Talvez seja um dos motivos da satisfação expressada pelos depoentes com relação à festa. Os patrocinadores são uma parte importante para a realização da festa, pois faz impulsionar a organização para comprar equipamentos, insumos, decorações, pagamento de atrações artísticas, dentre outros. No entanto, percebe-se no depoimento a dificuldade da organização em angariar empresas patrocinadoras. Mas o depoente também destaca que, mesmo podendo doar pouco, as empresas ajudam, pois, há o entendimento entre os comerciantes e empresas que a Kerbfest é um momento importante para o município.

A Kerbfest tem, no começo de sua programação, uma missa católica, desde a primeira edição, corroborando com o conceito original de Kerb - uma festa religiosa, conforme já mencionado. A missa, que é celebrada em idioma alemão, requer organização específica, tanto na ornamentação, quanto na elaboração do cerimonial e liturgia da missa junto ao pároco e aos participantes do rito. A igreja é considerada um local de socialização para moradores, de encontro, amparo e, de certa forma, união da comunidade. Schmidt (2012) destaca a importância da igreja para o imigrante alemão como lugar de fé, de encontro e de solidariedades, um lugar de partilha, onde se reforçava a fé para enfrentar as dificuldades. Conforme os respondentes, durante a celebração cristã, relembra-se os momentos difíceis que os antepassados passaram e o significado religioso da festa, para agradecer o bom ano de colheita, no comércio e outros, além de fazer pedidos para que o ano seja próspero. As Figuras 6 e 7 mostram fotografias da procissão de entrada da missa de diferentes edições da Kerbfest:


Figura 6
Procissão de entrada da missa alemã durante a Kerbfest de uma das primeiras edições na década de 1990
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer


Figura 7
Procissão de entrada da missa alemã durante a Kerbfest do ano de 2018
Aarquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer

Conforme visto nas Figuras 6 e 7, há uma solenidade na procissão de entrada da missa celebrada que ocorre na Kerbfest, os organizadores vestem indumentária típica, a banda participa da procissão de entrada na igreja, entoando uma música religiosa, a igreja encontra-se ornamentada e a comunidade se faz presente na celebração – crianças, jovens e adultos. As festas e comemorações, conforme Gastal e Machiavelli (2012) proporcionam diversão e sociabilidades, colaborando assim para a qualidade de vida dos participantes, além de elevar o reconhecimento dos significados simbólicos da identidade e cultura. A Kerbfest oportuniza momentos de celebração de diversos elementos culturais, na arte, na indumentária, na música, preces, conforme visto acima.

Os respondentes afirmaram que participam da organização da Kerbfest como organizadores, colaboradores e como soberana, contribuindo para o melhoramento da festa e para manter a tradição alemã. Os mais idosos acompanharam como era no passado a realização das primeiras Kerbfest e se sentem orgulhosos em ainda poder contribuir. Uma das representações mais importantes da Kerbfest são as soberanas, a rainha e as princesas, as quais ajudam na divulgação e na animação da festa. A Figura 8 mostra uma fotografia das soberanas da Kerbfest de 2006.


Figura 8
Soberanas da Kerbfest do ano de 2006
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer

A atenção aos detalhes na confecção da indumentária das soberanas mostra a busca pela autenticidade, por traços considerados originais da cultura alemã, por parte da organização da festa (Krone e Menasche, 2015). As soberanas são previamente selecionadas para representar a festa e assim divulgá-la para os municípios vizinhos através de visitas oficiais e também com vídeos em redes sociais da festa. Na Kerbfest as mulheres participam ativamente, não apenas na corte, na preparação dos alimentos, costuras, decoração, divulgação e outros. Na programação da festa há atividades especificamente para as mulheres, de todas as idades. As Figuras 9 e 10 mostram fotografias de times femininos de futebol que participam nos Jogos do Barril, anteriormente mencionados.


Figura 9
Time feminino na Kerbfest do ano 2006
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer


Figura 10
Time feminino na Kerbfest do ano 2019
Arquivo pessoal de Noeli Maria Borré Ruwer

Observa-se nas Figuras 9 e 10 a alegria e descontração das mulheres no gramado. Percebe-se que nesse lugar também há a preocupação com a decoração, havendo bandeiras e flores, tanto em 2006 quanto em 2019. O futebol era um esporte importante para os imigrantes, pois era uma atividade de recreação da qual eles tinham condições de praticar, pois não necessitava dispender recursos, e era uma oportunidade de interação e lazer. Schmidt (2012) afirma que, em Igrejinha, município de imigração predominantemente alemã, a participação nas atividades de igreja e no futebol foi positivo para o desenvolvimento e a união da comunidade. Sobre as antigas edições da Kerbfest, uma das respondentes afirmou:

Lembro muito bem das primeiras edições da Kerbfest. Iniciamos a festa timidamente, com pouco consumo de chopp e uma gastronomia bem diversificada. No início a festa acontecia em 2 dias, no sábado à tarde tínhamos o Jogo do Barril, seguido de café colonial que antecedia o Baile do Kerb. Já o domingo começava com a celebração da Missa do Padroeiro São Paulo Apostolo, ao meio dia era servido almoço típico alemão seguido da tradicional domingueira e no final do domingo tinha o Sarau. Assim que a festa foi pegando fama, com cada vez mais público através integração com grupos organizados de cidades e até países vizinhos, passamos a festejar o Kerb em 3 dias, primeiramente passou a ter programação na sexta à noite e posteriormente também na sexta à tarde com o baile da terceira idade. Nos demais dias tiveram algumas mudanças, porém a alegria sempre continuou contagiante. A forma de divulgar a festa também teve mudança, inicialmente era feita por visitas e através de correspondência e nos últimos anos a divulgação virtual começou a ter mais espaço. Um destaque presente desde a 1ª edição da Kerbfest é a animação da Banda Atração. (Depoimento da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer, de 62 anos)

A Sra. Noeli Maria Borré Ruwer relata acima como a Kerbfest surgiu de uma celebração singela e foi crescendo no decorrer dos anos. Fala da importância do envolvimento das pessoas, da importância de atender a um público diversificado e da alegria da comunidade e como isso é agradável aos visitantes, inclusive estrangeiros, que se organizam em grupos para participar da Kerbfest. A respondente ressalta o papel essencial da animação da banda em todas as edições da festa, que isso é um diferencial para o sucesso da mesma. Os demais respondentes comentaram que também têm lembranças de alguns momentos das edições anteriores, que no começo não foi fácil, pois existia dúvidas de que se o investimento na festa daria retorno, mas perceberam logo na primeira edição que foi um sucesso e que os munícipes se sentiram acolhidos com a celebração da cultura alemã. Em comparação com anos anteriores foi levantado que a divulgação foi um dos pontos que obteve melhoras ao longo dos tempos pois com a expansão das redes sociais foi se tornando mais fácil para alcançar o público que costuma vir de outros municípios para prestigiar a festa.

Neste contexto, destaca-se os impactos positivos que a Kerbfest traz para o município. De comunitária, a festa tornou-se um atrativo turístico, e a presença de turistas e visitantes gera impacto econômico no município. Ressalta-se também a visibilidade que a Kerbfest dá ao município de São Paulo das Missões, na valorização dos bens culturais, divulgação, consumo, comercialização. De acordo com o Sr. Airton Nedel:

O principal ponto positivo da Kerbfest para São Paulo das Missões é a notoriedade que a festa trouxe para nosso munícipio. A partir da festa passamos a ser conhecidos na grande região e também em Estados e Países vizinhos. Sabe-se que famílias que residiam aqui se programam para voltar no último final de semana de janeiro para visitar parentes e amigos e poder participar da festa. Com isso a festa ajuda a fortalecer a economia local, pois os visitantes fazem uso do comércio local. Nestes dias a cidade respira e transpira um ar de festa alemã com ornamentação típica no comércio e residências e quem participa da festa está sempre vestindo uma lembrança da Kerbfest, seja uma camiseta, boné ou copo de chopp. (Depoimento do Sr. Airton Moacir Nedel de 65 anos)

O Sr. Airton explica acima como a Kerbfest dá visibilidade ao município, mostrando a capacidade de organização da comunidade. No depoimento, se pode perceber a importância da festa para a comunidade, pois ela valoriza a história dos seus antepassados. O respondente afirma que famílias se organizam para estar em São Paulo das Missões na época da Kerbfest, para fazer as visitas aos seus parentes, o que a torna um tipo de compromisso, uma celebração familiar, afixando-se também em memórias afetivas da comunidade. Outra menção importante é que “a cidade respira e transpira um ar de festa alemã com ornamentação típica”, o que pode ser visto nas fotografias, nas decorações dos espaços destinados à festa, na indumentária e alegria dos participantes, descendentes de imigrantes alemães.

Como em quaisquer festas, há também os momentos de dificuldades. Alguns respondentes mencionaram que, às vezes, acontecem brigas entre participantes da Kerbfest, entendendo que isso é devido ao excesso no consumo de bebidas alcoólicas. A programação da Kerbfest incentiva ao consumo de álcool, propondo a competição de “chopp em metro”, onde o participante que mais ingerir chopp vence, conforme a Figura 11:


Figura 11
Competição do “Chopp em metro” durante a Kerbfest de 2019
Arquivo pessoal da Sra. Noeli Maria Borré Ruwer

Observa-se na Figura 11 uma participante da Kerbfest, com indumentária típica alemã, dentre outros participantes, consumindo chopp em um longo recipiente, participando do “Chopp em Metro”. Observa-se a animação dos participantes, entre famílias, com jovens e crianças. Conforme visto, um dos impactos positivos da festa é a valorização dos arranjos produtivos locais, os quais acabam sendo uma das grandes atrações do evento. Segundo a depoente, Sra. Noeli Maria Borré Ruwer, o chopp comercializado na festa costuma ser da marca Eurobier, fabricado no município de Tapejara, a cerca de 350 km de São Paulo das Missões. A forma artesanal de preparação dos alimentos, temperos, harmonização, venda de produtos coloniais, linguiças, são prestigiados durante a Kerbfest, gerando a valorização dos bens culturais locais através da gastronomia.

Observamos, a partir da descrição da Kerbfest, da pesquisa com membros da comunidade, fotografias e outros, que a festa envolve práticas religiosas e profanas, envolve famílias, empresas e comunidade em geral em torno de um objetivo em comum: a celebração da cultura alemã. Traz impactos econômicos através da afluência de visitantes e turistas, e promove a valorização de diversos aspectos da cultura alemã, e, portanto, deve-se refletir em subsídios que garantam a continuidade desse fenômeno social.

Considerações Finais

Essa pesquisa teve como objetivo descrever a Kerbfest, destacando aspectos de sua história, significados e os impactos no entendimento de membros da comunidade, que de alguma forma se relacionam com a festa. Para tanto foram realizados questionários com participantes e organizadores da Kerbfest, coleta e análise de fotografias. A análise dos dados coletados demonstrou alguns significados da festa e sua importância para a comunidade de São Paulo das Missões, pois ela valoriza seus saberes, sua memória e identidade. Conforme Fochesatto (2016), a festa tem grande importância para a comunidade, pela manutenção da cultura e identidade, e também como um atrativo turístico, prestigiada por turistas e visitantes. A investigação possibilitou reconhecer a Kerbfest como um bem cultural o qual precisa ser registrado e preservado.

Conforme visto no referencial teórico, a festa é um momento de manifestação e manutenção da cultura. Na festa étnica, há um intuito de demostrar a importância de determinadas tradições de antepassados para a comunidade, para que se sintam valorizados em sua matriz étnica e em suas diferenças culturais. O artigo apresentou de que forma a Kerbfest integra diversos setores da sociedade em São Paulo das Missões, tais como: igreja, prefeitura, setor privado, lojas, restaurantes, produção de alimentos, bebidas, alojamentos, entre outros, promovendo a interação da comunidade e também entre visitantes e autóctones.

A Kerbfest teve poucas modificações ao longo dos anos, ela se manteve desde a década de 1990, com parte dos organizadores da primeira edição ainda envolvidos no processo. Considera-se que a Kerbfest de São Paulo das Missões gera diversos impactos positivos junto à comunidade e ressalta-se que a programação da festa envolve jovens e crianças, sendo assim possível um horizonte de continuidade deste legado em São Paulo das Missões. Santos (2012) reitera sobre a importância da pesquisa e registro da história das festas tradicionais, pois há uma tendência ao excesso de comercialização, à terceirização da gestão e o consequente afastamento da comunidade autóctone, tanto da organização quanto da participação, pois a turistificação das festas gera o aumento dos preços.

Ainda sobre a continuidade da Kerbfest, conforme a pesquisa, foi visto que há jovens participando da organização e isso é positivo para a continuidade desse legado. Os jovens, aparentemente, compreendem seu papel na transmissão da festa, suas motivações e significados. Assim, conforme a pesquisa, através do envolvimento de jovens autóctones com o planejamento, na percepção dos benefícios da festa para a comunidade, entende-se que há a possibilidade de continuidade deste legado cultural em São Paulo das Missões. Os turistas que têm a oportunidade de participar da Kerbfest, podem vivenciar, experimentar diversos elementos da cultura alemã, interagindo com os autóctones, o que gera aprendizados e a valorização da diversidade cultural. Experiências significativas que devem ser consideradas como fundamentais ao se planejar o futuro da festa.

Referências

Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. Cultura e saber do povo: uma perspectiva antropológica. Revista Tempo Brasileiro, outubro-dezembro, nº147, 2001, Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro. Disponível em: file:///C:/Users/lojalo/Downloads/horizontes-1087.pdf, acessado no dia 22 de abril de 2021.

Ferreira, Maria Nazareth. As Festas Populares na Expansão do Turismo: A Experiência Italiana. Z' Edição. São Paulo. Arte&Ciência, 2005. Disponível em: https://www.unisantos.br/pos/revistapatrimonio/pdf/Ensaio1_v7_n10_abr_mai_jun2010_Patrimonio_UniSantos_(PLT_21).pdf Acesso em: 29 de abril de 2021.

Funari, Pedro Paulo. Gregos. In: FUNARI, Pedro Paulo (org.). As religiões que o mundo esqueceu: como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses. São Paulo: Contexto, 2009.

Fochesatto, Cyanna. O baile do Kerb como espaço de memória: continuidades, permanência e transformação por meio de dois eixos de análise. Patrimônio e Memória, v.12,n.1,p. 122-141, janeiro-junho, 2016.

Gastal, Suzana de Araújo e MACHIAVELLI, Mariana Schwabb. O Olhar sobre a festa. In.: GASTAL, Suzana de Araújo (org.). Olhar do Turismo sobre a Serra Gaúcha. Caxias do Sul: EDUCS, 2012.

Kohler, Mirna. Histórias e mitos de São Paulo das Missões. Santo Ângelo: FuRI; Florianópolis: LEDIX, 2012

Kohler, Mirna. Raízes - São Paulo das Missões: nossa missão, nosso futuro. Santo Ângelo: EDIURI; Florianópolis: LEDIX, 2010

Krone, Evander; Menasche, Renata. Südoktoberfest: patrimônio alimentar e construção da pomeraneidade no extremo sul do Brasil. In.: MENASCHE, Renata. Saberes e Sabores da Colônia: alimentação e cultura como abordagem para o estudo do rural. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.

Santos, Rafael José dos. Turismo, Patrimônio Cultural e Identidade. In.: GASTAL, Suzana de Araújo (org.). Olhar do Turismo sobre a Serra Gaúcha. Caxias do Sul: EDUCS, 2012.

Silveira, Mariela Felisbino. A festa como um bem de referência do patrimônio cultual imaterial: O caso da folia do Zé Pereira no Ribeirão da Ilha. Caderno NAUI, v.1,nº 1, mar- ago. 2012. Disponivel em : https://naui.paginas.ufsc.br/files/2012/03/A-festa-como-um-Bem-de-Refer%C3%AAncia-do-Patrim%C3%B4nio-Cultural-Imaterial-O-caso-da-folia-do-Z%C3%A9-Pereira-no-Ribeir%C3%A3o-da-Ilha2.pdf . Acessado no dia 07de abril de 2021.

Schmidt, Kelly Raquel. Tradição e (re) invenção da tradição: a Oktoberfest de Igrejinha/RS. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural UFPel. Pelotas/RS,2019.

Wolf, Juçara Nair. Festa do Kerb: Espaços de Sociabilidade, Conflitos e Resistências. In: Cadernos do CEON, v. 13, n. 11, 1999. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5703333.pdf . Acessado no dia 10 de maio de 2022.

Abreu, Raphael. Mapa de localização de São Paulo das Missões. https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Paulo_das_Miss%C3%B5es#/media/Ficheiro:RioGrandedoSul_Municip_SaoPaulodasMissoes.svg . Acessado no dia 29/10/2021.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. São Paulo das Missões. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sao-paulo-das-missoes/panorama . Acessado no dia 29/03/2022.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/606. Acessado no dia 29/10/2021.

Tesauro da Cultura e Folclore Brasileiro. Kerb. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/000 01888.htm . Acesso em 20 de novembro de 2021.

Notas

[1] A palavra Kerb tem origem do nome “Kirchweih” que significa festa de dedicação à inauguração do templo (SCHMIDT, 2012 grifo nosso). Segundo o Tesauro da Cultura e Folclore Brasileiro (2021) Kerb é uma festa popular de origem alemã, criada por colonizadores alemães no Rio Grande do Sul. O termo significa festa de inauguração da igreja e representa a confraternização dos familiares. Acontece geralmente no dia do padroeiro (quando a comunidade envolvida é católica) ou no dia da inauguração do templo (quando a comunidade é protestante). Consiste numa missa ou culto e na celebração feita nos salões de festa. Pode atingir até três dias de festividades e compreende desde confraternizações até bailes com leilões. (Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, IPHAN - grifo nosso). Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00001888.htm. Acesso em 20 de março de 2022.
[2] Conforme o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2014), a região das Missões é uma região turística localizada no noroeste do Rio Grande do Sul, é composta por 26 municípios. Tem uma grande importância por atrair turistas para que possam conhecer de perto a origem jesuítica e vivenciar um pouco que o restante de índios que ali residem passam no seu dia a dia. Teve seu reconhecimento pela importância destes bens no cenário cultural dos países da América Latina. As Missões integram a lista do Patrimônio Mundial da UNESCO desde 1983. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1085. Acesso em 06 de abril de 2022.
[3] O Bolão é considerado um dos jogos mais antigos da história. É uma modalidade esportiva composta de uma pista de madeira, bolas de arremesso feitas de madeira ou resina e nove pinos de plástico ou madeira. O objetivo do jogador é arremessar as bolas na pista de madeira e acertar o maior número possível de pinos. A seção do Bolão no Clube foi inaugurada em 15 de agosto de 1964 e, atualmente, participa de diversos campeonatos e envia atletas para a seleção brasileira. Disponível em https://www.ecp.org.br/esportes. Acesso em 06 de abril de 2022.


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