Resumo: A Instrução Normativa 03/2015 da FUNAI é um marco importante no contexto da regulamentação do Turismo em Terras Indígenas, nela o etnoturismo e o ecoturismo aparecem como uma alternativa de renda sustentável, se respeitadas as especificidades dos diferentes territórios. Neste artigo propôs-se analisar o processo de elaboração de um projeto de ecoturismo conduzido pelo Povo Indígena Mura do Careiro da Várzea-Am, por meio da sua Organização formal, a Organização de Lideranças Indígenas Mura do Careiro da Várzea (OLIMCV), a partir de 2019. Objetivou-se, ainda, evidenciar as motivações do referido povo para desenvolver um projeto de turismo nos seus territórios; identificar os agentes sociais (indígenas e não indígenas) envolvidos na elaboração e as articulações políticos culturais em torno dessa construção. Utilizou-se a Teoria Ator Rede de Latour (2012) nas análises dos dados; fazendo-se uso de pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Com a pesquisa constatou-se que os conflitos territoriais e sociais com os não indígenas foram as principais motivações. Dentre alguns desafios enfrentados pelo povo estão, conter o desmatamento, o turismo ilegal, as tentativas de legalização de atividade de mineração dentro do território, as invasões de fazendeiros, dentre outros. Esses fatores mobilizaram o referido povo a buscar estratégias visando a proteção dos seus territórios, sendo a elaboração de um projeto de Ecoturismo Comunitário uma delas, por a conceberem uma alternativa sustentável.
Palavras-chave: Povos Indígenas, Ecoturismo, Gestão territorial e Ambiental.
Abstract: The FUNAI’s normative instruction IN03/2015 is an important milestone in the context of the regulation of tourism in Indigenous Lands, in it ethnotourism and ecotourism appear as an alternative of sustainable income, if respected the specificities of the different territories. This article aimed to analyze the process of elaboration of an ecotourism project conducted by the Mura do Careiro da Varzea- Am Indigenous People, through its formal Organization, the Mura do Careiro da Varzea Indigenous Leadership Organization (OLIMCV), from 2019. The objective was also to highlight the motivations of these people to develop a tourism project in their territories; to identify the social agents (indigenous and non-indigenous) involved in the elaboration and cultural political articulations around this construction. Latour’s Network Actor (2012) was used in data analysis; using bibliographic, documentary and field research. With the research, it was found that territorial and social conflicts with non-indigenous people were the main motivations. Among some challenges faced by the people are, contain deforestation, illegal tourism, attempts to legalize mining activity within the territory, the invasions of farmers, among others. These factors mobilized this people to seek strategies aimed at the protection of their territories, the elaboration of a Community Ecotourism project is one of them, because they conceive a sustainable alternative.
Keywords: Indigenous People, Ecotourism, Territorial Management, Environmental Management.
Resumen: La Instrucción Normativa FUNAI 03/2015 es um hito importante en el contexto de la regulación del turismo em Tierras Indígenas, en el que el etnoturismo y el ecoturismo aparecen como uma alternativa de ingresos sostenibles, respetando las especificidades de los diferentes territórios. Este artículo se propone analizar el proceso de elaboración de un proyecto de ecoturismo realizado por el Pueblo Indígena Mura do Careiro da Varzea-Am, através de su Organización formal, la Organización de Liderazgo Indígena Mura do Careiro da Varzea (OLIMCV), a partir de 2019. El objetivo también fue resaltar las motivaciones de los referidos pueblos para desarrollar un proyecto turístico em sus territórios; identificar los agentes sociales (indígenas y no indígenas) involucrados en la elaboración y las articulaciones políticas culturales en torno a esta construcción. En el análisis de datos se utilizó la Teoría de la Red del Actor de Latour (2012); haciendo uso de investigaciones bibliográficas, documentales y de campo. Con la investigación se encontro que los conflictos territoriales y sociales com los no indígenas fueron las principales motivaciones. Entre algunos de los retos que enfrenta el pueblo están, contener la deforestación, el turismo ilegal, intentos de legalizar la actividad minera dentro del território, invasiones de campesinos, entre otros. Estos factores movilizaron a las personas antes mencionadas a buscar estratégias encaminadas a proteger sus territórios, siendo una de ellas el desarrollo de un proyecto de Ecoturismo Comunitario, pues concibieron una alternativa sostenible.
Palabras clave: Pueblos Indígena, Ecoturismo, Gestión Territorial y Ambiental.
Artigos originais
O lugar do Turismo no processo de gestão territorial e ambiental na terra indígena Mura do Careiro da Várzea-AM
The place of tourism in the process of territorial and environmental management in the Mura indigenous land of the Careiro da Varzea-AM
El lugar del turismo en el proceso de gestión territorial y ambiental en la tierra indígena Mura del Careiro da Várzea-AM
Recepción: 17 Octubre 2022
Aprobación: 28 Diciembre 2022
Antes da Pandemia da Covid-19, povos indígenas de diferentes etnias e localidades, no Brasil e nos países vizinhos, a exemplo da Colômbia e do Peru, realizavam experiências com o turismo, particularmente com o chamado Turismo Comunitário ou Turismo de Base Comunitária (TBC). Estudos realizados por pesquisadores da área do turismo e de outras áreas tais como a geografia e antropologia, apontavam que o turismo realizado em Terras Indígenas (TIs) era uma atividade em expansão, ganhando força na América Latina. Segundo Maldonado (2009) na América Latina foram ações lideradas e organizadas por movimentos indígenas com intuito de criar estratégias de resistência cultural e política frente às ameaças de invasão territorial, degradação ambiental e atividades turísticas ilegais dentro dos seus territórios.
No âmbito dos territórios indígenas, as atividades turísticas chegaram, inicialmente de forma controversa e realizadas por agentes externos como apontam os estudos de Silva (2010) que coordenou um Grupo de Trabalho criado dentro da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para analisar as práticas de turismo dentro das terras indígenas, uma ação ilegal na época. Várias foram às atividades turísticas denunciadas pelos indígenas dentro de seus territórios, as quais eram realizadas por empresários do setor, gerando conflitos sociais e territoriais.
Essas atividades ilegais mobilizaram representantes de diferentes povos indígenas em torno do ordenamento da atividade. A partir de 11 de junho de 2015, com a Instrução Normativa 03 da FUNAI, dá-se início ao processo de regulamentação da atividade dentro das TIs, pois ela estabelece algumas diretrizes obrigatórias, a exemplo do disposto no artigo 5°, referente a obrigatoriedade de elaboração de um Plano de Visitação para fins turísticos, com intuito de contribuir na estruturação da atividade enquanto uma alternativa de geração de renda para as comunidades, que seja ao mesmo tempo, um instrumento de conservação ambiental e valorização cultural.
Com o intuito de apreender essas questões, partindo da realidade amazônica, particularmente, do estado do Amazonas, focou-se a análise sobre o processo de construção coletiva de um projeto de turismo, iniciado pelo Povo Mura do Careiro da Várzea por meio de sua associação comunitária, a Organização de Lideranças Indígenas Mura do Careiro da Várzea (OLIMCV). Segundo lideranças da associação, ouvidas na pesquisa de campo, a articulação com parceiros indígenas e não indígenas para a elaboração do projeto denominado Ecoturismo Jabuti surgiu em julho de 2019, quando realizaram a primeira oficina visando a elaboração do Plano de Visitação, conforme preconiza IN 03 da FUNAI.
É importante ressaltar que existem dois cenários representativos no processo de elaboração do Plano de Visitação para a TI Mura do Careiro da Várzea. O período anterior a pandemia da Covid-19 (2019) e o período após a sua instalação (2020 a 2022). Ao longo de 2019 havia uma forte articulação por parte das lideranças indígenas Mura em torno da elaboração do Plano de Visitação, a exemplo da realização das oficinas, componente exigido na IN03/2015, no processo de elaboração do Plano. Nesse momento a construção participativa do Plano, mediante a realização de oficinas, envolveu atores sociais de diferentes instituições indígenas e não indígenas. Com a pandemia da Covid-19, as oficinas paralisaram, sendo retomadas no dia 14 de Outubro de 2021conforme será apresentado no quadro 01. Dentre algumas mudanças encontradas no processo de construção do plano na segunda fase, estão uma menor participação de todas as aldeias do território se comparada à primeira fase. Notou-se que quatro aldeias estavam mais articuladas em torno do processo sendo elas as aldeias Jabuti, Sissayma, Galiléia e Gavião.
As reflexões sobre o turismo em TIs demandam um esforço analítico peculiar de modo a trazer a tona os danos, conflitos e prejuízos aos territórios indígenas em tempos em que não havia nenhum tipo de legislação visando o ordenamento da atividade, mas principalmente para avaliar quais foram, de fato, os avanços após o processo de legalização em curso. Tais reflexões são trazidas neste artigo ao problematizar a iniciativa do povo Mura do Careiro da Várzea-Am, para tanto, elegeu-se as seguintes questões norteadoras: em quais bases conceituais e culturais se assentam o Projeto de Gestão territorial Mura? Por que decidiram estruturar um projeto de Turismo Comunitário? Quais os agentes sociais (indígenas e não indígenas) envolvidos na elaboração do Plano de Visitação?
Essas são algumas das questões que nortearam a pesquisa que teve como objetivo geral analisar o processo de elaboração do Projeto de Turismo Jabuti e, consequentemente, do Plano de Visitação turística conduzido pelas lideranças do Povo Mura do Careiro da Várzea, por meio da OLIMCV. A pesquisa também objetivou conhecer as estratégias das lideranças indígenas vinculadas a OLIMCV na gestão territorial e ambiental da terra indígena Mura do Careiro da Várzea; compreender as motivações dos indígenas da TI Mura do Careiro da Várzea e dos representantes da OLIMCV para desenvolver um projeto de turismo nos seus territórios; e, ainda, identificar os agentes sociais (indígenas e não indígenas) envolvidos na elaboração da proposta de turismo no território Mura.
Neste artigo estão algumas das discussões feitas na dissertação realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), cuja abrangência da pesquisa envolve as estratégias do Povo Mura do Careiro do Várzea-Am visando a Gestão Territorial e Ambiental de seu território, sendo o turismo um tema recorrente, pois na perspectiva dos representantes do referido povo, é uma das alternativas mediante a qual podem obter renda, propiciar a conservação ambiental e fortalecer a cultura.
A pesquisa caracteriza-se como qualitativa, fazendo-se uma triangulação metodológica, envolvendo pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Como proposta teórico-metodológica utilizou-se a Actor- Network Theory (ANT) em inglês, ou em português Teoria Ator-Rede (TAR) de Latour (1994) anunciada e discutida no livro “Jamais Fomos Modernos”, que tem como premissa compreender as dinâmicas sociais a partir de agentes humanos e não humanos como actantes, o que apregoa um diálogo mais plural e simétrico. A análise por meio da TAR não divide em hierarquias o local ou global, a sociedade ou a natureza, todos os agentes têm a mesma relevância para a compreensão da realidade social. “A noção de rede é mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a noção de estrutura, mais empírica que a de complexidade.” (Latour, 2012, p.9). Estudar o turismo mediante a ferramenta metodológica TAR nos permite desconstruir “imagem” do TBC como um “modelo de turismo adequado”, nos ajuda a refletir criticamente o turismo como um fenômeno social, organizado em redes, como propõe o autor.
Flick (2009) afirma que a pesquisa qualitativa pode recorrer a diversificadas metodologias de investigação, nessa perspectiva podem ser utilizadas várias técnicas de coleta e análise de dados, com uma triangulação de métodos. Com base no autor referenciado a pesquisa utilizou três metodologias para levantamento dos dados.
A metodologia do trabalho deu-se a partir da associação direta entre pesquisa bibliográfica, documental e de campo (presencial e virtual). No primeiro momento no que tange à pesquisa bibliográfica, foram efetuadas leituras de teses, dissertações, livros vinculados aos povos indígenas do Brasil e Amazonas, além de estudos sobre planejamento do turismo, a exemplo do Plano de Visitação Yaripo Ecoturismo Yanomami (2017).
Sobre o aspecto documental foram consultados documentos produzidos por três instituições. A primeira, uma instituição indígena, a OLIMCV, que disponibilizou o Protocolo Trincheiras Yandé Peara Mura (2019), o estatuto da associação e as atas das oficinas realizadas para a construção do plano de visitação realizadas no período de 2019 a 2021.
A segunda instituição, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Cultura Amazônica (NEICAM/UEA), a época, um dos parceiros não indígenas que colaborou no processo de construção do plano de visitação. O referido grupo de pesquisa disponibilizou os relatórios dos trabalhos de pesquisa de campo, apresentações em Power Point das oficinas sobre a IN 03/2015 da FUNAI realizadas em 2019 e 2021 nas aldeias Jabuti e Sissayma e, ainda, registros fotográficos.
A terceira instituição, a Fundação Estadual do Índio (FEI), viabilizou o acesso aos relatórios de assessoria técnica prestada pelo órgão que esteve presente em todas as oficinas. A referida instituição foi responsável pela articulação da logística junto a Prefeitura do município do Careiro da Várzea para a realização das oficinas. Cabe assinalar que as oficinas são os meios indicados na IN03 para a elaboração coletiva do plano de visitação.
No segundo momento, foi realizada a pesquisa de campo que ocorreu por meio presencial e virtual. A pesquisa de campo virtual seguiu as diretrizes propostas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP, 2021, p.1) que compreende:
Meio ou ambiente virtual: aquele que envolve a utilização da internet (como e-mails, sites eletrônicos, formulários disponibilizados por programas, etc.), do telefone (ligação de áudio, de vídeo, uso de aplicativos de chamadas, etc.), assim como outros programas e aplicativos que utilizam esses meios.
O lócus da pesquisa abrangeu a Terra Indígena Mura do município do Careiro da Várzea conforme pode ser visto na figura (1), cujo território possui paisagens de várzea e terra firme, habitado por um povo, que por séculos, luta em defesa do seu lugar e de sua existência. A TI Mura do Careiro da Várzea reúne doze aldeias: Bom Futuro, Gavião, Jabuti, Jacaré, Jutaí, Mura Tukumã, Mutukinha, Ponciano, Santo Antonio, Sissayma, Boa Vista e a Galiléia (mais recente terra demarcada), essas comunidades estão organizadas com representatividade por meio da OLIMCV.
Para a pesquisa de campo foram delimitadas quatro (4) aldeias[1], a saber: Jabuti, Sissayma, Gavião e Galiléia, por serem logisticamente mais próximas e porque são as aldeias envolvidas diretamente com o planejamento do projeto de turismo em construção. Outro fator que direcionou a delimitação da área para pesquisa in loco refere-se aos conflitos atuais enfrentados pelos moradores das aldeias citadas, como a invasão dos seus territórios por instalação de pousadas dentro da terra indígena e atividades de turismo de pesca esportiva ilegais, conforme dados organizados por pesquisadoras do NEICAM/UEA em 2021.
No percurso da coleta de dados destaca-se a participação na 4° Oficina realizada na aldeia Sissayma em outubro de 2021. A oficina foi realizada pela OLIMCV e teve como agente externo mediador o NEICAM/UEA. Como participantes estiveram catorze indígenas das aldeias Jabuti, Sissayma e Jacaré, dentre eles um indígena que atualmente atua como chefe do Departamento de Desenvolvimento Sustentável da FEI. Dentre os participantes não indígenas participaram três pesquisadoras do NEICAM/UEA.
A oficina foi muito importante para levantar dados referentes aos principais conflitos enfrentados pelo povo Mura do Careiro da Várzea hoje, dentre ele o turismo ilegal. Durante a oficina foi possível ouvir diversas vozes indígenas, que expuseram informações detalhadas sobre as agências de turismo que invadem o território Mura. Foi o momento em que cada um avaliou os impactos que a “pesca esportiva” feita pelos invasores podem acarretar. Por isso considera-se que foi um momento fundamental para a pesquisa, funcionando como uma entrevista coletiva, um grupo focal.
Ao longo da pesquisa de campo realizou-se entrevistas com as lideranças e moradores da TI Mura do Careiro da Várzea feitas por meios tecnológicos e digitais. As entrevistas foram semiestruturadas, utilizando-se três estratégias: ligação telefônica, gravação de áudio no aplicativo Whatsapp e videoconferência, utilizando a plataforma digital Google Meet. A adoção de diferentes plataformas justificou-se pela dificuldade dos moradores em ter acesso a internet. Embora tenha-se deparado com essa limitação, este foi um meio de estar em contato com os interlocutores da pesquisa no período em que estava proibido a entrada nas terras indígenas em virtude da Pandemia da Covid-19.
O diário de campo também foi um instrumento importante, usado durante a realização da 4° Oficina, e, ainda, durante a participação em eventos científicos referentes ao tema da pesquisa, particularmente naqueles em que estiveram presentes representantes indígenas de territórios onde há atividades turísticas. Após a coleta e organização dos dados obtidos pelos diferentes procedimentos metodológicos, fez-se a análise crítica, consubstanciada pela Teoria Ator Rede- TAR de Latour (2012).
O turismo em Terras Indígenas (TIs) é uma atividade recente, que começou a ser articulada a priori por não indígenas, sobretudo empresários do setor, conforma apontam os estudos de Silva (2010). Para o autor os discursos reproduzidos pelas operadoras de turismo, instigaram em muitos dos povos indígenas algumas expectativas imediatistas sobre a atividade, tais como um retorno econômico em curto prazo. “O resultado da pesquisa apontou que a demanda pela realização de atividades turísticas nas terras indígenas brasileiras, quando sugerido por empreendedores não indígenas, fundamenta-se essencialmente, na lógica capitalista brasileira, ou seja, obter o melhor lucro com o menor custo” (Silva, p. 18).
Com base nos estudos de Silva (2010) podemos entender que existem duas lógicas que direcionam a implementação de um projeto de turismo em (TIs), as lógicas não indígenas que grande parte são conduzidas pelo fator econômico, e as lógicas indígenas que incorporam outras questões tais como promover alternativas de gestão territorial e ambiental, autonomia e bem viver para as comunidades envolvidas.
O termo gestão, segundo Little (2006), se refere a ações humanas que tem como objetivo administrar, gerir, gerenciar o uso tanto do território como do ambiente, pontuando que apesar do termo ser muito utilizado no plano empresarial ou governamental, se aplica também aos modos de uso dos recursos naturais. Para o autor os termos territorial e ambiental são distintos, “o termo território sempre está associado a uma entidade política específica, enquanto o termo ambiental é mais amplo, a relação entre os organismos e seu meio ambiente é de tipo ecológico e não diretamente político”.[2]
Ainda segundo o autor as lógicas de gestão do ambiente e território se diferenciam de acordo com o objetivo das ações, pois “a gestão ambiental tem menos interesse em transformar o ambiente que em sua manutenção enquanto sistema ecológico. Quando a gestão ambiental é utilizada para fins produtivos, apoia-se em técnicas com baixo impacto sobre os fluxos biofísicos”. (Little, 2006, p.21). A gestão territorial, no entanto, objetiva agir no campo político de administração de um território.
O autor analisou as duas categorias gestão ambiental e gestão territorial identificando os aspectos diferentes em ambas, com base em seus estudos vê-se que a gestão territorial se refere à busca pela autonomia e governança no aspecto político e no que concerne aos povos indígenas diz respeito à luta para que se faça valer a legislação sobre as terras indígenas e direitos sociais indígenas. A gestão ambiental tem como premissa criar mecanismos para uso dos recursos naturais com atividades de baixo impacto e colaborar com ações já desenvolvidas por esses povos tais como o manejo e vigilância ambiental.
No que diz respeito à compreensão indígena o território não se dissocia do ambiente, é um bem de uso comum e coletivo, conforme foi apresentado nos estudos de Viveiros de Castro (2002) sobre o pensamento ameríndio. Logo as lutas para desenvolver estratégias de gestão ambiental e territorial visam o protagonismo indígena para a garantia de autonomia em suas organizações sociais, seus modos de vida e bem-viver.
Por meio da Teoria Ator de Rede (TAR) de Latour (2012), Moraes (2018) produz uma importante reflexão sobre iniciativas de TBC na América Latina, fator decisivo para eleger a referida teoria na pesquisa no território Mura. Esse caminho ajudou a entender como vem sendo construída uma rede de ações para organizar o turismo realizado em terras indígenas, em diferentes territórios, revelando meandros significativos da mobilização do povo Mura do Careiro da Várzea-Am.
Latour (2012) define a rede sociotécnica como um conjunto heterogêneo de agentes humanos e não humanos alinhados em torno de objetivo em comum. A rede segundo o autor, apesar de buscar um objetivo em comum é composta de controvérsias e requer movimento “se o social permanece estável e consegue justificar um estado de coisas, não é a ANT” (Latour, 2012, p. 30). Nesse sentido, um dos principais diferenciais da TAR com relação à abordagem sociológica clássica é considerar também os elementos não humanos na produção de realidades, para que se possa entender como uma rede é constituída.
Isso porque, pela perspectiva da ANT, esses elementos constituem “híbridos sociotécnicos” capazes de mobilizar ações nas dinâmicas em transformação, não se restringindo apenas a representar objetos ou projeções simbólicas que imprimem significados. Sobre os elementos não humanos constitutivos do processo de TBC, é importante ressaltar, ainda, que os recursos naturais preservados, como praias, dunas, lagoas, mangues, falésias, mares e matas, comumente considerados como pontos focais de interesse turístico, são capazes igualmente de gerar efeitos nas dinâmicas onde as comunidades da Rede TUCUM estão situadas. Isso porque compõem processos permeados por conflitos e contradições que envolvem, por exemplo, a disputa entre os inúmeros interesses relacionados à regularização da situação dos territórios de todos os grupos comunitários, às dinâmicas de proteção da natureza – por meio da criação de áreas protegidas em seus locais herdados –, e ao próprio mercado turístico, que contribui para a impulsão da especulação imobiliária, do turismo de veraneio e da urbanização nessas áreas de inserção da Rede. (MORAES et al. 2020, p.159).
Nesse contexto, o foco se desloca do “social”, entendido como um lugar de troca entre apenas atores humanos, para as associações entre humanos e não humanos, que participam dessa rede.
Moraes (2018) afirma que um dos principais motivos encontrados para a construção de uma rede de TBC é a comercialização de um destino.
A construção de redes nas iniciativas de TBC, se configura como um movimento de articulação de ações direcionadas, sobretudo, à comercialização no mercado de viagens e turismo, ao intercâmbio e ao compartilhamento de informações, à gestão e à operacionalização de empreendimentos, à influência em políticas públicas e ao fortalecimento de capacidades locais e de mobilização social, realizando alianças em escala local, nacional e internacional. (Moraes et al. 2018, p.249).
Um dos aspectos citados pela autora para construção de uma rede sociotécnica é o objetivo de influenciar em políticas públicas e o fortalecimento de capacidades locais e de mobilização social. Com base nesses paradigmas apontados, e adotando a TAR como ferramenta de análise do TBC, vê que a categoria pode ser estudada para além de uma alternativa ao turismo convencional, mas incluindo os conflitos, e as diferentes dinâmicas de interesse seja por parte da comunidade receptora, ou pelo poder público e privado envolvidos na atividade tais como secretaria de turismo, prefeitura, dentre outros.
Ao analisar sobre o turismo em terras indígenas a nível nacional no contexto do Brasil, por meio da pesquisa foram encontradas duas principais políticas públicas que compõem as estratégias de regularização e fortalecimento da atividade nos territórios indígenas, e podem ser classificadas como agentes não humanos. Segundo os autores Bavaresco e Menezes (2014), a primeira é a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI), que é uma conquista dos povos indígenas no que se refere a uma política pública do Estado brasileiro para apoiar ações de gestão ambiental e territorial que já fazem parte da relação homem/natureza na compreensão indígena de território e suas formas de uso dos recursos naturais com base na cultura autóctone.
A PNGATI é firmada pelo decreto 7.747, 5 de julho de 2012, e dividida em quatros seções, sendo a primeira seção uma contextualização do caminho até a elaboração da política, a segunda seção traz as ferramentas de gestão territorial e ambiental, a terceira apresenta e discute os sete eixos que compõem a política, e a quarta aborda as instâncias de governança e financiamento.
A PNGATI foi construída com a participação dos povos indígenas e vem para reconhecer e apoiar a gestão ambiental e territorial que já é realizada por estes povos em suas terras. Essa política pública cria espaço e traz oportunidades para que povos indígenas e o Estado dialoguem em torno de um objetivo comum e aliem suas forças para o enfrentamento das dificuldades e desafios que os povos indígenas brasileiros enfrentam nos dias de hoje. (Bavaresco e Menezes, 2014, p.9).
Em termos gerais pode-se dizer que a referida política se mostra um caminho para o diálogo mais amplo e simétrico entre povos indígenas e poder público, além de promover o protagonismo e autonomia da gestão para o fortalecimento de planos e projetos desenvolvidos para defesa e proteção dos territórios, valorização de suas culturas e possível alternativa de renda. A política tem como objetivo principal:
[...] Garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente. (PNGATI, decreto n°7.747, 5 de julho de 2012).
É importante dizer que a PNGATI no 5° eixo “Uso Sustentável de Recursos Naturais e Iniciativas Produtivas Indígenas” dispõe sobre o incentivo e apoio de atividades como o turismo, desde que as atividades sejam assentadas na decisão dos povos indígenas por meio de consulta prévia e participação comunitária efetiva no planejamento e na gestão.
Apoiar iniciativas indígenas sustentáveis de etnoturismo e de ecoturismo, respeitando a decisão da comunidade e a diversidade dos povos indígenas, promovendo-se, quando couber, estudos prévios, diagnósticos de impactos de impactos socioambientais e a capacitação das comunidades indígenas para a gestão dessas atividades. Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI, decreto n°7.747, 5 de julho de 2012).
A PNGATI é uma política pública que integra o turismo como uma possível ferramenta no processo de gestão territorial e ambiental, mas não se direciona a legalização da atividade.
A Instrução Normativa 03/2015 da FUNAI é a segunda política pública que destacamos, cuja finalidade é ordenar e legalizar as atividades de turismo em territórios indígenas. Ela apresenta diretrizes obrigatórias para que um projeto de turismo seja efetuado em TIs, uma dessas diretrizes é a elaboração de um plano de visitação.
As atividades de visitação para fins turísticos em terras indígenas serão propostas mediante Plano de Visitação, apresentado por indígenas, suas comunidades ou suas organizações, denominados para fins dessa Instrução Normativa como proponentes, contendo: objetivos e justificativas da proposta de visitação; público alvo; frequência de visitas previstas, quantidade máxima de visitantes por visita e previsão de tempo de duração por visitas [...]. (INSTRUÇÃO NORMATIVA 03/2015, p.2).
A partir da análise sobre a PNGATI e a IN03/2015, que são duas políticas públicas direcionadas ao incentivo de atividades que proporcionem autonomia e protagonismo para os povos indígenas em gerir seus territórios, vê se que a legalização das atividades de turismo dentro dos territórios indígenas é recente. E bem como salienta Silva (2010) a atividade chegou de forma desordenada e conduzida por não indígenas, sobretudo empresários do setor. Devido a tais fatores os povos indígenas buscaram junto a FUNAI elaborar diretrizes para ordenar essas ações.
Com base na PNGATI e IN03/2015 vimos que existem políticas públicas elaboradas e construídas em conjunto com os povos indígenas, para o incentivo e ordenamento de projetos que garantam a autonomia na gestão de seus territórios. No entanto o grande desafio é fazer com que essas políticas públicas sejam de fato respeitadas, sobretudo pelos não indígenas. Nesse sentido é importante a construção de alianças com outros agentes sociais, tais como o Estado, sociedade civil, dentre outros, para que de fato essas ações sejam efetivadas. É com esse objetivo que o Povo Mura do Careiro da Várzea por meio da OLIMCV tem construído uma rede sociotécnica com agentes indígenas e não indígenas para fortalecer seus projetos de gestão territorial e ambiental.
Desse modo é importante destacar segundo a pesquisa, que os projetos, as ações, organizadas pelos moradores e lideranças da TI Mura do Careiro da Várzea são regidos e conduzidos com base nas PNGATI, tais projetos não tem o turismo como a principal atividade proposta, mas como uma possível alternativa de gestão territorial e ambiental a partir de conflitos enfrentados com não indígenas que realizam o turismo ilegal dentro do território. Com vistas a combater e organizar essas ações ilegais é que a OLIMCV utilizou-se da ferramenta IN03/2015 para propor um projeto que seja do povo Mura, e gerido por indígenas conforme dispõe a lei, onde os indígenas não sejam coadjuvantes, mas participem de todo processo, desde a elaboração do plano até a condução da atividade.
Cabe destacar que atualmente o povo indígena Mura vive em dois territórios distintos: um grupo tem seu território localizado no município de Autazes-Am, outro no município de Careiro da Várzea-Am, sendo esse último o lócus da nossa análise.
A ideia de estruturar um projeto de turismo comunitário dentro da TI Mura do Careiro da Várzea começou a ser planejada em 2019, segundo os relatos dos moradores e das lideranças que participaram da criação dele. Essas informações também foram acessadas por meio das atas das reuniões disponibilizadas pela OLIMCV para a realização da pesquisa, e das entrevistas realizadas em janeiro de 2022 pela plataforma Google Meet.
Os motivos que levaram o povo Mura a buscar o turismo como uma das alternativas de renda sustentável no processo de gestão territorial e ambiental, se deve ao fato de que os moradores perceberam que o desmatamento estava tendo uma grande proporção dentro do território, conforme pode ser visto no relato de uma das lideranças ouvidas na pesquisa de campo. A liderança indígena relatou conflitos internos causados pelo assédio dos não indígenas, que invadem o território para a derrubada de madeira ilegal, como também para realizar atividades de pesca esportiva ilegais.
Conforme uma liderança, os indígenas estavam sendo assediados pelos madeireiros para realizar o corte de madeira principalmente da castanheira (Bertholletia excelsa) como pode ser reiterado na fala a seguir.
Os próprios parentes estavam andando junto com os fazendeiros, desmatando a própria terra indígena e isso tornou-se pra nós uma grande preocupação. E a gente percebeu também que ao nosso redor cresceu muito essa questão de pousadas de turismo, entendeu? E a gente sabe que no nosso território existe essa vantagem pro turismo ecológico. E a gente começou a ter esse pensamento né, como você vai chegar com um parente e dizer pra ele parar de desmatar que aquilo é crime e ele não deve fazer, porque uma vez que o parente já ta desacostumado, já perdeu a prática de plantar roça, já perdeu a prática de pescar e que achou um meio mais viável e até mais fácil de ganhar recurso cerrando madeira. E aí você fica imaginando mil coisas e tentando buscar uma alternativa pra isso. Então a gente percebeu que se a gente pensasse numa proposta de fazer turismo com a terra indígena mas no sentido de preservar a natureza e manter a natureza intacta, mas ter um retorno financeiro para essas famílias. Porque eles vão parar a prática de derrubar madeira mas aí você tem que apresentar uma contra proposta pra eles. E a gente viu o turismo como essa alternativa. (H.MURA, 2022).[3]
Ainda de acordo com a liderança, os membros da associação se reuniram para discutir sobre a ideia de desenvolver o turismo ecológico dentro do território visando minimizar os efeitos do desmatamento e propiciar uma possível alternativa econômica.
É importante deixar claro que o projeto é uma iniciativa do Povo Mura, que tem buscado apoio de outros agentes indígenas e não indígenas. Dessa forma a elaboração de um projeto de turismo tornou-se uma das ações prioritárias da OLIMCV em 2019. O primeiro contato em busca de uma instituição parceira não indígena segundo a liderança Mura, foi com à Empresa Estadual de Turismo do Amazonas (AMAZONASTUR). “Quando a gente foi pra uma reunião e primeira visita técnica a representante da Amazonastur condenou tudo, falou que ali não tinha estrutura e que não é isso que o turista quer, ela botou bem pra baixo”. (H. MURA, 2022).[4] Segundo a liderança nesse primeiro momento de articulação, outros agentes não indígenas demonstraram interesse em colaborar com a elaboração do projeto, e ofertaram a estrutura logística para a realização da primeira oficina. “Além da Amazonastur entrou como parceiros a prefeitura do município de Careiro da Várzea, a Secretaria de Cultura e Turismo, tinham muito interesse inclusive a prefeitura colocou a disposição a estrutura logística, uma lancha pra gente realizar as oficinas”. (H.MURA, 2022).[5]
Visando elaborar o projeto a partir do que dispõe a IN03/2015 da FUNAI, a OLIMCV entrou em contato com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Cultura Amazônica (NEICAM/UEA), grupo de pesquisa que tem como uma das linhas de atuação estudos sobre turismo em territórios indígenas. A partir desse contato fecharam uma parceria para realização das oficinas para construção do plano de visitação, o qual dever ser construído coletivamente, mas tendo os representantes indígenas como protagonistas do processo.
No quadro 01 estão relacionadas às referidas oficinas, que iniciaram antes da Pandemia da Covi-19 e, conforme citado em páginas precedentes, pausadas por um período, sendo retomada em fevereiro 2022, após o surto pandêmico no Estado do Amazonas. No total a OLIMCV conseguiu realizar quatro (4) oficinas.
A 1° Oficina sobre o processo de construção do Plano de Visitação aconteceu em julho de 2019 na aldeia Jabuti. Teve como objetivo reunir os indígenas e não indígenas parceiros para discutirem sobre a elaboração do plano de visitação, tirar dúvidas sobre a IN 03/2015 da FUNAI que regulamenta as atividades de turismo nas TIs. Durante essa oficina os representantes indígenas construíram o escopo do projeto denominado Ecoturismo Jabuti e alinharam as estratégias em busca outros parceiros além da Amazonastur.
A 2° Oficina aconteceu em setembro de 2019 também na aldeia Jabuti objetivando dar continuidade as discussões sobre a elaboração do plano de visitação. Nela viabilizaram um debate mediado pela Amazonastur sobre o turismo e seus impactos, uma iniciativa para ampliar a compreensão dos participantes indígenas sobre a atividade. Foi nessa oficina que o grupo de pesquisa NEICAM/UEA iniciou a parceria com a OLIMCV, podendo conhecer e analisar as concepções dos representantes do Povo Mura sobre os “projetos de futuro” para os seus territórios.
A IN 03 orienta sobre a importância do planejamento participativo, assim, a 3° oficina seguiu a dinâmica das anteriores e deu continuidade ao processo de elaboração do Plano de Visitação sendo realizada nos dias 22 e 23 de novembro de 2019, na aldeia Sissayma. Nela seguiu-se a metodologia participativa, com base nas discussões e encaminhamentos feitos na 1° e 2° oficina, que a subsidiaram e fizeram com que avançassem, trazendo para a discussão a estruturação de roteiros turísticos, feitos pelos participantes indígenas, a partir do que haviam discutido até aquele momento.
Em virtude de algumas dúvidas que surgiram na oficina anterior, na 4°oficina resgatou-se a abordagem sobre a Instrução Normativa 03 da FUNAI, fazendo-se uma leitura detalhada e reflexiva de modo que fossem dirimidas as dúvidas, e, assim, pudessem avançar. Foi realizada nos dias 14 e 16 de Outubro 2021 na aldeia Sissayma. A forma como foi organizada a discussão provocou a participação efetiva dos representantes indígenas, fazendo com se posicionassem de uma forma crítica, diferente das outras oficinas. Essa postura crítica levou-os a apontar os problemas ocasionados pelo turismo ilegal que ocorre no território Mura, a questionarem-se sobre o projeto turístico que almejam implementar, enfim, sobre os aspectos positivos e negativos da atividade.
Com o intuito de apresentar os principais motivos que levaram os representantes do Povo Mura a criar o Projeto de Ecoturismo Comunitário Jabuti, estruturou-se o quadro 2, elaborado a partir da transcrição dos relatos obtidos durante as entrevistas.
A partir dos relatos compreende-se que um dos motivos em comum, encontrados em todas falas, é o intuito de desenvolver o ecoturismo dentro da TI Mura do Careiro da Várzea, como uma ferramenta de gestão ambiental para o território conforme dispõe o 5° eixo da PNGATI, para controlar sobretudo o desmatamento ilegal. Outro motivo encontrado é o desejo de legalizar um projeto de turismo do Povo Mura, de modo que atividade ocorra de forma legal conforme orienta a IN 03/2015 da FUNAI, e não como tem ocorrido de forma invasiva causada pelos não indígenas, que seja, sobretudo, protagonizado pelos próprios Mura.
Tomando como análise a linha cronológica da construção do plano de visitação, com base em Latour (2012), podemos inferir que a rede sociotécnica do Povo Mura é composta de indígenas, como também de não indígenas tais como o NEICAM/UEA, AMAZONASTUR, Prefeitura do Município do Careiro da Várzea, dentre outros. E como agentes não humanos estão elencados os territórios, os conflitos internos e externos, as políticas públicas direcionadas a legalização da atividade. Bem como apregoa o autor em seu conceito de rede sociotécnica, viu-se na pesquisa que apesar do objetivo proposto no projeto ser comum para ambos os agentes participantes, existem as controvérsias, à exemplo do que foi relatado pela liderança indígena do projeto ser desenvolver o turismo.
A pesquisa de campo propiciou a compreensão sobre qual situação se encontra o projeto de Ecoturismo Jabuti e quais os fatores que instigaram a criação do projeto pelos moradores das comunidades e pelos representantes da OLIMCV. Em março de 2022, o projeto estava em fase de escrita, o Plano de Visitação em processo de construção. Portanto, várias ações acontecendo concomitantemente, interligadas pela articulação com as instituições indígenas e não indígenas, a saber: OLIMCV, FEI, NEICAM/UEA, Secretaria de Turismo do Município do Careiro da Várzea, Instituto Acariquara, conforme estabelece as diretrizes da IN 03/2015 Art. 5° item 2, em uma dinâmica que pressupõe a estruturação de uma atividade feita pelos indígenas e não para eles.
Entendeu-se a partir da pesquisa que o Povo Mura quer implementar o ecoturismo em seus territórios de forma legalizada, conforme orienta a IN03 da FUNAI e a PNGATI, para garantir a gestão comunitária da atividade e propiciar uma alternativa de renda. É importante assinalar que há outros projetos no território Mura, também feitos a partir de articulações e parcerias com instituições não indígenas, mas fruto do protagonismo indígena, à exemplo do Projeto Guardiões da Floresta em parceria com o Fundo Casa Socioambiental, Projeto de Agricultura Familiar em parceria como a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Projeto de Manejo de Pesca em parceria com a Fundação Estadual do Índio (FEI), dentre outros.
Aplicando-se a TAR de Latour (2012) na análise dos dados referente aos projetos criados pela OLIMCV, possibilitou identificar como é formada a rede sociotécnica da TI Mura do Careiro da Várzea. Pode-se afirmar que essa rede vem se constituindo desde 2008, com a criação da OLIMCV, como uma associação que representa estrategicamente todas as aldeias do território. É importante relembrar que, a priori, a associação era composta apenas de professores indígenas, contudo, como um dos objetivos principais das lideranças e dos moradores da TI é discutir e planejar ações estratégicas que se referem sobretudo a proteção e conservação ao território, ampliou-se as linhas de ações da OLIMCV para todos os moradores interessados em debater, elaborar projetos sobre todos os temas referentes ao território Mura.
Todas as ações da rede sociotécnica do povo Mura se direcionam a defesa do território, autonomia e bem viver, buscando alternativas e mecanismos que subsidiem seus projetos. Em 2022 nota-se que a rede tem se consolidado de agentes humanos indígenas e não indígenas e de agentes não humanos. A mudança na estruturação dessa rede se deve ao fato da OLIMCV buscar parcerias externas para a efetivação dos seus projetos, a exemplo do projeto de turismo aqui estudado.
O povo Mura do Careiro da Várzea enfrenta atualmente um cenário conflituoso com agentes não indígenas, dentre eles madeireiros, fazendeiros, empresa de exploração de potássio, empresários do setor de turismo de pesca esportiva. Diante do desafio de proteger e conservar seus territórios da exploração indevida e das invasões, assentadas nas lógicas capitalistas do uso dos recursos naturais, a associação Mura OLIMCV tem estruturado projetos em parceria com agentes não indígenas, em busca de fomentar estratégias de gestão territorial e ambiental para a referida TI.
O projeto Ecoturismo Comunitário é hoje uma das ações que estão sendo articuladas para tal objetivo. Até o momento presente foram realizadas quatro oficinas para a construção do plano de visitação, obrigatoriedade imposta pela FUNAI por meio da IN 03/2015, para a realização de atividades turísticas em terras indígenas.
Vale assinalar que o povo Mura ainda não tem um Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) elaborado para o seu território, mas as lideranças estão em processo de diálogo com órgãos parceiros a exemplo do Instituto Acariquara, com o objetivo de iniciar a estruturação deste.
Pela pesquisa empreendida, em particular pelas análises feitas a partir da TAR de Latour (2012), constata-se que o Povo Mura apesar de não ter ainda um PGTA construído, vem consolidando ações estratégicas de gestão territorial e ambiental por meio da construção da rede sociotécnica que inclui agentes humanos e não humanos, indígenas e não indígenas. Dentre os agentes humanos destaca-se as lideranças indígenas, os moradores do território, os órgãos parceiros tais como a Prefeitura do Careiro da Várzea, Fundação Estadual do Índio (FEI).