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Experiências comunitárias e o processo de desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária nas Praias de Batoque e Canto Verde[1]
Community experiences and the development process of Community-Based Tourism in Batoque and Canto Verde Beaches
Experiencias comunitarias y el proceso de desarrollo del Turismo de Base Comunitaria en las Playas de Batoque y Canto Verde
Caderno Virtual de Turismo, vol. 23, núm. 1, 2023
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Artigos Originais



Recepción: 09 Junio 2022

Aprobación: 21 Marzo 2023

DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.23n1.2023.2017

Resumo: O objetivo central deste artigo[2] era analisar o Turismo Comunitário praticado na Rede Tucum com o uso do DRP (Diagnóstico Rápido Participativo). Apesar dos conflitos e das dificuldades encontrados na comunidade, turistas e pesquisadores são atraídos à Prainha do Canto Verde e a Batoque pela história de luta e resistência à especulação imobiliária que vem ocorrendo há mais de trinta anos no lugar. A relevância da solidariedade e da economia solidária no turismo não busca contrapor às práticas que já existem, mas se preocupa em revelar suas limitações e mostrar que existem alternativas. O Turismo Comunitário em Canto Verde mostrou-se uma realidade e uma forma encontrada pela população local de resistir ao avanço do capital financeiro e imobiliário, que tem usado de práticas ilegais para se apoderar das valiosas terras litorâneas da população nativa, além de cooptar pequenos grupos internos, enfraquecendo a coletividade, a autogestão e participação social dessas comunidades. Por fim, afirma-se que o Eu Coletivo ainda constitui uma forma concreta de desenvolvimento dessas comunidades por meio do Turismo Comunitário, cuja concretude ficará a cargo de novas e futuras investigações.

Palavras-chave: Turismo de Base Comunitária, Prainha do Canto Verde, Batoque.

Abstract: The main objective of this article was to analyze the Community Tourism practiced in the Tucum Network using DRP (Fast Participatory Diagnosis). Despite the conflicts and difficulties found in the community, tourists and researchers are attracted to Prainha do Canto Verde and Batoque by the history of struggle and resistance to real estate speculation that has been taking place for over thirty years in the place. The relevance of solidarity and solidarity economy in tourism does not seek to oppose existing practices, but is concerned with revealing its limitations and showing that there are alternatives. Community Tourism in Canto Verde proved to be a reality and a way found by the local population to resist the advancement of financial and real estate capital, which has used illegal practices to take over the valuable coastal lands from the native population, in addition to co-opting small internal groups, weakening the collectivity, self-management and social participation of these communities. Finally, it is stated that the Collective Self still constitutes a concrete form of development of these communities through Community Tourism, whose concreteness will be a base for new and future investigations.

Keywords: Community-Based Tourism, Prainha do Canto Verde, Batoque.

Resumen: El objetivo principal de este artículo fue analizar el Turismo Comunitario practicado en la Red Tucum utilizando el DRP (Diagnóstico Participativo Rápido). A pesar de los conflictos y dificultades encontradas en la comunidad, turistas y investigadores son atraídos a Prainha do Canto Verde y Batoque por la historia de lucha y resistencia a la especulación inmobiliaria que se desarrolla desde hace más de treinta años en el lugar. La relevancia de la solidariedad y de la economía solidaria en el turismo no busca oponerse a las prácticas existentes, sino que se preocupa por develar sus limitaciones y mostrar que existen alternativas. El Turismo Comunitario en Canto Verde demostró ser una realidad y una forma encontrada por la población local para resistir el avance del capital financiero e inmobiliario, que ha utilizado prácticas ilegales para apoderarse de las valiosas tierras costeras de la población nativa, además de co -optar por pequeños grupos internos, debilitando la colectividad, la autogestión y la participación social de estas comunidades. Finalmente, se afirma que el Yo Colectivo aún constituye una forma concreta de desarrollo de estas comunidades a través del Turismo Comunitario, cuya concreción estará a cargo de nuevas y futuras investigaciones.

Palabras clave: Turismo de Base Comunitaria, Prainha do Canto Verde, Batoque.

1. Introdução

As experiências que tornam uma população local gestora dos meios de produção, comercialização e afins as tornam, principalmente, protagonista de suas histórias, sujeitos ativos das mudanças desejadas. Iniciativas como as da Rede de Turismo Comunitário, Rede a Bodega, o movimento caiçara, entre outros, têm demonstrado força, articulação e coragem para promover mudanças relativas a desigualdade, especulação de terras, exclusão social, etc. e, assim, ganhado fôlego quando desenvolvidas em consonância com os princípios da economia solidária, a saber: autogestão, cooperação na realização das atividades, solidariedade, equilíbrio financeiro e ambiental e comércio justo entre produtores e compradores.

Neste sentido, na interface do turismo com o movimento da economia solidária há uma preocupação com as realidades vivenciadas pelas comunidades que compõem a Rede Cearense de Turismo Comunitário - Rede Tucum. Isto, pois elas desenvolvem a atividade turística em consonância com as atividades tradicionais em seus territórios, como pesca, agricultura familiar, artesanato e a criação de animais de pequeno porte. Portanto, em face da produção, do escoamento e de outros meios de subsistência que inspiraram a investigação, cabe como mecanismo técnico-científico identificar e analisar as dificuldades e vulnerabilidades, bem como as soluções exitosas construídas cotidianamente.

Diante do exposto, pode-se observar que o diagnóstico participativo constitui uma estratégia essencial para que comunidades da Rede Tucum, envolvida com a atividade turística, possam compreender as relações sociais, econômicas e institucionais que determinam os limites da construção do desenvolvimento local. Esse diagnóstico é tido como um conjunto de técnicas e ferramentas que permitem às comunidades fazerem seu próprio diagnóstico e iniciarem a autogestão do seu planejamento e desenvolvimento (Verdejo, 2006).

A necessidade de compreensão e valorização da justiça social não pode se distanciar das vidas que as pessoas podem, de fato, viver. Assim sendo, é de fundamental importância que as experiências, os modos de vida, bem como as realizações humanas, não sejam substituídos por informações sobre instituições que as representam, tampouco pelas regras sobre as quais operam. As realizações, de fato, vão além do esquema organizacional e incluem as vidas que as pessoas conseguem ou não viver (Sen, 2011).

A liberdade de escolha entre os diferentes tipos de vidas pode contribuir significativamente para nosso bem-estar, além de ser importante para a vida dos sujeitos. Quando a liberdade não existe, o ser humano passa da condição de sujeito para sujeitado às imposições, tanto dos agentes externos, como capital financeiro, divisão do trabalho, organizações sociais e/ou políticas; quanto de agentes internos que tentam impor suas perspectivas e modo de ver a vida (Sen, 2011). Sen (2011) argumenta, ainda, que não importa o quão corretas são as organizações estabelecidas se um peixe grande ainda puder devorar um pequeno.

Isso é, necessariamente, uma clara violação da justiça humana no pensamento indiano, que divide a justiça entre as escolas de Niti e Nyaya. A primeira compreende o conceito de justiça por meio da visão contratualista, que enfatiza a necessidade de haver instituições responsáveis pela justiça. Já a percepção de Nyaya aproxima-se da visão smithiana de inclusão ― que considera importante avaliar as realizações advindas dessas decisões. Ou seja, o que realmente acontece com as pessoas não pode deixar de ser uma preocupação central de uma teoria da justiça (Sen, 2011).

Analisando o argumento proferido por Sen (2011) em seu texto sobre a Ideia de Justiça, observa-se que as tentativas dos pescadores da Prainha do Canto Verde de criar sua reserva extrativista marinha e, posteriormente, reivindicar a inclusão das terras continentais, tinham como objetivo a proteção das espécies marinhas - em especial a lagosta, que se encontrava em processo de extinção, em decorrência da pesca predatória com uso de cilindros de ar.

Além das questões ambientais, outro ponto relevante nesse contexto foi – e continua sendo – a luta pela posse da terra para usufruto dos nativos e seus descendentes. Essa luta tem sido marcada por acirradas discussões, conflitos internos e externos e processos judiciais; e até mesmo por luta armada, desencadeada por volta dos anos de 1970, quando um jornal que circulava na sede do município de Beberibe divulgou que as terras da Prainha tinham sido vendidas para um grupo imobiliário.

Qual seria a questão central dessa discussão envolvendo os moradores de Canto Verde? O problema é que já existia uma colônia de pescadores, com várias famílias que tiravam seu sustento do mar e viviam há décadas no local, uma região de grande valor imobiliário e alto valor comercial. O fato é que o grupo imobiliário em questão usou da grilagem de terras e da falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros em Canto Verde. A decisão judicial, que cedeu a posse de terras ao grupo “Z”, foi publicada em jornal de circulação da época, chegando ao conhecimento da população, que deu início à luta pela terra, num conflito que teve tanto caráter judicial, quanto armado (Souza, 2015). Naquelas circunstâncias, a colônia de pescadores contou com o apoio da Arquidiocese do Ceará e de toda a população de Canto Verde. Esse cenário de lutas começa a ser desvendado por meio da criação da Reserva Extrativista, no ano de 2009, que incluía a Prainha do Canto Verde, no município de Beberibe, e Batoque, outra reserva extrativista no município de Aquiraz. Estas reservas contam, atualmente, com o apoio do Instituto Chico Mendes para a gestão das terras, que hoje não pertence mais ao povo, e sim ao Governo Federal, tendo em vista a criação da RESEX (Reserva Extrativista). Porém, seu uso é permitido pelo Governo Federal (Souza, 2015).

A reserva foi criada objetivando a proteção das terras contra o poder hegemônico e contra a posse e uso por pessoas externas ao lugar. Neste sentido, foi criada a RESEX (Reserva Extrativista), sob gestão do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBIO), objetivando a fiscalização e regulamentação ambiental. A RESEX passou a proibir tanto os nativos quanto pessoas externas à comunidade de construir, reformar e/ou ampliar suas casas – fato que gerou conflitos internos, já que parte da população pretendia vender suas terras. Assim, anteriormente, a luta era de toda a comunidade contra uma entidade externa; agora, o conflito é entre os habitantes locais, agravado pelo apoio de um grande grupo empresarial a uma parte deles.

Essa divergência interna tem gerado conflitos entre os moradores e o capital imobiliário, provocando o enfraquecimento da comunidade enquanto grupo. Face ao exposto, questiona-se: até que ponto a criação da reserva extrativista se consolidou como mecanismo capaz de garantir legalmente as liberdades e garantias básicas dessa população? Refere-se, por exemplo, ao direito de optar culturalmente pelos seus modos de vida - uma vez que a crescente atividade turística proporciona trocas de experiências entre nativos e visitantes - afetando seus estados de espírito quanto à autossatisfação.

Em última análise, ao direito à cidadania, ao direito de ir e vir, ao trabalho, ao lazer, etc. Então, torna-se desafiador analisar esse contexto de relações complexas tendo em vista que, antes da criação da RESEX, a população de Canto Verde não possuía nem a terra, nem o direito a ela. Da mesma forma, a população também enfrentava o poder do capital imobiliário por meio do loteamento da Prainha e venda para casas de veraneio ou construções hoteleiras.

Diante das considerações acima, a questão que norteou o presente trabalho é a seguinte: em que medida a economia solidária, associada ao turismo comunitário, pode contribuir para o desenvolvimento das comunidades de Canto Verde e Batoque na perspectiva do “Eu Coletivo”?

Para a obtenção dos resultados, foi necessário traçar objetivos mais específicos para contribuir com o direcionamento das ações que levaram ao desenvolvimento da pesquisa. Os objetivos centrais que geraram este artigo foram apontar as características do Turismo de Base Comunitária e seu diferencial em relação aos demais segmentos de turismo do território turístico do Ceará; identificar em que medida o turismo de base comunitária se conecta com o turismo de forma geral no Estado do Ceará; avaliar em que medida a economia solidária contribui para o processo de desenvolvimento do turismo de base comunitária na Rede Tucum (Rede de Turismo Comunitário Cearense); e identificar e explicar as potencialidades e vulnerabilidades apresentadas pelas comunidades que realizam atividades de turismo de base comunitária na Rede Tucum.

2. Desenho metodológico

Para proceder ao levantamento e à análise dos dados empíricos desta pesquisa, buscou-se o conceito de metodologia participativa, de Max-Neef (1993), autor que explica a práxis das comunidades em busca do desenvolvimento e do bem coletivo por meio dos sentimentos de confiança, cooperação, reciprocidade, pertencimento, partilha e valores culturais e econômicos, além da rede de conexões internas (na própria comunidade) e externas (com o poder público, as empresas e o capital financeiro imobiliário).

Esta pesquisa durou 4 anos, iniciada em 2015 e finalizada em 2019. A primeira etapa do trabalho empírico foi constituída por visitas de campo e aplicação de questionário com os moradores das comunidades caiçaras. A partir desses métodos, foi possível identificar os perfis socioeconômicos de cada núcleo familiar, sendo o interlocutor da unidade amostral o ente mais velho. Essa etapa serviu também de suporte quantitativo para nortear as discussões sobre Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) de cada município e suas respectivas comunidades, permitindo conhecer mais detalhadamente o modo de vida das partes e suas relações com o modo de vida da coletividade.

A técnica de aplicação dos questionários foi efetiva para observar diversos aspectos de infraestrutura das moradias e suas correlações com os aspectos ambientais e de vertentes, como água, esgotamento sanitário e lixo. Na sequência, o questionário levantou dados sobre aspectos relacionados à atividade turística e seu desenvolvimento pelas comunidades em questão. Não menos importante, os respondentes foram interpelados sobre aspectos culturais e ambientais, bem como sobre a existência de políticas públicas voltadas às comunidades de Canto Verde e Batoque.

Utilizou-se da metodologia participativa como instrumento de investigação, pois parte-se do princípio de que o cidadão é quem melhor pode falar sobre sua própria realidade. A metodologia participativa utilizada se ancorou na experiência cognitiva dos participantes. A partir do DRP (Diagnóstico Rápido Participativo), algumas ações foram deliberadas em conjunto com as comunidades, visando à elaboração de um plano estratégico de ações. Antes da criação deste plano, foram eleitas metas prioritárias, elencando-se, juntamente com seus membros das comunidades, uma matriz de prioridades contendo os principais problemas (os mais emergentes) detectados por eles.

Após a criação desta matriz de prioridades, foi criada outra contendo as seguintes questões: o que buscamos? Onde buscar? O que fazer? Quais os responsáveis (nas comunidades e parceiros externos) pela execução e monitoramento? Esta matriz serviu para nortear a busca de soluções para os problemas apontados pelos comunitários. Foi utilizada a técnica do novelo de lã, com o objetivo de formar uma teia, demonstrar que fazemos parte da rede da vida e que nossas ações (ou omissões) afetam as vidas dos que estão ao nosso redor através de: elaboração da matriz geral; definição da matriz de prioridades; formação do comitê mobilizador; construção do plano de ação.

A etapa final foi constituída de uma Oficina de Monitoramento, a fim de avaliar e monitorar o andamento do Plano de Ação. O objetivo era estabelecer uma matriz de planejamento dos processos de monitoramento e avaliação participativa que envolvesse responsabilidades e cronograma. Esse processo necessitava ser interativo, pois implicava na sua repetição em intervalos determinados e em diferentes etapas do plano de ação, por meio da observação dos indicadores, reflexão e análise dos resultados; reajustando-o, quando necessário.

A realização das oficinas favoreceu a construção de um diagnóstico das comunidades investigadas, ainda que com resultados limitados, razão pela qual se optou pela estratégia da aplicação dos questionários. No total, foram aplicados 15 questionários com a comunidade de Canto Verde, 10 com moradores de Batoque e 21 questionários on-line com pessoas que visitaram as duas comunidades. Por meio deste instrumento de pesquisa, foi possível obter uma visão mais ampla sobre a percepção dos sujeitos ligados direta e indiretamente à gestão, à organização e ao desenvolvimento desses lugares, de suas práticas sociais e econômicas.

Além das técnicas supracitadas, também foi utilizado como instrumento de análise o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) de Lefèvre e Lefèvre (2003). Outrossim, esse instrumento de análise foi utilizado nas entrevistas com os secretários de turismo do município de Aquiraz e Beberibe, sedes das comunidades de Batoque e Canto Verde, respectivamente, assim como as realizadas com a gestora da Rede Cearense de Turismo Comunitário – Rede Tucum e com os representantes do Grupo de Trabalho do Turismo de Canto Verde, a fim de dar sustentação teórica e referencial para a interpretação do material colhido em campo.

O DSC se distingue por gerar discursos individuais em uma representação social significativa tanto para os sujeitos depoentes, quanto para os leitores. Para a confecção do DSC, foi necessário um trabalho analítico de decomposição das ideias centrais presentes em cada um dos discursos individuais para, assim, poder reunir e construir a representação social que as falas proferidas evidenciam.

Face ao exposto, a pesquisa em discussão adaptou-se ao cerne do DSC criado por Lefèvre e Lefèvre (2003). Sendo assim, as entrevistas foram divididas em 3 momentos de acordo com três objetivos específicos. Em vez de um discurso para cada pergunta, foi elaborado um discurso para cada objetivo específico da pesquisa. Portanto, após essas explicações, tem-se uma base fundamentada para compreender os resultados obtidos.

3. A construção do Eu Coletivo para o desenvolvimento do Turismo Comunitário nas praias de Canto Verde e Batoque

A realização das atividades se deu em um espaço de interlocução, pautado sobre o saber intuitivo e empírico de ambas as comunidades. Assim, buscaram-se a transformação e a integração social, e não meramente a transmissão de técnicas ou processos investigativos. Trata-se de uma troca que influencia na maneira de “pensar” e de “fazer” de todos os envolvidos nas discussões, professor-orientador e sociedade civil, representada pelos membros das comunidades envolvidas neste estudo, juntos, tomando decisões sobre ações transformadoras da realidade vivida por eles.

Na elaboração da matriz geral, os envolvidos começaram a discussão relatando quem eles eram, ou seja, quem é a comunidade de Canto Verde e de Batoque. Cabe ressaltar que as relações construídas sobre as bases acima descritas, quando bem alinhadas às atividades de pesquisa, ensino e extensão, têm importância fundamental em ações voltadas para a economia solidária, que se apoia na coletividade, solidariedade, sustentabilidade e autogestão.

A preocupação com as realidades vivenciadas pelas populações rurais, ribeirinhas e caiçaras, em face das suas condições de vida, trabalho e subsistência, foi o motivo que inspirou esta investigação, vista como mecanismo científico-social para identificar as dificuldades, vulnerabilidades e soluções encontradas pelos grupos em questão.

Na elaboração da matriz geral, os envolvidos começaram a discussão relatando os pontos fracos e fortes de si e de sua comunidade. Em ambos os casos, os sujeitos iniciaram o relato falando das características praianas desses lugares, suas belezas naturais, as atividades pesqueiras, artesanato, produção agrícola, lutas pelo uso e posse das terras; atribuindo sua origem à especulação imobiliária e à pesca ilegal da lagosta em terra e mar. Para melhor sistematizar o debate, foi elaborado um mapa mental com as principais ideias abordadas pelos dois grupos.

Em Batoque, a ênfase foi dada às belezas naturais da reserva, à desvalorização da cultura local e à necessidade da geração de trabalho e renda para os moradores da comunidade. Os participantes apontaram o trabalho nas barracas de praia como alternativa de geração de renda e a presença de um turismo predador e nocivo à reserva extrativista, praticado por excursionistas que desrespeitam os costumes do lugar, perturbam sua tranquilidade e geram muito lixo.

De acordo com os relatos, os excursionistas constituem os principais frequentadores da praia, uma vez que a comunidade se afastou do turismo solidário e que a pousada que recepcionava os visitantes interessados no turismo comunitário se encontra abandonada. Mencionaram também que a atual gestão da pousada pretendia restaurar as parcerias com a Rede Tucum a fim de retomar o projeto. As duas comunidades também deram destaque às lutas firmadas entre os que apoiavam a criação das reservas extrativistas e os que afirmavam ser essa uma forma de preservação nociva à população como um todo, por restringir a autonomia dos moradores sobre suas próprias vidas. Parte da população, de ambas as comunidades, afirmou concordar com a RESEX, apontando a possibilidade de viver, conviver e extrair seus sustentos da terra e do mar. Outra parcela considerável se mostrou contrária à reserva, alegando que sua criação não resultou em melhorias na vida da comunidade, em especial na dos jovens, que permaneceram sem oportunidades de trabalho e de renda.

A falta de oportunidades de trabalho, após a criação da RESEX, constituiu a principal razão de discordância dos moradores de Batoque em relação à reserva extrativista. Já na comunidade de Canto Verde, a maior preocupação dizia respeito à posse e ao uso da terra, como se constata nas respostas aos questionários aplicados a cerca de 10% dessa população. Ainda que avaliassem positivamente a criação da RESEX, o importante para eles era garantir a posse e o uso pela comunidade local. Esse argumento foi usado por cerca de 60% da população de Canto Verde que respondeu aos questionários da pesquisa, ratificando a importância da RESEX para melhorar suas expectativas de vida.

Nesse primeiro momento, os moradores também deram ênfase ao desenvolvimento do turismo como caminho possível para agregar valor às atividades tradicionais praticadas por eles, como a pesca, o artesanato e a agricultura. Na comunidade de Prainha do Canto Verde, o turismo é uma realidade, ainda que incipiente. Já na reserva extrativista do Batoque, a atividade ocorre de forma predatória, segundo relatos antes mencionados. A ocupação de quase 50% das terras de Batoque com casas de veraneio, construídas antes da instituição da RESEX, foi apontada pelos entrevistados como um dado que tem dificultado a gestão participativa das ações de turismo promovidas pelas associações, pelos grupos de trabalho e pelo próprio comitê gestor da reserva extrativista. Na sequência da elaboração do diagnóstico rápido participativo, a discussão foi focada nos pontos positivos e negativos das comunidades de Batoque e Canto Verde.

Em ambas as comunidades, os pontos positivos ressaltados foram a tradição cultural, a agricultura, a pesca, o artesanato e a participação dos jovens. No que tange aos aspectos negativos, o foco recaiu sobre a falta de emprego e renda, a marginalização dos jovens, os conflitos de terra, o avanço do mar e das dunas e o declínio da atividade turística. Sequencialmente, os grupos se dividiram de forma homogênea (segundo gênero, ocupação e idade) para pontuar os problemas que necessitavam de maior atenção por causarem danos às duas comunidades. Uma Matriz de Prioridades foi gerada posteriormente, categorizando os problemas, segundo seu impacto, em forte, fraco e moderado. A escolha definitiva das ações a serem priorizadas previa uma maior participação da comunidade. No entanto, as oficinas contaram com poucos membros comunitários: em Canto Verde, houve a participação de alguns representantes dos Grupos de Trabalho (GT’s) de turismo e de alguns jovens; em Batoque, contou com a presença do presidente da associação de moradores, dos conselheiros da reserva extrativista e de alguns professores da comunidade.

Para a construção do plano de ação, a comunidade de Canto Verde escolheu cinco problemas centrais que mereciam atenção coletiva: pesca, turismo, desemprego, conflitos de terra e avanço do mar e das dunas. Já os participantes de Batoque apontaram como questões prioritárias a serem resolvidas: desemprego, poluição sonora, turismo predatório, descarte do lixo, falta de policiamento e venda de terras.

Após as discussões, o grupo decidiu pelos problemas que mais impactavam suas vidas, entre eles: lixo, turismo, desmatamento, especulação imobiliária, queimadas. Para tanto, foi necessário fazer uma anamnese dos problemas e quais os caminhos para que sejam solucionados. Foi traçado então um plano de ação com a pretensão de encontrar um caminho possível para a solução das debilidades encontradas na comunidade de Batoque. Com a resolução dos problemas, das debilidades e ameaças, diagnosticados por meio do Diagnóstico Rápido Participativo, a comunidade maximiza suas potencialidades, belezas naturais, modo de vida, costumes, história de luta e resistência pela posse da terra e pela possibilidade de viver o que as terras oferecem.

A poluição sonora, o lixo e o turismo predatório, relatados pelos moradores de Batoque, fazem parte de um conjunto de problemas relacionados, uma vez que são gerados pelo turismo de massa presente na reserva, além da segunda residência (casas de veraneio) e das excursões nos finais de semana. Outros aspectos apontados por eles, que mantinham uma relação estreita com o movimento popular em defesa de Batoque e a consequente criação da Reserva Extrativista, foram a venda de terras e/ou a especulação imobiliária. No tocante a essa questão, vale destacar a participação social e a mobilização arraigadas no cotidiano dessas comunidades. Ao longo das últimas décadas, seus moradores têm lutado não apenas pelo direito à terra, de onde retiram parte do seu sustento, como também pela preservação das espécies marinhas e pela geração de trabalho e renda. Essa união de esforços, cooperação e solidariedade resultou na criação da Rede de Turismo Comunitário – Tucum em 1998, que teve início com as práticas desenvolvidas em Prainha do Canto Verde; ampliando-se, mais tarde, para outras comunidades, entre elas pesqueiras, indígenas, quilombolas e grupos de assentados de reforma agrária.

Por meio dos argumentos construídos nas oficinas de elaboração do plano de ação, percebem-se os posicionamentos distintos entre as duas comunidades. A comunidade de Canto Verde tinha como propósito a sua própria valorização histórico-cultural, na perspectiva de agregar valor ao turismo desenvolvido por eles. Desejava que o poder público tornasse mais rígidas a fiscalização da pesca e de suas práticas predatórias, uma vez que essa atividade constituía sua principal fonte de renda. Reivindicava, ainda, que houvesse paz e união entre os membros da comunidade, dividida desde 2008 em dois grupos que lutavam pela liderança das ações sociais, resultando em momentos de tensão e conflitos judiciais que se arrastam há décadas.

Constatou-se que o Turismo de Base Comunitária é uma boa opção para quem procura contato com a natureza e com as tradições de uma comunidade local. Mas como foi visto, existem conflitos internos de grupos da própria comunidade, o que fragiliza a atividade turística diante dessa realidade. Boa parte dos visitantes de Batoque e Canto Verde é constituída por pesquisadores e estudantes que têm por objetivo conhecer o desenvolvimento de um turismo diferente, cujas raízes remontam à luta pela terra. Atenta a esse interesse acadêmico, a comunidade da Prainha de Canto Verde tem sido receptiva a esses pesquisadores que, ao longo dos anos, objetivam compreender, por meio de espaços de discussão e pesquisas acadêmicas, como essa localidade se tornou referência na luta pelo uso e posse da terra e como o turismo comunitário contribui na geração de trabalho e renda e na permanência desses grupos no local.

Evidenciou-se que o Turismo Comunitário é apenas mais uma possibilidade de trabalho e incremento à renda dos comunes, em menor ou maior proporção, pois os que melhor aproveitam os ganhos advindos dessa atividade são as pessoas diretamente envolvidas com ela. No entanto, toda a população acaba ganhando com a presença dos turistas, ainda que sejam ganhos indiretos. Como se depreende das respostas aos questionários aplicados junto aos moradores de Canto Verde e Batoque, toda uma cadeia produtiva se beneficia da presença do turista nesses locais, fazendo circular recursos por meio das pousadas, dos restaurantes, dos pescadores que abastecem mercadinhos e estabelecimentos gastronômicos, além dos diversos prestadores de serviço, como cozinheiras, guias de turismo e donos de embarcações que realizam passeios no mar.

O contato com o modo de vida dos lugares onde são realizadas as práticas de turismo comunitário constitui seu principal atrativo. Entretanto, essa prática por si só não oferece sustentação à atividade. Assim como os estudiosos do turismo, os pesquisadores de espécies marinhas representam outra parcela do público encontrado na Prainha de Canto Verde. A expectativa desses visitantes, além do contato direto com modos de vida tradicionais, é que sejam bem acolhidos, e não se sentir como numa peça de teatro na qual os atores apenas representam para uma plateia.

Ao visitar qualquer destino turístico, os visitantes esperam satisfazer certos anseios básicos, como encontrar um lugar limpo e aconchegante para dormir, segurança e opções de restauração. Porém, esta pesquisa revelou que as comunidades analisadas, em especial Canto Verde, não dispõem de uma infraestrutura variada de serviços, como lanchonetes, padarias ou restaurantes. No caso da praia citada, apenas uma pousada serve refeições tanto para hóspedes, quanto para o público em geral; as demais oferecem alimentação e bebidas apenas para seus próprios hóspedes.

A despeito das motivações dos visitantes para conhecer as comunidades investigadas, o que se percebe é que, pelo menos em Batoque, a infraestrutura oferecida aos turistas deixa muito a desejar. A única Pousada Solidária que constituía símbolo do turismo comunitário nesse lugar, construída com recursos da Rede Tucum e da Associação dos Moradores de Batoque, fechou suas atividades desde 2010, devido às desavenças entre os grupos que coordenavam as ações. Outra pousada que poderia atender ao turismo comunitário – a Verdes Mares, situada entre a lagoa e o mar, com três chalés e capacidade para 12 hóspedes, havia deixado de fazer parte dos planos da Associação dos Moradores também por desavenças internas no seio da comunidade.

Os esforços embrionários para desenvolver o turismo comunitário na reserva extrativista do Batoque, de três a quatro anos, resultaram na sua inserção na Rede de Turismo Comunitário do Ceará (Tucum), depois na construção da referida pousada solidária e na elaboração de um roteiro de viagens a esta RESEX. Para isso, houve um consenso entre o grupo que fazia resistência à especulação imobiliária e à venda das terras ao capital financeiro e imobiliário. Entretanto, esses esforços se esvaziam no momento em que a população se fragmenta e vivencia rivalidades internas em seus objetivos.

O que se percebe, atualmente, são piqueniques e o turismo de segunda residência (veraneio). Portanto, embora a intenção desses grupos fosse implementar o turismo comunitário, diferente do turismo de massa no caso dessa reserva, ele ainda se caracteriza como predatório. Essa constatação acerca da não existência do turismo comunitário na reserva extrativista do Batoque foi ratificada nas respostas categóricas dos moradores quando questionados sobre os ganhos advindos dessa atividade turística e sua distribuição na comunidade.

Como frisado por meio do diagnóstico participativo, o mais recente grupo gestor da Associação de Moradores de Batoque tinha, entre suas metas, o desenvolvimento de um turismo comunitário com a participação efetiva da população. Entretanto, vale lembrar que desenvolvimento não significa simplesmente crescer ou regular a distribuição da riqueza: vai além do aumento e do crescimento de valores econômicos, mas deve estar pautado pelo desenvolvimento do ser humano (Rodrigues, 2000). Para tanto, há a necessidade da criação de mecanismos de inserção da comunidade em atividades produtivas, que proporcionem a seus membros melhorias em suas condições sociais e econômicas. Dessa forma, são alcançados o desenvolvimento pessoal e o coletivo por meio de um mecanismo eficaz que permite a participação coletiva dos envolvidos no processo de concretização das ações. Assim, o diagnóstico participativo (Verdejo, 2006) passa a existir como uma estratégia essencial para que os comunes possam compreender as relações sociais, econômicas e institucionais que determinam os limites do desenvolvimento sustentável.

No caso específico das comunidades investigadas pelo presente estudo, a realidade encontrada no início da pesquisa, em junho de 2015, foi a polarização dos grupos, um favorável à regulamentação da reserva extrativista e de sua expansão para o continente – pois, a princípio, a luta era para a criação da reserva marinha, objetivando reduzir a pesca predatória de lagosta. Esta polarização pode ser observada por meio dos empreendimentos instalados em Canto Verde que, dentre todos, apenas três na atualidade fazem parte da Rede Tucum. Os demais empreendimentos são pousadas de membros da comunidade que não integram a Tucum, como as pousadas e chalés, entre eles: a Pousada Recanto da Mazinha, Porto Jangada, a Pousada Canto Verde e o Chalé Maresia.

A comunidade de Canto Verde era composta por cerca de 200 famílias, contava com um pequeno restaurante, três mercadinhos e um espaço de comercialização de artesanato, que fazia parte da Rede Bodega. Contava, ainda, com sete meios de hospedagem, sendo que três deles recebiam os turistas nos moldes do turismo comunitário, ou seja, os hóspedes ficavam na casa dos moradores, convivendo com eles. As quatro pousadas restantes também faziam parte da Rede Tucum, mas por não concordarem com seu pensamento, passaram a operar como qualquer outro estabelecimento turístico, adotando práticas comerciais tradicionais. Um dos motivos que levou uma parte do grupo a se desvincular da ideia de turismo comunitário foi a discordância em relação à ideia de Reserva Extrativista Continental. Seus membros queriam ter o direito de fazer o que bem entendessem com suas terras, a exemplo de um grande empresário do ramo educacional que pretendia comprar as terras dos nativos e investir em empreendimentos imobiliários.

Por essa razão, a população foi questionada sobre os aspectos relacionados ao planejamento das atividades turísticas e suas prioridades. Os questionários foram aplicados junto a 16 representantes de famílias diferentes, correspondendo a quase 10% da totalidade das famílias canto-verdenses que confirmaram a desunião e a restrição na participação e na tomada de decisões no que diz respeito ao planejamento e gestão do turismo em Canto Verde. Na atualidade, o grupo se constitui de apenas seis pessoas, o que torna polarizadas as decisões e se reflete até mesmo no pouco fluxo de turistas na comunidade. O GT já teve mais integrantes, mas com a divisão foi reduzido àqueles que faziam parte da Rede Tucum. A autogestão ainda é realidade, porém, para se ter equidade e justiça nas decisões que deveriam ser coletivas, o grupo deveria contar com maior número de participantes, apesar de o GT de Turismo constituir apenas uma das possibilidades de participação e representação dos interesses coletivos da comunidade.

Havia também o comitê gestor da reserva extrativista, que possuía participação dos dois grupos, tanto da Associação dos Moradores, quanto da Associação Independente de Canto Verde e adjacências, o que se configura como elemento democrático e de direito assegurado pelos Gestores da Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde. No questionário aplicado aos moradores de Canto Verde foi possível inferir que eles não concordavam, em parte, com a forma como o turismo vinha sendo conduzido na comunidade. Corroborando com o que foi dito anteriormente, os recursos advindos da atividade turística ficavam concentrados nas mãos de quem possuía um estabelecimento ou um espaço minimamente estruturado para receber os turistas.

O diferencial está no modo como os moradores interagem com os turistas, como gerenciam os espaços nas pousadas e casas solidárias. Nesse caso, os visitantes convivem com os donos, fazem refeições juntos, trocam ideias e compartilham seu modo de vida. Já nas demais, a hospedagem constitui apenas mais um negócio, que, embora gerenciado por moradores, é intermediado por comunes contratados, que prestam seus serviços em troca de salário. Nessas pousadas, o visitante não tem contato com os donos, ou seja, não há interação com o modo de ser do lugar.

Uma crítica possível a esse modo de fazer turismo está na sua própria configuração capitalista de que ganha quem tem, ou seja, a população como um todo não participa dos ganhos advindos dessa atividade assim como no turismo de massa, em que ganha quem possui algum meio de fornecer produtos ou serviços para os estabelecimentos. Donos de pousadas, restaurantes e seus fornecedores obtêm ganhos indiretos com hospedagem, mas se o fluxo de turistas é pequeno, como dividir os ganhos com um maior número de pessoas na comunidade se nem todos são donos de pousadas, bares, restaurantes ou bodegas?

Dessa forma, como afirmar que o turismo comunitário contribui para a distribuição justa de trabalho e renda nessa comunidade? Uma alternativa colocada em prática pelos GT’s de Turismo é gerar outras possibilidades para os envolvidos, com divisão de tarefas remuneradas entre seus membros. Por exemplo, a comunidade vai receber um grupo de turistas que querem vivenciar a experiência do turismo comunitário, então eles dividem as tarefas: um grupo de mulheres fica responsável por preparar as refeições, outro grupo por guiar nas trilhas, e outros por hospedar. No entanto, como o fluxo de turismo é esporádico e nem todos participam dos ganhos, a renda obtida se concentra nas mãos de poucos, dando origem aos conflitos e à saída de pessoas que antes eram aliadas e, posteriormente, passam a ser opositores na luta.

Entretanto, mesmo de lados opostos, os grupos (associações) mostram que são da luta, que a participação social faz parte de seu cotidiano e que jovens, adultos e idosos fazem parte de um grande grupo que tem como objetivo a resistência, não apenas o desenvolvimento do turismo como prática complementar às atividades tradicionais, como pesca e agricultura, mas também a resistência a todas as formas de negação de direitos sociais, políticos e econômicos. Por essa razão, o trabalho coletivo e cooperado é a base da resistência desses povos do mar.

4. Considerações (não) finais

O Turismo Comunitário vem desenvolvendo suas ações, ganhando destaque entre pesquisadores, estudiosos e visitantes dessa modalidade. Porém, existem outros caminhos e interpretações possíveis, como a visão que o considera enquanto meio e fim para a geração de emprego e renda. Dessa maneira, quem oferta a atividade turística com o objetivo de gerar renda e enriquecimento pessoal - prática comum entre a maioria das comunidades, praias e localidades que desenvolvem o turismo tradicional no Estado do Ceará - não encontrará no turismo comunitário o contentamento de seus desejos, uma vez que o mesmo é compreendido como mais uma possibilidade de integração de culturas, saberes, fazeres e práticas sociais e econômicas específicas dos lugares que o desenvolvem. Por essa razão, tal modalidade de turismo dialoga bem com a economia solidária, por ter como princípios a participação social, a cooperação e o equilíbrio ecológico em suas práticas, a fim de minimizar os impactos econômicos sobre os mais vulneráveis, sejam pessoas ou grupos. Essa prática, que tem caráter social, político e econômico, se sustenta no trabalho coletivo e na autogestão.

Não há uma conexão entre essas modalidades de fazer turismo, a não ser pelo fato de não existir barreiras nem imposição aos turistas que desejam visitar tanto uma quanto outra. Apenas as regras são claras, por exemplo: na comunidade de Canto Verde, existe um código de conduta que o turista deve seguir e isso por si só já inibe o mau comportamento dos que desejam fazer o que bem entendem. Dessa maneira, a pesquisa deixa claro que não existe conexão entre o que é praticado pela comunidade de Canto Verde com as demais comunidades não integrantes da Rede Tucum no Estado do Ceará, que desenvolvem o turismo tradicional, onde seu maior objetivo é a prestação do serviço pelo serviço, não havendo envolvimento com o modo de ser e viver desses lugares, fato que os difere das comunidades da Rede em sua maioria.

Entretanto, no que se refere à comunidade de Batoque, é compreensível que não desenvolvem mais o turismo comunitário: suas práticas estão sob essa mesma perspectiva das demais praias e localidades turísticas do Ceará. Porém, vale destacar que a gestão da associação de moradores e pescadores da reserva extrativista do Batoque está se esforçando para que voltem a receber turistas aos moldes do turismo comunitário.

Quando a atividade turística e a economia solidária se unem, o resultado é o turismo comunitário, que visa o empoderamento dos sujeitos envolvidos, agregar valor às atividades tradicionais realizadas cotidianamente pelos grupos e proporcionar aos visitantes e turistas o contato com as diferentes realidades sociais e seus modos de vida. Nas comunidades de Canto Verde e Batoque a economia solidária se faz presente de duas maneiras distintas: uma é através da gestão participativa tanto da RESEX – Reserva Extrativista, quanto das associações de moradores, pescadores e dos Grupos de Turismo; a outra forma se materializa por meio das redes de cooperação, comercialização e gestão da produção artesanal e turística realizadas em ambas. Dessa forma, as redes Tucum e Bodega dão vida à articulação entre as 16 comunidades que integram a rede cearense de turismo comunitário, assim como a bodega, que tornou-se um espaço de comercialização e distribuição da produção dessas comunidades em espaços fixos e itinerantes. Porém, esses espaços precisam de diálogos contínuos para que suas práticas possam ser vistas e revistas, objetivando identificar as fístulas construídas por discordância. Por essa razão, a Rede Tucum vem desde sua constituição realizando encontros periódicos entre todas as comunidades para aparar essas arestas.

Assim, há dezoito anos no Ceará, a Rede de Turismo Comunitário Cearense - Tucum, com destaque para as comunidades de Canto Verde e Batoque, constitui uma resistência no modo de fazer um turismo distinto do tradicional, diferente do turismo de massa, contrapondo-se ao modus operandi deste último, no qual as populações locais não têm espaço para protagonizar suas próprias histórias. Quando participam, em geral, o fazem na condição de mão de obra, por vezes barata, temporária, esporádica, sem vínculos empregatícios ou direitos trabalhistas assegurados.

Nesse sentido, o Turismo Comunitário em Canto Verde mostrou-se uma realidade e uma forma encontrada pela população local de resistir ao avanço dos capitais financeiro e imobiliário, que têm usado de práticas ilegais para se apoderar das valiosas terras litorâneas da população nativa, além de cooptar pequenos grupos internos, enfraquecendo a coletividade, a autogestão e participação social dessas comunidades.

Esse enfraquecimento foi constatado nas oficinas de diagnóstico participativo, nas respostas aos questionários aplicados e nas entrevistas realizadas durante este trabalho de pesquisa. Tanto a população ouvida pelos instrumentos citados quanto os visitantes e membros do GT do Turismo relataram a existência de uma divisão nas comunidades, o que vem se refletindo na polarização da atividade turística nessas reservas extrativistas.

Segundo os relatos, antes dessa divisão o grupo era coeso e lutava por objetivos comuns. Porém, na atualidade, o que existe é um declínio da capacidade de luta e conquista dessas comunidades, o que vem repercutindo negativamente sobre a dinâmica do lugar e o turismo de base local. Nesse sentido, há dois tipos de atividade turística praticada em Canto Verde: o Turismo Comunitário, coordenado por um grupo de pessoas ligadas à Rede Tucum, e o turismo tradicional, de massa, empreendido por outro grupo, tendo como principal aliado o Complexo Educacional Farias Brito, interessado na compra das terras canto-verdenses.

Essa realidade permissiva enfraqueceu a ideia do “Eu Coletivo”, pensada como primeiro passo da mudança pelos moradores locais após se depararem com a possibilidade de perder suas terras e seu modo de vida, passando a lutar contra a especulação imobiliária e a venda ilegal das terras em Canto Verde. Tal luta não se detinha na tentativa de preservar as terras continentais, mas também na preservação da lagosta, uma fonte de renda lucrativa para os nativos, embora tratada com desrespeito por parte de pescadores desinformados. Diante dessas ameaças, a solução encontrada foi a criação da Reserva Extrativista de Canto Verde, que se tornou objeto de discórdia na comunidade, embora boa parte da população a veja com bons olhos, sobretudo, pela garantia de permanência dos nativos nas terras em questão.

O diagnóstico participativo também contribuiu para constatar que a população local é consciente de suas fragilidades, tanto no que se refere à divisão em torno do turismo comunitário quanto à necessidade de melhor atender às demandas dos turistas. Essa consciência se reflete em iniciativas de realização de oficinas de qualificação da comunidade, visando à prestação de melhores serviços. Os sujeitos investigados também anseiam pela redução dos conflitos internos, a fim de fortalecer o turismo na região e manter a comunidade coesa em suas lutas e conquistas.

Nessa perspectiva de lutas e resistência ainda existem muitos caminhos a serem traçados e constituídos por essas duas comunidades que construíram, com plano de monitoramento das ações identificadas como prioridade na tentativa de solucionar os problemas identificados por meio do plano de ação. Nesse sentido foi construído um calendário com ações, meios para sua verificação e responsáveis por cada ação a ser realizada.

Na Reserva Extrativista do Batoque, as dificuldades de consenso em torno do turismo solidário são ainda maiores, dada a existência de vários agentes conflitantes em torno da luta pela posse e pelo uso das terras. Os conflitos envolvem desde os veranistas, os agentes do turismo predador - que ainda constitui a forma de obtenção de recursos, em particular, os donos das barracas de praia - os antigos e novos gestores das entidades representativas da comunidade, além de interesses pessoais e políticos que perpassam esse ramo de atividade socioeconômica. O cenário descrito não apenas compromete a prática do turismo na área, como a própria preservação da reserva extrativista, já que sua população se divide entre os que a apoiam e os que a rejeitam.

Apesar de Batoque presenciar, dia após dia, as incertezas provenientes dessa desunião, existe um pequeno, mas consistente grupo que ainda luta pela comunidade e que tem conquistado mudanças significativas para o lugar. Vale ressaltar que a Reserva Extrativista do Batoque tem metade do seu território ocupado por casas de veraneio, cujos moradores não se envolvem nessas lutas políticas. Porém, o pequeno grupo de moradores não foge da luta, se mobiliza, participa e luta cotidianamente para melhorar suas vidas. Isso demonstra que a prática do “Eu coletivo”, mesmo em pequena escala, ainda está presente no seio dessa comunidade e poderá contribuir para o desenvolvimento humano na região.

Já o Turismo Comunitário, que já foi realidade em Batoque, não mais se faz presente, já que a reserva perdeu uma de suas principais bases de apoio: a pousada solidária que foi desativada há anos. Resta aguardar que o atual grupo gestor da Associação de Moradores, com o apoio da Rede Tucum, retome o Turismo de Base Comunitária em Batoque, como havia sido proposto por seus membros. Por fim, a pesquisa apresentada deixa como contribuição direta para cada um dos grupos investigados um plano de ação construído coletivamente, assim como um plano de monitoramento das ações propostas. Defende-se, portanto, que o “Eu Coletivo” ainda constitui uma forma concreta de desenvolvimento dessas comunidades por meio do turismo comunitário, cuja concretude ficará a cargo de novas e futuras investigações.

Referências

Lefèvre, F. , & Lefèvre, A. M. C. (2003). O discurso do sujeito coletivo: Um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul, RS: EDUCS.

Max-Neef, M. A. (1993). Desarrollo a escala humana: Conceptos, aplicaciones y algunas reflexiones. Montevidéu: Nordan-Comunidad.

Rodrigues, A. B. (2000). Turismo e desenvolvimento (3a ed.). São Paulo: Hucitec .

Sen, A. (2011). A ideia de justiça (D.. Bottmann, R. D. Mendes, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

Souza, W. (2015). Entrevista concedida a Viviane Costa Fonseca de Almeida Medeiros. Realizada em Prainha do Canto Verde.

Verdejo, M. E. (2006). Guia prático. DRP. Brasília: ASCAR.

Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2 Resumo publicado nos Anais do 16° ENTBL (Encontro Nacional de Turismo de Base Local) 2022.


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