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Empreendedorismo e a força do patrimônio imaterial para o desenvolvimento local
Caderno Virtual de Turismo, vol. 23, núm. 1, 2023
Universidade Federal do Rio de Janeiro




Apresentação "Fuzuezinho" da Cia de Aruanda

Nei Lopes nos ensina que Aruanda (apropriação de Luanda, capital de Angola) é “a morada mítica dos orixás e entidades superiores da Umbanda”. Na memória afetiva de negros escravizados embarcados na Angola, Aruanda com o tempo deixou de representar um porto, tornando-se não só um lugar utópico, mas toda a África e a liberdade perdida. Esta entrevista se deu no espaço Casa D’Aruanda com Rodrigo Nunes, Ana Cê e Leco Lisboa, três dos cinco fundadores da Cia. de Aruanda e de seus consequentes projetos de identificação e gestão da economia criativa local de Madureira, importante bairro suburbano da Zona Norte carioca. A Cia. de Aruanda é idealizadora da roda de danças populares Fuzuê D’Aruanda, que ocorre desde 2008 embaixo do viaduto Negrão de Lima, em Madureira. Para além, a companhia também idealizou os projetos Rede Madureira Criativa, Rede de Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro e o Projeto Escola de Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro.

Como começa o movimento da Cia. de Aruanda?

Rodrigo: A Cia. começa informalmente em 2005, dentro desse contexto urbano de Madureira, a partir de grandes referências como D. Ivone Lara, Mestre Fuleiro, Mestre Darcy, Silas de Oliveira, Pretinho da Serrinha mais contemporaneamente, ou seja, um lugar onde grandes pessoas nasceram, e isso para nós sempre nos foi dito de alguma maneira. Crescer e andar nas mesmas ruas que D. Ivone Lara andou já nos situa nesse lugar de consciência, de perspectiva, de possibilidade onde eu também posso usar da arte para viver: a minha arte; uma arte ancestral, negra.

Com tantas referências no território, acredito que haja uma história até a chegada da Cia. de Aruanda. É isso?

Rodrigo: O Mestre Darcy se vê enquanto o último na geração de jongueiros e começa a ensinar as crianças da comunidade junto à Tia Maria e a outras mulheres do morro para fazerem apresentações artísticas com o Jongo, muito no intuito de difundi-lo paralelamente a este trabalho de ensino com as crianças nas escolas da comunidade. Nesta época, o nome do grupo ainda era Bassam. Nesse ínterim, eu tinha aproximadamente 12 anos de idade quando via o Mestre Darcy ensaiando com algumas crianças na Escola República Dominicana à noite. Eu ficava só assistindo, porque minha mãe não deixava eu dançar. Ia frequentando os ensaios, mas não participava até que, na terceira aula, eu entrei e comecei a frequentar escondido da minha mãe. Eu só ensaiava e não participava das apresentações. Já em 2001, o Jongo da Serrinha funda uma ONG com várias atividades culturais com o interesse da juventude local, e aí eu já entro para o grupo artístico do Jongo da Serrinha. É nessa oportunidade que eu amplio minha perspectiva de vida: a gente começa a sair do morro e vai viajar pra São Paulo, Bahia, Espírito Santo, ou lotando teatro no centro da cidade. Nessa época que eu conheço a Ana, o Dario. Aí que a gente percebe lá dentro que isso que a gente faz no morro tem mais gente que gosta, pode ser que exista valor também econômico, mas sobretudo um valor ancestral e um valor político também, de transformação. Então, chega esse momento em que eu já estava ali com 17, 18 anos e já questionava essa participação mais efetiva na organização do Jongo para que os mais velhos ouvissem essa galera que estava ali desde os 12 anos participando, mas que só era comunicada na véspera da apresentação. A gente queria entender como funcionava a gestão, que ONG era essa, como ela funciona, como se captam recursos, como se faz pra essa engrenagem funcionar e sempre éramos negligenciados. Então a Cia. de Aruanda vem dessa dissidência, onde nós não queríamos ser apenas uma peça do jogo, apenas um dançarino que se chama uma vez ou outra para dançar. Nesse processo, a gente amplia nosso horizonte sobre as manifestações culturais, vai visitar os candomblés, viaja para o Maranhão, para o interior de Minas para conhecer as congadas e ter contato com a realidade de outras juventudes e entender como essas tradições, assim como acontecem com a gente, acontecem em outras comunidades também. Isso potencializou a nossa iniciativa de começarmos uma coisa entre nós. Nos juntamos ao Celio Menezes e ao Márcio André, dois músicos que foram do Jongo da Serrinha, mas tinham começado um novo projeto musical chamado Cia. Brasil Mestiço; e a gente leva esse acúmulos em danças e culturas tradicionais para dialogar com esse trabalho musical por volta de 2004/2005 e que tem um estouro na cidade. Mas ainda assim, não era uma história nossa.

Em que momento a Cia. de Aruanda começa a se enxergar enquanto uma instituição?

Ana Cê: Institucionalmente, ela é fundada em 2007 com os cinco integrantes que compõem o núcleo duro da instituição. Começamos realizando a hoje tradicional roda do Fuzuê D’Aruanda através do reconhecimento de todo esse acúmulo com que a gente esteve lidando com comunidades tradicionais, mestres, grupos culturais dessas comunidades. Fazíamos muito essa troca de saberes com outras comunidades enquanto manifestantes das culturas tradicionais. A gente foi aprendendo batendo cabeça, trocando a roda com o carro andando, e é importante de certa maneira que estas informações chegassem nestas outras comunidades. Para que elas, por elas mesmas, pudessem começar a captar recursos, gerir seus processos e não passar os perrengues que a gente passava lá atrás. A gente acompanhava muita gente que estava num lugar em que não queria estar porque não sabia como avançar, que queria escrever seu projeto, sentar-se na mesa de negociação, e é necessário ser uma instituição para fazer isso.

É dessa caminhada que se instituem as Redes de Patrimônio e a Rede Madureira?

Rodrigo: A gente chegou num ponto que viu que, apesar de a gente saber de muita coisa dentro desses processos institucionais, a gente ainda estava aprendendo, e que poderíamos ensinar como fazer para outras pessoas, para que elas não tivessem as mesmas dificuldades que vivenciamos. Nesse sentido, a gente começa a pensar os processos para além do artístico, porque antes a gente só se via assim enquanto uma companhia artística, de dança, para espetáculos e apresentações. A gente começou a chegar num lugar de referência para outros grupos e pessoas que vinham pedir ajuda em questões com as quais a gente já estava começando a lidar. Essa demanda começou a chegar e de alguma maneira a gente abraçou isso. E a gente percebeu que estávamos num lugar de gestão, de pensar empreendedorismo, rede, o território. Hoje, a gente concilia esse fazer artístico com esse lado da gestão de rede, empreendedorismo e da economia criativa.

E hoje, como vocês se classificam?

Rodrigo: Hoje somos uma organização social para pensar o empreendedorismo, o território e o diálogo com a cultura tradicional. Buscamos a preservação e difusão sustentável das manifestações de matrizes africanas.

Leco: No geral, as pessoas são muito necessitadas desse suporte e acaba que a gente precisa devolver em certa medida isso para as pessoas que vivem das coisas que a gente vive. E agora, a partir deste espaço físico que é a Casa D’Aruanda, a ideia é a gente ter um lugar para fazer nossas reuniões, organizar os projetos, guardar os instrumentos; tem o segundo andar com um terraço bacana para fazermos oficinas, apresentações e até mesmo receber outros grupos. Acontece de as pessoas acharem que vai ter alguém que vai fazer a contabilidade, outro vai escrever o projeto e a gente só vai apresentar. Isso para a cultura preta não existe! Então somos uma organização para facilitar esse diálogo.

Qual a perspectiva de vocês sobre como se deu esse mercado?

Ana Cê: Sabe, no meio desse caminho todo a gente foi percebendo que esse é um caminho não linear porque nosso desejo era apenas fazer o nosso, apresentar espetáculos e promover o diálogo da roda na rua – o que já é muita coisa – mas foi caminhando que a gente percebeu que a gente podia fazer o “nosso”, e aqueles irmãos que são atores culturais podem fazer o deles também! Vamos compartilhar o que a gente sabe aqui e vamos ver no que vai dando. Só que isso tomou uma proporção que não estava muito no nosso controle. O nosso lado artístico se diluiu um pouco e esse “nosso” aqui já é outro lugar que se transformou na Escola de Patrimônio, na Rede de Patrimônio Imaterial, na Rede Madureira Criativa. E esses lugares não estão distintos, são interdependentes, virou um todo. Muito nessa ideia de que a gente não cria nada, tudo foi se apresentando pra nós de forma muito orgânica.

E como se dá a criação da Rede de Patrimônio Imaterial?

Rodrigo: Nessas viagens que a gente fazia para os quilombos da Machadinha, Pinheiral, São José e suas apresentações, as visitas ao Mestre Pecê – porque lá eles fazem um bumba-meu-boi – e então quando a gente viu, a gente percebeu que já existia uma rede que a gente precisava se organizar pra pleitear as resoluções de uma demanda que quase todo mundo passa igual. Então a gente já tentava ajudar de alguma maneira, estava presente nas festas, fazia amizades e até encaminhava algumas coisas. A ideia é potencializar essas possibilidades.

E quais são os parceiros da Rede de Patrimônio Imaterial?

Rodrigo: Temos muitos parceiros, em sua maioria quilombos, situados no estado do Rio, num total de 12 comunidades, mas existem limitações por conta dos editais, que são a principal fonte de captação de recursos que temos hoje. Determinados editais apresentam implicações como, por exemplo, este edital que financia os cursos da Escola de Patrimônio, que só pode ser investido em iniciativas onde esta empresa pública atua, e isso limita um pouco a forma de diálogo que temos com nossos parceiros. Então, a gente tem quilombo de Pinheiral que é um parceiro nosso, mas não está inscrito no edital da Escola de Patrimônio; em Vassouras, quilombo São José; são cidades onde essa empresa não atua. Mas a gente vai e faz uma atividade com outros parceiros fora desses editais também com os recursos que são viabilizados a partir deste e, assim, a gente está construindo.

Qual a distinção entre a Rede e a Escola de Patrimônio Imaterial?

Rodrigo: A Escola é um projeto da Rede de Patrimônio Imaterial que tem outras regiões fora do Rio de Janeiro. Independente de projeto de recursos, é uma rede de diálogo que pensa soluções dentro da lógica da economia criativa. A proposta é acolhimento. Aprender com a ancestralidade, sabendo que juntos nós conseguimos ir mais longe. Se chegamos no meio público ou privado, sozinho não sou ninguém. Mas se chegamos com mais quinze, ou enviamos um documento com assinatura de diversas regiões pleiteando determinada demanda, a gente é ouvido. Outro projeto nosso é o Rede Madureira Criativa, que foi formado para pensar Madureira e a Grande Madureira. A gente cresce e vive em Madureira, atua com cultura em espaço públicos, mas não conhecíamos muitos movimentos similares e criativos que ocorrem aqui perto. O Projeto da Rede Madureira Criativa é mais amplo: a ideia é pensar no âmbito da Economia criativa na Grande Madureira, não apenas a cultura popular, mas a cultura de Madureira em geral, que gera muita renda.

Ana Cê: A Rede Madureira Criativa abre espaço para as diversas linguagens econômicas da área. Tanto, que nasceu na pandemia justamente num momento de total instabilidade econômica de diversos empreendedores da região, muito nesse lugar de uma rede de fortalecimento. E a ideia é a gente passar pra aquela senhorinha que vende suas coisas [a noção de] que ela é uma empreendedora, que ela pode fazer parte de uma rede de cooperação; e se ela quiser se institucionalizar, o que essa rede pode colaborar pra isso? Aí a gente conhece um assistente social, um advogado. E veio também nesse lugar de se apropriar do território que se ocupa e se fortalecer nele, fruto de uma experiência onde a gente ocupa as ruas de Madureira há mais de 10 anos.

Rodrigo: É você entender dentro dessa malha diversa que tem nesse território quais são as articulações possíveis que eu posso fazer e como eu me fortaleço politicamente. Quando veio o edital da Zona de Cultura da Prefeitura, eles anunciaram que iam fazer uma reforma embaixo do viaduto: “vamos colocar uns ladrilhos, um anfiteatro…”. Mas tudo vindo de cima pra baixo, sem consultar nenhum dos muitos empreendedores que atuam nesse lugar. Daí, essa rede se articula, se junta, pede uma reunião com o poder público e diz: “Não sou eu, fulano ou a Cia. de Aruanda que tá pleiteando, são 25 instituições do território que queremos saber que obra é essa” e fazemos eles recuarem na decisão. A gente só está ouvindo o que nossa ancestralidade sempre nos ensinou.

A estrutura das organizações é com as mesmas pessoas?

Não. A gente tem os cinco fundadores da Cia. de Aruanda, que é o núcleo duro, e temos outros profissionais que nos ajudam nas outras frentes. Temos a Sheila, que cuida das questões da Rede Madureira; o Daniel, que cuida das questões artísticas da roda do Fuzuê D’Aruanda; outro profissional que está mais presente nas questões da Escola de Patrimônio, que pode viajar e visitar as comunidades para compreender suas demandas. A gente vai moldando a equipe de acordo com a demanda.


Ilram Albuquerque
Mestrando em Engenharia de Produção do PEP/COPPE/UFRJ, sob orientação do Prof. Roberto Bartholo

Pesquisador do Laboratório de Tecnologias, Diálogos e Sítios (LTDS)

Ilram.albuqeurque@pep.ufrj.br



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