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Luz, câmera e educAÇÃO: o cinema em contextos educacionais
Luz, câmera e educAÇÃO: o cinema em contextos educacionais
Educação. Revista do Centro de Educação, vol. 41, núm. 1, pp. 145-157, 2016
Universidade Federal de Santa Maria
Recepção: 19 Março 2015
Aprovação: 02 Dezembro 2015
Resumo: Este trabalho busca uma interlocução com a produção científica, publicada nos últimos dez anos, circunscrita à temática: cinema, infância, educação e psicologia, procurando elucidar o modo como os profissionais que trabalham com crianças têm articulado o cinema como estratégia de intervenção. Em um total de sessenta e dois artigos levantados, verificou-se que contemplavam parcialmente a temática investigada e que nenhum deles tratava do “fazer cinema” como ação fundamental em projetos educacionais para a infância. Assim, foram selecionados para análise dois desses trabalhos, por caracterizarem intervenção e utilizarem o cinema como estruturante de oficinas. Concluímos que o cinema parece estar fora de cena quando se trata de seu uso como disparador de processos emancipatórios como um elemento que engendra movimentos de desnaturalização de papéis dados socialmente e como elemento que provoca o questionamento de nossas suposições.
Palavras-chave: Cinema, Infância, Psicologia.
Abstract: This article seeks an interlocution with the scientific production from the past ten years circumscribed to the following themes: cinema, childhood, education and psychology. This interlocution aims to illuminate the way in which professionals who work with children have articulated cinema as a strategy of intervention. Sixty-two articles were found. These articles only partially contemplate the investigated theme and none of them was about “film making” as a fundamental action in educational projects for childhood. Thus, two of these articles were selected for analysis, because they described interventions, and because they used cinema as a structuring aspect of group work. We concluded that cinema is still out of scene when it comes to its use as a trigger for emancipatory processes; as an element that engenders movements of denaturalization of socially given roles; and as an element that provokes questioning of our taken-for-granted assumptions.
Keywords: Cinema, Childhood, Psychology.
Introdução
Há um consenso entre os estudiosos sobre a relevância da Arte para a constituição da consciência crítica do sujeito, tendo em vista a educação para a cidadania. Segundo André (2008, p. 2), “a experiência artística oferece oportunidades para os indivíduos que o [sic] fazem inventores de si mesmos e inventores de suas finalidades”. A noção de cidadania a que nos reportamos neste trabalho aponta para um sujeito participativo, aberto à transformação, capaz de transgredir as regras normativas e dominantes, visando à transformação social.
Inúmeros são os estudos que se pautam no argumento de uma formação para a cidadania para legitimar e fomentar projetos de intervenção educacional que utilizam a Arte como ferramenta de ação (Albano, 2010; André, 2008; Loponte, 2008). Diante disso, o objetivo deste trabalho é estabelecer uma interlocução com a produção científica, publicada nos últimos dez anos, concernente à temática: cinema, infância, educação e psicologia, procurando elucidar o modo como a Arte, especialmente o cinema, tem sido utilizada por profissionais que trabalham com crianças.
O interesse pelo tema ganhou terreno por ocasião da participação da primeira autora em um projeto de extensão universitária, denominado “Parangolé: brincando com arte”, em que a mesma acompanhou oficinas de cinema destinadas a crianças e adolescentes. A conclusão do projeto disparou um movimento de análise e reflexão sobre o alcance da proposta junto ao público-alvo, e o desejo de investigar “como a experiência com a arte pode proporcionar a experiência com o outro. O outro que está dentro de nós mesmos e o outro que está à nossa frente [...]” (ALBANO, 2010, p. 37).
Essas inquietações, associadas à experiência de acompanhar por um ano as oficinas, suscitaram a curiosidade a respeito de como outros projetos que têm o cinema como objeto constituem suas ações junto às crianças. Interessou-nos compreender como se elaboravam as atividades e quais avanços relatavam. Para tanto, iniciaremos o diálogo com alguns autores sobre a Infância e, na sequência, sobre Arte e Cinema.
Gente pequena assumindo posicionamentos
A perspectiva moderna ainda sustenta a noção de infância demarcando suas diferenças em relação à idade adulta, reafirmando a ideia de etapas de desenvolvimento preestabelecidas, normalizadas e classificadas segundo padrões do adulto e “transformando a qualidade da heterogeneidade da criança (suas maneiras próprias de pensar, sentir e agir) em quantidade” (GUIMARÃES, 2005, p. 5). Nesse sentido, a ideia de criança como um “vaso vazio” a ser preenchido é ainda vigente na sociedade ocidental-moderna (GUIMARÃES, 2005).
Souza (2007) afirma que a psicologia do desenvolvimento corroborou a concepção da criança como um organismo em formação, que se desenvolve por etapas seguindo uma cronologia, fragmentando-a em áreas de desenvolvimento cognitivo, afetivo, social, motor e linguístico. Nessa perspectiva, a criança não é vista por inteiro, como um sujeito situado histórica, social e culturalmente. Kramer (2007b, p. 25) considera “adultos e crianças como cidadãos, criadores de e criados na cultura, produtores da e produzidos na história, feitos de e na linguagem”.
Kramer (2007a) aponta o paradoxo que estamos vivendo, tendo em vista o vasto conhecimento teórico sobre a infância coexistindo com a incapacidade da sociedade, em geral, em lidar com as crianças e adolescentes. Apesar de se intensificar o discurso em defesa dos direitos de crianças e adolescentes, Kramer (2007a, p. 5) indaga: “como respeitar os direitos de cidadania das crianças?”. E prossegue em seus questionamentos: como traçar políticas para a infância em que os segmentos culturais como cinema, televisão, biblioteca, brinquedotecas e museus possam desempenhar efetivamente seu papel social de formador de valores humanos junto ao público infantil?
De acordo com o pesquisador Jorge Larrosa Bondía, vem se delineando um contorno de infância como “acontecimento” (BONDÍA, 2002, p. 24) que foge de qualquer tentativa de prescrição e controle, e rompe com uma visão fragmentada, compartimentada, dividida e descontínua (BONDÍA, 2010). Acolher esse olhar sobre a infância mobiliza processos muito semelhantes aos que a arte contemporânea provoca. Arte e infância foram por muito tempo “pedagogizadas” e emolduradas, gerando no espectador um convite à contemplação. Nos tempos atuais, ambas parecem requisitar uma subversão do olhar e uma mudança de posicionamento, acolhendo a imprevisibilidade, o inusitado e a pluralidade. A arte contemporânea é feita da “irrupção de acontecimentos” (LOPONTE, 2008, p. 116), não aceita estabilidade e nem linearidade. Exige, por outro lado, rupturas de espaço e tempo, questionando verdades postas.
Arte: fora de enquadre
Segundo Camargo e Bulgacov (2008), o ser humano possui a necessidade de comunicar seus sentimentos e emoções, e a Arte pode ser compreendida como um meio para atender a essa demanda. Partindo desse entendimento, a Arte é concebida como criação, como alforria para pensar tudo o que pode vir a ser, trabalhando a realidade como possibilidade, aberta e flexível. As autoras questionam: “O que é a realidade senão uma possibilidade que se concretizou? O que é a possibilidade senão uma ideia, uma realidade não nascida?” (CAMARGO; BULGACOV, 2008, p. 469).
Albano (2010) afirma que a oportunidade para refletir sobre a função da Arte, como experiência, provoca um refinamento dos sentidos e a ampliação da percepção, dando abertura para se deixar impressionar. A autora também faz um convite aos educadores para observar mais do que falar, “dando tempo para emergir tudo o que for necessário ser descoberto” (ALBANO, 2010, p. 38). A experiência estética, portanto, é capaz de enriquecer o vivido, de recriar significados, de indagar e confrontar a realidade.
Segundo Zanella (2010), as relações estéticas – ou relações de alteridade – fundamentam-se em sensibilidades que provocam a realidade instituída e possibilitam reconhecer infinitas escolhas de devir. Para a autora, a sensibilidade funda-se na alteridade, no reconhecimento do outro e de si mesmo como diferença, em que há certo movimento que possibilita o distanciamento em relação ao vivido, necessário para o processo de criação/reinvenção. Ela afirma que “cada pessoa é artista da própria existência, pois cada um tem em mãos os pincéis com os quais pode dar o acabamento estético à sua presença no mundo” (ZANELLA, 2010, p. 35). Assim, a Arte em contextos educacionais precisa estabelecer um diálogo entre o estudante e sua própria cultura, sem perder de vista a singularidade de cada um.
Nessa mesma linha, Camargo e Bulgacov (2008) defendem que adotar uma perspectiva estética na educação não significa necessariamente trabalhar para a formação de artistas, mas construir uma educação que tenha a Arte e as atividades expressivas artísticas como fundamento na relação ensinar-aprender. Dessa maneira, a estética também é entendida como um instrumento para a educação do sensível, levando alunos e professores a descobrirem formas até então inusitadas de perceber o mundo. “Trazer a estética para o cotidiano escolar é respeitar a diferença entre as pessoas” (CAMARGO; BULGACOV, 2008, p. 474), ir além do conceito artístico.
Para o presente trabalho, o cinema foi escolhido como uma das linguagens artísticas que pode propiciar o desenvolvimento pessoal, pelo fato de que oferece ampliação de repertório para aqueles que acreditam e investem em seu potencial transformador.
Cinema: novo enquadre
Falar ou escrever sobre cinema é muito difícil. Coloca-se, obviamente, um problema de tradução. Como traduzir com palavras o que não é feito de palavras? Quando ouvimos ou lemos coisas sobre cinema, temos habitualmente a sensação de que passamos dos limites, das mediações, dos arredores; a sensação de que o que está eliminado de palavras, talvez por inalcançável, é precisamente o cinema. (TEIXEIRA, LARROSA; LOPES, 2006, p. 11).
Embora seja difícil conceituar a Arte e a totalidade de seus elementos, segundo Souza (2013), não podemos renunciar à possibilidade de refletir sobre seus contornos. O Cinema enquanto Arte pode ser entendido como uma realidade em si mesmo, incompleta, universal e particular, promovendo estranhamento da realidade dada, possibilitando elaboração de sentidos, valores e sentimentos.
Bilharinho (1996) afirma que a concepção do Cinema como diversão ou passatempo constitui um grande equívoco cultural, tendo como principal fator de propagação a indústria cinematográfica, que imprimiu um caráter comercial à maioria dos filmes. Apesar de o grande público ter esse entendimento, Bilharinho (1996) e Duarte (2002) asseveram que o Cinema constitui uma arte universal, a forma de arte mais difundida. Diferentemente da literatura, que necessita do domínio de códigos e estruturas gramaticais, a linguagem cinematográfica está ao alcance de todos, principalmente em sociedades audiovisuais.
A arte cinematográfica é, segundo Duarte (2002), uma linguagem profundamente rica, constituída pela articulação de códigos e elementos distintos como imagens em movimento, luz, som, música, fala e textos. E é por meio da combinação desses elementos que, segundo a autora, é possível produzir diversos significados. Berti e Carvalho (2013) ampliam a noção de Cinema, indo além das perspectivas tradicionais estruturalistas que estudam a narrativa cinematográfica e a decodificação de signos, defendendo o Cinema como “potência de criação” (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 186) e alteridade que possibilita estabelecer relações, promover encontros e afetos.
Berti e Carvalho (2013) entendem o Cinema como prática sociocultural, amarrado ao contexto em que é visto ou produzido. Assim, os filmes trazem inúmeras representações e convenções dos padrões sociais como, por exemplo, concepções sobre masculinidade, feminilidade, infância, etnia, entre outros. Quando se propõe trabalhar Cinema na escola, além das possibilidades cinematográficas, é preciso estar atento às questões sociais, buscando problematizar criticamente esses temas com os alunos.
Duarte (2002) vê o espectador como sujeito social dotado de valores, saberes e crenças que interage de forma ativa. Concordamos com as ideias da autora e, desse ponto de vista, consideramos a criança não como contempladora, mas como autora e criadora de roteiros e narrativas.
“Assumir o lugar do cineasta, questionar por que escolheu este plano e não aquele outro. Por que se optou por esta cena?” (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 188). A questão formulada pelas autoras provoca o deslocamento do posicionamento geralmente ocupado pelas crianças em nossa sociedade – daquele que assiste para aquele que cria. Nesse sentido, cabe questionar: o que mudaria se deixássemos de compreender a Arte como atividade recreativa e socializadora e passássemos a pensá-la como fundamento dos processos educacionais?
Este trabalho não tem a pretensão de responder à indagação formulada acima. Transita na curiosidade sobre as experiências de outros profissionais que trabalham com cinema e infância, buscando apreender como articulam suas estratégias de atuação e ministram os desafios do cotidiano. Interessa-nos dar visibilidade aos trabalhos que compreendem o Cinema como elemento que possibilita a imersão na experiência estética, como recurso para o desenvolvimento de sensibilidade e criatividade, possibilitando a ressignificação do vivido.
Um pequeno trailer: a experiência nas oficinas de vídeo
Ferraço (2007) destaca que, apesar de pretendermos, nos estudos, explicar “os outros”, estamos mesmo é nos explicando. O autor afirma que os trabalhos resultantes de pesquisas,
[...] por mais vivos que possam parecer aos olhos dos leitores/leitoras, ainda estão muito longe de captar toda intensidade da vida cotidiana. Os cotidianos estão pulsando muito mais fortemente do que qualquer análise que façamos “com” eles. Discursos que nos angustiam pelos vazios que são deixados por entre as linhas escritas porque não há palavras que possam dar conta do que estamos querendo dizer naquele momento. (FERRAÇO, 2007, p. 87).
Diante dos espaços incompreendidos na experiência vivida, este trabalho movimenta-se em direção à extensão do conhecimento sobre a ação do Cinema na constituição de uma infância mais potente e ativa. Como foi dito no início desse trabalho, a experiência da primeira autora acompanhando as oficinas de vídeo desencadeou várias interrogações sobre o modo como as crianças que participavam do projeto se apropriavam daquela experiência, aquecendo o desejo de ampliar o conhecimento sobre outros trabalhos que comungam o objetivo de usar o Cinema em suas ações práticas.
Apresentaremos a seguir uma visão geral da organização do referido projeto de extensão universitária, especificamente sobre as oficinas de vídeo, a fim de fundamentar de forma mais substancial a relação entre a participação da primeira autora nas oficinas e a formulação das inquietações que culminaram na escrita deste trabalho.
Zoom: oficinas de vídeo
No ano de 2013, as autoras1 participaram de um projeto de extensão que envolvia oficinas de vídeo propostas por uma ONG que atende a crianças de baixa renda e se localiza na periferia de uma cidade mineira. Trata-se de uma organização do Terceiro Setor que conta com patrocínio de uma empresa local. O diferencial do projeto desenvolvido pela ONG é ter a Arte como principal ferramenta de promoção de diálogo, aprendizado e mediação.
As oficinas, propostas no contraturno da escola, tinham como finalidade desenvolver habilidades na linguagem do teatro, canto, percussão, literatura e vídeo. Em média, em cada oficina, eram matriculadas vinte crianças com idade entre oito e treze anos. Ao todo foram realizadas dezesseis oficinas com duração de duas horas cada.
Acompanhamos as oficinas de vídeo, que eram coordenadas por dois artistas-educadores responsáveis pelo planejamento e execução dos encontros. Em alguns deles, as crianças planejavam o roteiro, o cenário e gravavam o filme (usando os celulares); em outros, o roteiro era oferecido, convidando-as a pensarem no enquadramento da câmera e em outros elementos da filmagem, como, por exemplo, a direção e os personagens.
Após cada encontro, a primeira autora redigia diários de bordo, não se limitando a transcrever/descrever os fatos ocorridos, mas exercitando a experimentação ativa de ação e reflexão, ressignificando o vivido.
Escolhendo o enquadre
Após a participação nas oficinas, inúmeras possibilidades de análise se apresentaram como forma de sistematizar o conhecimento produzido. Escolhemos, então, mapear, no campo empírico, o conhecimento produzido sobre cinema, infância, educação e psicologia.
Configura-se como estratégia metodológica deste trabalho a busca sistematizada, na base de dados Scielo2, por artigos publicados em revistas nacionais, no período de 2004 a 2014, utilizando-se da entrada combinada dos seguintes descritores: Cinema, Infância, Educação e Psicologia. Em todas as combinações, mantivemos a palavra Cinema como descritor invariável, por ser nosso foco principal de investigação.
A partir desse levantamento bibliográfico, buscamos investigar se as publicações encontradas compartilhavam resultados sobre projetos práticos pautados no uso do Cinema tendo a infância como público e se os textos avançavam na compreensão do modo como esta linguagem artística poderia ser útil nos processos educacionais voltados para a infância.
Por meio da leitura dos resumos das produções, selecionamos aquelas que apresentaram uma abordagem condizente com a temática do trabalho e excluímos os artigos cujo público-alvo não fosse a infância/adolescência. Em seguida, realizamos, na íntegra, a leitura atenta dos artigos que compuseram as análises.
Mapeamento dos artigos
A busca realizada a partir das diferentes combinações resultou em sessenta e duas produções indexadas. O quadro a seguir apresenta a relação da quantidade de artigos encontrados conforme a combinação dos descritores.
Relação das produções indexadas para cada combinação de descritores pesquisados na plataforma BVS-psi, bases em texto completo, Scielo
Ao fazer a entrada dos quatro descritores associados e dos descritores Cinema-Infância-Psicologia, não encontramos publicações. Ao combinarmos o descritor Cinema à Infância, à Educação e à Psicologia, separadamente, observamos que a sua associação à Educação revelou um número três vezes maior de artigos publicados do que a sua associação à Psicologia. Tal fato sugere que Cinema e Educação formam a dupla de maior interesse para os pesquisadores brasileiros da área da Educação.
Nosso interesse principal nessa busca de artigos era dar realce às práticas que utilizassem a tessitura Cinema – o fazer – como estratégia de ação, tendo a infância e/ou adolescência como público-alvo, para que pudéssemos refinar a interlocução com a experiência que motivou este trabalho. Entretanto, no rol de sessenta e dois resumos encontrados, excluindo três repetidos, encontramos apenas dois artigos que tangenciaram a temática minimamente, a saber: “O Cine Debate promovendo encontros do cinema com a escola”, de Berti e Carvalho (2013), e “Mídia-educação no Ensino Médio: por que e como fazer”, de Siqueira e Cerigatto (2012).
Análise: construindo o roteiro
A leitura e análise dos artigos selecionados revelou que os autores tratam da temática Cinema, Educação e Psicologia em perspectivas distintas. Berti e Carvalho (2013) buscam, nos encontros com alunos do Ensino Médio de escolas públicas, debater e problematizar a produção cinematográfica, ampliando os debates com a discussão de questões sociais, como os padrões fixos e universais. Siqueira e Cerigatto (2012), por sua vez, se preocupam com a leitura crítica e o conhecimento técnico adquirido pelos alunos, a partir de trailers de filmes.
O Cinema, no trabalho de Berti e Carvalho (2013), dialoga com a proposta do crítico e diretor de cinema francês Alain Bergala, que pensa o Cinema como alteridade: “o cinema, como exterior a um eu, possibilita estabelecer relações, promover encontros, produzir afetos” (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 185). As autoras consideram que a experiência com o Cinema permite percorrer/transitar por espaços e temporalidades desconhecidos, convidando a desempenhar vários papéis. Escreveram o artigo com o propósito de compartilhar um “ensaio” que articulasse as inquietações e observações decorrentes de projetos realizados em escolas públicas.
Berti e Carvalho (2013) descrevem as experiências vivenciadas em dois projetos de extensão, desenvolvidos em duas escolas públicas de Ensino Médio, uma em Niterói e outra na cidade do Rio de Janeiro. Foram promovidos “Cine Debates” envolvendo alunos e professores, relacionados a temas extraídos de filmes brasileiros, objetivando
[...] contribuir para o desenvolvimento e para a ampliação das atividades culturais dos sujeitos aprendentes; aproximar diferentes atores sociais, estimular as escolas para a organização de videotecas; divulgar a cinematografia brasileira; incentivar os estudantes a ingressarem na universidade, problematizando o acesso e a permanência deles nessa instituição. (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 191).
Os encontros eram constituídos por quatro momentos: 1º- Apresentação do filme: sinopse e informações gerais; 2º- Projeção: exibição do filme proposto; 3º- Debate: discussão e o diálogo entre o tema e a obra cinematográfica; 4º- Avaliação: análise do encontro por parte dos alunos.
Os dois estudos selecionados compartilham experiências utilizando o Cinema como ferramenta e têm como público-alvo jovens alunos do Ensino Médio de escolas públicas. Ambos trabalham com a leitura e análise de imagens cinematográficas: o de Berti e Carvalho (2013) com o uso de filmes, e o de Siqueira e Cerigatto (2012) utilizando trailers do Youtube. Além dessas semelhanças, percebemos que os artigos tentam, cada um a sua maneira, instigar uma posição/leitura mais crítica dos alunos em relação à produção cinematográfica.
Siqueira e Cerigatto (2012) afirmam que aproximar os meios de comunicação, como o Cinema e a Educação Escolar, é uma ideia antiga, mas salientam que, ainda hoje, as pesquisas mostram que a apropriação crítica desses recursos midiáticos em atividades educacionais não se concretizou. Uma das possíveis razões para que essa prática ainda não seja adotada pode ser a falta de materiais didáticos específicos sobre o assunto. Assim, as autoras se propõem a “produzir um material pedagógico que auxilie o estudante a compreender o modo como são criadas as convenções da linguagem cinematográfica no contexto institucional da indústria da cultura” (SIQUEIRA; CERIGATTO, 2012, p. 238). Este material é produzido e testado a partir da realização de oficinas com alunos do Ensino Médio de uma escola pública, em Bauru-SP. Os encontros tinham dois objetivos: mostrar de que maneira a linguagem cinematográfica gera sentido e apresentar os elementos de convenções que constituem cada gênero, em função da viabilidade da audiência.
Após a familiarização com a linguagem técnica e simbólica, presente no trailer de Cinema, as autoras acreditavam que os alunos estariam mais aptos a realizar leituras críticas das mídias entendendo por leitura crítica a capacidade de identificar como a mídia foi produzida, para que tipo de público e com qual intuito. Trabalhada a apropriação dos conceitos técnicos, as oficinas tinham como escopo aplicar o conhecimento; então, “os alunos montaram seus próprios roteiros, saíram a campo para captar imagens, fizeram experiências com montagem” (SIQUEIRA; CERIGATTO, 2012, p. 246). As autoras destacam que a maioria dos jovens possuía facilidade em compreender os termos técnicos e em identificar recursos de linguagem usados na filmagem, mas encontrava dificuldade em analisar criticamente o produto, em emitir juízos de valor, além de receio em expor a própria opinião para o grupo (SIQUEIRA; CERIGATTO, 2012).
Desse modo, Siqueira e Cerigatto (2012) verificaram que os jovens tinham facilidade para fazer os exercícios de caráter mais técnico, como reconhecer planos e ângulos cinematográficos; contudo, nas atividades em grupo ou que exigiam criatividade, como, por exemplo, na elaboração de roteiro e criação de cenário, a maioria apresentava rigidez e limitação.
Berti e Carvalho (2013) criticam o papel que o Cinema tem ocupado nas escolas, como um pano de fundo para se “encaixar” nas aulas e dialogar com conteúdos de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia, com o intuito de incrementar o assunto. Essa visão não potencializa o conceito de Cinema como alteridade. De acordo com as autoras, a experiência com o Cinema na escola não deve se reduzir a um campo disciplinar específico, e menos ainda se restringir à análise de filmes ou servir para debates “cuidadosamente encaminhados” (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 188). É urgente que os professores façam uso do Cinema como estratégia de criação, viabilizando experiências estéticas diferentes das oferecidas pelo Cinema de consumo.
Corroborando as ideias de Berti e Carvalho (2013), Albano (2010) afirma que, sem a vivência artística no assunto, os alunos leem e apenas repetem o que leram e dificilmente acontece alguma transformação no modo de ver e compreender o problema ou questão que se propuseram a estudar. Assumir o papel de cineasta, decidir sobre o enquadre e plano de cena, significam participar de maneira ativa do processo de constituição cinematográfica.
As autoras citadas tocam em um importante aspecto que ilustramos com um recorte de um episódio vivenciado em uma das oficinas observadas:
Enquanto ajudo um dos meninos a abotoar a camisa, que compõe seu figurino de “chefe”, brinco com ele dizendo, “trabalhe direitinho”. Ele balança a cabeça com um sorriso dizendo, “vou ter mil reais, tia”. (Diário de bordo).
Quando a criança dá corpo ao papel escolhido, ela representa não somente um personagem, mas traz para a cena a realidade que vive, as concepções que possui sobre valores como dinheiro, família, escola, bem e o mal. Uma riqueza de elementos que podem ser trabalhados nas oficinas, ampliando as discussões sobre os diferentes posicionamentos sociais: o meu, o seu e os dos outros.
Berti e Carvalho (2013) defendem que a experiência dos alunos com Cinema pode se dar como um processo de criação. “Para que o filme aconteça, é necessário pensar no orçamento, na equipe de filmagem, na locação do espaço, no estúdio, no público, no lançamento, na avaliação, nos relatórios, etc.” (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 188). O que percebemos, no caso das oficinas de vídeo realizadas no projeto de extensão de que participamos, é que havia momentos específicos para as crianças refletirem sobre a criação do filme e sua adequação aos conceitos técnicos do Cinema. No entanto, foram escassos os momentos dedicados a problematizações e críticas em relação à própria vida e à sociedade em que vivem, fazendo-se um elo entre a realidade e a ficção.
Entendemos que as oficinas podem ser um espaço onde crianças e jovens têm a oportunidade de confrontar e indagar sobre a realidade em que vivem. Assim como Camargo e Bulgacov (2008), compreendemos que o atual ambiente escolar vem minimizando os espaços que potencializariam a constituição de sujeitos singulares, únicos e em movimento. “É um ambiente que não legitima a interrogação nem a possibilidade, que não incentiva a individualidade nem a construção de nossa autonomia, e, consequentemente, nem o respeito pela autonomia do outro” (CAMARGO; BULGACOV, 2008, p. 468).
Camargo e Bulgacov (2008) afirmam que a imaginação, por conter o atributo da elasticidade, possibilita a atividade criadora artística, científica, técnica e sentimental: cria significados, recria ideias e conceitos, rompendo espaços. As autoras partem do pressuposto de que a capacidade de imaginar é o elemento principal para a constituição de um sujeito autônomo, criativo e livre, características que podem ser desenvolvidas com a adoção de atividades expressivas artísticas.
Em nossa experiência no projeto de extensão referido, percebemos que eram raros os momentos em que se permitia fluir a imaginação livremente. Havia pressa, a premência do tempo, que não favorece a atividade criadora. Sem tempo para conduzir as inúmeras questões que emergem nas oficinas, como, por exemplo, assuntos relacionais (criança-artista e educador), questões de família e da comunidade, voltamos a dar valor ao conhecimento técnico/científico desconectado da realidade da criança.
Créditos finais
Compreendemos a Arte como possibilidade, criação, provocando a realidade instituída, naturalizada. “A arte ‘pensa’ na lógica da transgressão, ela é risco, dissolve, abala, nega” (ANDRÉ, 2008). Entendemos a utilização da Arte, especialmente o Cinema, na escola como fundamento que possibilita a relação entre as pessoas nos diferentes contextos.
Para que aconteçam projetos artísticos engajados nessa proposta, precisamos de educadores criativos, que se permitam viver a Arte, tenham abertura para se sentirem tocados por ela e que a legitimem enquanto elemento de transformação. “Embora a arte seja um território fértil para a abertura e possibilidade, a escola consegue aprisioná-la em tempos e espaços específicos, em imagens controladas com pouco espaço para rabiscos imaginários da infância” (LOPONTE, 2008, p. 118).
Consoante com a legitimação do lugar da Arte na educação, pensamos no educador, que está diretamente envolvido nesse processo e atualmente se encontra em um espaço restrito de interlocução. Trabalhos que promovem o diálogo entre teoria e prática (Albano, 2010, Loponte, 2008) possibilitam sistematizar e ampliar as possibilidades de intervenção tendo a arte como mediadora.
Buscamos problematizar neste trabalho o fato de que, ao mesmo tempo que se atribui grande importância ao Cinema, o mesmo tem sido utilizado como ferramenta de discussão de disciplinas e análises pontuais. O Cinema, compreendido como disparador de processos emancipatórios, como elemento que engendra movimentos de desnaturalização dos papéis dados socialmente, provocando o estranhamento daquilo que se apresenta como familiar e/ou natural, parece estar fora de cena.
Entendemos a relevância dos trabalhos selecionados para os fins deste estudo, porém chamou a atenção a ausência de pesquisas envolvendo o público infantil. A escassez de trabalhos voltados para a infância nos faz questionar: por onde anda a criança plural, constituída na diversidade e tão defendida nas teorias?
Referências
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Notas
Autor notes