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Juventude e ensino médio: os processos de afastamento da escola
Juventude e ensino médio: os processos de afastamento da escola
Educação. Revista do Centro de Educação, vol. 41, núm. 1, pp. 171-182, 2016
Universidade Federal de Santa Maria

Recepção: 22 Maio 2014
Aprovação: 28 Maio 2015
Resumo: Este artigo discute alguns dados da pesquisa “Culturas Juvenis e Formação Educacional: um estudo com jovens estudantes das escolas públicas de Santa Maria que se afastam dos processos formativos” a qual teve como objetivo compreender o processo de afastamento de jovens estudantes da escola. A pesquisa quantitativa e qualitativa de caráter etnográfico utilizou diferentes técnicas para a produção dos dados: questionário, observação, entrevista, grupos de discussão e análise documental. Os fatores que colaboram para o afastamento dos/as jovens são inúmeros, neste artigo vamos nos deter em alguns: falta de diálogo entre a escola e as culturas juvenis; negligência da importância da atividade intelectual para os estudantes produzindo mais uma forma de exclusão; conteúdos que não atendem as necessidades desses/as jovens estudantes.
Palavras-chave: Ensino médio, Processos de afastamento, Exclusão cognitiva.
Abstract: This article discusses some of the research data “Youth Cultures and Education: a study with young students from public schools in Santa Maria that departed from the formative processes” which aimed to understand the process of removal the young school students. The quantitative and qualitative ethnographic research used different techniques for generating the data: questionnaire, observation, interviews, focus groups and document analysis. The factors that contribute to the removal the students are numerous, in this article will be discussed some of them: lack of dialogue between the school and youth cultures; neglects the importance of intellectual activity for the students producing another form of exclusion; Items that do not meet the requirements of young students.
Keywords: High school, Removal processes, Cognitive exclusion.
Introdução
Acompanhamos nas últimas décadas no Brasil, em especial a partir da década de 90, o crescimento do acesso à escola de jovens e crianças. Também acompanhamos a crise econômica e de emprego na década de 80 e que se estendeu até os fins dos anos 90. O ingresso em massa de jovens e crianças na escola também acentuou índices de reprovação e abandono escolar. É nesse período que são implantadas políticas de “correção de fluxo visando atenuar as reprovações e evasões” (SPOSITO, 2005, p. 96). Apesar da implementação de algumas políticas públicas a falta de recursos destinados a educação faz com em 2002, quando divulgado o último senso escolar, o índice de distorção idade-série no Brasil, ainda se configure como um problema a ser enfrentado. Colabora com esse fenômeno a grande quantidade de jovens, que ingressam, porém não conseguem manter-se na escola, configurando o afastamento. A pesquisa “Culturas Juvenis e Formação Educacional: um estudo com jovens estudantes das escolas públicas de Santa Maria que se afastam dos processos formativos”1 teve como centralidade a formação escolar de jovens estudantes2 das escolas públicas da cidade de Santa Maria, entendendo como processo formativo o conjunto de ações educativas realizadas pelas instituições escolares e jovens que se afastam consideramos aqueles/as com faltas recorrentes, que se afastam temporariamente e retornam, mas apesar disso, não oficializam a sua saída da escola. Ou seja, são aqueles/as que não vão à escola, mas não se desligam dela. O objetivo da pesquisa foi compreender os motivos que levam muitos jovens a se afastarem da escola.
A pesquisa foi realizada em quatro (4) escolas estaduais do ensino médio de Santa Maria.3 Em relação à parte quantitativa foram utilizados dados estatísticos sobre a educação de ensino médio do Rio Grande do Sul, da Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC), da 8ª Coordenadoria de Educação e de Santa Maria. A parte qualitativa, de caráter etnográfico, desenvolveu-se através da observação in loco, entrevista, questionário e Grupo de Discussão. Foram entrevistados/as 15 estudantes do ensino médio que estavam afastados da escola.
Neste artigo abordaremos aspectos evidenciados pelos/as estudantes do ensino médio estadual da cidade de Santa Maria, analisando-os a luz de referenciais teóricos como Charlot (2013), Abrantes (2003), Freire (1996) entre outros. Iniciamos abordando aspectos relativos à metodologia de pesquisa, posteriormente traremos dados relativos à educação em Santa Maria e a seguir as vozes dos/as estudantes.
Pesquisando nas Escolas do Ensino Médio: aspectos metodológicos
A metodologia utilizada nesta pesquisa seguiu orientações da etnografia, agregando diferentes técnicas de produção de dados como a observação, a entrevista, o Grupo de Discussão e análise documental. Também foram considerados os dados quantitativos relativos aos documentos escolares, bem como os dados de pesquisas do INEP, IBGE, Sistema de Informações Educacionais (SIE-RS): Educacenso/INEP/MEC e Censo Escolar.
Para realizar as observações, elaboramos um protocolo com o objetivo de direcionar o olhar, mesmo assim, entendemos que o olhar é sempre parcial, permeado pela subjetividade de cada observador, portanto, ter algo em comum nos auxiliou a buscar aspectos que pudessem ser comparados. Buscamos realizar uma descrição que, “a partir do ir e vir constante entre observações e reflexão reordenar e reconceituar o objeto de estudo” (CARVALHO, 1999, p. 99). Pretendíamos compreender de que forma era conduzida a chegada dos/as estudantes; como eram encaminhados casos de atraso; quais as preocupações em relação aos estudantes que faltavam com frequência por parte dos/as gestores, dos/as professores; como os/as estudantes se relacionavam com a escola, com seus pares, com o saber também pretendíamos ter acesso aos documentos da secretaria como listas de chamada e Ficha de Aluno Infrequente (FICAI)4.
A partir das observações foi preciso estar atento/a as formas de descrever a pesquisa empírica. De acordo com Colombo (2005) as observações podem ser descritas de três (3) formas: a primeira é denominada narração realista que consiste em fazer o exercício de neutralizar o/a pesquisador/a de modo que ele se mantenha a margem do contexto para interferir o menos possível, ela tem como característica a horizontalidade. Essa forma de narrativa é muito utilizada nas ciências sociais, especialmente para divulgar dados para a comunidade acadêmica. Para essa forma de registro mantém-se o discurso em terceira pessoa. A segunda é a narração processual que consiste em um tipo de narração muito utilizado pela antropologia e tem como característica a mistura do discurso científico e do discurso narrativo. Considera que a poética e a política são campos inseparáveis e o processo de pesquisa é considerado como representante do produto. O/a pesquisador/a é parte do processo, utiliza a primeira pessoa e os textos tem caráter mais introspectivo, na qual “o objetivo principal não consiste em recolher o ponto de vista dos nativos, mas em evidenciar a experiência que o pesquisador vive no campo” (COLOMBO, 2005, p. 276). A terceira é a narração reflexiva que procura descrever o social a partir da reflexividade.
Trata-se de um tipo de escrita em que os discursos na primeira e terceira pessoa se alternam, de modo a iluminarem-se reciprocamente, cuja a interpretação do pesquisador é continuamente colocada em comparação e testada por outras interpretações. (COLOMBO, 2005, p. 283).
A narração reflexiva busca fugir da pretensa neutralidade e procura descrever de forma mais fiel possível a realidade, considerando os documentos e os fatos a partir do modo como são percebidos pelo pesquisador e dos seus interlocutores. Neste caso o papel do leitor é sempre importante para elaborar as conclusões, pois considera que não há uma única forma de interpretação. “As narrações reflexivas evidenciam a inevitável pluralidade das teorias, todas necessariamente parciais” (COLOMBO, 2005, p. 285).
Nesta pesquisa, buscamos realizar a narração reflexiva compreendendo que esse é um processo complexo o qual deriva de dois planos interconexos, exige do pesquisador um compromisso ético e reconhecimento de que o resultado é produzido por um sujeito, que tem um posicionamento político, uma forma de pensar, valores próprios, características pessoais que “tem implicações sobre o tipo de observação que consegue efetuar” e de outro lado reconhecer que a interpretação realizada é uma das possíveis” (COLOMBO, 2005, p. 285).
A entrevista é uma parte importante da pesquisa e tem o intuito compreender, a partir da perspectiva do/da estudante, o que o leva a faltar, abandonar, compreender suas expectativas, suas dificuldades. A entrevista consiste em um diálogo face-a-face, direto e espontâneo, em que pesquisados e pesquisadoras se sentem livres e desarmadas, facilitando a expressão das vivências e da experiência de modo “aberto e fluido” (ORTÍ, 1989, p. 196). Embora estivéssemos bem intencionadas e convictas de que a entrevista constituía-se em uma das formas de entrar em contato com os/as jovens buscando saber sobre suas vivências escolares, tivemos muitas dificuldades de encontrar com os/as jovens, uma vez que eles pouco frequentavam a escola. Muitos/as jovens procurados pelo endereço já não residiam no local e os telefones estavam desligados ou impossibilitados de receber chamada. Mesmo com as dificuldades encontradas conseguimos entrevistar 15 jovens.
Alguns números sobre o Ensino Médio
De acordo com os dados do IBGE e dados do INEP de 2011 é possível ver a incidência da distorção idade-serie no ensino público, tanto no âmbito federal como no âmbito estadual, observamos também um alto índice de reprovação, especialmente em Santa Maria.

Taxa de alfabetização (2010), IDEB5 (2011), taxa de aprovação, defasagem idade-série no ensino médio
IBGE. Censo Demográfico 2010, INEP. IDEB. Nota: O INEP não disponibiliza o IDEB do ensino médio para o nível municipalAlém desses dados, outras pesquisas revelam a grande diferença entre o número de jovens que ingressam no ensino médio e aqueles que concluem. A pesquisa realizada pelo grupo Filosofia, Cultura e Ensino Médio (FILJEM/CNPq), concluída em 2010 quando foram entrevistados 370 jovens, revela o grande número de jovens que apesar de iniciar o ensino médio, não consegue concluir. Dos jovens entrevistados foi possível perceber que 45,68% estão no primeiro ano, 31,89% estão no segundo ano e 19,19% estão no terceiro ano do ensino médio.
No Rio Grande do Sul os dados passam a modificarem-se a partir de 2012 com o início do processo de reformulação curricular do ensino médio, que entre outras coisas, estimulou a construção de uma variedade de formas de avaliação que alteraram os índices.
Os resultados de 2012, primeiro ano da reestruturação, mostram diminuição significativa nos índices de reprovação. No primeiro ano, no qual foi implantada a reforma em 2012, a aprovação passou de 54,2% para 60,4%, e a reprovação, de 31,1% para 23,7%. No conjunto do Ensino Médio a aprovação passou de 66,3% para 70,4%, e a reprovação, de 22,3% para 17,9%. (AZEREDO e REIS, 2013, p. 26).
De acordo com o diagnóstico da educação básica apresentado pela Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) do Rio Grande do Sul, “na idade esperada para o ensino médio, entre 15 a 17 anos, 87,87% dos jovens frequentam escolas e 56,04% estão no nível desejado, tendo 2.645 jovens nesta faixa etária como demanda potencial para escolarização” (SEDUC/RS, 2012, p. 34).
O processo de abandono dos/as estudantes fica ainda mais evidente quando é observado na escola, nosso olhar permite supor que ele é ainda maior do que os dados estatísticos traduzem. Durante nossas observações nas escolas percebemos que houve várias tentativas de camuflar os dados. Nas quatro escolas observadas, percebíamos que os números de matrículas não correspondiam ao número de jovens estudantes que estavam nas salas de aula. Em uma das escolas pesquisadas as matrículas puderam ser comparadas com as listas de chamada dos professores e verificado o número de afastamentos conforme tabela:

Matrículas e afastamentos de uma escola pesquisada
As outras escolas apresentaram dados mais gerais. Em uma delas a direção informou que no início do ano a escola contava com 252 estudantes e estavam terminando o ano 168 estudantes, um abandono de 84 estudantes, distribuídos nos 3 anos, com o número mais expressivo no 3º ano. Em outra escola, haviam 262 estudantes matriculados no turno da noite, destes 96 estudantes no ensino regular e 166 matriculados na EJA. Segundo a coordenadora da escola “em torno de 20% do total assiste às aulas” acarretando problemas de infrequência. Durante nossas observações pelas salas de aula, percebíamos que algumas turmas havia apenas 01(um) estudante frequentando.
Tentar compreender o fenômeno do afastamento revelou múltiplas faces dos problemas que envolvem os/as jovens estudantes do ensino médio. Nas entrevistas a maioria dos/as jovens não consegue perceber problemas decorrentes da crise que existe na escola, a tendência é atribuir a si a responsabilidade por não conseguir manter-se na escola, ou então à atitude dos/as professores/as. Os fatores que se evidenciam que provocam o afastamento são: necessidade de inserir-se prematuramente no mercado de trabalho quer seja porque vão ser pais ou mães e precisam prover a sobrevivência da família, quer seja pelas necessidades financeiras das famílias, cujos pais contam com a renda obtida pelo trabalho dos/as filhos/as. A falta de diálogo entre os/as jovens estudantes e a escola, que desconhece as culturas juvenis e interesses dos/as jovens; conteúdos que não atendem as necessidades desses/as jovens estudantes; descaso dos gestores em relação aos primeiros movimentos de afastamento dos/as jovens estudantes, às vezes, acreditando que é melhor que fiquem afastados porque seu comportamento não corresponde àquele esperado pela escola, metodologias inadequadas, na maioria das vezes restritas aos espaços da sala de aula e com equipamentos deficientes, gravidez e relações de gênero. Entretanto o que consideramos ainda mais problemático é a fragilidade do vinculo com o saber escolar que os/as estudantes constroem. Há uma relação com a escola, porém parece não ter relação positiva com o objeto de conhecimento, com o saber propriamente dito. Todos esses problemas, no entanto, precisam ser analisados de uma forma mais aprofundada, pois traduzem aspectos relativos aos modos de vida da sociedade contemporânea, afetada pelo processo de globalização, que interfere significativamente na educação, “porque incidem sobre as pessoas, os conteúdos do currículo e as formas de aprender” (SACRISTÁN, 2007, p. 31).
O fenômeno do afastamento dos/as jovens precisa ser analisado considerando aspectos históricos e sociais da educação escolar. Historicamente a escola foi criada para atender uma parcela muito pequena e específica da população, em geral aqueles/as cujo contexto escolar era uma continuidade do contexto social e cultural. Com o processo de democratização outros/as jovens passaram a ter acesso à escola, jovens de outras classes, de diferentes culturas, com necessidades e expectativas diferentes em relação à escola. Com isso muitos problemas se tornaram evidentes, entre eles as situações de fracasso escolar, a distorção idade-série e o processo de abandono que se revela a fragilidade do vínculo com o saber. Todas essas problemáticas tentaram ser superadas por meio de algumas políticas públicas de correção de fluxo, implantação de outras formas de avaliação, complementação de atividades no turno inverso às aulas, entretanto, nas escolas, muitas dessas ações tiveram resultados pouco eficientes, pois, muitas dessas políticas foram realizadas sem conhecer os sujeitos as quais elas se destinavam.
A demanda é de escuta dos/as jovens estudantes buscando saber o que eles/as próprios têm a dizer sobre a escola, que movimentos eles percebem que a escola está fazendo para que permaneçam e quais as reais condições para que a aprendizagem se efetive. Nas escolas observadas não há clareza das ações realizadas com vistas a manter os/as jovens na escola quando o processo de abandono é deflagrado. As ações restringem-se a encaminhamentos de FICAI sem, contudo, dialogar com os/as jovens sobre as suas dificuldades. Portanto, acreditamos que esta pesquisa possa nos indicar algumas pistas para compreender o processo de afastamento e quem sabe orientar as políticas públicas que atendam as necessidades dos/as jovens, uma vez que estamos nos propondo a escutá-los/as.
“Sempre disseram que fui empurrada para passar...” olhares diversos para o Ensino Médio e processos de afastamento
Durante a realização da pesquisa, percorremos assiduamente as quatro escolas escolhidas. Atentos à movimentação dos estudantes que lá estavam percebíamos que a entrada era um momento bastante descontraído. Era possível perceber também que havia certa flexibilidade no horário de entrada, especialmente no ensino noturno, uma vez que esse público caracteriza-se, em geral, por estudantes trabalhadores/as. Os/as estudantes, normalmente bem vestidos/as, chegavam à escola como se chegassem a uma festa. Essa chegada revelava uma das maneiras dos estudantes viverem a escola, como lugar em que se pratica a sociabilidade (MEINERZ, 2009). A escola, entretanto, não é só isso. A escola é o lugar da construção do saber sistematizado, é uma instituição que tem como prioridade a educação. Não é a única a educar, especialmente neste momento que, além da família e das instituições religiosas, concorre com artefatos midiáticos e informações disponibilizadas através da internet. A escola é a instituição que tem a responsabilidade de sistematização dos saberes acumulados historicamente e de possibilitar que as crianças e os/as jovens tenham acesso a esse saber. A escola cumpre com a função socializadora e também com a função de formação dos sujeitos. Por força da lei6, as crianças a partir dos 4 anos de idade e os/as jovens até os 17 anos devem estar na escola, portanto, passam parte de sua vida ligada a ela. É durante esses longos anos que a escola tem como desafio ensinar, ou seja, tem como desafio possibilitar que os/as estudantes construam uma relação próxima com o saber que lhes possibilite aprender.
Os/as professores/as, ao estarem na escola, comungam da responsabilidade de ensinar os/as estudantes, os quais, de alguma forma, esperam que o professor/a cumpra o seu papel de ensinar. “Ensinar é, ao mesmo tempo, mobilizar a atividade dos alunos para que construam saberes e transmitir-lhes um patrimônio de saberes sistematizados legado pelas gerações anteriores de seres humanos” (CHARLOT, 2013, p. 114). O modo como o professor fará isso dependerá das suas concepções e convicções. A função do professor “é pôr em circulação significações desconhecidas pelo aluno” (Ibdem, p. 113). Stainer (2005, p. 31) diz que “ensinar seriamente é pôr as mãos no que há de mais vital no ser humano. É tentar ter acesso ao que há de mais sensível e de mais íntimo da integridade de uma criança ou de um adulto”.
Para Freire (1996, p. 96) “o bom professor é aquele que consegue enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento do seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma cantiga de ninar. Seus alunos cansam, não dormem”. Cansam porque são desafiados, cansam porque são instigados/as a ter autonomia, cansam porque precisam pensar. Pensar não é enfadonho, enfadonha é a mesmice, a descrença, a licenciosidade. Os estudantes cansam porque precisam aprender a caminhar.
Os estudantes, às vezes, andarão sozinhos, com discreto acompanhamento da professora e, outras vezes, caminharão com a professora de mãos dadas. O mais importante é que saibam de onde vêm, por que andam e, ainda, que cheguem a algum lugar para o qual vale a pena ter feito a viagem. (CHARLOT, 2013, p. 114).
Será que os estudantes estão caminhando para um lugar que vale a pena? Uma trajetória escolar a qual a estudante declara que seus/as professores/as lhes disseram “que sempre foi empurrada” para passar de ano parece ser um percurso completamente desvinculado do saber, da aprendizagem.
“Sempre disseram que fui empurrada para passar. Ameaçavam com aquilo... foi aprovado por conselho, ameaça em casa, ameaça na escola, a gente pega nojo”. (Laís).
A narrativa da jovem não pode ser interpretada de forma que se possa compreender que ela, como estudante, andou pela escola “com discreto acompanhamento do professor”, tampouco caminhou com “a professora de mãos dadas” como forma radical de saber que não está sozinha. Essa estudante andou pela escola em uma relação de licenciosidade dos/as professores/as e da equipe gestora, parece ter sido jogada a própria sorte e seu processo de aprendizagem desconsiderado. O/a professor/a, no caso dessa aluna, parece ter se desobrigado do seu papel de ensinar, desobrigado de contribuir positivamente para que ela pudesse ser “artífice da sua formação com a ajuda necessária do educador” (FREIRE, 1996, p. 78).
Se os/as professores/as subestimam a capacidade dos/as estudantes “empurram” para a série seguinte, e explicitam que isso ocorreu por uma benevolência, pode provocar o que Becker (2004, p. 43) chama de “exclusão cognitiva”. A escola promove essa forma de exclusão quando não respeita o nível de desenvolvimento do pensamento do/a estudante. Respeitar o nível de desenvolvimento do pensamento significa apostar
[...] que todos podem aprender, desde que se respeite a capacidade de aprendizagem construída até o momento pelo educando. [...] Reconheço que há capacidade de aprendizagem se ela foi construída e se continuar a ser, indefinidamente, reconstruída. BECKER, 2004, p. 43).
É preciso reconhecer que a escola tem limites em relação ao que pode fazer, mas a aprendizagem não tem limites, pode avançar infinitamente. Porém a escola parece ter deixado vazio o lugar do/a professor/a, aquele/a que é responsável pela mediação pedagógica que possibilite ao estudante aprender. É pernicioso o papel do/a professor/a nessa situação. Freire (1996, p. 28) diz que a tarefa primordial do professor “é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se aproximar dos objetos cognoscíveis” e “nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”. Há neste caso um processo de distanciamento da jovem estudante com os/as professores/as uma vez que há uma quebra da confiança na capacidade de aprender da aluna. Ela estava na escola, porém, não estava construindo uma relação positiva com o saber, ou seja, não estava aprendendo. Para Charlot (2013, p. 158), o aluno que não aprende é porque não tem atividade intelectual. A atividade intelectual está intimamente ligada ao objeto de conhecimento.
Laís mudou de escola várias vezes até chegar ao PV e no inicio até gostou de estudar lá, mas depois deixou de gostar e afastou-se. Em entrevista ela faz questão de deixar claro que não é da escola que ela não gosta.
“Gostei no início, depois não gostei mais, quer dizer eu gosto da escola, mas dos amigos e do recreio que é muito pequeno. Não gosto de nenhuma aula”. (Laís).
Gostar da escola, no caso dessa aluna, fica evidente que não está relacionado com o processo de aprendizagem. Para Charlot (2013, p. 159), além da atividade intelectual o estudante “tem que encontrar sentido naquilo que aprende” pois se esse “sentido for completamente alheio ao de aprender nada acontecerá”. A aprendizagem necessita estar ancorada no sentido e o estudante necessita construir uma relação positiva com o saber, que está ligada ao prazer. “Só aprende quem encontra alguma forma de prazer no fato de aprender” (CHARLOT, 2013, p. 159). A relação com o saber é em grande medida construída através da relação com o objeto de conhecimento, da relação do estudante com o/a seu/a professor/a e do seu desejo de aprender, portanto, relação consigo próprio. “A relação com o saber é indissociavelmente cognitiva, afetiva e relacional” (MATOS, 2008, p. 21). O/a estudante aprende, segundo Charlot (2013), quando está mobilizado para tal. A mobilização é um processo interno que está ligada ao desejo de aprender. O desejo é uma força que se instaura entre o/a aprendente e o/a outro que acredita que ele/a – o/a aprendente - pode aprender. Aprendizagem como processo de constituição do humano, como processo capaz de acionar formas de pensamento que lhe possibilite construir sentidos. Aprender é primeiro reconhecer que essa possibilidade é viável, que ela inicia com o nascimento e se prolonga por toda a vida, portanto, o tempo de estar na escola, é tempo de aprendizagem. “Tempo de aprendizagem não é tempo de estocagem. Tempo de aprendizagem é tempo de gênese. Isto é, tempo de nascimento de algo novo, no sentido coletivo e no sentido individual; no sentido do sujeito, portanto” (BECKER, 2004, p. 45).
A preocupação maior dos/as jovens estudantes pesquisados/as está relacionada ao processo de certificação, que pode estar relacionada à promessa já vazia de que a escolarização possibilita mobilidade social, um discurso que é ainda recorrente nas escolas as quais acompanhamos e que muitos/as professores/as reiteram “você tem que se formar para ser alguém na vida, para ter um bom trabalho”. De alguma forma os/as jovens estudantes tentam perseguir essa lógica. A estudante declara que precisa da certificação de ensino médio para conseguir um trabalho melhor, sinaliza que realizará as provas no Núcleo Estadual de Jovens e Adultos (NEEJA) Mário Quintana7, como estratégia par a obter a certificação, ou seja, abreviação do processo de escolarização através de ensino supletivo não presencial, o que também é evidenciado no discurso de Vitor.
“Com a escola eu não quero mais nada, só vou lá no Mario Quintana fazer as prova, ninguém fala comigo, ninguém incomoda, eu passo porque todo mundo passa e tenho o papel de que terminei o colégio, para conseguir emprego melhor. Se a mãe deixar, porque ela diz que tenho que casar para tomar jeito”. (Laís).
“Não vou voltar! Vou fazer o NEEJA no Mario Quintana”. (Vitor).
Os dois estudantes têm experiências negativas com a escola, no caso da jovem Laís, as dificuldades são relativas ao processo de aprendizagem. A jovem trabalha atualmente como faxineira e argumenta que escola fica muito longe do trabalho e ela precisa trabalhar para sobreviver, não tem condições econômicas para pagar o ônibus para o seu deslocamento, mas também não demostra desejo de retornar para a escola regular. Em entrevista a jovem falou que respondia mal aos/as professores/as quando “não estava boa” e que na escola ficava evidente que ela passava de ano, mas não por competência, ou por sua aprendizagem.
Finalizando
Propomos esta pesquisa no intuito de compreender um fenômeno histórico e recorrente que afeta os/as jovens estudantes do ensino médio: o seu processo de afastamento das escolas. O que se explicita na pesquisa são inúmeros problemas que provocam o afastamento dos/as estudantes: em primeiro lugar a necessidade de construir uma escola que atenda as necessidades de jovens das classes menos favorecidas, pois, embora não tenham explicitado diretamente esse problema, a precariedade econômica, a distância que eles mantêm da escola, o desencontro entre o mundo desses/as jovens e o universo escolar forma um abismo entre eles/as que torna o encontro quase impossível. Os/as jovens expressam de forma generalizada que consideram a escola importante, que até gostam de estar lá, mas não gostam das aulas e não é perceptível o desejo pela aprendizagem, nem há uma aposta por parte dos/as professores/as na capacidade de aprendizagem desses jovens. Expressam um desejo de ascender socialmente, de ter um trabalho melhor, mas não sabem explicitar o que precisam aprender. O saber escolar parece não capturar o interesse dos/as jovens, expressando certo desencanto. Os/as professores/as ainda não encontraram modos de mobilizar os/as jovens estudantes para a aprendizagem, uma vez que, para estes, as poucas aprendizagens ocorridas na escola pouco auxiliam na vida cotidiana, salvo alguma exceção. A aprendizagem ocorre de forma fragmentada, vazia de sentido para os/as jovens. A relação desses/as jovens com o saber escolar revelou-se profundamente frágil para esses/as jovens, também pouco sabemos sobre o processo de aprendizagem destes, diferentemente das pesquisas que estão consolidadas sobre os processos de aprendizagem das crianças, o que indica um claro campo de pesquisa ainda aberto.
Referências
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Notas
Autor notes
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