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A professora-heroína no filme Verônica: endereçamento, identificação e conformismo social

Dostoiewski Mariatt de Oliveira Champangnatte Correspondência
Universidade do Grande Rio, Brasil

A professora-heroína no filme Verônica: endereçamento, identificação e conformismo social

Educação. Revista do Centro de Educação, vol. 41, núm. 3, pp. 605-616, 2016

Universidade Federal de Santa Maria

Recepção: 01 Agosto 2015

Aprovação: 16 Setembro 2016

Resumo: Este artigo realiza uma análise do filme Verônica, de 2009, que apresenta uma professora da rede pública do Rio de Janeiro como heroína. A partir da análise crítica do discurso, proposta por Fairclough (2001), e aplicada a filmes neste trabalho, abordam-se as caracterizações da professora e do enredo do filme, com o objetivo de discutir questões relacionadas a estratégias de endereçamento e identificação voltadas a professores-espectadores. Como também de relacionar tais estratégias às práticas sociais do produtor e dos patrocinadores da obra. A partir da análise realizada, observou-se que o conformismo social foi um dos principais valores a ser endereçado/identificado aos/pelos professores-espectadores, tal como a reiteração de práticas negativas relativas à docência. Concluindo-se, ao final, que o heroísmo da professora nada tem a ver com a escola ou a educação.

Palavras-chave: Verônica – o filme, Professora-heroína, Endereçamento.

Abstract: This article presents an analysis of Veronica film, 2009, which presents a teacher of public system of Rio de Janeiro as heroine. From the critical discourse analysis proposed by Fairclough (2001), and applied to films in this work, approach to the characterization of the teacher and the film's plot, in order to discuss issues related to addressing and identification strategies aimed at teachers-viewers. But also to relate such strategies to the social practices of the producer and the project sponsors. From the analysis performed, it was observed that social conformity was one of the main values to be addressed/identified to/by teachers-viewers as the reiteration of negative practices related to teaching. Concluding, at end , the heroism of the teacher has nothing to do with school or education.

Keywords: Verônica – the film, Teacher-heroine, Addressing.

Introdução

Este artigo realiza uma análise crítica do discurso do filme Verônica (2009) com o objetivo de discutir questões relacionadas às caracterizações da professora protagonista-heroína, criadas pelo filme, que podem ser analisadas/remetidas ao endereçamento da obra a professores-espectadores, aos mecanismos utilizados para identificação de professores-espectadores com a heroína e à construção de discursos que podem incitar o conformismo social em tais espectadores. Além disso, objetiva-se apontar relações existentes entre o produtor do filme e seus principais patrocinadores com a construção da personagem/enredo da obra e suas ideologias. Inicialmente, apresentam-se a metodologia de análise de discurso utilizada e os principais conceitos trabalhados para, então, partir-se para a análise crítica do discurso fílmico, propriamente dita, de acordo com os objetivos/recortes propostos.

A análise do filme Verônica (2009) será feita a partir da Análise Crítica do Discurso, proposta por Fairclough (2001), aplicada e adaptada a obras audiovisuais. Fairclough (idem) apresenta uma concepção tridimensional do discurso, formada pelo discurso como texto, prática discursiva e prática social. Quanto ao texto audiovisual, a análise é feita a partir das cenas e dos elementos que a compõem, como as interpretações dos atores, figurinos, cenários e trilha sonora (RODRIGUES, 2002). Quanto ao texto escrito, ou seja, o roteiro propriamente dito, há a abordagem a partir de dois pontos de entrada textuais: semânticos e sintáticos (BARRETO, 2012). Os aspectos semânticos são observados a partir das escolhas lexicais utilizadas no filme e apresentadas nas falas dos personagens. Quanto ao aspecto sintático, observam-se as relações entre as palavras e os sentidos que surgem a partir dessas relações, como: causa e efeito, subordinação e/ou afirmações/negações de identidades/sentidos.

Quanto à segunda dimensão, a prática discursiva, são observadas/analisadas que concepções de identidade, de estruturas sociais e de emoções estão sendo hegemonizadas, ou não, dentro do enredo do filme visando o público para o qual é endereçado. Quanto à terceira dimensão, prática social, Fairclough (2001) propõe que a linguagem não pode ser vislumbrada de forma isolada e, sim, fazendo parte de práticas sociais. A respeito de uma análise fílmica, remete-se aos contextos que envolvem os produtores do filme e seus patrocinadores, que mantêm relações intrínsecas com o enredo e com as questões ideológicas presentes na prática discursiva do filme.

E, ainda quanto ao aspecto construtivo do discurso, Fairclough (idem) afirma que há, também, três instâncias básicas que são imbricadas à tridimensionalidade do mesmo: a construção de identidades sociais, de relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença. Essas três instâncias correspondem, diretamente e respectivamente, a três funções da linguagem: identitária, relacional e ideacional.

A abordagem teórica, para a análise crítica do discurso do filme, envolve alguns conceitos, já citados, e que serão apresentados aqui. O primeiro deles é o de endereçamento, proposto por Ellsworth (2001), que diz que o modo de endereçamento de um filme

tem a ver, pois, com a necessidade de endereçar qualquer comunicação, texto ou ação “para” alguém. E, considerando-se os interesses comerciais dos produtores de filme, tem a ver com o desejo de controlar tanto quanto possível, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme (p. 24).

Partindo disso, Ellsworth (idem) coloca que a construção da narrativa cinematográfica é um processo consciente, que vai buscar dotá-la de desejos, expectativas e processos de identificação com o espectador, para que o filme fique mais interessante e para que o público se veja dentro dele. Tais processos de identificação com o público, segundo Adorno e Horkheimer (2009), são primordiais para que o filme obtenha lucro. E, para tanto, as narrativas conterão elementos que levarão a processos de mimeses, em que o espectador é instigado a se colocar no lugar do personagem, a se emocionar com ele e a concordar com seus discursos e posicionamentos.

Ainda a partir de Adorno e Horkheimer (2009), filmes são produtos culturais, produzidos por indústrias culturais1 com as finalidades de lucrar e de tentar hegemonizar ideologias pertencentes às próprias indústrias culturais e a seus parceiros econômicos patrocinadores dos filmes. É por meio da ideologia que uma determinada classe dominante, nos planos econômico, político e social, hegemoniza toda uma sociedade difundindo sua concepção de mundo (GRAMSCI, 2001). Uma das concepções de mundo trabalhadas e estimuladas pelo capitalismo, e pelas indústrias culturais, é o conformismo social. Segundo Gramsci (2002), o conformismo social diz respeito à aceitabilidade de processos sociais, ao não questionamento de situações em que, por exemplo, um indivíduo se vê prejudicado, mas acaba se conformando com determinada situação, em vez de reagir para mudá-la.

Diante da metodologia de análise de discurso apresentada e dos conceitos pontuados, parte-se para a análise crítica do discurso fílmico de Verônica (2009). Inicialmente, discutem-se as caracterizações da personagem e, após, as relações entre produtor do filme, patrocinadores e ideologias imbricadas na apresentação da personagem/enredo.

Verônica – uma professora heroína?

Verônica (2009) conta a história de uma professora da educação infantil de uma escola pública do Rio de Janeiro. Certo dia, os pais de um de seus alunos não vão buscá-lo. Verônica, então, resolve levá-lo em casa e, quando chega lá, descobre que os pais do garoto foram assassinados e ele próprio está jurado de morte. A professora foge com o aluno, no intuito de protegê-lo e, a partir daí, o filme desenvolve-se como uma saga policial, transformando a professora em uma grande heroína por defender seu aluno.

As narrativas de filmes comerciais2 são construídas para que o espectador identifique-se com o personagem-herói e o admire, principalmente por suas atitudes (ADORNO; HORKHEIMER, 2009). O filme Verônica (2009), por ter como protagonista-heroína uma professora, pode ser caracterizado como tendo seu endereçamento voltado a professores (ELLSWORTH, 2001), com o objetivo de que esses se identifiquem com a heroína do filme. A aproximação com professores, inclusive, foi uma das estratégias de lançamento da produção do filme, que realizou uma sessão exclusiva, antes da estreia, para docentes da rede pública da cidade do Rio de Janeiro3.

Além disso, diversas matérias em portais de notícias online divulgaram o filme apresentando a personagem Verônica como uma professora heroína e corajosa, a partir de informações dadas pela própria produção do filme4. Direcionando o olhar dos futuros espectadores no sentido de perceber Verônica, desde o início do enredo, como uma heroína corajosa. Esse tipo de posicionamento vai ao encontro do que propõe Ellsworth (2001, p. 14), ao afirmar que os produtores tentam “controlar tanto quanto possível, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme”. Tais informações, na mídia, poderiam impactar/impactaram tanto espectadores comuns, como professores-espectadores.

Partindo-se, então, da premissa de que o filme Verônica (2009) é endereçado, principalmente, a professores, é importante discutir como a Professora Verônica é apresentada. Inicialmente, ressaltam-se algumas características que são atribuídas a ela, tanto por ela, em seus discursos, como pela Diretora da escola. Em uma cena na secretaria da escola, por exemplo, a Professora Verônica, exaltada, conversa com a Diretora Selma, que tenta acalmá-la.

DIRETORA: Calma, Verônica, você está nervosa!

VERÔNICA: Não, eu tô cansada!

DIRETORA: Isso acontece!

VERÔNICA: Eu não aguento mais dar aula! Eu não tenho mais paciência com criança, eu passo o dia inteiro gritando com eles! São mais de 20 anos dentro de uma sala de aula, Selma! Chega, já fiz a minha parte!

DIRETORA: Vai ser difícil substituir você! Você é a melhor professora da escola!

VERÔNICA: Então eu quero a minha demissão!

DIRETORA: Vou fingir que não ouvi! Só falta ter uma professora pra assumir o seu lugar e você assume a coordenação!

No discurso de Verônica, é importante perceber as relações sintáticas que a professora constrói para justificar um comportamento ríspido com as crianças e para dizer que já fez a sua parte como professora. Estabelece-se uma relação de causa e efeito, em que o efeito refere-se ao fato de ela tratar mal as crianças, tendo como causa o fato de a paciência dela ter acabado por estar há mais de 20 anos em sala. Esse tempo de trabalho, por sua vez, torna-se causa/motivo da justificativa de ela já ter feito a sua parte.

Essas relações sintáticas, no discurso de Verônica, promovem uma construção ideacional frente ao trabalho docente, endereçado principalmente ao professor-espectador. Para o qual, pelo discurso de Verônica, qualquer atitude de estresse ou grosseira com os alunos poderia ser justificada por se estar há muito tempo em sala de aula. Verônica não apresenta outras possíveis causas de estresse e insatisfação com a profissão, como condições precárias de trabalho docente, a má-remuneração e a não valorização da formação continuada do professor. Pelo contrário, ela simplifica/justifica todos os seus problemas/insatisfações atuais, como professora, com o fato de estar há 20 anos em sala de aula.

Frente a essa construção discursiva ideacional, o professor-espectador pode ser levado a se identificar com Verônica, a se acomodar com os problemas que tem e a entendê-los partindo-se do princípio de que todos os problemas relacionados à docência são justificáveis por se estar há muito tempo na escola/sala de aula. Simplificando, seria o tempo quem traz a insatisfação com a docência e não as condições da própria docência. Nesse sentido, o sujeito protagonista/vilão de toda a insatisfação de Verônica é o tempo. Por isso, não há nada a fazer quanto a ele, a não ser acomodar-se, ou pedir demissão, como faz Verônica, sem culpa, afirmando que já fez a sua parte. Enfim, não há nada a fazer para melhorar a educação, a não ser conformar-se.

Ainda nesse trecho, é importante salientar que a Diretora, em seu discurso, caracteriza Verônica como a melhor professora da escola. Em termos de endereçamento/discurso, a Diretora está afirmando para o espectador que ela é um exemplo a ser seguido, tanto no que diz respeito a seus pensamentos/ideologias, como a suas ações. E, quanto a essas últimas, vale lembrar que Verônica é apresentada como uma professora ríspida com seus alunos o tempo todo. Desde uma cena na quadra, no início do filme, até uma cena em sala de aula, descritas a seguir.

Na quadra. O tiroteio começa, Verônica tira seus alunos da quadra, Leandro fica pra trás, brincando com uma bola.

VERÔNICA (para Leandro): Você não ouviu, não? Tá surdo!?

LEANDRO: Eu quero brincar de bola aqui na quadra...

VERÔNICA: Quer levar um tiro? Pega essa bola agora! (e sai arrastando o garoto)

Passagem de tempo.

Na sala de aula, Verônica está nervosa. Os alunos estão fazendo muita bagunça. Verônica tenta acalmá-los, os alunos não a obedecem. Verônica, então, explode. Bate, fortemente, o apagador no quadro e grita.

VERÔNICA: Agora, todo mundo calado! Cala a boca todo mundo! (todos ficam quietos, mas um aluno se mexe) Parado! Eu falo uma vez, duas vezes, mil vezes, vocês não me ouvem?! Querem levar um zero? Querem repetir o ano? Calados, tô mandando!... Depois não adianta chorar não!

Verônica volta a escrever no quadro. Ela está abatida e parece estar arrependida por ter gritado com seus alunos. Os alunos estão quietos, porém, ela explode novamente.

VERÔNICA (exaltada): Podem fechar os cadernos! Teste de matemática valendo pra nota!

O discurso de Verônica, em termos sintáticos, semânticos e pragmáticos, é imperativo e incisivo. Verônica não chama os alunos ao diálogo, com a finalidade de que eles entendam a importância da aula, da escola e do respeito ao professor. Pelo contrário, ela se utiliza da coação, a partir dos únicos instrumentos pelos quais ela acredita, ainda, conseguir manter o controle de sua turma: o grito e a nota. E eles funcionam. Funcionam tão bem que, mesmo depois dos alunos já calados, ela reitera a coação aplicando um teste-surpresa para eles. As duas formas utilizadas por Verônica para calar seus alunos são similares a tabus referentes ao professor apontados por Adorno (1995).

Adorno (idem) afirma que o professor é visto como um profissional mal-humorado, de mal com a vida, e que tem prazer em coagir e reprimir. A sua função, na escola, é sempre punir. O professor é apontado, nesses tabus, como um profissional que grita muito e que ameaça, principalmente, por ter o poder de atribuir notas/conceitos aos alunos. Por ser ele quem julga. Verônica faz exatamente isso, grita e ameaça a partir da nota. Em termos de endereçamento/identificação com o professor-espectador, é importante perceber que ele é posicionado, pelo próprio filme, quanto ao fato de que Verônica é a melhor professora da escola. Então, as atitudes de Verônica podem acabar servindo de exemplo para os professores-espectadores.

A partir do comportamento autoritário de Verônica, expresso, nessa cena, em seus discursos e em suas ações, podem ser feitas duas caracterizações importantes da prática discursiva do filme. A primeira está relacionada às funções identitária e relacional. A identidade da Professora Verônica, e suas atitudes, só contribuem para confirmar tabus relacionados à identidade do próprio professor, como citado, em que ela apresenta-se como uma profissional mal-humorada, de mal com a vida e que reprime. E, também, quanto à função relacional, que se refere à construção das relações entre professores e alunos, a forma como Verônica trata seus alunos também só confirma os tabus levantados por Adorno (1995), pois ela grita e ameaça o tempo todo em função da nota.

A segunda caracterização, quanto à prática discursiva, diz respeito à função ideacional. O filme afirma que Verônica é a melhor professora com base no discurso da Diretora - maior função na hierarquia da escola. Como dito, em termos de endereçamento/identificação, isso é muito significativo, pois o professor-espectador poderá ver os comportamentos de Verônica como positivos e interessantes de serem imitados, afinal, ela é a heroína. E isso pode despertar no professor-espectador algumas atitudes em seu processo de mimese. Se ele for como Verônica, conformar-se-á com suas práticas; se não for como ela, ou tentará sê-lo ou, quando se comportar de maneira semelhante, também achará tudo normal. Isso não significa que um professor vai sair da sala do cinema e passará a gritar com seus alunos, mas a forma como o filme apresenta esse comportamento tende a naturalizá-lo.

A caracterização da Professora Verônica, como heroína, assemelha-se, também, a uma abordagem sobre heróis de filmes comerciais, apontada por Fabris (2001). Em que os heróis sempre possuem características de guerreiros, de lutadores, que sofrem e que passam por momentos ruins, mas que, mesmo assim, mantêm a dignidade e os bons princípios, superando todos os desafios. Quanto à Professora Verônica, outro desafio relacionado a ela no filme é quanto ao fato de sua mãe estar doente, em um hospital público, e ela não ter condições de pagar um hospital particular, pois ela é professora e ganha mal. Então, ela resolve pedir um dinheiro emprestado a seu ex-marido e promete pagá-lo.

VERÔNICA: Tá eu vou te pagar aos poucos! Mas vai demorar, com o salário que eu ganho...

O ex-marido, ao emprestar o dinheiro, acha-se no direito de ficar com ela novamente, e propõe que ele vá a casa dela para tomar uma cerveja e relaxar. Porém, como uma boa heroína, Verônica se mantém íntegra a seus princípios e não permite que o ex-marido se aproveite da situação. Isso significa que, mesmo ganhando mal, aborrecendo-se em uma “profissão de fome” (ADORNO, 1995, p. 98) e com a mãe doente, Verônica mantém-se fiel a seus valores. Enfim, a questão ideacional do herói, e sua consequente identificação com o público, é cada vez mais reiterada com o desenrolar do filme.

Na segunda metade do filme, a Professora Verônica e o aluno Leandro envolvem-se em diversos momentos de tensão, mas conseguem se livrar dos bandidos e da própria polícia. A polícia é cúmplice do assassinato dos pais de Leandro e acusam Verônica de sequestro para, então, terem o garoto em mãos. A narrativa se torna uma verdadeira trama policial, bem agitada. Ao final do filme, após Verônica conseguir se livrar, de vez, dos bandidos e policiais, ela continua a fugir, dirigindo um carro sem rumo, com Leandro no banco traseiro. Nessa cena final, ela faz uma divagação sobre tudo o que aconteceu.

O final de um filme, segundo Costa (1987), é o momento ápice da redenção dos personagens do bem. A partir de Adorno e Horkheimer (2009), pode-se afirmar que é o momento em que o filme condensa suas forças para buscar a identificação máxima com o espectador, ao ponto de ele ser levado a crer que o mundo fora da tela é como o mundo do filme. Existem alguns recursos utilizados, em narrativas comerciais clássicas, para promover isso. Um deles é o recurso da divagação, do próprio personagem sobre seus feitos heroicos, amarrando toda a história e buscando emocionar o público. A seguir, há a transcrição da divagação de Verônica.

VERÔNICA: Que lei é essa que impede um filho de enterrar seus pais? Que lei eu transgredi para que ele não fosse assassinado? Eu sei que vou ser julgada porque fugi com uma criança. Não importa. Eu fiz isso para salvar uma vida. Essa é a lei que me orienta. Vou lutar para que os culpados sejam condenados. O futuro com Leandro será melhor.

A personagem, em seu discurso, tenta justificar, para si mesma e para o público, que ela não fez nada de errado em fugir com uma criança, que fez tudo para salvar uma vida. O discurso final, então, está sendo usado, a partir da função ideacional, para explicar a história e confirmar o fato de que ela, realmente, em todos os momentos, foi uma heroína. Em termos textuais sintáticos, nota-se o uso da função apelativa, como se ela estivesse conversando e tentando convencer alguém a crer e se emocionar com o que está dizendo, inclusive esperando uma resposta, pois há vários trechos interrogativos. Porém, é ela mesma quem responde seus questionamentos, induzindo o espectador, ainda com intuito emotivo, a se emocionar com ela e por causa dela.

O processo de construção discursiva ideacional também é conduzido cinematograficamente, com o tom incisivo com que a atriz fala e com sua apresentação imagética como heroína, em que a câmera está baixa, deixando-a grande na tela, triunfando. A escolha da trilha sonora também foi essencial para garantir o bom processo de identificação final. A música de Tim Maia, Bom senso, toca enquanto a personagem dirige olhando para frente, decidida. Na música, o “eu-lírico” passa por maus momentos na vida e só atinge o bom senso - a redenção/salvação - após sofrer. Verônica atingiu sua redenção após ter sofrido muito para ser uma pessoa/professora heroína.

Quanto ao endereçamento, isso retoma a questão do conformismo social, em que o professor-espectador pode acreditar que, para também alcançar sua redenção, precisa passar por diversas provações ou momentos ruins, ou seja, que todas as dificuldades por quais passa são normais e fazem parte do cotidiano de um professor. Afinal, o cotidiano dele não é tão ruim quanto o de Verônica. É como se o filme estivesse afirmando: se Verônica, tão maltratada pela vida ainda pode ser heroína, do que você está reclamando, professor? Conforme-se e agradeça pelo que tem.

Prática social: patrocinadores e parcerias econômico-ideológicas

O filme Verônica (2009) foi patrocinado pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, pelo BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - e pelo Sistema Anglo de Ensino, e foi produzido pela Globo Filmes. De acordo com um dos conceitos da indústria cultural (ADORNO; HORKEIMER, 2009), os patrocinadores de um produto cultural, como um filme, por exemplo, interferem e fazem parte da prática social da obra cultural.Em que as ideologias que a obra contém, e transmite, são construídas/moldadas a partir dos interesses econômico-ideológicos dos patrocinadores envolvidos. Isso com o intuito de que um filme, por exemplo, sirva como um parceiro na hegemonização de valores/ideologias interessantes a tais patrocinadores.

Os dois primeiros patrocinadores de Verônica (2009) são órgãos públicos. Quanto ao primeiro patrocinador, a Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, é confuso compreender porque a Prefeitura de São Paulo patrocinaria um filme passado no Rio de Janeiro. Porém, com a análise do enredo, nota-se que não há muitos elementos marcadores de que o filme seja passado no Rio. É como se a história pudesse se passar em qualquer lugar.

No intuito de se apresentar uma relação entre os interesses dos dois órgãos públicos com o filme, levanta-se a hipótese de que essa relação tenha a ver com o fato de que a prática discursiva do filme estimula uma postura conformista do professor frente a seu cotidiano, desestimulando-o a lutar por questões econômicas e sociais que envolvem sua profissão. Essa pode ser uma relação plausível, partindo-se de políticas educacionais associadas a governos com tendências neoliberais, como os de São Paulo e do Brasil à época do filme.

O terceiro patrocinador é uma instituição de ensino privada, o Sistema Anglo de Ensino, que atua da educação infantil ao ensino médio. Quanto ao interesse dessa instituição em associar sua marca ao filme, sugere-se que ela poderia agregar a imagem da professora-heroína à instituição. Dessa forma, o Sistema Anglo de Ensino seria, então, uma instituição com docentes fortes e corajosos, como a Professora Verônica, sendo que os adjetivos “forte” e “corajoso” se remetem, também, à própria imagem da marca – um leão. Isso seria positivo para a instituição, além de essa ter se divulgado para a grande quantidade de pessoas – professores, pais e alunos – que assistiram ao filme.

Verônica (2009) foi produzido pela Globo Filmes, braço cinematográfico da indústria cultural Organizações Globo. Quanto aos interesses ideológicos dessa empresa em se produzir o filme, aponta-se para a hipótese de estímulo ao conformismo social, tal como os dois primeiros patrocinadores citados. Uma sociedade com características conformistas tende a não questionar o social e, sim, a aceitar os fatos. Isso é interessante tanto para as instâncias públicas citadas quanto para a indústria cultural referida, pois, quanto menos cidadãos e professores questionadores, e cada vez mais conformados socialmente, melhor para ela e seus parceiros.

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo fazer uma análise crítica do discurso (FAIRCLOUGH, 2001) do filme Verônica (2009), com o intuito de discutir questões relacionadas às caracterizações da professora-protagonista e do enredo do filme. Para tanto, utilizou-se da metodologia da análise crítica do discurso para realizar interpretações acerca de tais questões, tendo como norte/conceitos: o endereçamento, a partir de Ellsworth (2001), a identificação, a partir de Adorno e Horkheimer (2009) e o conformismo social, a partir de Gramsci (2002). Sendo tais conceitos também aplicados à análise das práticas sociais que envolveram o filme, seu produtor e seus patrocinadores.

Verônica (2009) pode ser caracterizado como um filme endereçado a professores-espectadores, já que traz uma professora como protagonista-heroína e apresenta cenas ambientadas no cotidiano escolar. Além disso, é importante salientar que a Professora Verônica pôde ser vista como heroína antes mesmo de se assistir ao filme, pois matérias de jornais já salientavam essa característica divulgando a obra, provavelmente, orientadas pela produção do filme. Como também, a própria produção realizou uma seção especial, antes da estreia, para professores da rede pública do Rio de Janeiro. Enfim, pode-se afirmar que a produção do filme preparou determinados terrenos para facilitar os processos de endereçamento/identificação com o filme. Pois, há nos produtores, segundo Ellsworth (2001, p. 24), “o desejo de controlar tanto quanto possível, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme”.

Nesse cenário de endereçamento e identificação com professores-espectadores, Verônica (2009) reiterou tabus acerca do professor (ADORNO, 1995), tais como a opressão/coação com os alunos a partir do poder de dar notas e a histeria/mau-humor no tratamento com esses. Culpabilizou o tempo de trabalho como sendo a causa geradora de insatisfações com a docência no cenário público, em vez de expor questões realistas e cotidianas vividas por professores em todo o país. E construiu uma professora-heroína cujos feitos heroicos nada tiveram a ver com a sala de aula, a escola ou a educação, mas que, da forma como foram trabalhados, ficaram relacionados à coragem e à valentia de uma professora.

Ainda quanto à identificação, abordou-se a importância dada, pelo filme, ao conformismo social, no qual se estimula o professor-espectador a aceitar sua realidade social, já que há, na obra, uma professora numa situação pior que a dele e que ainda consegue ser heroína. Diante desse conformismo social estimulado, abordou-se a prática social do filme, imbuída de práticas ideológicas de órgãos públicos e de uma indústria cultural, patrocinadores/realizadora do filme, para os quais ter professores-espectadores e cidadãos conformados socialmente é muito mais do que só um enredo de filme e, sim, uma estratégia que contribui para hegemonizar mais facilmente seus valores neoliberais.

Referências

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Indústria cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

ADORNO, T. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

BARRETO, R. A recontextualização das tecnologias da informação e da comunicação na formação e no trabalho docente. Revista Educação e Sociedade, Campinas, 2012.

COSTA, A. Compreender o Cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

ELLSWORTH, E. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: TADEU E SILVA, T. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

FABRIS, E. As marcas culturais da pedagogia do herói. In: REUNIÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPEd), 24. Anais. Caxambu, 2001.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, v. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, v. 4: Temas de cultura; Ação Católica; Americanismo e fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

RODRIGUES, C. O cinema e a produção: para quem gosta, faz ou quer fazer cinema. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

VERÔNICA – Direção: Maurício Farias – Ficção – 90 min – Globo Filmes – Brasil – 2009.

Notas

1 Indústria cultural é um conceito criado por Adorno e Horkheimer (2009) e diz respeito à caracterização de empresas que trabalham com arte/entretenimento da mesma forma como se caracterizam quaisquer empresas ou atividades comerciais, principalmente, no que diz respeito à busca incessante pelo lucro. Como qualquer negócio, a indústria cultural criará estratégias para ter mais visibilidade para seus produtos e, assim, poderá vender espaços publicitários para empresas patrocinadoras, uma de suas maiores fonte de renda.
2 Filmes comerciais são filmes produzidos por indústrias culturais com o intuito de entrarem nos grandes circuitos de cinema, os circuitos comerciais, objetivando obter uma grande quantidade de público (COSTA, 1987).
3 A informação de que o filme ofereceu uma sessão de pré-estreia especial para professores era encontrada no site do filme www.veronicaofilme.com.br. Porém, tal página foi retirada do ar. Os professores, como era afirmado no site, foram escolhidos pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro.
4 Alguns dos portais foram: Portal G1 (http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL988432-7086,00-ANDREA+BELTRAO+ENCARNA+PROFESSORA+CORAJOSA+EM+VERONICA.html); Portal UOL (http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/02/05/ult26u27769.jhtm. Portal O ESTADO – CE: http://www.oestadoce.com.br/noticia/andrea-beltrao-vive-professora-heroina-no-filme-veronica).

Autor notes

Correspondência Dostoiewski Mariatt de Oliveira Champangnatte – Universidade do Grande Rio. Rua Prof. José Herdy, 25 de agosto – CEP: 22221-011 – Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
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