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Alunos ensinam professores a ser professores na escola que não é mais escola
Aldo Victorio Filho; Pâmela Souza da Silva; Rodrigo Torres do Nascimento;
Aldo Victorio Filho; Pâmela Souza da Silva; Rodrigo Torres do Nascimento; Victor Junger Silveira
Alunos ensinam professores a ser professores na escola que não é mais escola
Students teach teachers in school that is no longer school
Educação, vol. 42, núm. 3, pp. 597-614, 2017
Universidade Federal de Santa Maria
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Resumo: O presente artigo procura apresentar algumas das atuais dificuldades da educação a partir do território de três pesquisas comprometidas com o alargamento da problemática que envolve a relação do ensino e aprendizagem, guardadas em suas complexas particularidades, semelhanças viscerais e distâncias incomensuráveis. Para tanto, partimos da proposta cartográfica na pesquisa em educação como o recurso das propostas pós-qualitativas, além da aplicação convencional da entrevista, individual ou coletiva. Recorrendo ao método da cartografia enquanto modalidade metodológica, a qual põe em questão os recursos investigativos convencionais, assim como afinam as próprias ações cartográficas, aprofundamos nosso envolvimento com o objeto de estudo tomando como campo de investigação algumas escolas de ensino básico que constituem uma mostra de diversidade desses espaços e de seus sujeitos. Assim acreditamos que tais procedimentos e perspectivas alcançam algumas das imagens inequívocas dos desafios decorrentes das condições e condicionantes do ensino básico em face dos contrastes entre o que preserva como tradição e o que lhe atravessa como fruto inédito da atualidade.

Palavras-chave:Cotidiano escolarCotidiano escolar, pesquisa pós-qualitativa pesquisa pós-qualitativa, Método cartográfico Método cartográfico.

Abstract: The present article tries to present some of the current confrontations of the education from the territory of three researches committed with the extension of the problematic that involves the relation of teaching and learning, guarded in its complex peculiarities, visceral similarities and immeasurable distances. For this, we start from the cartographic proposal in the research on education as the resource of the post-qualitative proposals, beyond the conventional application of the interview, individual or collective. Using the method of cartography as a methodological modality that calls into question the conventional investigative resources, as well as fine tune the cartographic actions themselves, as we deepen our involvement with the field. We take as a field of research some schools of basic education that constitute a sample of the diversity of these spaces and their subjects. We believe that such procedures and perspectives reach some of the unequivocal images of the challenges arising from the conditions and constraints of basic education in the face of the contrasts between what it preserves as tradition and what goes through it as the unprecedented current result.

Keywords: School everyday life, Post-qualitative research, Cartographic method.

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Artigos Demanda Contínua

Alunos ensinam professores a ser professores na escola que não é mais escola

Students teach teachers in school that is no longer school

Aldo Victorio Filho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Pâmela Souza da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rodrigo Torres do Nascimento
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Victor Junger Silveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Educação, vol. 42, núm. 3, pp. 597-614, 2017
Universidade Federal de Santa Maria

Recepção: 13 Novembro 2017

Aprovação: 11 Dezembro 2017

O interesse das pesquisas que propiciaram este artigo é contribuir com as ações favoráveis à atualização da educação escolar. Para tanto, tomamos como campo de investigação algumas escolas de ensino básico que constituem uma mostra da diversidade desses espaços e de seus sujeitos. Dentre as instituições que colaboraram com as pesquisas, estão um colégio de ensino médio da rede estadual do Rio de Janeiro situado na capital, uma escola de ensino fundamental privada em um município vizinho e um curso preparatório para o exame do Enem, oferecido por professores voluntários (iniciativa de um grupo de amigos no Rio de Janeiro que tem ajudado travestis e transexuais a melhorar sua formação e a tentar uma vaga no Ensino Superior)1 localizada na capital fluminense.

O recurso a realidades diversas e próximas em muitos aspectos permitiu constituir um panorama de questões importantes para a discussão da atualidade educacional. Supondo que tal panorama, por sua vez, propicie a reflexão necessária às suas superações ou às suas problematizações. A constatação inicial ao manusearmos o material alcançado, é que cada ambiente escolar, em suas particularidades são tão singulares quanto comuns. Guardam, em suas complexas particularidades, semelhanças viscerais assim como distâncias incomensuráveis. Constatação que marca o norte das reflexões aqui investidas, assumindo o paradoxo e a aporia como forma de posicionar os desafios à educação contemporânea. Para tal enfrentamento recorremos à metodologia e apoio teórico que percebemos como mais seguros e produtivos sobre os quais nos ocuparemos ao longo do artigo. Entendemos que as diferenças observadas entre os colaboradores das pesquisas – espaços e sujeitos – são características cuja discussão aprofundada permitirá defender a pertinência e utilidade das investigações realizadas e metodologias aplicadas. Na medida em que tais procedimentos e perspectivas alcançam alguns dos desafios decorrentes das condições e condicionantes do ensino básico atual em face dos contrastes entre o que preserva como tradição e o que lhe atravessa como fruto da atualidade.

Os campos e seus semeadores, o que frutifica e a que serve

Sob a metáfora do campo de semeadura, abordaremos os campos de investigação da pesquisa. Os espaços de ensino (escolas formais ou não) são ambientes de produção de conhecimentos que transbordam os limites dos seus currículos oficiais. A História da Educação oferece incontáveis exemplos de modulação pedagógica formal nas quais as aplicações curriculares pareciam impedir qualquer movimento que trouxesse ou provocasse a emergência de saberes não planejados. Conforme Nóvoa (2005), ao longo da Era Moderna, a forma escolar foi se impondo aos modos tradicionais não-institucionais de socialização, de aprendizagem e de partilha e apropriação cultural. Já no século XVIII, o trabalho dos jesuítas e de outras congregações docentes define o modelo escolar no qual a educação das crianças e dos jovens deverá ser realizada em um espaço próprio separado da família e demais instâncias sociais, cabendo a um ou a vários mestres ensinar, por meio de certos procedimentos didáticos, um conjunto de matérias previamente definidas. Inicialmente não havia nenhuma compreensão do estudante para além do vazio a ser preenchido por saberes legitimados pela instituição escolar.

Certamente que os estudantes eram um potencial gerador de ideias e acumulador de experiências cuja combinação mediaria as relações escolares, seja no que tange os saberes oficiais, seja no que envolve as realizações nas práticas cotidianas (CERTEAU, 1994, p.89). Contudo, por mais rigorosos que tenham sido os sistemas educacionais, não impediriam as trocas para além das atividades programadas entre os sujeitos envolvidos. Se o ensino formal surgiu sob a formalização orquestrada do encontro entre estudantes e mestres, traria fatalmente nessa ordem o que se lhe opunha, ou seja, o inesperado produzido pelo indisciplinável, o estar junto, na medida em que os coletivos de qualquer espaço escolar, sob a superfície da homogeneidade, se compõem também de singularidades e semelhanças. Trata-se de oportunidades sempre impregnadas de saberes não programáveis ou previsíveis, mas saberes que lidam inevitavelmente, de uma forma ou de outra, reconhecidos, legitimados ou não, pelos professores, com os saberes veiculados pelos currículos oficiais. Interferindo, adensando ou deslocando o que os currículos oficias impunham.

A complexa relação entre sujeitos que se encontram no ambiente vocacionado ou destinado à formação, configura o campo que nos interessa explorar. Nos distintos espaços de desenvolvimento das pesquisas observamos as manifestações dos estudantes diante de diversos momentos das práticas pedagógicas a que eram submetidos. Assim como nos interessa o que não é ostensivo, nos interessou também apreender o que a fertilidade dos encontros implicava e o que poderiam oferecer à escola.

A analogia entre o campo agrícola e a fertilidade escolar reside na hipótese de que, a despeito de qualquer estatística desanimadora, as escolas, na irredutível condição de abrigo do encontro entre sujeitos com a finalidade de aprimoramento da formação individual e coletiva, é sempre produtiva e o que produz, para além da quantificação e qualificação tradicional, é algo de extrema importância para a sua vital atualização. Os campos de pesquisa em que nos envolvemos, são percebidos por nós – em sua inexorável condição existencial – num panorama de relações que, pela complexidade das produções, comunicam um território mais amplo e repleto de sentidos, intimamente comprometido com sua própria renovação.

As investigações se deram sob a condução teórica e procedimental da pesquisa pós-qualitativa (LATHER&PIERRE, 2013), cujo aspecto de maior destaque é o mútuo aproveitamento dos colaboradores e investigadores do que é feito em todas as instâncias investigativas. Em outros termos, a pesquisa tem sua qualidade aferida na medida em que seus procedimentos se mostram positivos para a formação dos envolvidos, pesquisadores e colaboradores. Bem como aproveitando todos os recursos utilizados na participação dos colaboradores, sejam eles depoimentos, entrevistas ou outros modos de exposição e registro de suas ideias ou sentimentos a respeito dos assuntos tratados. A pesquisa pós-qualitativa em seu avanço para além da acomodação da etnografia tradicional, pressupõe a utilização de meios diversos a linguagem falada e escrita, apostando, portanto, nos métodos cartográficos que aliam ao posicionamento do colaborador a criação imagética, sonora e visual, narrativa e gestual à escrita e fala.

A proposta cartográfica na pesquisa em educação se configura como um dos recursos pós-qualitativos que complementa a aplicação convencional da entrevista, incluindo produções visuais e/ou sonoras realizadas pelos colaboradores e investigadores sobre o tema; e, no âmbito da pesquisa, nas quais se destacam os registros do que afetou e/ou afeta cada um dos seus elaboradores. Essa modalidade metodológica busca, portanto, avançar para além dos limites dos meios investigativos convencionais, buscando afinar suas próprias ações na medida em que os procedimentos são constantemente avaliados por todos os envolvidos. Tal método não se encerra na técnica especificamente pré-definida e normatizada, mas busca conter o que Tedesco, Sade e Caliman (2013) denominam “ethos cartográfico” como orientação geral dos procedimentos ligados à sua construção. Assim, os encontros exigidos pela pesquisa levam a experiência compartilhada na produção cartográfica ao exercício exploratório desses registros expressivos, por meio dos quais é ampliada a percepção e apreensão do campo e de seus praticantes. Desta forma as dúvidas e questionamentos decorrentes das cartografias são problematizadas como caráter de intervenção recíproca entre signos e mundo e entre os sujeitos envolvidos. A singularidade e a impossibilidade de generalizações, longe de significarem problemas, são aspectos centrais da pesquisa, na medida em que cada experiência ou condição vivenciada amplia o conhecimento almejado.

Quanto às técnicas investigativas, os depoimentos orais e escritos, gravados ou filmados, são articulados com as imagens poéticas criadas nas cartografias. Processo que implica em evitar o risco da mera tradução etnográfica e se valer das realidades construídas em coautoria de investigadores e colaboradores. Consequentemente, o estabelecimento dos diferentes tipos de ação a constituírem a aventura investigativa segue as conquistas intelectuais, críticas, poéticas e práticas dos envolvidos na definição e estabelecimento consensual dos contextos e dos sentidos trabalhados. Em outros termos, o sucesso da pesquisa depende do grau de fortalecimento da formação de todos os envolvidos.

Para a educação, o estudo das realidades que constituem a sua atualidade arrisca, sob muitos aspectos e sob a ilusão da atuação crítica, tropeçar e cair na descrição ou nas meras constatações acompanhadas de repetidas prescrições. O que acaba por favorecer a legitimação histórica e manutenção do paradigma que se deseja superar. Contudo, a pesquisa pode oferecer contribuições oportunas para a inovação do conhecimento científico e dos processos de ensino harmonizados com o seu tempo, face aos desafios que serão encontrados.

A abordagem cotidianista pós-qualitativa é adequada à apreensão da complexidade educacional a partir dos seus tempos e espaços de acontecimento. Constitui-se como prática investigativa inseparável dos saberes com os quais encontra, ou seja, um “saber fazer” investigativo e narrativo coerente com a densidade e diversidade das realidades estudadas na medida em que o investigador, a despeito de seus propósitos iniciais, não está só na coleta e aproveitamento de informações, pois toda a prática e pensamento aplicados dependem das configurações do campo e do que neles criam os seus sujeitos ao sabor da rebeldia do cotidiano (OLIVEIRA, 2003). Sobretudo, se considerado que as configurações do campo e de seus sujeitos variam de acordo com as suas práticas e imaginação, cujo resultado é o húmus que fertiliza a produção almejada pela pesquisa. A análise interna e externa do que convencionalmente se denominaria “fontes, colaboradores e agentes de informação” resulta da colaboração de todos os envolvidos na pesquisa para a qual os fatos e a sua compreensão imaginal são igualmente importantes.

Outro ponto relevante do processo apresentado é a problematização das noções dos sujeitos individuais, grupais, societários e de suas representações e formas de apropriação, localizando investigadores e colaboradores na movimentação desses planos, nos quais a estabilidade é transitória para todos. Sendo assim, devemos considerar a permanência da mudança no desenrolar das ações, visto que toda prática que intenta a horizontalidade dialógica produz efeitos de movimentação de ideias e disposição dos parceiros, implicando no mapeamento explícito dos poderes e tensões, na relativização das verdades e certezas, na problematização das identidades e/ou abrigos identitários e, por fim, na panoramização crítica dos modelos, convenções e interesses que estruturam o paradigma a ser superado pelo intento pós-qualitativo.

O artigo recorre a algumas das muitas experiências empíricas nas quais procedimentos foram criados e métodos redimensionados objetivando a ampliação das práticas que emergiram durante os processos investigativos. Tais experimentações permitiram observar ocorrências que, sob muitos aspectos, surgiam como elementos da autocriação dos sujeitos envolvidos e dos mundos que compartilharam.

Apresentamos a seguir os territórios das pesquisas, sob a perspectiva de seus atravessamentos visuais e estéticos, que identifica as disciplinas e formação dos autores deste trabalho aos procedimentos metodológicos da cartografia aplicados na pesquisa.

Território nº. 1: resíduo fetiche e acontecimentos de aprendizagem

A pesquisa estende seu escopo aos contextos do Colégio Estadual Paulo de Frontin, pertencente à Rede Pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, com estudantes moradores das comunidades do entorno. Essa territorialidade que compreende e se articula em reuniões semanais junto a um grupo de estudantes da licenciatura de Artes Visuais (UERJ) e quinzenalmente com as professoras colaboradoras – todos vinculados ao programa institucional PIBID/Artes Visuais – tratando das condições que envolvem o cuidado com as demandas do colégio e a atenção destinada às propostas de oficinas que são constantemente elaboradas pelo grupo de licenciandos. O objetivo dessas atividades experimentais é propiciar estratégias pedagógicas por meio do esforço coletivo no qual a troca com os discentes se mostra indispensável. A ocupação desse território investigativo pela voz e saberes dos indivíduos que, na imagem e tradição escolar, deveriam apenas aprender passivamente, permite dimensionar a complexidade dos contextos pesquisados, bem como favorecer ao esforço de resposta à problemática que a mesma parece denunciar.

Nossa presença no colégio não se reduzia ao interesse de praticar obstinadamente as proposições debatidas no espaço acadêmico. Evitando a restrição àquelas certezas, buscamos sua releitura frente à concretude do território que nos acolhe. Inspirados nas propostas pós-qualitativas e no que Jennifer C. Greene (2006, p. 93) denomina Methodology of Mixed Methods Social Inquiry2, nos dedicamos a conhecer/viver a comunidade escolar e, especialmente, os estudantes, em relação a suas formas de pertencimento e habitação desse território. Visamos então, apurar a percepção de como as inquietações, prazeres e dilemas que constituem suas vidas se manifestam na configuração do território escolar, assim como as nossas formações são afetadas por esses encontros e suas trocas. Pois, a vivência e a partilha proposta no cotidiano escolar nos permitiram problematizar os saberes instituídos acerca da escola, e não substituir redutoramente o plano discursivo pelo contato com nossos colaboradores.

Os trajetos investigativos do grupo partiram do ensino das Artes Visuais e neste, os desafios da Cultura Visual, orientados pelas singularidades constitutivas de cada participante. A esse respeito pontuamos aqui um campo de interesses particular, desenvolvido em tese de doutorado vinculada ao PIBID, que se atêm a processos dissidentes das práticas pedagógicas majoritariamente vigentes, que se afastam de conteúdos curriculares que reafirmam a ideologia estética do colonizador e a aceitação passiva e subserviente de seus valores. Nesse sentido, tratamos aqui de um recorte da pesquisa que vivenciamos no grupo, construído entre questões que exigem o refinamento dos enunciados, a observação dedicada dos sentidos e a valorização das percepções dos investigadores e dos colaboradores.

Entendemos como parte das condições de instituição da escola – enquanto instância privilegiada do acontecimento pedagógico – o exercício de estratégias, nas quais as aprendizagens passam a ser desenvolvidas e conduzidas em prol de uma finalidade específica, que está em consonância com um determinado projeto de sociedade e é realizada a partir da orientação com a qual também são concebidos os currículos e rudimentos educacionais. Nesse sentido, a instituição escolar se estruturou para que os acontecimentos de aprendizagem atendessem aos marcos civilizatórios, ao ordenamento do poder vocacionado à expropriação e à espoliação de grande parte da população, expressando com seu empreendimento ressalva ou severa preocupação com o que fugisse as suas estratégias. Aspectos esses observados e ratificados em todos os momentos da pesquisa.

Observamos então que a cegueira institucional acerca do vivido nos cotidianos da sala de aula favorece a aparição de alianças, acontecimentos e saberes que ultrapassam os objetivos oficiais. Do mesmo modo que as estratégias institucionais são subvertidas – mesmo que na fugacidade das práticas cotidianas (CERTEAU, 1994) – por ações que recorrem aos códigos dominantes com outras lógicas, em operações que dissuadem o controle e a vigilância pelo uso tático de seus próprios componentes. Observamos que parte desses acontecimentos lançam os envolvidos em uma região dissoluta e de difícil contorno, onde os posicionamentos, longe de sustentar o ordenamento estabelecido, parecem o corroer a céu aberto.

Esta ameaça ao legado colonial que ainda constitui a escola se encontra presente no excedente de seus investimentos, imprimindo desvios e paragens3entre as estratégias de poder, à revelia das partições existenciais que, constantemente, reinstauram a cesura no interior dos corpos. O resíduo fetiche não procede a uma ruptura decisiva no cerne das maquinarias de controle, tão pouco pode ser negligenciado em sua aparição sorrateira e insidiosa, mas dilui na interioridade dos regimes vigentes suas operações fundamentais deflagrando processos desestabilizadores. Acontece aos rudimentos estratégicos exceder seus efeitos e ativar o substrato recusado, mesmo quando seus interesses se voltam para fins bem determinados. O resíduo fetiche se opõe aos jogos de poder justamente por resistir à identificação daquilo que envolve, diluindo as partilhas das operações praticadas, em emissões que transgridem a condição ontológica do sujeito e do objeto (CANEVACCI, 2008; LATOUR, 2002).

Ao mesmo tempo em que a experiência do fetiche nos confronta em sua aparição com nosso próprio desconhecimento, entre as práticas como algo dispensável e insistente, enquanto marca insólita a ser retomada uma vez exposta a incompletude de nosso entendimento, a opacidade dos contornos em que nos vemos lançados igualmente evidencia nossa resistência em relação ao desarranjo cometido, à existência de uma operação na qual o sujeito sofre os efeitos ao contrário de provocá-los, e garante outro estatuto aos objetos e ao mundo que nos cerca. Assim consideramos essa problemática indispensável aos desafios enfrentados pela educação na contemporaneidade, uma vez que nossa marca colonial retorna sob a forma de um golpe de Estado, evidenciando um substrato que envolve inclusive a instituição escolar em sua contenda, bem como o universo epistemológico como campo de batalha.




Em uma das diversas oficinas criadas para a realização da pesquisa, organizamos o espaço de exposição dos trabalhos dos estudantes com o mobiliário da sala, dispondo-o também como matéria-prima de nosso fazer, diferente do uso convencional. A instalação, em entorno da qual circulávamos a dispor livremente suas peças, revelava outra forma de proceder em nossas aprendizagens. Após incluir as colagens nessa instalação, uma estudante se indispôs ao vê-las de imediato, denunciando com severidade o fato de uma mulher conceber uma criança em proveta, o que havia sido feito por uma atriz cuja foto constava de um dos trabalhos. Por mais que tentássemos acalmá-la, parecia não nos ouvir, esbravejando contra o que tinha como absurdo. Algo havia sido acionado nesse processo que, sem que percebêssemos com clareza, movera na aluna um substrato íntimo e pessoal, e parecia ter como epicentro a presença da instalação e da colagem na sala. Afinal, tratava-se de uma cartografia cuja especificidade se dava sobre deslocamentos diversos, do mobiliário da sala aos afetos e crenças dos seus autores.

Aqui a condição fetichista dos objetos da instalação e colagens é evidenciada, na medida em que algo se projeta desses objetos e o faz de forma insistente naquela aluna e, por sua vez, em nós que compartilhávamos a experiência, alcançando novas compreensões a respeito do que investigávamos. Como se dá via de regra nos processos cartográficos, os depoimentos ou registros sobre algo se dão por meio da expressão poética, processo desencadeador de entendimentos ou constatações mais surpreendentes que a fala ou a escrita, mas sujeitas à censura e controle.

O resíduo fetiche que aparece como efeito da proposta opera sobre os sujeitos em um movimento de extração de seus fazeres, sentires e quereres, como a extração da fala da estudante que nos revela algo sem necessariamente evidenciar seus contornos e impõe como um contra-pronome um enunciador não localizável por meio da autorização gramatical e vocabular. Assim, esse algo que nos acontece e tomamos como ação dos objetos é mais um indício que acreditamos perfazer as estratégias pedagógicas daqueles que se ocupam do fazer docente. Além da aparente literalidade da metáfora, assim como o jogo das interdições (fecundação de proveta versus convicções religiosas), se deu o alargamento da escuta, a visibilidade discente e aportou o surgimento de algo mais significativo, que é a amplitude dos possíveis no ato pedagógico ao seu paroxismo. Aludimos a aporia que seria o recurso último à permanência produtiva da escola: aprender com quem se deverá ensinar.

Nesse sentido, a pesquisa é desenvolvida em sua primeira etapa a mapear esse amplo território de realizações que evidencia uma das escolas que vivem na escola. Escolas clandestinas, noturnas, subterrâneas e também ostensivamente diurnas, visual e sonoramente provocativas. Averiguando a consistência do registro fetichista acerca das estratégias assumidas neste espaço, o que de pronto exige constantemente dos envolvidos repensar as atuações que possam contemplar tais aparecimentos, metodologias como práticas nas quais não se discerne o propósito do gesto. Os indícios não são poucos e convidam igualmente repensar os processos de aprendizagem que, entre resíduos fetiches, se veem gestados.

Território nº. 2: a escola dos monstros: o abismo da diferença onde ensinar é aprender

De fato, essa concepção do que é moralmente vinculante não é dada por mim mesmo; ela não procede da minha autonomia ou de minha própria reflexividade. Ela chega a mim de um lugar desconhecido, de forma inesperada, involuntária e não planejada. Na verdade, ela tende a arruinar meus planos e, se meus planos são desfeitos, isso pode muito bem ser o sinal de que uma autoridade moral pesa sobre mim. (BUTLER, 2011).

Chamar a atenção para o corpo é trair o legado de repressão e negação que nos foi transmitido pelos professores que nos antecederam, em geral branco e do sexo masculino. Mas os nossos antecessores não brancos era igualmente ávidos por negar o corpo. A faculdade predominante negra sempre foi um bastião para a repressão. (HOOKS, 2013).

Aqui o relato é indispensável, o corpo professora-pesquisadora é o corpo que acumula todos os atravessamentos e vivências em diversos abrigos e refúgios identitários e é amplamente afetado pelas experiências que exigem a revisão de suas concepções e perspectivas. A prática nessa escola inusitada é semelhante às demais escolas, embora ímpar como toda experiência de encontro entre estudantes e professores. A escola aludida é ainda a escola genérica, mas uma que emerge no século XXI. A particularidade do PreparaNem não está nas suas protagonistas, mas no esforço criador de reinvenção coletiva, para a qual concorre e é afirmada a horizontalização da participação de seus sujeitos. Diluídas, portanto, as hierarquias/poderes ainda defendidas pelos que apostam na produtividade da definição psicanalítica dos papéis (pai, estudante, professor).

Cheguei4 ao coletivo PreparaNem pouco tempo depois que este curso preparatório para o exame do ENEM havia sido criado. Minha intenção era colaborar de alguma forma e envolver o projeto no Festival Bem Me Cu-ir5, festival multigênero de artes, produzido e coordenado por um grupo de coletivos e de voluntários, de cuja organização participava. A finalidade era discutir gênero, arte e cultura para além dos cânones e delimitações sexistas hegemônicas. Na primeira visita ao PreparaNem encontrei a sala de aula numa garagem, com bancos, mesas, quadros improvisados, uma “professora de história sapatão e alunes transvestigêneres”, conforme denomina INDIANARA6, e travestis. Uma escola de monstros. Com todos os problemas de infraestrutura das escolas periferizadas agravados, por se tratar de uma insurreição contra a condenação a um destino trágico. O aspecto imediato era a cumplicidade entre professoras e estudantes. Era claro, e incomum se tratando de uma escola, o interesse em estar juntas e produzir algo em benefício de todas. Além daquele espaço e de outros utilizados de acordo com a disponibilidade e oportunidade, as salas de aulas e de reuniões pedagógicas aconteciam em bares. As cervejas, os cigarros, o barulho da rua, as interferências das pessoas que passavam; tudo era conhecimento aproveitado tanto para as estudantes quanto para as professoras.

Diferente da constante busca pelo silêncio comum às escolas, a pulsação da rua influenciava o planejamento das aulas. Aulas pensadas e planejadas de forma crítica pela maioria de professoras sapatonas, transvestigêneres, travestis e viados. Currículos de e para monstros (GIL, 2006, p. 18; FOUCAULT, 2010, p. 64) eram produzidos com o cuidado e atenção inerentes à cumplicidade entre os que se encontram e resistem no espaço da condenação. Professoras e alunas faziam da condição de exclusão matéria a ser explorada e aplicada na potencialização e valorização de outros saberes. Encontrando outros caminhos para que as ciências convencionalmente cobradas nas escolas e exames fossem ali apreendidas da forma mais consistente possível, mas com a consciência das implicações políticas da diferença e como atuam os dispositivos de marginalização e/ou eliminação das existências não cunhadas na heteronormatividade. Currículos monstros, cuja estética denuncia a exclusão e a violência dos currículos oficiais, teorizados e praticados, e, portanto, a sua obsolescência.

O PreparaNem começou como um projeto de pré-vestibular auto-organizado, autogestado, e foi desenvolvido por uma rede de pessoas Trans para a preparação para o ENEM com apoio de professores voluntárias. Sua base organizacional é constituída por e para travestis, transgêneros, transexuais e LGBTIA em situação de vulnerabilidade social e vitimadas pelo preconceito de gênero. As preocupações de primeira ordem não eram os conteúdos oficiais, planejamentos obedecidos, frequência e avaliação, comuns às escolas que não associam os corpos presentes as suas vidas plenas antes e depois das aulas. Havia algo prioritário configurado na cartografia dos corpos ativamente presentes: formar as professoras e construir a escola que lhes era adequada. Não era possível reduzir o curso, o encontro, apenas aos aspectos dominantes na escola convencional, por sua vez, de alguma forma cúmplice nos infortúnios da população LGBTIA.

A recuperação da escolaridade do grupo exigia que as suas vidas em sua concretude fossem consideradas, pois as táticas de sobrevivência dos excluídos são ensino e aprendizagem inquestionáveis, cujas experiências balizam todas as informações e intercâmbios nos quais se envolvem. A pedagogia começava em saber se as alunas tinham onde morar, se tinham o que comer, se tinham condições de transitar pela cidade, as condições físicas/saúde e, em caso de necessidade, como o coletivo poderia socorrer. As condições materiais e práticas implicavam na participação e aproveitamento das aulas-encontros. Uma pedagogia monstra focada em alunes era a única condição determinante cobrada pela idealizadora e diretora do projeto, Indianara Siqueira. Os relatos das alunes compunham a cartografia cujos trajetos, relevos, fronteiras e acidentes permitiam à pesquisa alcançar a complexidade do projeto.

Por meio dessa cartografia, a professora se desdobra em pesquisadora e aluna. Foi com as alunas que reaprendi a andar pelas ruas sem medo de me defender, preparada para enfrentar as violências e quebrar garrafas quando fosse preciso. Um saber sufocado por camadas de civilidade formatadas pela divisão de classes e assimétricos compromissos sociais. Condicionantes que encurralam os monstros numa espécie de limbo social, cujo processo inclui a naturalização da crítica demolidora às suas aparências, a impunidade dos autores das mais violentas agressões, o rebaixamento existencial sob o peso da violência física e simbólica; o incentivo tácito, e muitas vezes ostensivo, a toda sorte de insulto e aviltamento que se não os impede de entrar nas escolas, as fazem abandoná-las precocemente. A rejeição aos monstros é imediata às suas identificações, como se a pressa em escorraçá-los se devesse ao medo que suas presenças denunciem e comprovem a vileza e monstruosidade dos que os rejeitam.

O projeto considerava essas condições e o empenho pelo êxito nos exames dependia de meios pedagógicos que neutralizassem a autonegação. Sabíamos que o primeiro golpe é fazer a vítima se responsabilizar pelo erro que não cometeu. Para legitimar o corpo, seja ele qual for, implica em aprender sobre o próprio corpo, corpo físico, moral e suas estéticas. Aprendizagem que se dá na dinâmica giratória entre o corpo da aprendiz e o da professora e permite relativizar valores e questionar a origem e objetivos das normas e valores quando opostos à concretude de desejos e prazeres. Estudar e aprender com monstros depende da criação permanente de uma contra pedagogia da moral. Significaria oferecer a assimilação da ética pelo único meio didático possível: a sua prática. Ou seja, a defesa efetiva e incondicional da vida humana e da preservação de sua dignidade, sobretudo ali, diante do abismo da exclusão social. Democratizar, produzir e desfrutar saberes, como constatei, implicaria na inclusão dos corpos aprendizes, das suas condições de saúde, de força afetiva, de segurança material, do reconhecimento das suas belezas, da legitimidade de seus sonhos e desejos. Aprender/ensinar os conteúdos dos exames parecia ser a parte mais fácil depois de eu, professora, me entender como conteúdo/matéria em nada diversa das minhas interlocutoras, alunas, colaboradoras e professoras.

A condição nômade das aulas impunha buscar novos espaços quando os anteriormente utilizados não estavam disponíveis. Além dos aspectos operacionais, havia que se lidar com a transfobia ativa nas pessoas e nas instituições. Contudo, os problemas pessoais das alunas e as carências diversas não superavam o prazer do encontro e a potência das trocas. O PreparaNem nos fez aprender como é indispensável a escuta incondicional. Ouvir as alunas sem julgar a adequação do que era dito propiciava a escuta da minha voz, levada à proporção necessária. Tudo o que era dito era utilizado na condução e ritmo das aulas. As manifestações de franqueza, rudeza, timidez, insegurança ou a precipitação das falas e posicionamentos, eram aproveitadas e incorporadas às discussões, nem sempre da forma escolar moralmente pacífica. Aprendíamos na disputa pela palavra algo sobre as dimensões do machismo, do racismo e da LGBTfobia que estão intrincados em nossas subjetividades.

Qualquer aula aprendia com os monstros e não poderia ser pautada pela lógica tradicional e racional. As aulas eram criação coletiva, somatório de contribuições distintas e seus resultados não seriam avaliados pelo grau de simetria, ordenação, legibilidade ou coerência de aprendizagem padronizada. Levar o projeto adiante exigia explorar a discrepância, as assimetrias, as contradições e desordem decorrentes das suas condições. O erro era explorado na relativização do êxito, ou seja, a exatidão, a ordem, a coerência etc. e seus opostos eram discutidos a partir dos contrastes que nos caracterizavam. Tais discussões me pareciam fundamentais para evitar nosso acanhamento frente à ordenação curricular de saberes que além de parecer inalcançável denunciaria nossa precariedade, nosso mau gosto, nossa ignorância e demais falhas. A inferiorização internalizada pelas aprendizes-mestras surgia como componente curricular clandestino, que o coletivo buscava neutralizar por meio da partilha da escuta e da cumplicidade do afeto.

As festas promovidas pelo coletivo financiavam os gastos do projeto. E nesses eventos, toda a potência exusíaca7 se revelava. O estar junto festivo, como Maffesoli explica em seu texto “À sombra de Dionísio” (2005, p. 29) ou orgiasmo seria a energia urdidora da socialidade, dos modos e das redes que constituem o social. Orgiasmo, proveniente do termo orgia, implica em liberação, excesso, desregramento, quebra das normas, comportamento anárquico coletivo. Para as arquicivilizações, a “orgia” era um ritual festivo, promovido nos intervalos entre a colheita e o preparo do campo para a próxima semeadura, quando se comia e bebia mais que o habitual e todos se entregavam ao prazer. Certamente, um modo de se preparar para a próxima temporada de trabalho pela vida. Na Grécia antiga, tais festas se mantiveram consagradas ao deus Dionísio, o irreverente deus da embriaguez e da luxúria entre outras potências. Tão forte e talentoso como o nosso Exu. Eroticamente a orgia significaria a quebra da relação afetiva monogâmica pela experiência com parceiros diversos na dinâmica da festa. Quando o coletivo celebra o encontro com o propósito da partilha do prazer, este seria o ponto mais significativo do orgiasmo de Maffesoli que entendemos ser o Piruzal8 ou mesmo fervo, como também os encontros festivos são denominados por muitos jovens. Transpondo para outros momentos do campo social, a experiência do orgiasmo, é desfrutar de múltiplas identificações e encontros, é se entregar à diversidade do desejo e a pluralidade dos amantes, que não seriam apenas pessoas, mas modos de se ser o que é, de juntar-se às tribos e estilos, atividades, culturais etc.. Modo e oportunidades de aprender e ensinar.

Os monstros, os seres dissidentes, nos ensinam que o orgiasmo é também não ser submisso a um só valor, a uma só visualidade, a um só gênero, mas jogar com trânsitos identitários como linhas de fuga, saber operar camuflagens diante dos riscos da diferença. Se há um “eu monstro", essa construção é múltipla, líquida e irredutível à identidade fixa ou às categorizações científicas, religiosas ou legais. O que conta é a plasticidade da autocriação. Conforme o autor citado, à imagem de Dionísio, deus de múltiplas faces, ou do nosso Exu, orixá que bagunça os maniqueísmos e demais binarismos, o orgiasmo social é essencialmente plural (Maffesoli, 2005, p.11) e se movimenta na e na vitalidade do riso e do gozo.

A música, a dança, o toque, o descer até o chão, tudo se mostrava força e se materializava em conhecimento e intimidade entre as alunas-mestras do curso. Alunas, que em sintonia com o seu tempo, ensinavam às professoras o modo mais produtivo de serem orientadas. Uma ação do eros ao qual Bell Hooks (2013, p.262) se refere, em outros termos, festeiro, muito gozo e sarração. Se pensarmos nas inúmeras vezes aludida escola da falta, o PreparaNem se constituiu no contraste da carência material e do excesso afetivo, da fartura e intensidade existencial características do desejo de transformação tão temida nos monstros (GIL, 2006). Maffesoli, que nos ajuda a entender a cartografia que ajudamos a criar, não se interessa pelo julgamento pontual da sociedade, mas antes em compreendê-la, inspirado em Nietzsche, ajuda a criticar (pôr em crise) “os melhoradores do mundo” cujo caminho o PreparaNem faz a contrapelo.

Território nº. 3: A escola dentro da escola

Em uma escola da rede privada, na cidade de Belford Roxo, baixada fluminense, dá-se o terceiro plano investigativo dos quais trata este artigo, lá constatamos que os estudantes vêm também construindo uma nova forma de pedagogia. A tradição curricular predominante na escola oficial se assenta em princípios e valores que refletem o compromisso com demandas de uma pedagogia tradicional e ideologizada que vem se desbotando ao longo do tempo. Tal padrão de ensino parece cada dia mais contrastante com os novos modos de produção e circulação de saberes. Os meios de comunicação virtual, a rapidez e inventividade das informações, imagens e ideias intensamente partilhadas pelas novas gerações, atravessam as escolas com saberes e práticas ainda pouco assimiladas pelos seus currículos. Tais modos de ler, escrever e estar no mundo, por mais pregnantes que sejam, ainda são ignorados e/ou rejeitados pela mecânica escolar oficial.

A sonoridade peculiar às escolas, como ranger do mobiliário das salas de aula e a gritaria são rebatidas pela estridência silenciosa de mecânicas opostas, ordenadoras que atuam no panorama de contrastes das múltiplas realidades escolares no embate cotidiano pela conquista de espaços sonoros, visuais, e de muitas outras formas de afirmação.

Os sujeitos dos saberes e práticas, que interessaram à pesquisa, ainda irreconhecíveis pela escola oficial estão no espaço-tempo (ALVES, 2005, p.8; FERRAÇO e CARVALHO, 2012, p.8) no qual outras formas de escola emergem. As experiências e os modos de agir coletivamente dos estudantes desenham as suas vinculações à escola. A qual, sob a perspectiva da tradição, parece ignorar o alcance das lógicas epistêmicas e outros possíveis currículos produzidos cotidianamente pelos estudantes. Dado que parecem ser considerados personagens passivos e intrinsecamente comprometidos com a obediência e atendimento incondicional às exigências institucionais, espera-se que sigam o modelo anacrônico de aluno, a despeito de sua ostensiva atualidade como produtor de saberes.

No espaço da escola que lhes falta, contudo, mesmo no interior do cerceamento pedagógico, as crianças fazem um campo de trocas e aprendizado e, a seu modo e vocabulários, produzem ideias e técnicas pedagógicas, operações e práticas cotidianas (ainda Certeau) que mostram o quanto a infância é contra-hegemônica. A rede que se constata – forjada pelas múltiplas individualidades, que se recusam apaziguar pela ordem do ajuste, do controle e da disciplina pedagógica – arma um campo de experimentações impossíveis de administrar.

Por meio dessas redes, as infâncias e juventudes ensinam ao investigador sobre a integração do indivíduo no coletivo e na eliminação das binaridades que sustentam o estatuto escolar. Este que não indica satisfatoriamente como proceder, por exemplo, quando uma menina da oitava-série simplesmente não se deixa capturar pelas expectativas externas de feminilidade projetadas sobre o seu corpo. Nem se ocupa do que ela aprende sobre a sociedade, sobre si e sobre o outro quando ela ou seus colegas não reconhecem a discriminação das filas a que são submetidas separadas por gênero. O que aprende um menino cujo cabelo crespo foi raspado por demandas escolares de higiene quando escuta de outro aluno que seu cabelo era mais “maneiro quando estava grandão”, nem tampouco, o que responder a um aluno que argumenta seu baixo interesse no conteúdo de História da Arte porque o assunto ele “aprende quando quiser no Google”. Na especificidade do ensino da arte, lugar de interlocução do investigador/professor com os estudantes, as questões parecem surgir com mais espontaneidade. Como lidar com a produção de um desenho de “boneco de palitinho” feito só para atender à proposta de desenho de observação, se o autor argumenta que “é exatamente isso que quis expressar”, deixando evidente a necessidade de uma negociação. Ao longo da pesquisa nos indagamos o significado pedagógico que residiria em ações como a de crianças que embora não se conheçam, trocam solidariamente respostas de questões de prova de maneira codificada, aplicando técnicas sofisticadas em um ato que embaralha a rebeldia e diversão.

Muitas ações estudantis emergem no cotidiano escolar e acariciam a sua epiderme, como se revelassem o que lhes opõe ou devolvesse à escola oficial a indiferença que desta recebe. Aludimos à indiferença às potências e repertórios que os estudantes criam, aplicam e fazem ampliar, tanto na obediência ao roteiro escolar quanto na reação à interdição, negação e coerção às suas práticas e invenções cotidianas. Os atos que escapam à previsão curricular não atrapalham o sucesso da formação escolar e até beneficiam o projeto escolar, na medida em que os estudantes parecem hábeis no aproveitamento das relações entre o que a escola aceita e o que recusa, entre o que oferece e o que nega. Esses modos de formação, além de surgir como um aspecto a ser estudado com mais atenção, sublinha mais uma vez a disfunção pedagógica que impede perceber a totalidade do que nasce de promissor em suas próprias interioridades.

A cartografia das relações cotidianas entre o que o professor se propõe ensinar e o que os estudantes oferecem à escola me surpreende – professor de artes e pesquisador no campo que atuo – e me faz pensar no aproveitamento das manifestações de afeto, da eloquência argumentativa dos estudantes frente às inúmeras questões cotidianas que enfrentam. Assim como desfrutar pedagogicamente das suas vibrações corporais e simbólicas nas aulas, seus modos de estar na escola e no mundo. Modos que redimensionam tanto o papel e compromisso do professor quanto do investigador, e permitem que as interações e demais encontros com os universos das novas gerações formulem outros horizontes escolares.

As indagações decorrentes da pesquisa decorrem da ratificação de que a vivência docente é o atravessamento de muitas tensões que projetam nosso corpo-imaginação para planos muitas vezes opostos. Entretanto as criações e manifestações mais sedutoras que qualquer proposta pensada para o ensino das artes me fazem vislumbrar um universo que convida à exploração. Afinal, o que se esperaria da educação contemporânea além da fertilidade e fartura dos territórios que incessantemente realiza, mesmo quando parece ser retrógrada e ineficiente, e cujo desfrute dilui as distâncias entre o que rejeita e o que aproveita?

Considerações finais

As pesquisas abordadas foram reunidas com o intuito de traçar parte dos desafios e problemas da educação contemporânea, de alguma forma vicejados no esforço de repensar as relações instituídas, as práticas e convicções pedagógicas junto aos elementos que constituem seus coletivos. Nesse sentido, as territorialidades apresentadas são tomadas como entradas para um campo de emissões cujos enunciadores e enunciados participam ativamente dos desdobramentos investigativos, na permanente reconfiguração das cartografias, dos planos conceituais que as acompanham. Pontuamos na primeira territorialidade a permanente e insidiosa presença de um resíduo fetiche, remanescente de ações pedagógicas consonantes com um projeto instituente e institucionalizado, que se realiza como transgressivo por deflagrar um outro estatuto ontológico do objeto e do sujeito no espaço da sala de aula, por conseguinte, geram formas de aprendizagem afeitas a essa torção. Na segunda territorialidade nos vemos próximos ao corpo-professora pela notável experiência do PreparaNem, onde o imperativo de reformulação da prática pedagógica e de seu espaço de realização é levado ao limite, conduzindo-nos de imediato à aporia freireana quando as estudantes formam suas professoras, ou seja, ensinam a quem lhes irá ensinar em um percurso no qual a densidade pessoal realiza a prática de um pensamento corporificado. E, por fim, a terceira territorialidade nos apresenta os traços subversivos dos pequenos desvios dos praticantes protagonistas das escolas, de modo a conduzir os currículos da aula de arte através de seus interesses e desejos. Movimentos que apontam a urgência de insistirmos na prática docente e na escola como instâncias de vivência e formação democrática e, sobretudo, atualização de seus sentidos.

Como é característico das cartografias não houve dissociação entre o sujeito do enunciado e aquilo que se desejou enunciar, na intenção de articular pensamentos e contextos diversos. As territorialidades e suas cartografias resultam do que mais lhes afetou entre as experiências investigativas, considerando a intensidade das falas, corpos e pensamentos captados na resistência de suas diferenças constitutivas. Dessa maneira, as cartografias advêm de experiências de educação criadas pelas ações e desejos dos envolvidos que levaram à ruptura nos preceitos pedagógicos para alcançarem o que lhes seria mais fundamental, o aprender e o ensinar com o outro, independente da mobilidade dos papéis implicada. Esperamos oferecer com esse artigo questões atuais da educação intimamente relacionadas à atuação daqueles ocupados com seus contextos, mestres, estudantes, pesquisadores. Como as cartografias estão sempre sujeitas à nova configuração, tomamos as territorialidades apresentadas como pontos de partida para que outros rumos possam ser trilhados nas práticas docentes. Portanto, tentando desfazer o assédio das prescrições e sem gesto conclusivo, fica a contribuição ao devir da reflexão sobre e com a educação demandada pela contemporaneidade, ou a insistência assumida em descobrir o que está sempre por descobrir: as escolas, espaços e tempo do encontro, em permanente porvir.

Material suplementar
Referências
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VICTORIO, Luiza. Paragem: o paroxismo do movimento na dança. Monografia de Graduação em Licenciatura em Dança. Rio de Janeiro: Faculdade Angel Vianna, 2016.
Notas
Notas
1 Disponível em: Acessado em 11 de nov. de 2017.
2 Proposta desenvolvida pela autora em que os diferentes métodos empregados em um quadro abrangente e significativo produzem diversas maneiras de pensar a problemática da pesquisa.
3 O termo aplicado tem também a conotação da dança: “Paragem” um elemento da Dança aparentemente contraditório em relação ao seu aspecto maior que é o movimento. A “Paragem” se dá no momento quando o corpo do bailarino se encontra aparentemente estático ou em repouso. O movimento se estanca, mas, mantém a fluidez vital à especificidade da modalidade artística. Ver Lepecki (2006; 2001) e Victorio (2016).
4 A primeira pessoa é fundamental à ênfase da singularidade da experiência da investigadora que, por sua vez, é a professora do preparatório no relato.
5 Festival com o objetivo de reunir artistas, ativistas políticxs e teóricxs para discutir em torno de filmes que abordam o pensamento queer afim de questionar as fronteiras impostas aos corpos dando ênfase a discursos que valorizam a discussão e superação das assimetrias de direitos entre as diferenças.
6 Indianara Siqueira, puta e ativista em defesa da visibilidade e cidadania trans e pessoas LGBTQs.
7 Refere-se à energia pulsional e societal de Exu, orixá pertencente às comogonias de matriz africana.
8 Termo da personagem midiática Dara Crislayne quando se refere à qualidade das festas que frequenta. Disponível em: Acessado em 11 de nov. de 2017.
Autor notes

Aldo Victorio Filho – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes - UERJ. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Maracanã. CEP: 20550900. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.




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