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A música da amizade: notas entre filosofia e educação
The music of friendship: notes between philosophy and education
Educação, vol. 43, núm. 2, pp. 195-206, 2018
Universidade Federal de Santa Maria



Recepção: 13 Janeiro 2018

Aprovação: 08 Março 2018

DOI: https://doi.org/10.5902/1984644430840

Resumo: O presente texto trata das relações entre música, filosofia, educação e amizade. Parte de uma leitura do músico italiano Ezio Bosso e faz dialogá-la com autores como F. Ferraro, J. Masschelein e M. Simons, J. L. Nancy, M. Santi, G. Deleuze, C. Lenkensdorf e os zapatistas. Algumas das questões principais que este artigo tematiza são: o papel da escuta, na música e na filosofia; as contribuições da música para pensar o sentido da educação; o papel da busca e do encontro na vida e na educação; o lugar do outro, na música, na filosofia e na educação; o sentido da amizade como forma impessoal no pensamento; o texto recupera palavras de Paulo Freire sobre o valor do coletivo na vida institucional e, por último, faz também uma homenagem a Fúlvio Manara, autor italiano recentemente falecido, significativo no campo das comunidades de investigação filosófica e da educação para a paz.

Palavras-chave: Escuta, Amizade, Música, Educação, Filosofia.

Abstract: The present article deals with the relations between music, philosophy, education and friendship. It starts with a reading of the Italian musician Ezio Bosso and its main interlocutors are authors like F. Ferraro, J. Masschelein & M. Simons, J. L. Nancy, M. Santi, G. Deleuze, C. Lenkensdorf and the zapatistas. Some of the main issues that this article discusses are: the role of listening, in music and philosophy; the contributions of music to consider the meaning of education; the role of search and encounter in life and education; the place of the other, in music, philosophy and education; the sense of friendship as an impersonal form in thought; the text recovers some of Paulo Freire's words about the value of the collective in institutional life and, finally, also pays homage to Fulvio Manara, a recently deceased Italian author, significant in the field of philosophical community of inquiry and education for peace.

Keywords: Listening, Friendship, Music, Education, Philosophy.

A música da amizade: notas entre filosofia e educação

“Ricordate di sempre: la musica, come la vita, se può fare solo in un modo, insieme”[1]. Desde que minha amiga Marina Santi me mostrou o vídeo com a apresentação de Ezio Bosso no Festival de San Remo 2016[2], vi e ouvi esta apresentação mais de cem vezes. Aplaudido intensamente pelo público, o músico de Torino/Itália se despede com esta frase. Antes, tinha perguntado a Carlo Conti com doçura “Posso dizer uma coisa?”, ao final da execução de uma pequena parte de sua composição “Following a bird”. Despede-se com gestos e palavras. Sorri. Ele tem razão: “a música, como a vida, são possíveis apenas de um modo: juntos".

O público presente o aplaude repetidas vezes, sem parar, quando ele toca e quando ele fala. Ninguém consegue parar de aplaudi-lo. Não aplaudem apenas o músico, não celebram apenas uma maneira de habitar a música, senão uma forma de relacionar-se com a vida e com a morte. Exaltam também uma maneira de enfrentar a adversidade, uma doença autoimune degenerativa, diagnosticada em 2011, depois de uma operação no cérebro que parecia sentença do final de uma vida. Contudo, Ezio Bosso conseguiu também fazer desta doença um recomeço, o início de uma nova vida.

O músico toca e fala; combina o piano com a palavra. Sinaliza que gosta de se deter para dar atenção e explorar aquilo que normalmente passa despercebido, aquilo que não notamos, as coisas belas que não reparamos em nossa vida cotidiana. Concebe a vida humana não como uma linha de tempo, mas como um espaço com doze habitações. A palavra italiana “stanze” (habitação) tem vários significados: é um lugar de fechamento, mas também é um espaço de afirmação e de abertura para os outros. O próprio Ezio Bosso apresenta a teoria das doze habitações: ao longo da vida, vamos passando uma por uma, por cada uma das doze habitações e quando chegamos à última – que não é a última porque se misturam umas às outras -, lembramo-nos de todas elas, inclusive da primeira que não pudemos perceber quando nascemos (pois não víamos)... e estamos prontos para renascer, para recomeçar.

Esta doença me fez entrar na minha décima-segunda habitação. Estava escuro. Pelo simples fato de ter entrado, eu desaprendi tudo: falar, andar, brincar. E então aprendi tudo de novo. É como renascer. E foi somente nesse limiar que as coisas começaram a se esboçar. Eu decidi gravar um disco pela primeira vez, eu encontrei a coragem para fazer a primeira turnê sozinho, sem outros. (Bosso, 2016, s./p.)

Lançado involuntariamente a esta última habitação, Ezio Bosso primeiro desaprendeu tudo para, depois, aprender tudo novamente. Ele retomou a sua infância. Não disse isso com tristeza, mas com uma alegria infantil. Parece pronto para recomeçar a vida, para habitar novamente a primeira habitação, a da infância. Ou para viver a vida como permanente recomeço, como uma infância persistente. A vida o levou à infância e a infância lhe premiou com uma nova vida. Assim Ezio Bosso toca o piano, assim pensa a vida, a morte, a música: infantilmente, habitando-as, como se fosse a primeira vez. A infância é, para Bosso, e não só para ele, uma força da vida.

Música, filosofia, educação

Ezio Bosso fala da música como se falasse de uma forma de vida. “A música somos nós”, ele diz, e acrescenta que a música “é um destino que compartilhamos (…) nós tocamos com as mãos, mas a música nos ensina a coisa mais importante: escutar”. Quem se atreve a questioná-lo em um mundo que, aparentemente, quase ninguém escuta? Parece não falar apenas da música, mas também da filosofia, pelo menos de uma filosofia compreendida como sensibilidade, como exercício do pensamento em forma de escuta e atenção ao outro (Ferraro, 2010).

Talvez de fato Ezio Bosso esteja falando (com outro nome) da filosofia, se Platão tem razão quando afirma, no início de Fedón (61a), que a música é a maior filosofia (ou a filosofia é a maior música, pois a frase pode ser lida nos dois sentidos). Talvez esteja falando da musicalidade de uma vida ou de uma vida musicalmente filo-sófica, do pensamento feito música, da vida vestida de música no pensamento.

Ezio Bosso inicia todos os seus concertos com um trecho de sua canção “Following a bird”. A composição desta música tem mostrado algo fundamental: ao seguir um pássaro, Ezio perdeu-se, e parou para pensar que “perder-se é importante para aprender a seguir”. Pensamos, disse Ezio nesta apresentação em San Remo, em perder-se como algo negativo. Mas não: “perder preconceitos, perder medos, perder dores te aproxima e te faz seguir”. É preciso perder-se para poder ir atrás daquilo que podemos ser. A música é a metáfora de uma vida educacional. Perder-se de si mesmo, desaprender aquilo que somos para poder buscar outros modos de vida. Assim, Ezio Bosso tem feito de sua relação com a música uma escola de vida.

Deste modo, Ezio Bosso fala da música como se fosse filosofia e de nossa relação com a música como se fosse uma relação educadora. Assim, “perder-se para aprender a seguir” poderia ser o leit motiv de uma vida educacional: um convite a uma “pedagogia pobre”, a encontrar um caminho para a nova “investigação educativa” e ver aonde esse caminho nos leva (MASSCHELEIN, 2006). Caminhar sem saber de antemão o destino senão dispostos a deixar o próprio caminho conduzir nosso olhar.

Caminhar para poder ver, caminhar, sem antecipar o destino, perdendo-se de si mesmo; caminhar para poder dar lugar a uma experiência, para sair diferente. Caminhar como autoeducação. Há muitos anos os zapatistas no México afirmam algo assim: “Caminhamos não (ou não somente) para chegar a uma terra prometida, senão porque o caminhar em si é a revolução.” (HOLLOWAY, 2001, p. 175).

“Perder-se para aprender a seguir”: um comando zapatista

O “perder-se para aprender a seguir” afirmado por Bosso também nos lembra de alguns contos zapatistas sobre a história do mundo. Por exemplo, “A história da busca” que o subcomandante zapatista Marcos escreveu em 2001, numa das marchas zapatistas ao Distrito Federal no México (EZLN, 2001). Nela, Marcos conta uma história em que os deuses primeiros fizeram o mundo incompleto. Não o fizeram dessa forma por preguiçosos, mas por princípio, por convicção, porque consideraram que “uns têm que começar, mas terminar é trabalho de todos”. Eram deuses pouco onipotentes, imperfeitos, incompletos, buscadores, ousados. Esses deuses perceberam que a construção de um mundo exige a participação de todos os que o habitam, que a criação diz respeito a um movimento inicial que instaura o novo e abre as portas para que os que nascem, infantes, novos no mundo, participem dessa criação. Também perceberam que não há criação individual, que não se cria sem a intervenção dos outros. Quase como Ezio Bosso percebe a música: pensamos que ela é uma arte individual, que depende do talento ou o gênio individual, quando o mais importante na música é a escuta, a escuta do outro, no duplo sentido de escutar o outro e ser escutado pelo outro. Sem a escuta do outro não há música nem criação. A música somos nós, como o mundo zapatista exige também a escuta do outro. O mundo somos nos outros.

O caso é que, conta “A história da busca”, os deuses zapatistas deixaram o mundo incompleto, com pendências. Colocaram as pendências numa trouxa para poder reconhecer se uma nova criação correspondia àquelas pendências por eles determinadas. Mas um coelho sapeca, inconformado com sua própria criação, aproveitando que estava escuro roeu a trouxa e fez um buraco de modo que as pendências caíram. Depois o vento começou a assoprar e as pendências se espalharam pelo mundo todo e os deuses ficaram perdidos sem saber quais seriam as pendência que faltavam para que o mundo estivesse completo. Tristes, os deuses começaram a chorar, temerosos de que sua criação não pudesse ser completada. Por isso, os primeiros homens e mulheres se dispuseram a ajudar aos deuses e buscar as pendências. Perguntaram aos deuses apenas se eles se lembravam de algumas pendências para saber se o que encontravam era uma pendência ou algo novo no mundo. E os deuses disseram que “uma pendência é que cada qual se encontre” e a ela relacionam-se todas as demais pendências. Por isso, viver é buscar, buscar-se a si mesmo. E acrescentaram que 'todas as pendências de nascer no mundo têm a ver com esta que lhes dissemos, com que cada qual se encontre. Assim que saberão se o que encontram é uma pendência de nascer no mundo se lhes ajuda a encontrarem-se a si mesmos'. Depois, a história narra que os homens e mulheres saíram a buscar as pendências, e que “quando nascemos, nascemos perdidos e que então conforme vamos crescendo vamos nos buscando, e que viver é buscar, buscar-nos a nós mesmos”. Ela também nos diz que para se encontrar a si mesmo é necessário antes andar “todos os caminhos de todos os povos da terra.”

De modo que, dizem os zapatistas, nascemos perdidos e viver é buscar-se a si mesmo. Quem sabe a música de Ezio Bosso, que nasce também do perder-se seja uma dessas experiências de encontro que tornam o mundo mais completo. Ela nasce, como o encontro zapatista, da atenção e da escuta do outro. Ela é, como a vida em comum zapatista, uma experiência educadora. Quem sabe essa ideia de que viver é buscar e buscar-se a si mesmo seja também inspiradora para muitas educadoras e educadores no Brasil.

Música, educação, filosofia: outros encontros

Certamente, Ezio Bosso não é o primeiro a conectar a música com a filosofia e com a educação. Essa conexão é profícua não apenas na tradição platônica que já mencionamos no Fédon, mas também numa tradição antiplatônica, como é o caso do francês contemporâneo Gilles Deleuze. Efetivamente, por exemplo, em seu Abecedário, faz referência à música quando fala da letra “P de professor”. Afirma ali que a preparação para a docência é a mesma que a preparação para a música: é preciso uma longa preparação para uma curta inspiração. O ensaio é a forma essencial de uma e outra: é preciso preparar-se e ensaiar para uma aula, como para uma apresentação musical. Em uma aula, o essencial é o estilo, como em uma execução musical. Disse Deleuze de suas aulas em Vincennes que eram plenamente filosóficas e que estavam dirigidas a um público tanto de filósofos quanto de não filósofos. Nas suas palavras:

Como a música que não está necessariamente dirigida a especialistas em música e é a mesma música; é o mesmo Berg e o mesmo Beethoven que se dirigem tanto a pessoas não especialistas em música como aos músicos. Para mim, a filosofia deve ser exatamente igual. Dirigir-se tanto a não-filósofos quanto a filósofos, sem mudar. Quando dirigimos a filosofia a não-filósofos, não significa simplificar. É como na música. Não simplificamos Beethoven para os não-especialistas. Da mesma maneira com a filosofia. Exatamente o mesmo. Para mim, a filosofia sempre teve uma dupla audição: uma audição não-filosófica e uma audição filosófica, e se as duas não se dão ao mesmo tempo, não há nada. Senão a filosofia não valeria nada.

Deleuze afirma, então, que em toda aula de filosofia há uma dupla escuta: filosófica e não filosófica. As duas compõem essencialmente a filosofia. Não há filosofia sem uma ou sem a outra. A coisa mais importante é aprender a escutar, disse Ezio Bosso. Deleuze, um pouco mais adiante em sua conversa com Claire Parnet, defende uma concepção “musical” de suas aulas. Essa concepção possui duas características: como na música, nem sempre se compreende imediatamente o que se escuta e existem efeitos retardados a partir daquilo que se escuta. Por isso é importante não interromper uma aula, como não se interrompe a execução de uma música: porque, sem a espera, pode-se inibir a compreensão na tentativa de facilitá-la. Na filosofia, como na música, é preciso escutar pacientemente. Em primeiro lugar, então, uma aula de filosofia não deve ser interrompida da mesma forma que a execução de uma música não deve ser interrompida. Em segundo lugar, uma aula de filosofia é uma matéria em movimento, por isso é musical, e dessa matéria cada estudante ou cada grupo toma para si aquilo que lhe convém: escuta e coloca sua atenção naquilo que importa. Por isso, mais uma vez, é preciso paciência e atenção. Ademais, “uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência. Se não há emoção, não há nada, não há interesse algum”. Por fim, uma aula de filosofia mobiliza e trata conceitos e, ao fazê-lo, os vocaliza. O professor de filosofia é como um músico, como um artista, um vocalizador de conceitos com seu próprio estilo. Como sabemos, Deleuze dava aulas magistrais nas quais o professor fala e os presentes escutam. Mas o que ele disse sobre a relação entre filosofia e música vale para outras modalidades da vida educacional.

Porém, a relação entre escuta, filosofia e música ainda pode ser explorada em uma maior complexidade e a escuta afirmada por Bosso, Marcos e Deleuze pode esconder distintos significados pois, afinal, o que significa escutar? O que escuta quem escuta? Quantas escutas esconde uma escuta? Ou para dizê-lo com Jean-Luc Nancy, o que significa estar “à escuta”? E no caso mais específico da filosofia, o que escuta a filosofia ou o que escuta quem escuta em nome da filosofia? Será que a filosofia escuta propriamente ou escuta sem escutar? Seria o filósofo um neutralizador da escuta para poder ser “alguém que entende”? Por que a filosofia sempre privilegiou a visão – a ideia, a forma, a representação, o aspecto, o fenômeno, a composição – sobre a escuta – o acento, o tom, o timbre, a ressonância, o ruído - ?

Para J.-L. Nancy “estar à escuta” comporta duas dimensões em forma de perguntas: que segredo se revela na escuta de uma voz, de um instrumento ou de um ruído? O que é “estar à escuta”: o que se revela em termos de experiência e de verdade quando estamos “à escuta?” ou nas suas próprias palavras: “de que segredo se trata quando alguém escuta propriamente, ou seja, quando alguém se esforça em captar ou em se surpreender mais com a sonoridade do que com a mensagem?” (NANCY, 2007). Há uma tensão na escuta que na língua francesa aparece na palavra entendre que significa tanto escutar como entender. Quando se escuta uma palavra, o sentido parece habitar para além do som, mas quando se escuta a música, por exemplo o som de um piano como o de Ezio, o som se confunde com o sentido e o sentido se torna o som. Então, pelo menos musicalmente, estar na escuta é estar no limite do sentido ou no sentido do limite, da fronteira, da borda, da margem, do extremo que ressoa e contém o sentido no próprio som. Podemos afirmar tal escuta quando estamos na filosofia? Isto é, por meio da experiência do pensamento filosófico podemos dispor de uma escuta que nos coloque na fronteira do sentido, que esteja atenta a um som que o contenha e não adie o sentido?

Bosso não vê problemas entre a escuta da música e da filosofia, entre escutar e compreender:

Quando escuta, compreende. Escutar é um gesto generoso. Quando faço um concerto eu coloco as minhas mãos, mas o restante é colocado por quem escuta: tocamos juntos.

Escutar é compreender, atentar, criar. Portanto, também é um gesto de generosidade para com a palavra e a música do outro. Ezio Bosso concebe a música como esse encontro, toca quem faz soar o piano e também toca quem o escuta. É o encontro que faz a música. Não há música sem escuta e sem o encontro que essa escuta provoca.

O “eu” e o “nos-outros”

Estas últimas palavras de Ezio Bosso em San Remo 2016 me fizeram recordar Paulo Freire. Recentemente, em uma reunião do Centro de Filosofias e Infâncias (NEFI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), uma colega, Edna Olímpia da Cunha, recordou as palavras finais de uma intervenção de Paulo Freire nessa Universidade algumas semanas antes de sua morte, em maio de 1997: “Fiquem juntos. Não se isolem. Não estejam sós”. Seria algo bem próximo do que Ezio Bosso pediu para dizer depois de sua música: mantenham-se juntos, não se isolem, não estejam sós. A vida, como a música, só se pode fazer junto. A filosofia também.

Os ditos de Paulo Freire e Ezio Bosso podem ser lidos como um testemunho: sempre privilegiar a dimensão coletiva da vida sobre a individual, ao contrário daquilo que parece ser mais estimulado nestes tempos e justamente em espaços como o próprio festival de San Remo. É, ao contrário, uma ideia muito presente nas culturas que habitam a América Latina desde tempos ancestrais. Por exemplo, no próprio México dos zapatistas, o filósofo alemão Carlos Lenkensdorf (Lenkensdorf, 2001) mostrou como nas línguas de culturas mayas Tojolabal ou Tzotzil faladas no sudeste do México não existe uma forma no singular da primeira pessoa do pronome pessoal: os membros dessa comunidade usam apenas “nosotros” (nós), por meio de um sufixo linguístico “tic” e não têm uma palavra específica para dizer “eu” ou “tu”. Lenkensdorf conta como, desde os primeiros contatos com a língua tojolabal, chamou sua atenção a frequência com que pronunciavam esse sufixo “tic” e sugere que essa característica não significa a negação do indivíduo, mas uma ampliação do significado e do sentido para sua expansão num coletivo maior de sentido. Em castelhano esse sufixo “tic” se traduz pelo pronome “nosotros” que enfatiza maravilhosamente a força do coletivo sobre o individual e como é impossível pensar esse sujeito plural sem os outros: “nos-otros” contém “nós” e os “otros”, em certo sentido os outros já estão compreendidos em “nos”, de modo que em “nosotros” estão duplamente, estão em “nos” e também em “otros”. Estas formas de afirmação coletiva são quase opostas à cultura dominante em nossos dias, inclusive nas formas predominantes da filosofia dita ocidental que, em suas diferentes modalidades, está centrada numa subjetividade individual.

Na filosofia contemporânea, diversas tendências problematizam esse foco no indivíduo. É o caso de vários expoentes do chamado pós-estruturalismo francês, incluindo o já mencionado G. Deleuze. Deleuze, como outros filósofos contemporâneos, convoca a um deslocamento da subjetividade, a partir de sua crítica a um eu dono de si mesmo que é desterritorializado em espaços impessoais como os agenciamentos coletivos de enunciação, os devires minoritários: devir-animal, devir-mulher, devir-criança, os blocos de infância.

Desde pressupostos muito diferentes, e mais preocupada em terras educacionais, a filosofia para crianças na perspectiva proposta por Matthew Lipman e Ann Margaret Sharp, também coloca em questão a supremacia do sujeito individual a partir do conceito de comunidade de investigação filosófica como paradigma para a prática da filosofia na educação da infância. A comunidade de investigação é proposta como um paradigma ao mesmo tempo filosófico e pedagógico. Trata-se de um espaço dialógico onde o pensamento individual é colocado num contexto comunitário, mais amplo de sentido. Como consequência da ênfase no coletivo, o desenvolvimento do pensar de cada um dos membros da comunidade acaba sendo resultado da internalização de hábitos de pensamento compartilhados e a identidade individual e a estima de si são postas em diálogo com a empatia, a consideração dos outros e o pensamento distribuído (SHARP; SPLITTER, 1999). A atenção e a escuta do outro são também exercícios principais na prática de uma comunidade de investigação.

Propostas como formas de educar o pensamento na infância, Ann M. Sharp sugere que as comunidades de investigação estão constituídas por grupos de crianças que investigam juntas sobre questões problemáticas de forma tal que elas vão construindo suas ideias a partir das ideias das outras exercitando umas série de práticas de pensamento: oferecem contraexemplos umas às outras, questionam as inferências umas das outras e provocam umas às outras a gerar visões alternativas para os problema colocados, além de seguir com a investigação para onde quer que ela as conduza (SHARP 2014: 16). A aposta de Lipman e Sharp é que, através do exercício da vida em comunidade, as crianças “passam a se identificar com o trabalho do grupo, a construírem significados cooperativamente e a se comprometerem a uma reconstrução em andamento autoconsciente da própria visão de mundo enquanto a investigação procede” (SHARP, 2014: 17).

Em outras palavras, para Lipman e Sharp, as comunidades de investigação filosóficas são formas de colocar o ego em perspectiva, praticando uma espécie de amizade filosófica nas salas de aula. Essas comunidades têm um valor ao mesmo tempo estético e político, na medida em que são uma das expressões da própria democracia, entendida não já como forma ou regime de governo mas como uma forma de investigação coletiva a respeito dos modos de vida em comum. As comunidades de investigação filosóficas são ao mesmo tempo o meio e o fim da prática da filosofia na infância, na medida em que sua vivência expressa a uma só vez o caminho e o próprio sentido do pensamento e a investigação coletiva.

É nesse mundo da prática da filosofia com crianças e das comunidades de investigação que tive o privilégio de conhecer Fulvio Manara em diversos encontros acadêmicos em distintos lugares da Itália. Fulvio era um fervoroso animador de comunidades de investigação em sua prática pedagógica universitária e em contexto não formais.

Música, filosofia e amizade

“A música somos nós”, afirma Ezio Bosso. Não disse “eu sou a música” e também não disse “a minha música é…”. Ao mesmo tempo afirma, como vimos, que a música é uma fortuna que compartilhamos, como a amizade. Tive a fortuna de apreciar a sensibilidade de Fulvio Manara compartilhando algum espaço no movimento de filosofia com crianças, organizado por Marina Santi, na Universidade de Padova. Desde a primeira vez que vi Fulvio, recordo seu sorriso fácil, amigo, seus gestos de hospitalidade e diálogo: “quero que venha como professor visitante à Universidade de Bergamo”, me disse já na primeira vez que nos vimos. E fui, alguns anos depois como professor visitante à que era a “sua” universidade. Ali tive a fortuna de poder estar em sua casa, com sua gente, com seus estudantes, com seu grupo de trabalho. Reparo, agora, que a mesma amiga, filósofa, me aproximou de Ezio Bosso e Fulvio Manara, de forma diversa e comum. Uma amiga filósofa me trouxe o músico e o educador, a música e a educação.

Justamente Marina Santi também está trabalhando para reunir a música, a filosofia e a educação. Recentemente apresentou seu trabalho em um Congresso Internacional de Filosofia e Educação no Rio de Janeiro[3]: “Educare in jazz: otto tratti di una nuova pedagogia”[4] (SANTI, 2016). Marina propõe oito recursos educacionais a partir de sua inspiração no jazz: 1) jazzing; 2) fusion; 3) free; 4) swing; 5) groove; 6) soul; 7) cool; e 8) impromptu, que, literalmente significa, em sua etimologia latina, aquilo que é imprevisto, extemporâneo, dito ou feito sem uma preparação prévia, em suma, o improviso. Marina destaca o improviso como o traço mais distintivo e que, de alguma forma, reúne os outros em torno de uma performance única, singular, irreproduzível, eminentemente artística. Marina mostra também como improvisar – literalmente “não ver antes”, não ver antes de ver, antes de aprender a ver, a seguir, perder-se antes de aprender para aprender a ver, a seguir – exige uma grande preparação, a mesma que Deleuze exige da aula de um professor. Disse Marina que “a improvisação não é apenas uma resposta ‘reativa’ a um problema, embora uma boa improvisação seja uma resposta bem sucedida a uma mudança.” (SANTI, 2016) Pensemos, por exemplo, como uma mudança imprevista de habitação na vida, como a sofrida por Ezio Bosso, exige improvisar e aprender a seguir. Marina também mostra a interdependência entre “aprender a improvisar” e “improvisar para aprender”. Assim como se pode aprender a improvisar, aprender é também um ato artístico.

Quero, para terminar, me referir à amizade numa perspectiva não individual ou biográfica. No Abecedário, Deleuze fala da amizade neste sentido. Ele afirma não se interessar por ela no nível da relação pessoal, mas como uma categoria ou condição do pensamento. A amizade está, como sabemos, na etimologia grega da palavra philosophía. G. Ferraro, outro amigo em comum, disse que a tradução usual de “amizade ou amor pelo saber” poderia ser traduzida por “saber do amor ou da amizade” (FERRARO, 2010). Deleuze, por sua vez, afirma no Abecedário que, na filosofia, a amizade está relacionada à ideia de percepção. O filósofo seria alguém que pretende ser sábio sem sê-lo. Assim, o que os gregos teriam inventado seria a ideia de que existem vários pretendentes à sabedoria. Os amigos são pretendentes que se entendem sem nenhuma necessidade de explicação: basta um gesto para entender-se com um amigo mesmo quando não pactuam das mesmas ideias. Os amigos partilham uma pré-linguagem, um charme, uma gestualidade. A amizade é uma questão de percepção: perceber no outro algo que lhe convém, “que nos ensina, que abre e revela alguma coisa”.

É neste sentido que me sinto mais intensamente amigo de Fulvio. Não porque pensávamos as mesmas coisas nem por termos compartilhado algum segredo, mas porque bastava um gesto para nos entendermos. Creio que nós dois sentíamos que havia coisas a ensinar e aprender um com o outro, que certo aspecto do mundo se descortinava quando nos encontrávamos. Algo que pode parecer banal e curioso entre pessoas dedicadas à filosofia: não tínhamos necessidade de muitas palavras para nos entendermos. Não éramos amigos no sentido das coisas pessoais que compartilháva-mos mas sim no sentido de uma forma comum de perceber e habitar o mundo.

Demorei quase um ano para escrever sobre Ezio Bosso depois de assistir sua apresentação em San Remo, quase o mesmo tempo que demorei para escrever esta homenagem desde que Fulvio morreu. Não me parece apenas uma coincidência escrever este texto inspirado em uma forma de vida musical para homenagear um amigo na filosofia. Repito, não são as coisas pessoais que estão em jogo, mas uma sensibilidade, gestos, uma forma de habitar o mundo. Em um concerto oferecido às seis da manhã de 13 de julho de 2013 sobre os 2.549 metros do monte Margherita, Ezio Bosso fala de uma palavra inglesa, uma palavra de amor criada por Shakespeare, uma palavra mais suave que a respiração, mais leve que o sussurro... um gesto em nota musical, de intimidade... quase em silêncio... como fazem os apaixonados... mais suave, inclusive, que a própria respiração. Neste tom, com essa palavra, desejei escrever este texto. “Ricordate da sempre: la música, come la vita, se puo fare solo in un modo: insieme”. Neste tom, quase em silêncio, repetiria mil vezes essa frase em homenagem ao amigo Fulvio Manara. Lembrem sempre: a filosofia, como a vida, só se pode fazer de uma maneira: junto.

Referências

BOSSO, Ezio. L'intervista di Vanity Fair a Ezio Bosso: Ogni nota che suono». A cura di Silvia Nucini. Publicato il 11/2/2016. In: http://www.vanityfair.it/people/italia/16/02/11/ezio -bosso-sanremo-2016-foto-chi-e-pianista-malattia-sla-intervista.

BOSSO, Ezio. “Under’s one breath”. Publicato il 13.06.2013. In: https://www.youtube.com/ watch?v=om5_zl6ORU8.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’abécédaire de Gilles Deleuze. Paris: Montparnasse, 1996.

EZLN. La marcha del color de la tierra. México, DF: Rizona, 2001.

FERRARO, Giuseppe. La scuola dei sentimenti. Napoli: Filema, 2010.

HOLLOWAY, John. “El zapatismo y las ciencias sociales en América Latina”. Osal, junio 2001, p. 171-176.

LENKERSDORF, Carlos. Filosofar em clave tojolabal. México, D.F.: Porrúa, 2001.

LENKERSDORF, Carlos. Filosofar en clave tojolabal. México, D.F.: Porrúa, 2005. Edición digitalizada para estudiantes de la Universidad Autónoma de Nayarit. Disponible en: https:// culturayotredad.files.wordpress.com/2013/09/l enkensdorf.pdf. Visto el 02/01/2017.

MANCALERO, Nicoletta. “Chi è Ezio Bosso e 10 cose che non sai sul pianista che con la sua forza di volontà ha vinto la sfida con la musica”. L’Huffington Post. Publicato in 11/2/2016. In: http://www.huffingtonpost.it/2016/02/11/ezio-bosso-pianistasanremo_n_9206 706.html

NANCY, Jean-Luc. A la escucha. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

NEGRI, Piero. “Ezio Bosso: il pianoforte dono contro la malattia”. La Stampa. Publicato il 20.7.2013. In: http://www.lastampa.it/2013/07/20/spettacoli/ezio-bosso-il-pianoforte-dono-contro-la-malattia-M6Cf7ZYZXhoSlRiIqgp3zO/pagin a.html.

MASSCHELEIN, Jan. “Pongámonos en marcha”. In: MASSCHELEIN; Jan; SIMMONS, Maarten (eds.) Mensajes educativos en tierra de nadie. Barcelona, Laertes, 2006, p. 21-30.

SANTI, Marina. “Educare in jazz: otto tratti di una nuova pedagogia”. In: KOHAN, Walter; LOPES, Sammy; MARTINS, Fabiana (orgs.) O ato de educar em uma língua inada por ser escrita. Rio de Janeiro: NEFI, 2016, p. 391-402.

SHARP, Ann Margaret. “The other dimension of caring thinking”. Journal of Philosophy in Schools, 1 (1), 2014, p. 16-21.

SHARP, Ann Margaret. Uma nova educação. A comunidade de investigação na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandra, 1999.

Notas

[1] "Lembre-se sempre: a música, como a vida, só se pode fazer de um modo: juntos".
[2] O vídeo pode ver-se em: https://vimeo.com/155034445. Acesso em 11/01/2018. As referências à fala do Bosso estão tomadas desse vídeo.
[3] VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação, UERJ, 3 a 7 de outubro de 2016 (www.filoeduc.org/8cife). [4] “Educar no jazz: oito traços de uma nova pedagogia”.
[4] “Educar no jazz: oito traços de uma nova pedagogia”.


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