Resumo: Este artigo relata um estudo que objetivou descrever e compreender o processo de transformação de uma comunidade acadêmica endógena do interior da Amazônia – o Formazon – em uma comunidade acadêmica colaborativa que integra professores escolares, professores acadêmicos e futuros professores de diferentes áreas do conhecimento. Os dados foram coletados a partir de registros de reuniões, entrevistas e transcrições de áudios dos encontros durante 18 meses. Recorreu-se à pesquisa narrativa para a análise dos dados, entendendo-a, assim como Clandinin e Connely (2000), como um modo de produzir sentido à experiência vivida e também de investigá-la. Buscou responder às seguintes indagações: Como a comunidade Formazon vem aprendendo e se transformando? Como vem se constituindo em uma comunidade colaborativa? Quais os indícios dessa transformação? Os resultados indicam que a interlocução colaborativa que, no âmbito do Formazon, se estabeleceu acerca das práticas de ensino dos participantes, de pesquisas dessas práticas e das políticas que as permeiam delineou um novo tipo de formação contínua no grupo, baseado na reflexão e na investigação sobre as práticas educativas. Ao constituir-se em uma comunidade de estudo, problematização e pesquisa das práticas docentes, o Formazon empoderou o processo de desenvolvimento profissional dos participantes, pois incrementou a emancipação e a autonomia profissional.
Palavras-chave:Formação de professores em comunidadesFormação de professores em comunidades,Comunidades colaborativasComunidades colaborativas,Comunidade acadêmica endógenaComunidade acadêmica endógena.
Abstract: This paper reports on a study that aimed at describing and comprehending the transformation process of a local academic community inside the Amazon – named Formazon – into a collaborative learning community which includes school teachers, professors, and future educators from different areas of knowledge. The data was collected in an 18-month period from records and audio transcripts of meetings and from interviews. The narrative research was used to analyze the data, understanding it just as Clandinin and Connely (2000) did, as a way to bring meaning to the lived experience and also to investigate it. Its analysis aimed at answering the following questions: How has the Formazon community been learning and transforming itself? How has it been shaping itself into a collaborative community? What are the evidences of this transformation? Results indicate that, in relation to Formazon, collaborative interaction regarding both the participants’ school practices as well as the researching of these practices and of the politics permeating them, has outlined a new form of continuous education in the group, based on reflecting on and investigating school practices. Constituting a community that studies, questions, and re-searches school practices, Formazon has empowered the professional development process of its participants by increasing emancipation and professional autonomy.
Keywords: Teacher training inside communities, Collaborative communities, Academic inbreeding community.
Formação de professores em comunidades colaborativas no interior da Amazônia
Teacher Training in Collaborative Communities inside the Amazon
Recepção: 06 Setembro 2017
Aprovação: 15 Fevereiro 2018
Os estudos sobre a organização e a constituição de grupos colaborativos no Brasil têm se destacado a partir do final dos anos 1990, sob forte influência de pesquisas realizadas em outros países. Marcam a expansão os trabalhos de Cochran-Smith e Lytle (1999, 2009), para quem os conhecimentos que os professores produzem sobre suas práticas podem ser potencializados mediante parceria com professores da universidade e inserção em comunidades com postura investigativa.
Uma comunidade com postura investigativa e/ou comunidade de prática é entendida por Lave e Wenger (1991) como um grupo de indivíduos que participam juntos de uma prática social em que compartilham percepções sobre suas atividades em diferentes contextos, o que influencia em suas vidas.
No Brasil, Fiorentini (2013) contribui com o debate, ao definir três tipos de comunidades investigativas: escolares, acadêmicas e fronteiriças. Segundo o autor, as comunidades investigativas acadêmicas
são monitoradas/governadas institucionalmente pela universidade, e podem ser endógenas, voltadas para problemas teóricos e desconectadas das práticas escolares. Podem ser também colonizadoras de práticas escolares, ou colaborativas, abertas aos problemas e necessidades de professores e escolas. (FIORENTINI, 2013, p.156).
As comunidades escolares ou comunidades baseadas na escola são “governadas pelas próprias escolas, também podem ser endógenas, abertas a colaboração e parceria com a universidade, ou desejam se beneficiar da participação universitária” (FIORENTINI, 2013, p.156). As comunidades fronteiriças “estão na fronteira entre a escola e a universidade e normalmente têm mais liberdade de ação e capacidade de definir seu próprio trabalho e agenda de estudo, uma vez que não são monitorados institucionalmente pela escola ou pela universidade” (FIORENTINI, 2013, p.157).
Presente na educação superior em diferentes países, a endogenia acadêmica, ou academic inbreeding, segundo Horta, Sato e Yonezawa (2011), reduz as possibilidades de ampliação e socialização de conhecimentos porque o mesmo circula apenas entre pares. Ainda, segundo os autores, a endogenia torna as organizações menos criativas e menos independentes porque os sujeitos se acomodam às rotinas, se relacionam pouco com a comunidade externa, possuem apego às tradições locais o que, consequentemente, compromete o desenvolvimento dos indivíduos e dos sistemas de inovação ao redor do mundo.
Uma comunidade acadêmica endógena produz futuras gerações acadêmicas no interior da própria comunidade, todavia fechadas em suas “torres de marfim” e sem muito espaço para receber influências externas. Isto provoca o engessamento e a pouca circulação de pessoas e de ideias no interior da comunidade. Tal postura está na contramão da crença de que a força e a capacidade de sobrevivência da comunidade está justamente no seu potencial de abertura a novas ideias, valores e práticas.
As comunidades de investigação não endógenas, por outro lado, se caracterizam, conforme Cochran-Smith e Lytle (apud FIORENTINI; CRECCI, 2016, p.513), por buscar oferecer contextos ricos e desafiadores para a aprendizagem do professor durante sua trajetória profissional e, ainda, espaços produtivos que vinculem essas comunidades aos esforços de mudança educacional.
Buscando entender esse movimento, desenvolvemos um estudo que objetivou descrever e compreender as transformações ocorridas em uma comunidade acadêmica endógena e o processo de transformação e constituição que fez dela uma comunidade acadêmica colaborativa. Neste texto apresentamos parte do estudo. Inicialmente discutiremos a problemática da formação docente, buscando demonstrar a urgência de um novo paradigma de formação de professores. Apresentaremos a metodologia do estudo e os dados da pesquisa a partir de dois eixos: a) a constituição da comunidade acadêmica; b) as transformações ocorridas. E, nas considerações finais, argumentaremos a favor das comunidades colaborativas como espaços emergentes de formação e desenvolvimento profissional de professores.
Nos últimos anos houve um aumento significativo de estudos sobre os professores e sobre a formação que vivenciam (GATTI; BARRETO, 2009), sobretudo tendo como pano de fundo o impacto dela na qualidade do ensino que ministram. A melhoria dos indicadores educacionais parece ser a razão primeira para o implemento de políticas e programas de formação docente. No entanto, não basta aumentar a titulação dos professores, há que se garantir que ela seja acompanhada de ampliação das oportunidades de acesso a ferramentas tecnológicas, estabilidade profissional, melhores condições de trabalho, melhores salários – enfim, acesso a um plano de cargos, carreira e remuneração que permita a redução da alta rotatividade docente nas escolas e a melhoria da satisfação profissional.
Isso posto, cumpre explicitar que as reformas educacionais levadas a efeito nas últimas décadas decorrem das profundas transformações no mundo do trabalho e de um processo de globalização e acelerado desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação que provocaram a emergência de novos profissionais em condições de atuar com competência nesse contexto social atual, o que exige a formação de profissionais autônomos e capazes de gerenciar seu próprio processo de aprendizagem.
Emerge, assim, uma demanda para a escola e, consequentemente, para as instituições formadoras, tendo em vista esse novo perfil de cidadão. Esteve (1999) reflete sobre essas aceleradas mudanças na sociedade, indicando suas consequências para o trabalho e para a saúde do professor. Este deixa de ser o único agente de socialização e passa a competir com outros meios tecnológicos. Além disso, assume no espaço escolar outras funções, para as quais não foi preparado; e se vê diante de uma diversidade de sujeitos, de culturas, de origens socioeconômicas, o que quebra o “modelo homogêneo” de aluno com o qual lidou durante todo seu processo de formação.
Em diferentes países houve grande mobilização para a reestruturação do currículo, a fim de atender às exigências desse emergente modelo social. Ao analisar experiências de formação docente em países da Europa, Ásia e Américas, Goergen e Saviani (1998) apontaram, entre outras questões, a relação entre teoria e prática como o “calcanhar de Aquiles” dos cursos de formação. Fiorentini et al. (2002), ao analisarem pesquisas sobre formação de professores de matemática em dois períodos distintos (1970-1980 e 1990-2000), corroboram a assertiva da desvinculação entre teoria e prática, da desarticulação acerca da formação específica e formação pedagógica, do distanciamento entre a formação oferecida na universidade e a realidade escolar, além de outros aspectos. Em investigação recente que analisa as pesquisas sobre o professor que ensina matemática em todas as regiões do País, Fiorentini, Passos e Lima (2016) constatam a carência de estudos sobre os contextos da formação, em especial as condições de trabalho dos professores, o que coloca em crise a identidade do professor e desvia o foco principal de seu trabalho, que é criar condições para uma efetiva aprendizagem de seus alunos.
Gatti e Barreto (2009, p.257), em amplo estudo desenvolvido em todo o território nacional, também caminham na mesma direção: as pesquisadoras levantaram diferentes problemáticas sobre a formação docente, analisando desde a formação inicial, a formação continuada, a carreira e a formação a distância. Dentre os resultados, destacam que:
[...] uma verdadeira revolução nas estruturas institucionais formativas e nos currículos da formação é necessária. As emendas já são muitas. A fragmentação formativa é clara. É preciso integrar essa formação em instituições articuladas e voltadas a esse objetivo precípuo. [...] A formação de profissionais professores para a educação básica tem que partir de seu campo de prática e agregar a este os conhecimentos necessários selecionados como valorosos, em seus fundamentos e com as mediações didáticas necessárias, sobretudo por se tratar de formação para o trabalho educacional com crianças e adolescentes.
Tais afirmações ressaltam a necessidade de repensar a formação docente para a educação básica em uma perspectiva contínua e coletiva. Percebe-se que há um distanciamento entre os estudos sobre formação docente realizados em diferentes países pelos mais renomados pesquisadores e a dificuldade para que tais pesquisas sejam incorporadas às políticas de formação de professores, em especial à formação permanente. Esse distanciamento fica evidente também nas diferentes iniciativas de formação, concluídas ou em curso, que desconsideram os resultados dos estudos já realizados e impõem aos professores modelos ultrapassados de qualificação.
Recentemente Fiorentini (2014) refletiu sobre as perspectivas de formação e explicitou o movimento da pesquisa sobre os professores no Brasil a partir do livro Cartografias do trabalho docente (GERALDI; PEREIRA; FIORENTINI, 1998). A obra se tornou referência no campo da formação docente no País, por apontar uma virada epistemológica: os professores foram ali concebidos como produtores de conhecimentos profissionais na (e a partir da) prática, ao exercer a docência e enfrentar seus desafios. Cartografias aponta ainda uma mudança paradigmática do processo de formação docente, já que se propõe a pensar a formação e o desenvolvimento profissional a partir da reflexão e da pesquisa sobre a prática de sala de aula. Ao invés de treinamento e cursos de colonização da prática docente, discute-se a possibilidade de constituir grupos de estudo para refletir e investigar a prática de ensinar e aprender.
Fiorentini avalia os desdobramentos posteriores e atuais do livro Cartografias e pontua que essa obra provocou uma crítica ao conceito do professor reflexivo, abriu espaço para indagações sobre o conceito de reflexão e investigação e permitiu ampliar as discussões sobre a pesquisa-ação e sobre a aprendizagem em comunidade de prática investigativa.
Esta última nos interessa particularmente, porque denota a possibilidade de constituir um lugar emergente de formação e desenvolvimento profissional docente, ao se situar como espaço de colaboração e como possibilidade de transformação da prática escolar e de desenvolvimento profissional dos professores que dela participam.
A comunidade pesquisada foi o Grupo de Estudos e Pesquisas Formação de Professores na Amazônia Paraense (Formazon) constituído por professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), professores das escolas de educação básica e estudantes de graduação e de pós-graduação. Escolhemos o Formazon pela estreita vinculação que possuímos com ele e porque percebemos um movimento de transformação no mesmo que ainda não havia sido registrado e analisado. Na literatura disponível tivemos acesso a diversos estudos que descreviam comunidades na interface da relação universidade e escola, todavia nenhum que mostrasse a influência dos membros na constituição de uma comunidade acadêmica endógena e sua transformação em uma comunidade acadêmica colaborativa.
Tomamos como ponto de partida o resgate dos áudios das reuniões realizadas durante 18 meses, entre o segundo semestre de 2015 e o segundo semestre de 2016. Os áudios foram transcritos na íntegra, e neste texto recorremos aos episódios mais marcantes e reveladores dos indícios de transformação da comunidade, a partir das manifestações dos membros[1] participantes dos encontros. Mediante a análise do conteúdo dos áudios transcritos, começamos a nos enxergar muito mais inseridos no processo de constituição e transformação daquele grupo do que inicialmente imaginávamos.
Corroborando a assertiva de Clandinin e Connely (2000, p. 81), somos também parte da experiência, pois, segundo os autores, o pesquisador “experiência a experiência e é também parte integrante da experiência”. Assim, parte das reflexões apontadas ao longo do texto e nas considerações finais do estudo representa a conexão desses múltiplos olhares que, por vezes, confundem quem é o pesquisador e quem são os participantes, pois, ao desenvolver o estudo, à medida que estudávamos a experiência, passamos a nos olhar como aprendentes também. Não apenas os professores da escola e os integrantes do grupo estavam se desenvolvendo profissionalmente: o mesmo estava acontecendo conosco. Desse modo, a vivência dessa história (MELLO, 2004, p.89) nos levou a optar pela pesquisa narrativa, pois ela poderia nos ajudar a caracterizar e a problematizar o que estávamos realizando.
Definida esta opção metodológica, recorremos à pesquisa narrativa para auxiliar na análise dos dados, entendendo-a, assim como Clandinin e Connely (2000), como um modo de produzir sentido à experiência vivida e também de investigá-la. Para os autores, a narrativa representa uma maneira de interpretar e compreender a experiência humana, levando em consideração a perspectiva e a interpretação de seus participantes. Isso implica uma relação “colaborativa entre pesquisador e participantes, sobre um tempo, um lugar ou uma série de locais e interações sociais com o seu meio” (p. 20).
Neste estudo utilizamos três bases de dados: a) gravações dos encontros em áudio; b) narrativas da fundadora do Formazon para descrever aspectos da constituição da comunidade; e c) entrevista semiestruturada, com duas integrantes do Formazon.
Durante a análise os áudios foram transcritos na íntegra e submetidos à cuidadosa leitura tendo em vista captar o movimento de transformação do Formazon. Nesta leitura, percebeu-se que um marco diferencial foi a entrada no grupo dos professores das escolas. Buscou-se então capturar nas leituras posteriores as interlocuções entre os professores da escola e os demais membros da comunidade e como estas se processavam. As narrativas da fundadora do Formazon nos auxiliaram na descrição da comunidade acadêmica endógena e como esta assim se caracterizava. As análises das entrevistas semiestruturadas de duas professoras da escola nos ajudaram a compreender as dinâmicas do trabalho desenvolvido. A escolha das entrevistadas deu-se em virtude da representatividade de suas participações nas reuniões. A entrevista semiestruturada foi dividida em quatro eixos: 1) entrada na profissão e trajetória de formação; 2) o Formazon como comunidade de aprendizagem; 3) aprendizagens construídas no grupo e as reverberações na prática profissional e; 4) identificação das possíveis mudanças no processo de desenvolvimento profissional. Para este artigo trouxemos as falas circunscritas aos eixos 2 e 3.
Na análise dos dados, foi possível identificar indícios do processo de mudança ocorrido no Formazon e sua transformação em uma comunidade colaborativa, a saber: 1) a entrada de professores da educação básica; 2) o deslocamento do lugar de centralidade dos textos acadêmicos para as discussões sobre as práticas e; 3) o movimento de construção de práticas de colaboração entre os membros da comunidade.
Nas seções, a seguir, descrevemos e analisamos esse processo dialético de constituição do Formazon como comunidade colaborativa.
Após delinearmos a problemática da formação docente e a metodologia do estudo, esta seção objetiva explicitar a organização do Formazon como comunidade colaborativa e descrever narrativamente as transformações pelas quais passou, adaptando-se às demandas e aos interesses de seus integrantes.
A criação do Formazon deu-se no ano de 2008, como desmembramento de outro grupo de pesquisa, que estudava a educação do campo. Tendo em vista a ampliação dos estudos na perspectiva da formação de professores, houve necessidade de reestruturar o grupo, já que o objeto de estudo não se vinculava somente à temática da educação do campo, mas alcançava outro espaço de investigação – a formação docente. Como também se havia ampliado o número de bolsistas de iniciação científica com projetos vinculados à formação de professores, criou-se o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores na Amazônia Paraense. O nome “gigante” forçou a pensar em uma sigla que desse conta de expressar o sentido da formação, sem perder a identidade amazônica. Nasceu assim o grupo Formazon.
O grupo recém-desmembrado não diferia muito, em sua dinâmica de funcionamento, do antigo grupo de pesquisa. Era uma comunidade acadêmica endógena, conforme caracterização de Fiorentini (2013), pois as reuniões consistiam de encontros formais de leitura e discussão de textos voltados às questões acadêmicas e teóricas sobre a formação docente e sem conexão ou vínculo com os problemas e as práticas escolares.
Horta, Sato e Yonezawa (2011) discutem o conceito de endogenia acadêmica e alertam que como o conhecimento circula apenas entre pares e a renovação dos acadêmicos é feita dentro da mesma universidade, isto os leva a compartilhar as mesmas experiências e pontos de vista. No Formazon este aspecto estava evidente: todos os integrantes estavam vinculados ou eram oriundos de mesma instituição; pesquisavam as mesmas temáticas e estavam sob orientação de uma mesma docente.
Tais aspectos provocam, ainda segundo Horta, Sato e Yonezawa (2011), redução das possibilidades de ampliação e socialização de conhecimentos e práticas voltadas aos problemas próprios da academia e com pouca vinculação ao mundo externo à universidade. Os autores asseveram que a endogenia acadêmica tem como uma de suas características a limitada renovação do corpo docente de uma instituição porque ela contrata ex alunos de seus programas de pós-graduação o que provoca, por um lado, uma acelerada e desejável consolidação da pesquisa e melhor posição no ranking de instituições de elite todavia, por outro, provoca inércia institucional, provincianismo e isolamento intelectual.
A percepção deste isolamento causava desconforto, porque se entendia que o grupo de pesquisa não deveria ser apenas espaço de discussão acadêmica, mas também de socialização e construção de conhecimentos, junto com as escolas consideradas destinatárias dos resultados dessas pesquisas.
O Formazon começou a se consolidar como grupo de pesquisa a partir de 2014, com o início da primeira turma de mestrado acadêmico em Educação da UFOPA e com a incorporação de alunos de pós-graduação. Entretanto, ainda que se consolidasse na universidade como um grupo que pesquisava a formação docente, o protagonismo e a ênfase das atividades de trabalho e estudo do grupo eram centradas na figura de sua líder. Ou seja, a organização das reuniões, a definição das temáticas das reuniões e dos textos e a condução das discussões ficavam sob sua responsabilidade. Embora ela não questionasse aquela estrutura porque estava acostumada às rotinas e tradições acadêmicas (HORTA; SATO; YONEZAWA, 2011), começava a sentir-se muito cansada, porque várias vezes “ministrava aulas” durante as reuniões, o que fazia dos encontros aulas de disciplinas ou cursos tradicionais de formação continuada. Embora esses encontros pudessem, de um lado, proporcionar alguns fundamentos teórico-metodológicos para a prática da pesquisa acadêmica, de outro, não mobilizavam os professores da escola a problematizar suas práticas e torná-las campo de investigação ou objeto de estudo.
Devido ao interesse crescente de professores e ex-alunos em receber orientação para a elaboração de projetos de pesquisa para o mestrado, decidiu-se que isso seria possível dentro do grupo e passou-se a convidar outros interessados a ingressarem no Formazon. A resposta foi pequena, e quem se dispôs a frequentar as reuniões foram alunos ou ex-alunos de graduação com algum vínculo com a universidade, como a pós-graduação lato sensu. O sucesso de alguns deles nos processos seletivos da pós-graduação stricto sensu motivou a participação de outras pessoas, o que, no entanto, acabou não se consolidando.
No segundo semestre de 2015, após inúmeras conversas entre membros de uma escola pública e professores da universidade, os docentes da escola passaram a integrar o Formazon. Esse movimento da escola para a universidade foi tenso e precisou ser negociado entre as partes. Havia muitas dúvidas, de ambos os lados, em especial porque, embora se visualizasse ali uma possibilidade de inovação, não se sabia muito bem como conduzi-la. O “caminho natural”, até então, era a universidade ir até a escola, indicando possibilidades de formação e transmitindo saberes sistematizados por teóricos distantes da nossa realidade. A negociação se iniciou já na primeira reunião, tendo sido dada abertura para que todos pudessem participar das discussões vinculadas a textos previamente escolhidos pela coordenação do grupo.
Para Fiorentini (2004), há motivações múltiplas que mobilizam professores a fazer parte de uma comunidade investigativa e/ou grupo colaborativo, onde podem encontrar apoio e parceiros interessados em refletir, compreender e enfrentar os problemas complexos da prática docente.
Para as professoras formadoras da universidade, a relação com a escola possibilitava, a um tempo, aproximação com o campo da prática e construção de pontes entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento escolar, conforme revela este depoimento:
Então, assim, uma das propostas desse grupo é a gente buscar uma aproximação entre o campo da prática, o mundo da prática do professor da escola, da sala de aula, entre as políticas educacionais e no nosso caso mais direcionado com as políticas de reforma do ensino médio e o campo da teoria. Porque o que acontece? A universidade se fecha no seu campo teórico, quem lida com política lida especificamente com política e, muitas vezes, a universidade e o campo das políticas ficam distanciados da escola. Tanto que os professores não se veem no discurso das políticas e desconhecem. E isso está nos próprios programas de formação, nas diretrizes da formação de professores, mas muitas vezes se pensa currículos para formação de professores sem fazer o link com o próprio currículo da educação básica, né? Então esse desconhecimento assim ele é muito complicado, e aquilo que eu falei, de um certo modo o fato de eu ter passado pela escola, ter visto um discurso teórico, a política na visão da academia e ter vivido a realidade da escola faz a gente perceber essas ausências dessas pontes. Eu vejo assim que a gente tem um monte de ilhas que não têm pontes entre elas e elas deveriam estar todas interligadas e os documentos orientam para isso. Então a gente tem muitas pontes para construir e fazer as pessoas transitarem sobre elas, em vias de mão dupla. (Maria, professora da universidade, reunião, 16 set. 2015).
A motivação que mobilizou professores da escola a participar dos encontros na universidade corrobora as afirmações da professora Maria, mas acrescenta um elemento relevante, que diz respeito à crença de que essa aproximação pode promover melhorias na formação dos professores e, consequentemente, no trabalho desenvolvido na escola. A seguir, dois relatos de Mônica em momentos distintos expressam a vinculação com o Formazon e as expectativas em relação à participação nesse grupo.
E a minha expectativa aqui nesse grupo de estudo é, sobretudo, fazer essa ponte entre a universidade e a escola, porque a gente entende que se é daqui que vão sair os formadores, vocês, né?, que estão aqui para formar esses que vão formar depois outros professores. [...] Mas, se a gente olhar, isso é um reflexo de como nós estamos trabalhando. Então é muito nesse sentido essa busca que nós estamos fazendo de aproximação mesmo da universidade, de olhar para a escola de forma que possa vir a contribuir para o trabalho que a gente desenvolve no sentido de intervir na realidade dessa escola, né? [...] Eu também tive várias vezes vontade de desistir, mas, como a professora Maria sempre bate nessa tecla com a gente nas nossas conversas, eu preciso ter argumentos para ir junto com a pedagoga, para ir junto com o diretor, para ir até uma representante da 5.ª URE, seja lá como for, eu preciso criar argumentos suficientes pra que ele entenda a importância do meu papel na escola, a importância do professor na escola. Qual é o papel dele, que ele ainda não entendeu, qual é o papel dele na escola, e talvez ele nem saiba qual é o papel dele dentro da escola. Então são muitas coisas que a gente precisa discutir, que é plausível nesses grupos de estudo, que só vai servir para o nosso amadurecimento, crescimento profissional. Então é essa a minha expectativa, professora. Eu estou muito feliz de estar participando desse grupo. Eu tenho certeza que esse grupo vai nos ajudar muito a tornar a escola melhor. (Mônica, professora da escola, reunião, 16 set. 2015)
Eu entrei no Formazon em 2015, eu até comentava com minha mãe o quanto que a escola deixa a gente debaixo dos lençóis. [...] Com a nossa entrada, o grupo tentou privilegiar a nossa estada no grupo, de forma que pudesse contribuir e alargar nossas ideias sobre educação, sobre docência, até o ponto de querer progredir um degrau da pós-graduação. (Mônica, professora da escola, entrevista, 05 mai. 2017)
Destaca-se na fala de Mônica sua percepção de que o ingresso dos professores promoveu uma mudança na organização do grupo, mas não somente isso: ela percebe que também mudou seu comportamento quando ingressou no Formazon. Tal situação confirma o que asseveram Lave e Wenger (1991), quando abordam o conceito de participação periférica legítima. Para esses autores, há uma mudança na comunidade, à medida que o novato se envolve, o que provoca também uma mudança no comportamento dos aprendizes. Para os autores, o novo integrante modifica os papéis dos membros do grupo, e, aos poucos, de uma participação menos complexa passa a assumir uma participação mais completa e multifacetada dentro da comunidade.
Os encontros estimulavam os integrantes a relacionar as falas dos autores ali estudados com as experiências que esses professores vivenciavam nas suas práticas. Assim foi organizado o calendário de atividades do segundo semestre de 2015, que discutiu, dentre outros temas: o desenvolvimento profissional da docência; os impasses e os desafios da formação docente no Brasil; os professores e o novo espaço público da educação e a formação continuada. Foi realizada ainda a socialização de uma pesquisa de mestrado que abordou a experiência da Pedagogia da Alternância na Casa Familiar Rural de Belterra, município vizinho a Santarém.
A socialização das pesquisas era acompanhada de uma saudável discussão, que permitia estabelecer, entre o referencial teórico e os achados dos pesquisadores, contrapontos que eram ponderados a partir de questões relativas às problemáticas do fazer pedagógico docente em contextos diversos. Sempre que possível, as discussões eram incorporadas às reflexões finais dos trabalhos. A seguir, este excerto do depoimento de Carla explicita a organização das atividades do Formazon:
Desde 2014, que eu entrei no grupo, é interessante a forma como a gente trabalha, às vezes a gente tenta mudar um pouco, trazer texto para discussão sobre a formação de professores, educação do campo até outros temas vêm para nossas discussões [...]Alguns temas são bem interessantes, eu sempre gostei de ler mais sobre educação do campo, mais sobre a pesquisa de campo, sobre metodologia, que a gente estuda isso, e foi muito importante eu ter estudado para compreender mais. Logo no começo, quando começamos a estudar sobre dialética, eu pensava que nunca ia entender, mas aos poucos melhorou mais a compreensão sobre as temáticas. (Carla, mestranda, entrevista, 05 mai. 2017)
No primeiro semestre de 2016, mantiveram-se as discussões dos textos, todavia com um diferencial: a centralidade na definição dos temas para os debates foi deslocada da coordenadora para os docentes da escola, e, desse modo, o papel dos professores escolares foi determinante. A escola estava envolvida com a implantação da política de educação integral, e uma das questões que mais instigava os professores era como desenvolver atividades investigativas com seus alunos. A seleção dos textos privilegiou temáticas de interesse da escola, pois os docentes estavam preocupados em ampliar a compreensão sobre o professor-pesquisador e sobre o alcance desse tipo de postura nas práticas que poderiam implantar na sala de aula.
Desse modo, indagavam-se sobre como poderiam estimular um olhar crítico e investigativo de seus alunos sobre a realidade, se eles próprios possuíam dificuldade para fazê-lo. Tentou-se, assim, definir um tema central que pudesse contemplar a demanda dos professores. “O papel da pesquisa na formação de professores” pareceu adequado para o que seria discutido naquele semestre. Abordaram-se, então, as seguintes questões: pesquisa em Educação; desafios e perspectivas da pesquisa em Educação; pesquisa-ação crítico-colaborativa; conexões entre formação na universidade e experiências de campo. Nesse mesmo semestre houve ainda a possibilidade de uma leitura mais acadêmica, no que se refere à socialização das pesquisas em desenvolvimento. Os participantes do Formazon foram instados a olhar os encontros de socialização de pesquisas, buscando identificar os elementos básicos que o autor utilizou para abordar seu objeto. Desse modo, pedia-se que identificassem a questão de pesquisa, os objetivos, a abordagem metodológica, o recorte teórico e os resultados apresentados. Foram socializados dois estudos de mestrado: um deles tratou da educação integral e o outro, de uma política de formação para educadores do campo; e um estudo de doutorado que discutiu a formação continuada na relação universidade-escola. Houve ainda a participação em duas qualificações de mestrado para a qual todos foram convidados.
O segundo semestre de 2016 deu sequência ao tema, e foram discutidos: considerações acerca do professor pesquisador; conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo; perspectivas do trabalho docente. Foi retomada a discussão de um texto que já havia sido discutido no primeiro semestre, mas que sentiram necessidade de rever: o mesmo tratava das conexões entre a formação na universidade e as experiências de campo. Dois encontros previstos não puderam ser realizados, todavia houve um encontro, não programado inicialmente, de integração entre o Formazon e o grupo de pesquisa da escola, no qual se fez a avaliação das atividades desenvolvidas no ano. O semestre encerrou-se com a participação dos membros em uma defesa de mestrado.
A organização dos encontros partia de uma definição temática que pressupunha um assunto de interesse dos participantes, e os textos davam o start para as discussões. Embora inicialmente os textos ocupassem, nos encontros, um lugar de centralidade, esta foi se deslocando de tal forma, a ponto de não se perceber se o que estava em discussão eram os textos ou as práticas. O excerto a seguir é ilustrativo desta percepção.
Maria: Vamos voltar para o texto, pessoal, tá? Nesses itens aí da...
Elisa: A gente não saiu do texto, a gente só foi...
Maria: Só foi ali na prática, né?! Faz sentido, uma correlação, né?
(Áudio de reunião, 14 out. 2015)
Na análise dos áudios das reuniões foi possível perceber o movimento de deslocamento dos textos acadêmicos durante os encontros: tendo sempre ocupado um lugar central, os textos passaram a ser tomados, pelos integrantes do Formazon, como mediação ou fios condutores das discussões e das reflexões sobre as práticas, o que muitas vezes é desconsiderado em um ambiente convencional de formação, como nos cursos de licenciatura.
Eu acho que as falas perpassaram pelos pontos mais significativos do texto. Eu queria assim, pedir, solicitar que aqueles que não leram o texto, tá, Carla? Por favor, tá?! Porque assim, sempre nessas dinâmicas do grupo é fazer relação com leituras anteriores. De certo modo as leituras são ligadas, né? O texto, de alguma maneira, tem relação com as pesquisas que estão sendo feitas, com as nossas vivências e também com as vivências anteriores, tá? É importante, você vai aprender alguma coisa independente se você leu ou não. Mas é importante, para quem não leu, que você tome aquela leitura, porque aquela leitura ela pode ser retomada em alguma discussão posterior. E outra coisa: às vezes, quando a gente menos espera, aquela leitura pode servir para outra coisa também, né? Para uma produção sua, para um texto que você vai fazer. Aquela leitura em algum momento vai lhe servir. (Maria, reunião, 17 maio 2016)
Houve ainda momentos em que a discussão se deu de maneira leve e fluída, sem referência direta aos textos teóricos em análise, e outros em que algum membro resgatou o texto para dar suporte às questões da prática que estavam sendo discutidas. É possível afirmar ainda que a origem, a formação do interlocutor, seu repertório de conhecimentos e objetos de estudos definiam os posicionamentos adotados por ele nas discussões do grupo. Assim, a professora Maria, ao fazer suas análises, referenciava os temas em debate com o ensino de Física e articulava-os com a relação universidade-escola; a professora Elisa resgatava sempre as interfaces dos temas abordados com a formação de professores; a professora Ana chamou atenção, em várias de suas falas, à importância da constituição e da valorização da identidade profissional do professor, em especial do docente que atua na escola do campo; a professora Mônica relacionava os debates com a disciplina de Matemática que ministrava e com os desafios que enfrentava na condução de um programa de ensino na escola.
Os participantes que possuíam maior vinculação com a universidade se reportavam mais aos textos do que às práticas. Isso ficou evidente nos posicionamentos dos estudantes de Pedagogia e dos mestrandos. Mas, mesmo assim, é possível afirmar que os referenciais teóricos discutidos foram organizados de modo a provocar uma reflexão sobre a prática do professor, o que não era totalmente desconhecido pelos estudantes, já que haviam passado por cursos de formação, feito estágio supervisionado e pesquisado a formação docente.
A participação dos professores da escola auxiliou neste processo de aproximação com a prática escolar. Ficou evidente no grupo que quem vivencia a realidade da escola tem uma visão diferente daquele que está fora dela.
A gente está tendo umas experiências lá com a Maria e a gente percebe o comportamento de alguns professores, mas, se você for ver, por não ter a oportunidade, talvez, que a gente tenha ou por não se dar essa oportunidade, acabam se fechando num determinado mundo e realmente a educação passa a não ter sentido para aquele aluno. Não valoriza aquelas necessidades inovadoras, que precisam acontecer para que o aprendizado se torne significativo. E hoje, quando a gente começou esse trabalho com a Maria, eu confesso que me fez refletir muita coisa na minha ação pedagógica. Que antes eu me preocupava muito comigo, professora, em dar aula e minha aula do dia, e hoje eu já tenho um olhar reflexivo sobre o que que o meu aluno ou o que que o meu modo de ensinar está sendo significativo na vida dele. Hoje ele já me leva a tomar essa preocupação assim, esse cuidado, essa experiência de você cuidar do teu aluno com aquilo que ele traz de vivência, que ele traz como coisas que ele valorize, né?, e ali moldando, ali mostrando outro caminho, fazendo ele refletir de outras formas, de se observar, de se atentar para determinadas necessidades para a formação integral daquele aluno. (Carol, reunião, 27 set. 2016)
A manifestação da professora Carol enriquece a participação dos professores na comunidade e auxilia na construção de uma outra visão da escola, uma vez que acrescenta diferentes perspectivas para problemáticas apontadas no contexto das práticas. As experiências compartilhadas pelos professores das escolas ampliam os horizontes dos estudantes de graduação e de pós-graduação que ainda não viveram o espaço da escola como docentes e daqueles afastados temporariamente da escola, como Débora.
Eu vim do Formazon. Eu estava distante, como a Carla diz, mas, assim, essa mesma questão que a professora falou. Eu me sentia muito angustiada de estar na escola e de não estar nesse meio acadêmico; e aí, quando a professora Elisa me chamou e foi muito importante para mim a discussão de refletir sobre a própria prática, né? Enquanto eu estava na escola eu não estava refletindo sobre essa minha ação profissional, né?, em como lidar com os professores e quanto mais a gente vai nas discussões e vai vendo e discutindo, mesmo que em algumas vezes a gente fique só escutando, eu fico pensando “meu Deus e os meus professores lá na escola, como é que estão?”. As angústias que eu sinto, imagina o professor na sala de aula? E eu tenho essa vontade assim de me qualificar justamente para fazer isso, professora. Voltar para educação básica e dar esse feedback para os professores. Não aprender só para mim, mas principalmente por eles, né? Porque eu sinto essa necessidade, essa ausência dentro da própria universidade, da universidade dentro da escola ainda é um pouco distante. Eu me sinto mais renovada, porque é possível acontecer essa relação da universidade com a escola. (Débora, mestranda, reunião, 20 dez. 2016)
Nas discussões promovidas pelo grupo Débora encontrou identificação com problemáticas que vivenciou, mas também foi capaz de se projetar para o lugar dos professores que ficaram na escola e não tiveram oportunidade de participar de momentos de formação como o que ela estava vivenciando. Demonstrou ainda compromisso e preocupação em compartilhar com os professores da escola os saberes que estava adquirindo na universidade novamente.
O que aqui expusemos revela que o Formazon apresenta características de uma comunidade acadêmica colaborativa (FIORENTINI, 2013), que tem se transformado ao longo do tempo, em função das necessidades dos seus membros e da aproximação com a escola de educação básica.
Parece que, mesmo em grupos colaborativos, há uma crença implícita, e algumas vezes oculta, de que é a universidade que colabora com a escola. Todavia, na experiência do Formazon, em vários momentos, os excedentes de visão (BAKHTIN, 2011) dos professores da escola sobre a complexidade das práticas escolares e sobre as condições do trabalho docente proporcionaram aprendizagens e conhecimentos aos professores da universidade e aos estudantes de graduação e de pós-graduação. Ou seja, em um grupo colaborativo heterogêneo e aberto a participantes oriundos da escola e da universidade, todos aprendem e ensinam sobre o professor e sobre as práticas educativas, sobretudo quando compartilham experiências e saberes provenientes de seu mundo de referência.
Percebemos, por exemplo, que, pela perspectiva privilegiada assumida pelos professores de estreita vinculação com a prática, as interações estabelecidas no grupo enriqueceram as discussões e favoreceram uma análise mais completa sobre os problemas em discussão.
Lara: ...nos PCN, né?, e aqui na sala de aula a gente teve o laboratório e tentou fazer isso, a interdisciplinaridade, e a gente até conseguiu, mas uma coisa é fazer aqui na sala de aula; outra coisa é experimentar lá fora (na escola). Essa oportunidade eu não tive ainda, eu não sei como é que é, mas aqui deu tudo certo, né?
Mônica: Lara, fazer interdisciplinaridade numa escola atual tem vários problemas. O primeiro é você conhecer como fazer. A segunda é você ter estrutura para fazer. Porque, para você fazer uma prática interdisciplinar, eu estou analisando aqui a que eu vou fazer hoje à tarde lá na escola, eu vou ligar os dois conteúdos – física e matemática –, mas o que eu entendo, para ser mais eficaz na prática, é ter eu, professora de matemática, e a professora de física junto comigo. No processo de planejamento, no processo inclusive de estada com os alunos para fazer esse link para fazer eles perceberem estas conexões. Mas eu tenho essa estruturação de horário na escola? (Reunião, 14 out. 2015)
O que a professora Mônica conseguia perceber não estava claro na visão de Lara, e sua intervenção auxiliou a estudante de graduação a compreender melhor uma futura atuação profissional e delinear o contexto da interdisciplinaridade na escola pública, distanciada do espaço ideal de formação propiciado pela universidade.
O diálogo entre Mônica e Lara nos ajuda a demonstrar que a constituição de uma comunidade colaborativa não se dá em uma via de mão única. Foi possível perceber no Formazon que, para existir uma comunidade colaborativa, os membros precisam desenvolver um diálogo aberto e franco, estar abertos às contribuições e às problematizações do outro a partir de seu mundo, negociar significados e compreensões por meio de diferentes perspectivas e realidades, valorizar as diferentes opiniões e perceber que as contribuições do outro podem auxiliar na construção e no desenvolvimento de práticas diferenciadas e potencializadoras de mudanças do seu fazer pedagógico, tanto na escola como na universidade.
De fato, nas análises dos áudios identificamos indícios de mudança na postura da comunidade, sobretudo no que se refere ao protagonismo dos professores da escola nas discussões estabelecidas. Foi possível perceber discussões e análises das políticas de reforma do ensino médio e da implantação de um programa de educação integral na escola. Os professores teceram ainda comentários críticos consistentes sobre a formação de professores na universidade, em especial no que se refere ao papel que a escola desempenha no acompanhamento dos futuros professores, quando em situação de estágio. Tais evidências reforçam o que afirmam Cochran-Smith e Lytle (1999), ao se referirem ao papel central e crítico dos professores na geração de novos conhecimentos sobre a prática. Para as autoras, os professores fazem conexões e problematizações amplas e críticas entre seu trabalho docente nas escolas e o que dizem as políticas educativas e/ou as pesquisas e as teorias produzidas pelas comunidades acadêmicas.
Os aspectos até aqui analisados acerca da constituição e da transformação do grupo Formazon nos ajudaram a evidenciar um movimento dialético de construção coletiva de uma comunidade, o que levou a uma mudança nas práticas formativas ali desenvolvidas. Em síntese, podemos dizer que, ao longo desse processo dialético, a comunidade Formazon transmutou-se, de uma comunidade acadêmica endógena e às vezes colonizadora das práticas escolares, em uma comunidade acadêmica colaborativa entre universidade e escola, buscando construir, via negociação conjunta, a compreensão e a transformação possível das práticas educativas da escola e da universidade, tendo a reflexão e a pesquisa da prática e as teorias educativas não como princípio ou fim, mas como mediação fundamental e indispensável para esse desenvolvimento.
A “nova dinâmica” de estudo e trabalho da comunidade Formazon está ainda em processo de construção, e seus resultados necessitam passar por um processo maior de sistematização. Entretanto, já é possível perceber que o movimento de constituição do Formazon confirma o que Wenger (2013) pontua, quando descreve e discute as implicações da participação em uma comunidade, tanto para a aprendizagem e o desenvolvimento dos indivíduos que dela participam, como para as comunidades e as organizações de origem dos participantes.
A comunidade Formazon atualmente possibilita integrar profissionais de diferentes áreas de atuação; promover uma colaboração contínua entre os membros da comunidade; viabilizar um trabalho que é, ao mesmo tempo, individual e coletivo, pois todos participam ativamente das atividades do grupo; favorecer a formação contínua dos integrantes; promover reflexões e problematizações sobre as práticas, as pesquisas e os saberes dos participantes, trazendo novas compreensões sobre os múltiplos objetos de estudo dos participantes; criar novos espaços para uma relação democrática e horizontal entre os diferentes participantes e entre suas comunidades de origem (universidade e escola).
Este relato possibilita perceber que os diferentes níveis de formação e de experiência profissional não se constituem em empecilho para a organização e o desenvolvimento do trabalho na comunidade. Ao contrário, a dinâmica de questionar, estudar e pesquisar juntos as práticas educativas favorece a interação e a negociação conjunta entre experientes e principiantes, cabendo a cada um expressar seu ponto de vista e suas significações e colocar em destaque seus excedentes de visão. Isso se tornou evidente, no caso do Formazon, por reunir, em uma comunidade heterogênea, professores escolares, professores universitários e futuros professores e mestrandos de diferentes áreas de conhecimento.
Para finalizar, podemos advogar, em face dos resultados desse estudo, a ampliação de experiências de formação e de pesquisa, como a que narramos e discutimos neste artigo, que tomem por base a participação de professores da escola, professores da universidade e estudantes de graduação e pós-graduação, em comunidades colaborativas e/ou investigativas que têm como objeto de reflexão e estudo suas práticas educativas. Entretanto, esse tipo de prática formativa em comunidades locais de estudo e investigação demanda tempo, liderança compartilhada, compromisso mútuo e políticas públicas que reconheçam e valorizem essas experiências como espaço rico e sustentável de formação e aprendizagem profissional contínuas, tanto para professores da escola básica como para formadores e acadêmicos da universidade.