Resenha de “Filosofia no Brasil: legados e perspectivasensaios metafilosóficos”

Review of "Philosophy in Brazil: legacies and perspectives - metaphilosophical essays"

Breno Augusto da Costa
Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
Adriano Eurípedes Medeiros Martins
Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Brasil

Resenha de “Filosofia no Brasil: legados e perspectivasensaios metafilosóficos”

Educação, vol. 43, núm. 2, pp. 347-350, 2018

Universidade Federal de Santa Maria

DOMINGUES Ivan. DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas- ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2017.. 2017. São Paulo. Editora UNESP. 561pp.. 978-8539306671

Recepção: 28 Outubro 2017

Aprovação: 20 Março 2018

Resenha de “Filosofia no Brasil: legados e perspectivas-ensaios metafilosóficos”

Ivan Domingues é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Seu mais recente livro, “Filosofia no Brasil: legados e perspectivas” (2017) foi publicado pela Editora UNESP e se debruça sobre uma questão enganadoramente simples: existiria uma filosofia brasileira? Ao longo da obra aborda-se a problemática e suas diferentes nuanças, examinando-se a produção filosófica brasileira desde o período colonial até os ‘desenvolvimentos’ alcançados no período pós-1964. A obra descerra realizando uma sondagem do futuro, em que Domingues aponta um ‘inventário dos possíveis’, no qual traça as possíveis novas experiências filosóficas do Brasil.

O texto foi concebido por Ivan Domingues como a continuidade de seu livro “O Continente e a Ilha” (2009), em que foi dispensado apenas um parágrafo das suas reflexões sobre o Brasil. Por que desta escassez? Domingues responde trazendo à luz a obra ora resenhada, dedicando o livro inteiramente ao Brasil. O leitor, porém, é advertido que a obra nada tem de inédito em relação ao que já foi tratado antes por outros pensadores, a contribuição do livro é na verdade trazer “um novo arranjo conceitual ou uma nova dialética de ideias” (p. 13).

”Filosofia no Brasil” foi disposto em seis ensaios filosóficos organizados pelo autor de forma que cada um constitui-se em um passo argumentativo. O primeiro ensaio delineia a questão central do livro, fundamenta seu método de tratamento e justifica o recorte temporal do trabalho em questão. Domingues se empenha em trabalhar sobre a problemática da filosofia no/do Brasil, elucidando a diferença entre falar de uma filosofia brasileira e uma filosofia feita no Brasil ou por filósofos brasileiros. Apesar disso, relativiza a importância de uma caraterização disjuntiva (ou filosofia brasileira ou filosofia do Brasil) e reconhece a diferenciação entre a filosofia do passado colonial e dos tempos recentes, empregando ambas as expressões. Quanto à fundamentação metodológica, o autor lança mão de uma concepção inspirada em Antonio Candido, que diferencia um sistema de obras que se autorreferenciam e as manifestações soltas, bem como trabalha com as noções de “autor, obra e público” para avaliar a existência, ou não, de uma filosofia brasileira. Por outro lado, também lança mão da postulação de déficits e defasagens, elaborada Cruz Costa, padre Henrique Lima Vaz e Leonel Franca, para trabalhar com suas hipóteses e desenvolver suas argumentações.

Domingues aborda a filosofia do Brasil traçando sua investigação ao período colonial, propondo que os outros cinco ensaios do livro correspondam aos demais cinco períodos históricos com seus respectivos tipos ou modelos intelectuais: no período colonial havia o clérigo, intelectual orgânico tipificado pelo jesuíta; no período posterior à expulsão dos jesuítas até o final da Colônia havia o ‘intelectual diletante estrangeirado’; no período pós-colonial vigorava o intelectual público engajado nas causas nacionais; a partir dos anos 30 do século passado, quando se iniciou uma nova etapa do ensino superior de filosofia no Brasil, contexto marcado pela forte industrialização e a urbanização, marcava presença o scholar, o erudito; e, finalmente, a partir da década de 60, notadamente 1968, encontramos o intelectual cosmopolita globalizado, que tem os pés fincados em um local, mas o pensamento em outro. Entretanto se engana quem concebe que entre estes tipos de pensadores e períodos históricos há cisões e descontinuidades definitivas. É correto dizer que há sim continuidades que por vezes estabelecem ligações nos “vazios entre as extremidades”. Afirma o autor que: “em todos esses casos e essas situações, não se está diante de essências ou de substâncias, mas de tipos e de gradientes, cristalizados em comportamentos e em diferentes ethei da atividade intelectual(...)” (p. 42).

O segundo ensaio aborda o passado colonial do Brasil, examinando a sociedade colonial, as influências lusitanas e a importância dos jesuítas no desenvolvimento da educação e da filosofia neste período. Para o exame da sociedade, especialmente para fazer a ponte entre cultura e a mentalidade colonial com sua respectiva filosofia, Domingues elaborou seis argumentos fundamentais para toda a obra: argumentos históricos, ligados à história do ensino na Colônia; argumentos antropológicos, ligados à contradição entre a cultura do colonizador e a dos nativos; argumentos demográficos, ligados aos censos populacionais e à densidade das atividades intelectuais; argumentos políticos-geográficos, que examinam a questão da delimitação geográfica e política da nação; argumentos linguísticos, ligados à questão da língua falada na Colônia (enquanto o latim era utilizado na produção intelectual como língua franca, a maioria da população falava nhangatu, com poucos fidalgos falando português); e os argumentos metafilosóficos, consistindo na pergunta pela filosofia da filosofia colonial.

Os jesuítas, dispondo da hegemonia da educação na Colônia, difundiram, através da Ratio Studiorum, a segunda escolástica, que era bastante influenciada por Aristóteles e São Tomás de Aquino. Portanto Domingues conclui “nem com muito favor seria possível falar de uma filosofia colonial brasileira, e menos de uma filosofia original ou genuinamente brasileira” (p. 179), acompanhando as reflexões de padre Vaz..

O terceiro ensaio trata do período pós-colonial, abordando desde os antecedentes da independência, perpassando pelo período imperial e indo até a república velha. Ivan Domingues demonstra familiaridade com o pensamento de Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda para desenvolver reflexões que apontam algumas alterações nos argumentos citados no segundo passo, como os argumentos histórico, linguístico, demográfico e político - que foram proscritos - e os argumentos de déficit cultural e institucional aliado ao argumento histórico-sociológico da dependência colonial - os quais devem ser modificados. Domingues aponta que a passagem da sociedade colonial à pós-colonial engendra a transição do clericalismo jesuíta fundado na segunda escolástica, e completamente absorvido pelos ideais e cultura lusitana, para o bacharelismo laico, muitas vezes vinculado ao direito, com matrizes francesa, inglesa e alemã. Desse período é citado o trabalho de vários pensadores, como Monte Alverne, Sylvio Romero, Tobias Barreto, Farias Brito e Joaquim Nabuco, tomando o último como modelo para o pensador deste período. Segundo o autor, o filósofo do período é o bacharel diletante e estrangeirado, tendo como traços o individualismo, o transoceanismo, o bacharelismo, o bovarismo, o filoneísmo e o dualismo (p. 322).

O quarto ensaio trata dos anos 1930-1960, período iniciado com a revolução de 1930 e a ruptura com a sociedade pós-colonial agrário-exportadora rumo à sociedade urbano-industrial. Domingues aponta que ocorreu no país um processo nacional-desenvolvimentista, que sofreu diversas inflexões e reacomodações para vigorar até os dias de hoje. Este período contempla a instalação do aparato institucional da filosofia, ou seja, universidades, centros difusores de filosofia, revistas acadêmicas entre outros, permitindo as bases institucionais para o desenvolvimento filosófico, entretanto, baseando-se no método de Antonio Candido, o autor diz “a instauração do sistema de obras filosóficas só ocorrendo depois dos anos 1960-1970” (p. 386). Como figuras do período, Domingues cita o caso do scholar especializado, vinculado especialmente à SP e suas influências francesas; e o humanista intelectual público, vinculado especialmente ao Rio de Janeiro e ao ISEB. Alertando o caráter abstrato e tipo ideal dos modelos (p. 418) são citados seis traços que podem ser atribuídos a esse tipo de intelectual: o engajamento nas causas sociais; senso de responsabilidade por suas ações; renúncia pessoal em prol do interesse público; perspectiva universal atrelada ao particular; sentimento de desterro; e distanciamento reflexivo (p. 420). Como modelo é citado o filósofo Álvaro Vieira Pinto, que teve, porém, sua vida pública cassada pelo regime militar, bem como uma recepção bastante negativa de seus pares. Sobre tal recepção diríamos que talvez ela pode ser considerada injusta e merece ser revista, contemplando a publicação das obras póstumas do autor; “O Conceito de Tecnologia” de 2005 e “A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos” de 2008, ambas lançadas pela editora Contraponto.

No quinto ensaio é examinado os últimos 50 anos da filosofia no Brasil; período em que a aparelhagem institucional filosófica é consolidada com o fortalecimento da pós-graduação a partir do final dos anos 60. Neste ensaio são examinados os dados estatísticos dos três níveis de ensino do período estudado, a hipótese do déficit institucional elaborada por Vaz e Franca, o papel de alguns órgãos como a ANPOF, o CLE e alguns esquemas de distribuição da filosofia no Brasil. Domingues toma como referência o esquema de Vaz para elaborar o seu, que é denominado de “matrizes de pensamento” (p. 475 e segs.), cuja proposta engloba seis matrizes: epistemológica, metafísica, histórico-filosófica, exegética, ético-política e cultural. O autor encerra o ensaio trabalhando em cima do ethos merthoniano da ciência (p. 495) e tratando do modelo do intelectual público (p. 497).

No último passo do livro Domingues examina as conquistas e perspectivas da filosofia brasileira contemporânea, dedicando substanciosas anotações em torno da distinção entre a técnica da filosofia anglo-saxônica e da continental, bem como a correspondência, ou não, entre filosofia e história da filosofia, o que, de certa forma, concebe o autor, vai marcar a filosofia brasileira recente. É destacado o papel do Sistema Nacional de Pós-Graduação como fator importante na realização do tripé autor -obra-público de Antonio Candido no contexto da filosofia. O livro traz em seguida uma seção que aborda o paradigma da pós-formação e o perfil do intelectual público globalizado. O autor finaliza a obra afirmando que “se não tivemos e não vamos ter uma filosofia brasileira internacionalizada ou reconhecida mundialmente, pouco importa, em se tratando de coletividades, pois poderemos muito bem ter um filósofo cosmopolita globalizado. Ou mesmo cosmopolita simplesmente, o que decerto – ou um ou outro – é bem mais fácil, de saída já é de boa conta e poderá satisfazer aos egos e às fantasias: se já o temos ou tivemos em literatura e artes, por que não na filosofia e com uma mente privilegiada nascida nestes cantos?” (p. 549).

Engana-se quem procura no livro de Ivan Domingues uma doxografia sumarizada de uma lista exaustiva dos filósofos brasileiros. Esta obra é de fundamental importância para a compreensão das raízes da filosofia no Brasil, bem como as influências econômicas e sociais que se desdobram na produção cultural e consequentemente filosófica. Especialmente os pensadores das ciências humanas se beneficiarão da fecundidade das reflexões desenvolvidas acerca das raízes da filosofia e do pensamento em solo brasileiro, além de suas instigantes considerações metafilosóficas que contribuem sobremaneira para pensar o ensino da filosofia no Brasil.

Referências

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas- ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

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