RESUMO: A Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), orientada pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA), é obrigatória para projetos e a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), voltada a apoiar o planejamento, não é mandatória no país. Para estudar o tiering entre níveis decisórios no planejamento de transportes, selecionou-se como objeto a AAE do Programa Rodoanel e os subsequentes EIA dos trechos Sul, Norte e Leste. O objetivo é analisar a avaliação estratégica do Programa Rodoanel confrontada com os impactos ambientais dos EIA para caracterizar a prática de tiering no planejamento de transportes. Os resultados da pesquisa demonstraram evidências de aspectos do tiering no caso considerado, como o foco da AAE na abordagem dos temas ambientais na escala de planejamento, a relação explícita entre as categorias de impactos nos EIA e os efeitos do Rodoanel previstos na AAE. Entretanto, a prática de tiering no planejamento de transportes paulista ainda é limitada e tem muito a avançar.
Palavras chave: Avaliação Ambiental EstratégicaAvaliação Ambiental Estratégica,Avaliação de Impacto AmbientalAvaliação de Impacto Ambiental,planejamento de transportesplanejamento de transportes,hierarquizaçãohierarquização.
ABSTRACT: Environmental Impact Assessment (EIA), guided by Environmental Impact Statement (EIS) is mandatory for Brazilian projects, whereas the Strategic Environmental Assessment (SEA), aimed at supporting planning, is not mandatory in Brazil. In order to study tiering among decision-making levels in transportation planning, we selected the SEA report from the Rodoanel Program and the subsequent EIS of the South, North and East Sections. The objective is to analyze the strategic assessment of the Rodoanel Program in the face of the environmental impacts presented by EISs, in order to characterize tiering within transportation planning. The results show that some aspects of tiering were present – such as the focus of SEA in addressing environmental issues during the planning stage, the explicit relationship among the impact categories in EISs, and the effects of Rodoanel as foreseen by the SEA. However, the practice of tiering in the transportation planning of São Paulo is still limited and can be expanded.
Keywords: Strategic Environmental Assessment, Environmental Impact Assessment, transportation planning, tiering.
Artigos
AVALIAÇÃO DE IMPACTO AMBIENTAL E AVALIAÇÃO AMBIENTAL ESTRATÉGICA: HÁ EVIDÊNCIAS DE TIERING NO PLANEJAMENTO DE TRANSPORTES PAULISTA?
ASSESSMENT OF ENVIRONMENTAL IMPACT AND STRATEGIC ENVIRONMENTAL ASSESSMENT: IS THERE ANY EVIDENCE OF TIERING IN THE TRANSPORTATION PLANNING OF SÃO PAULO?
Recepção: 18 Fevereiro 2016
Aprovação: 27 Setembro 2017
Dos instrumentos de Avaliação de Impacto (AI) aplicados ao planejamento, a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) é o mais utilizado no mundo (MORGAN, 2012). Orientando a tomada de decisão com inserção da variável ambiental em projetos de engenharia, a AIA é subsidiada pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA). A Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), por sua vez, tem uso mais restrito internacionalmente (TETLOW; HANUSCH, 2012) se comparada à AIA, e está direcionada a apoiar o planejamento nos níveis decisórios que antecedem o projeto, ou seja, políticas, planos e programas (PPP).
No Brasil, a AIA é obrigatória desde a promulgação da Política Nacional do Meio Ambiente em 1981 (Lei Federal nº 6.938/1981), sendo amplamente utilizada a partir da implementação da Resolução Conama nº 001/1986, que disciplina a aplicação da AIA e o conteúdo do EIA, entre outras orientações. A AAE não é mandatória no país e a experiência com o instrumento, segundo Margato e Sánchez (2014), Montaño et al. (2014) e Rizzo, Gallardo e Moretto (2017), ainda é reduzida.
Dentre os vários benefícios que enseja o planejamento subsidiado pelos instrumentos de AI, como AAE e AIA, encontra-se o que é denominado pela literatura internacional como tiering (ARTS; TOMLINSN; VOOGD, 2011). Segundo Arts, Tomlinsn e Voogd (2011, p. 417), tiering caracteriza-se como “a transferência deliberada e organizada de informações e questões de um nível de planejamento para outro, que estão sendo suportados por Avaliações de Impacto”. Ainda segundo os mesmos autores, o termo tiering significa a preparação de uma sequência de avaliações ambientais em diferentes níveis de planejamento, que devem ser vinculadas e exercer influência mútua umas sobre as outras.
Como esse termo não possui uma tradução amplamente reconhecida para a língua portuguesa – podendo ser descrito como uma hierarquização na tomada de decisão entre os diferentes níveis de planejamento, recomendando a preferência do topo para a base decisória ou um encadeamento dos níveis estratégicos –, adota-se a terminologia original na língua inglesa.
O tiering no planejamento do setor de transportes do estado de São Paulo foi avaliado por Sánchez e Silva-Sánchez (2008) a partir da AAE do Programa Rodoanel Metropolitano Mário Covas, destacando as limitações na discussão de questões estratégicas como a principal falha dessa AAE. Os autores enfatizam que “uma cuidadosa delimitação do âmbito de questões estratégicas é mais do que necessária” para proporcionar tiering vertical – do topo para a base da cadeia de decisões – no planejamento de transportes orientado por instrumentos de AI (SÁNCHEZ; SILVA-SÁNCHEZ, 2008, p. 522).
Este trabalho tem como objeto de estudo, além da própria AAE do Programa Rodoanel, os EIA dos trechos Sul, Norte e Leste subsequentes e inseridos neste Programa. A análise de estudos de AI – AAE e EIA – associada ao mesmo planejamento visa corroborar ou refutar o pressuposto teórico estabelecido por Sánchez e Silva-Sánchez (2008) acerca da limitação do tiering no planejamento do Programa Rodoanel.
Em termos de tiering entre os níveis de planejamento da AAE de PPP e a AIA de projetos, uma das vantagens está em reduzir limitações do escopo do EIA que poderiam remeter, por exemplo, a uma avaliação mais dirigida dos tipos de impactos ambientais causados pelo empreendimento.
O objetivo geral deste artigo é analisar a avaliação estratégica do Programa Rodoanel apresentada na AAE, confrontando-a com a avaliação dos impactos ambientais dos EIA dos trechos Sul, Norte Leste desse mesmo programa para caracterizar a prática de tiering no planejamento do setor de transportes paulista. Assim, pretende-se contribuir para a resposta de uma das questões postuladas por Arts, Tomlinsn e Voogd (2011) acerca do potencial do tiering em AI: como os projetos se relacionam ao planejamento precedente? E no caso em estudo: como os projetos que compõem o Rodoanel relacionam-se ao Programa Rodoanel, a partir da análise dos impactos ambientais no encadeamento de diferentes níveis do planejamento de transportes?
A revisão bibliográfica abrange os principais construtos da pesquisa, a saber: Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) e tiering no planejamento com o uso dos instrumentos de Avaliação de Impacto (AI).
A AAE é discutida enquanto instrumento desde os anos 1990, sendo usada hoje em mais de 60 países com o propósito de auxiliar na confecção e análise ambiental de planos e programas diversos (TETLOW; HANUSCH, 2012). O principal marco regulatório internacional da AAE é a Diretiva Europeia de 2004. Para João e McLauchlan (2011), o bloco de países europeus foi pioneiro em abraçar o compromisso de avaliação dos impactos em nível decisório e estratégico.
De acordo com Pellin et al. (2011), a AAE possui três significados básicos: 1) é um procedimento sistemático que oferece suporte ao processo decisório, contribuindo para a preservação do meio ambiente e a obtenção da sustentabilidade no desenvolvimento de políticas, planos e programas (PPP); 2) é um instrumento voltado para a constatação de evidências, estabelecendo rigor científico para PPP a partir do uso de inúmeras técnicas e métodos de avaliação; 3) é um instrumento que incentiva a obtenção de resultados sustentáveis e a boa governança, disponibilizando alternativas sistemáticas em diferentes âmbitos e níveis de planejamento.
A AAE vem sendo conduzida como apoio ao processo estratégico de tomada de decisão (GONZÁLEZ et al., 2014), no qual permite que se explorem os resultados desejáveis no planejamento, definindo e avaliando alternativas para alcançá-los (GUNN; NOBLE, 2015). A prática e a agenda de pesquisa nos países com uso consolidado de AAE têm aportado várias sugestões para melhoria do instrumento. De acordo com Noble e Nwanekezie (2017, p. 165), “o avanço da eficácia da AAE requer uma agenda de pesquisa contínua focada na melhoria da abordagem tradicional da AAE, como uma ferramenta para avaliar os impactos das políticas, planos e programas (PPPs)”. Para Sánchez e Croal (2012), deve-se fomentar a expansão do uso da AAE em países que ainda não conseguiram vivenciar sua contribuição para o planejamento, como inclusive é o contexto do Brasil.
No Brasil, a AAE ainda tem uso restrito (GALLARDO et al., 2016b; SÁNCHEZ; SILVA-SÁNCHEZ, 2008) e, de acordo com Montaño et al. (2014), são conhecidos apenas cerca de 40 casos de aplicação brasileiros. Entretanto, vêm sendo desenvolvidas pesquisas que visam contribuir para ampliar e qualificar a prática local com AAE. Dentre essas, encontra-se a pesquisa de Margato e Sánchez (2014). Os autores revisaram a qualidade dos estudos de AAE realizados no país e, embora tenham verificado um patamar relativamente alto de qualidade técnica e eficácia processual, a eficácia substantiva, ou seja, sobre a tomada de decisão, efetivamente demonstrou-se de nula a limitada. Montaño et al. (2014) também verificaram boas práticas no uso local do instrumento, mas reforçaram a necessidade de aprimoramentos.
Rizzo, Gallardo e Moretto (2017) auferiram um desempenho mediano quanto a critérios internacionais de boa qualidade do instrumento, ao avaliar casos específicos de AAE no planejamento de transportes brasileiro. Os autores destacaram como limitação relevante a verificação dos resultados do instrumento na tomada de decisão e sua consequente influência nos futuros projetos de engenharia. Gallardo et al. (2016b) estabeleceram um roteiro de AAE para subsidiar o planejamento da expansão de bioenergia no país. Lemos, Fischer e Souza (2012) realizaram uma análise da qualidade dos estudos de AAE feitos para o planejamento do turismo em território nacional. Pizella e Souza (2013) discutiram as contribuições da AAE para os planos de bacias hidrográficas no Brasil. Esteves e Souza (2014) avaliaram o uso da AAE na confecção de planos de manejo como estratégia para proteção da biodiversidade. Santos e Souza (2011) enfatizaram o instrumento em apoio à tomada de decisão no planejamento de energia.
Segundo Santos e Souza (2011), a AAE antecipa efeitos adversos e proporciona maiores ganhos econômicos e sociais, sendo recomendada principalmente para investimentos em infraestrutura, como nos setores de energia e transporte, e atividades produtivas como agricultura, mineração e indústria. Portanto, é uma ferramenta eficiente para um desenvolvimento econômico que seja também sustentável.
Sánchez (2017), ao refletir sobre as razões que impedem o avanço das AAE no Brasil, reconhece sua potencialidade na articulação vertical entre as PPP e os projetos de engenharia, podendo inclusive facilitar as iniciativas individuais de AIA e, consequentemente, a obtenção de licenças ambientais.
A AIA, segundo Morgan (2012), é reconhecida como o instrumento de planejamento e gestão ambiental mais empregado no mundo, visto que a quase totalidade dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) a utilizam na tomada de decisão em nível de projeto.
Promulgada em 1969 nos EUA, por meio da National Environmental Policy Act (NEPA), a AIA foi introduzida formalmente no território brasileiro com a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente de 1981 (Lei Federal nº 6938/81), tendo sido reforçada pela Constituição Federal de 1988 e operacionalizada por meio da Resolução Conama no 001/1986 (SÁNCHEZ, 2013). Segundo Sánchez (2013), a prática de AIA evoluiu muito nos últimos 30 anos de sua aplicação, marcados por grandes avanços, problemas não solucionados e novos desafios. Montaño e Souza (2015), ao discutirem a pesquisa com AI no Brasil, colocam como desafio estudos que busquem reforçar as conexões entre os instrumentos de AI e o planejamento setorial e de uso de solo.
De acordo com Almeida e Montaño (2015), o processo de AIA deve ser aplicado a todas as propostas de desenvolvimento que potencialmente possam causar efeitos significativos, devendo ser considerados os impactos biofísicos e os fatores socioeconômicos relevantes; e ainda promover a participação ativa do público interessado.
A própria Resolução Conama nº 001/1986, que instrui todo o processo de AIA no Brasil, o qual se encontra vinculado ao licenciamento ambiental, determina o conteúdo do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). O EIA é o documento técnico central no processo de AIA, o qual subsidia a tomada de decisão. De acordo com Sánchez (2008, p. 182), o EIA “é o documento mais importante de todo o processo de avaliação de impacto ambiental”. Os EIA, via de regra, têm conteúdos bastante similares contemplando capítulos referentes a estudo de alternativas tecnológicas e locacionais, descrição e justificativa do empreendimento, diagnóstico ambiental, avaliação de impacto ambiental e plano básico ambiental ou gestão ambiental.
A prática de AIA não se limita à preparação do EIA, a aplicação do instrumento extrapola a etapa de concepção do projeto de engenharia, acompanhando todo o período de vida do empreendimento como um instrumento de gestão ambiental (GALLARDO et al., 2015, 2016a) e redução de impactos ambientais.
Duarte et al. (2017) analisaram 131 trabalhos brasileiros publicados entre 1985 e 2015 sobre AIA no Brasil, revelando, dentre outras conclusões, que as avaliações das qualidades dos EIA têm mostrado as mesmas deficiências.
Fonseca, Sánchez e Ribeiro (2017) analisaram o processo de AIA no país enfatizando que seu papel fundamental de mitigação de impactos e aprimoramento do projeto precisa de mudanças para superação de barreiras, como, por exemplo, políticas que não incluem o encadeamento do planejamento.
Sánchez (2014) enfatiza que o fortalecimento da prática de AI requer foco e integração, destacando, dentre outros aspectos, a necessidade de maior integração entre os próprios instrumentos de AI.
Ao discutir a aplicação dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente brasileira para a tomada de decisão que promova o desenvolvimento sustentável, Neves et al. (2013, p. 83) postulam acerca da “necessidade da implementação do Estudo de Impacto Ambiental e da Avaliação Ambiental Estratégica de maneira que se completem como instrumentos de política ambiental”.
A prática brasileira, entretanto, não tem evidenciado essa integração entre os instrumentos. Margato e Sánchez (2014), ao estudarem uma amostra de nove EIAs elaborados entre 1987 e 2010 no setor de mineração brasileiro, não observam evidências quanto a possíveis mudanças decorrentes de políticas e orientações provenientes do planejamento desses estudos. Assim como Borioni, Gallardo e Sánchez (2017), que avaliaram a prática de scoping no país e não encontraram para nenhum dos dez casos analisados uma relação entre PPP na fase de scoping da AIA brasileira recente em nível federal.
Ainda segundo Neves et al. (2013), a AAE permite que os princípios de sustentabilidade permeiem planos e programas, de modo a assegurar que a capacidade do meio não seja superada na realização dos projetos de engenharia subsequentes.
De acordo com Arts, Tomlinsn e Voogd (2011, p. 429), tiering:
pode consistir em uma ferramenta de garantia de qualidade, controle e gerenciamento para proporcionar continuidade das atividades de AIA nos processos precedidos por AAE, permitindo um adequado escopo da avaliação de impacto e um subsequente planejamento em níveis e para salvaguardar coerência entre AAE e AIA.
Os autores descrevem diferentes tipos de tiering: o vertical que relaciona a hierarquia entre níveis decisórios, como no planejamento de política, planos, programas e projetos; o horizontal que traduz a relação entre diferentes setores em um mesmo nível, por exemplo, planejamento do uso do solo, transportes e resíduos; e o diagonal que seria a combinação dos anteriores, em que, por exemplo, a política de mudanças climáticas pode influenciar a política de transportes local (ARTS; TOMLINSN; VOOGD, 2011).
Eggenberger e Partidário (2000) postulam que minimamente é necessário haver: (1) integração vertical, estabelecendo a ligação entre avaliações de impactos realizadas em diferentes estágios do ciclo de planejamento, como planos e programas e/ou programas e projetos; (2) integração horizontal com outras PPP; e (3) integração entre os diferentes tipos de impactos econômicos, ambientais e sociais, bem como os de caráter cumulativo.
Segundo Fischer (2004), que avaliou a AAE da política de transporte e seus desdobramentos nos outros níveis de planejamento nas cidades de Berlim, Amsterdam e Liverpool, as tarefas que devem ser realizadas no nível de programas do planejamento do setor de transporte referem-se a comparar projetos e suas alternativas, baseando-se na análise multicriterial ou custo-benefício, e a avaliar os impactos ambientais e socioeconômicos dentro de uma mesma estrutura.
Tomlinson e Fry (2002) destacam que o tiering entre AAE e AIA/EIA, embora relevante, é um tema pouco discutido de modo crítico na literatura. Para Sánchez e Silva-Sánchez (2008), o uso do encadeamento entre os níveis do planejamento poderia alocar melhor os recursos devotados à tomada de decisão, conduzindo à melhor eficácia do processo decisório de desenvolvimento, visto que as avaliações ocorreriam em momento adequado na discussão das consequências em cada nível hierárquico.
Carvalho, Partidário e Sheate (2017) enfatizam que a AAE prévia a projetos de engenharia é benéfica para a decisão inclusive da realização ou não de um projeto. Os autores verificaram a influência da AAE no processo de planejamento em decisões de nível de projeto para trens de alta velocidade na União Europeia, porém destacam a abordagem ainda limitada de questões estratégicas nos níveis mais elevados do planejamento. Por outro lado, segundo Gunn e Noble (2011), os arranjos de escalonamento entre a AAE e a AIA de projetos vão de limitados a inexistentes. Fidler e Noble (2012) demonstraram para o setor de óleo e gás do Canadá, Reino Unido e Noruega que a AAE pode ajudar a melhorar a eficácia da AIA de projetos, mas um fator limitante reside na fraca coordenação entre os níveis extremos de planejamento, o que reduz a capacidade da AAE de influenciar as decisões no planejamento.
A lacuna entre AAE e AIA e a incorporação dos objetivos do planejamento tanto em seus níveis mais elevados como nos níveis de base é um desafio na prática de AI segundo Thompson et al. (2013). A AAE foi concebida para fornecer implicações claras à avaliação em nível de projeto (DOELLE; BANKES; PORTA, 2012). Phylip-Jones e Fischer (2015) concluíram que no setor de planejamento de energia eólica do Reino Unido e Alemanha o tiering entre AAE e EIA não está bem estabelecido.
A pesquisa aqui realizada é de natureza aplicada e exploratória, adotando-se uma abordagem qualitativa para a análise dos resultados. Em termos de estratégia de pesquisa, pode ser considerada um estudo de caso, cujo objeto é um caso de planejamento do transporte paulista, avaliado a partir do relatório técnico de AAE do Programa Rodoanel Mário Covas e de três trechos rodoviários que o compõem e que foram avaliados por EIA.
O Programa Rodoanel é um empreendimento rodoviário urbano que tem por objetivo desviar o tráfego de passagem das vias centrais que atravessam São Paulo para o entorno da Região Metropolitana da cidade de São Paulo (RMSP). O programa tem extensão total de 177 km, interligando as dez principais rodovias que chegam a São Paulo: Régis Bittencourt, Raposo Tavares, Castello Branco, Anhanguera, Bandeirantes, Fernão Dias, Dutra, Ayrton Senna, Imigrantes e Anchieta. O Programa Rodoanel divide-se em quatro trechos: Norte, Sul, Leste e Oeste. O trecho Oeste, com 32 km de extensão, foi o primeiro a ser licenciado e encontra-se em operação desde 2002. Assim, após a finalização desse trecho, foi apresentada a AAE do Rodoanel (SÃO PAULO, 2004).
O trecho Sul do Rodoanel tem 57 km de extensão e está inserido na região de proteção dos mananciais das sub-bacias Guarapiranga e Billings. Seu EIA foi apresentado em 2004 (FESPSP, 2004). O trecho Leste do Rodoanel Mário Covas possui 43,5 km de extensão e seu EIA foi apresentado em 2009 (SÃO PAULO, 2009). O trecho Norte do Rodoanel Mário Covas tem 44 km de extensão e parte do seu traçado encontra-se nos domínios do Parque Estadual da Serra da Cantareira, o EIA desse empreendimento foi apresentado em 2010 (SÃO PAULO, 2010).
Para atingir o objetivo da pesquisa adotou-se como premissas que a AAE deve antecipar os efeitos adversos e proporcionar ganhos sociais, econômicos e ambientais (SANTOS; SOUZA, 2011), bem como ter potencial para articulação vertical entre as PPP e os projetos de engenharia (SÁNCHEZ, 2017); e a AIA acompanhar todo o ciclo de vida do empreendimento contribuindo para a redução dos impactos ambientais (GALLARDO et al., 2015, 2016a). Desse modo, optou-se por selecionar dos conteúdos da AAE e dos EIA a análise das questões estratégicas no primeiro documento e dos impactos ambientais nos estudos subsequentes. Assim, a análise dos dados é realizada por meio da comparação entre as questões estratégicas da avaliação do Programa Rodoanel apresentada na AAE (SÃO PAULO, 2004) e dos impactos ambientais listados nos EIA dos trechos Sul (FESPSP, 2004), Leste (SÃO PAULO, 2009) e Norte (Idem, 2010). Essa análise é confrontada à literatura de referência aplicável, de modo a verificar a existência do tiering no caso de planejamento de transportes paulista e seu posicionamento diante de práticas internacionais.
O Quadro 1 destaca os resultados da avaliação estratégica apresentada na AAE do Programa Rodoanel (SÃO PAULO, 2004), cujas projeções apontam para o desvio de cerca de metade do fluxo de caminhões que têm como origem ou destino a RMSP. A avaliação estratégica apresentou uma análise futura sem a continuidade da implantação do Rodoanel e com a implantação dos trechos Sul, Leste e Norte examinada a partir dos EIA dos três trechos (FESPSP, 2004; SÃO PAULO, 2009, 2010). Cinco foram as perspectivas consideradas principais efeitos do Rodoanel, conforme ilustra o Quadro 1.

Os Quadros 2 a 4 apresentam os impactos ambientais relatados nos EIA dos trechos Sul, Norte e Leste, respectivamente.

A análise do Quadro 1 revela conclusões similares às da pesquisa realizada por Carvalho, Partidário e Sheate (2017) para outra modalidade do setor de transportes. Os temas considerados na avaliação estratégica do Rodoanel estão em boa parte refletidos no conteúdo dos EIA, porém se verifica uma abordagem limitada quanto a questões estratégicas de planejamento.
A comparação entre os dados apresentados no Quadro 1 e os dados dos Quadros 2, 3 e 4, com relação às categorias de análise dos efeitos ambientais da AAE sobre os grupos de impacto apresentados nos EIA, permite destacar duas perspectivas relevantes e complementares em termos de tiering:


observando pelo topo (Programa) da cadeia decisória, a AAE privilegiou a abordagem dos temas ambientais e seus efeitos em escala de planejamento, mas direcionou a abordagem a aspectos decorrentes da escala de projeto de engenharia;
observando a base (Projeto) da cadeia decisória, os grupos ou categorias de impacto descritos nos EIA apresentam relação explícita com o que está relatado nas categorias de análise dos efeitos da AAE.
Corrobora com essas assertivas a análise das categorias de efeito do Rodoanel da AAE confrontadas aos grupos de impacto ambiental apresentados nos EIA, assim:
quanto a transporte e circulação viária, a AAE discute as vantagens da construção dos trechos que compõem o Rodoanel, enquanto nos EIA os impactos sobre esse tema estão restritos ao comprometimento da qualidade do trânsito durante a construção das obras quanto à circulação de veículos e pedestres;
quanto à estrutura urbana e uso e ocupação do solo, na AAE afirma-se que não haverá modificações significativas no ordenamento territorial em função do empreendimento e que este poderá ensejar aspectos positivos quanto à logística do transporte de cargas e desoneração de vias internas saturadas da RMSP; por sua vez, nos EIA são discutidos os impactos referentes a alterações urbanísticas e de valor imobiliário próximos ao empreendimento;
quanto aos recursos naturais em relação à manutenção de solo e vegetação, são destacadas na AAE preocupações mais abrangentes em nível de planejamento, e nos respectivos EIA são descritos impactos relacionados aos terrenos e aos recursos hídricos superficiais;
quanto à área de proteção e recuperação de mananciais, na AAE também é feita uma avaliação mais ampla em escala de planejamento, destacando ações localizadas (como o controle de cargas difusas na operação de rodovias) a serem adotadas no EIA que apresenta os impactos relativos a esse tema em nível de projeto;
quanto à qualidade do ar e clima, a AAE faz uma avaliação ampla sobre o tema e os EIA limitam-se a identificar os impactos na qualidade do ar durante a construção e a operação dos trechos.
De modo geral, percebe-se adequação entre temas ambientais discutidos em nível de planejamento e posteriormente abordados em nível de projeto, como enfatizado por Arts, Tomlinsn e Voogd (2011), ao discutirem os vínculos entre AAE e AIA no planejamento de transportes. Entretanto, podem ser identificadas algumas falhas de tiering, conforme destacado por Gunn e Noble (2011) e Fidler e Noble (2012):
impactos positivos, que inclusive justificam a execução do Programa Rodoanel, não são apropriadamente discutidos em termos de identificação dos impactos em nível de projeto;
considera-se que os impactos relativos a implicações do Rodoanel na produtividade dos recursos hídricos nos mananciais afetados, bem como na melhoria da qualidade do ar não são apropriadamente identificados nos impactos desses temas listados nos EIA de cada trecho do Rodoanel.
Isso evidencia problemas no encadeamento do planejamento ambiental no caso de transportes analisado, ou seja, alguns dos aspectos estratégicos identificados em nível de planejamento não estão apropriadamente representados em nível de projeto. Esse aspecto já foi identificado na prática brasileira na análise dos casos de scoping de EIA por Borioni, Gallardo e Sánchez (2017). Esse resultado no planejamento do Rodoanel se distancia da boa prática de tiering destacada por Desmond (2009), na qual deve haver um caminho dependente dentro da tomada de decisão nos níveis hierárquicos do planejamento, de modo que o nível superior decisório influencie o nível subsequente, reforçando a probabilidade de decisões similares no futuro.
Outra limitação importante é constatada quando se comparam os Quadros 2, 3 e 4. Embora o Programa Rodoanel seja um projeto rodoviário em áreas urbanas e periurbanas na RMSP, os impactos ambientais apresentados em cada EIA correspondem ao meio físico, biótico e antrópico ou socioeconômico em onze categorias maiores que foram desmembradas em impactos mais específicos. Entretanto, os três EIA apresentam para a grande maioria dos impactos praticamente a mesma descrição, por vezes até com redação idêntica, o que denota que as transformações que as diferentes áreas dentro da RMSP vão sofrer são basicamente as mesmas. Entende-se que as especificidades locais que são resultado das interferências do projeto sobre o meio afetado foram homogeneizadas para todo o empreendimento em seus diferentes trechos. Isso indica limitação na prática local em termos de tiering, a qual deveria ser capaz de influenciar a abordagem de condições localizadas particulares. Revela-se aqui o mesmo problema constatado na prática de AIA, em que muitos EIA apresentam impactos genéricos que poderiam ser associados a vários empreendimentos, como enfatizado por Tzoumis (2007). Também no caso do planejamento do Programa Rodoanel não houve influência positiva do tiering para superar essa limitação da prática de AIA.
Os resultados da análise do tiering no planejamento do setor de transportes paulista a partir do estudo da AAE do Programa Rodoanel e dos EIA dos trechos Sul, Leste e Norte demonstraram evidências de aspectos do tiering, ressaltando, porém, que a prática brasileira é limitada.
Desse modo, este trabalho corrobora com os achados da literatura internacional, como Thompson et al. (2013), Phylip-Jones e Fischer (2015), entre outros, e da própria experiência local discutida por Sánchez e Silva-Sánchez (2008), que mostraram limitações na definição das questões estratégicas no conteúdo da AAE. Nesta pesquisa verificou-se que a abordagem da avaliação de impacto em nível estratégico e em nível de projetos de engenharia não está perfeitamente ajustada às expectativas do tiering vertical no planejamento.
Embora alguns aspectos básicos tenham sido revelados, como o foco da AAE na abordagem dos temas ambientais na escala do planejamento e a relação entre as categorias de impacto descritas no EIA e os efeitos do Rodoanel relatados na AAE do programa, os recursos propiciados pelo tiering não foram adequadamente explorados, como, por exemplo, um maior direcionamento dos impactos em nível de projeto. Ademais, a própria consideração de temas estratégicos no escopo da AAE poderia ter sido melhor explorada, eventualmente garantindo que o tiering em nível de projeto pudesse incorporá-los.
Considerando o tiering como um desafio da prática de AI internacional, inclusive para países que têm ampla experiência com a realização de AAE e EIA no planejamento setorial, pode-se concluir que a experiência de tiering no transporte paulista, embora não exercida em sua plenitude, revelou alguns acertos e falhas. Os aspectos positivos e limitantes observados devem ser considerados em casos futuros de realização de EIA posteriores a AAE. Ademais, a pesquisa demonstrou grande semelhança na descrição dos impactos ambientais entre os EIA, revelando uma de suas limitações. A descrição dos impactos nos EIA priorizou caracterizações mais generalizadas, em detrimento da valorização de aspectos locais da interação entre projeto e meio afetado.
Recomenda-se que na consolidação do uso de AAE no planejamento brasileiro as boas práticas de tiering possam ser exploradas e internalizadas, de modo a orientar a tomada de decisão para promoção da sustentabilidade. Desse modo, o tiering poderia contribuir para resultados substanciais no processo de planejamento de transportes, bem como para um maior aprofundamento teórico dessa prática ao redor do mundo.
Endereço dos autores: Luís Eugênio Gouvêa Turcolegt_bio@hotmail.comAmarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardoamarilislcfgallardo@gmail.com



