RESUMO: As práticas cotidianas de pequenos comerciantes e gestores ordinários muitas vezes são ignoradas pela Administração na construção de um corpo de conhecimento sobre gestão. Em razão disso, o objetivo deste trabalho foi compreender as práticas cotidianas de negócio dos catireiros da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Por meio de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, foram entrevistados 31 catireiros dessa região, sendo os dados coletados analisados mediante Análise Crítica do Discurso. Constatou-se que as práticas são diversas entre os catireiros da região e que precisam ser acuradas constantemente, pois a catira exige que se tenha um aprendizado contínuo sobre as mesmas. Além disso, as estratégias na catira estão relacionadas com o conhecimento sobre o mercado rural em que estão inseridos os catireiros. Já as táticas são aquelas operações circunstanciais que dependem da astúcia do praticante em perceber as oportunidades para se catirar e tirar vantagem nas negociações.
Palavras chave: Estratégia como práticaEstratégia como prática,Práticas cotidianas de negócioPráticas cotidianas de negócio,TáticasTáticas,CatiraCatira,Minas GeraisMinas Gerais.
ABSTRACT: The everyday practices of small traders and ordinary managers are often overlooked by Management in the construction of a body of management knowledge. For this reason, the objective of this work was to understand the everyday business practice of the catireiros of the Triângulo Mineiro and Alto Paranaíba region. Through a qualitative research, of exploratory character, we interviewed 31 catireiros of this region, and the data collected were analyzed through the Critical Discourse Analysis. We verified that the practices are diverse among the catireiros of the region and that they need to be constantly improved, because the catira requires that one has a continuous learning about the same. In addition, the strategies in the catira are related to the knowledge about the rural market in which catireiros are inserted. Tactics, on the other hand, are those circumstantial operations that depend on the shrewdness of the practitioners in perceiving the opportunities to bargain and take advantage of the negotiations.
Keywords: Strategy as practice, Everyday business practice, Tactics, Catira, Minas Gerais.
Artigos
AS PRÁTICAS COTIDIANAS DE NEGÓCIO DOS CATIREIROS DA REGIÃO DO TRIÂNGULO MINEIRO E ALTO PARANAÍBA
THE ‘CATIREIROS’ EVERYDAY BUSINESS PRACTICES IN THE TRIÂNGULO MINEIRO AND ALTO PARANAÍBA REGION
Recepção: 25 Janeiro 2017
Aprovação: 06 Fevereiro 2018
Os estudos sobre o campo da estratégia foram desenvolvidos, historicamente, com forte orientação econômica, direcionados à alta gerência das organizações e delineados por meio de perspectivas prescritivas (WHITTINGTON, 2006). Nesse sentido, autores como Chandler (1962) e Ansoff (1965) são considerados precursores de tais estudos, em uma época em que prevalecia o racionalismo cartesiano nos estudos organizacionais e a forma de se fazer estratégia era vista como um planejamento de objetivos e metas a serem atingidos no longo prazo (CLEGG; HARDY, 1999). Entretanto, com o passar dos anos, o campo da estratégia ganhou novas compreensões, como é o caso das pesquisas de autores como Wilson e Jarzabkowski (2004), que trabalharam sob o prisma da estratégia como prática, ao enfatizar a relação da estratégia com as práticas sociais cotidianas.
Os estudos sobre estratégia como prática evidenciam que a estratégia não é um elemento exclusivo das organizações, mas também se constitui como uma atividade praticada pelas pessoas (JOHNSON et al., 2003) em seu cotidiano, podendo ser considerada uma prática social (WHITTINGTON, 2004). Diferentemente das outras abordagens, em que o conceito de estratégia é algo que as organizações possuem, tal vertente concebe que a estratégia é algo que as pessoas fazem, sendo vista como uma atividade contínua, centrada nas microatividades que compreendem a construção da estratégia (JOHNSON et al., 2007). A estratégia e a prática, portanto, caminhariam juntas (WHITTINGTON, 1996).
Contudo, Barros et al. (2011) afirmam que as práticas cotidianas de pequenos comerciantes e gestores ordinários para a construção de um corpo de conhecimento sobre gestão muitas vezes são ignoradas pelo ensino em Administração e por consultores da área, os quais alegam que as práticas desses indivíduos – trazidos neste trabalho para a realidade dos catireiros – estariam superadas e poderiam ser classificadas como ineficientes do ponto de vista mercadológico, devido à falta de racionalidade, razoabilidade e a pouca elaboração. Tais práticas podem ser caracterizadas como um saber, mas não estão estruturadas em discursos acadêmicos e técnicos, embora sejam responsáveis pela manutenção e sobrevivência de muitos negócios. Para Brant (2004) e Holanda (2011), o conhecimento do homem comum (conhecimento popular) e as práticas organizativas de sua gestão ordinária são marginalizados pelos pesquisadores, pois estes caracterizam os praticantes como amadores, isto é, inferem que esses sujeitos não possuem profissionalismo nem credibilidade e que sobra improvisação em seus negócios.
Desse modo, este trabalho buscou responder o seguinte problema de pesquisa: como são desenvolvidas as práticas cotidianas de negócio dos catireiros da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba? O objetivo foi compreender as práticas cotidianas do homem comum (MARTINS, 2008) em seus negócios ordinários, tendo como sujeitos desta pesquisa os negociantes rurais do interior do Estado de Minas Gerais, mais especificamente aqueles da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, também conhecidos como catireiros. Nosso intuito foi fugir dos parâmetros gerencialistas dominantes para poder compreender as muitas maneiras de fazer catira no cotidiano desses gestores ordinários, não exatamente aquele vencedor que nos conta as histórias tradicionais, ao contrário, aquele que muitas vezes não é considerado como o personagem principal na vida social, a não ser à título de resistência em relação ao desenvolvimento da produção sociocultural (CERTEAU, 1994). Desse modo, utilizamos o arcabouço teórico da estratégia como prática para compreender diferentes estratégias de operacionalização de práticas comerciais desses sujeitos, que são utilizadas para manter e expandir seus negócios, obter vantagens nas catiras e na (re)apropriação do espaço organizativo em seus cotidianos.
Mas o que são as catiras? As catiras são contínuas relações comerciais que envolvem a troca de alguma coisa (normalmente de animais) por bens de consumo, produtos agropecuários, dinheiro, ou um pouco de cada, e vice-versa. Esses negócios contínuos são de todos os tamanhos, não necessariamente envolvem dinheiro em suas transações e é uma das práticas mais antigas do meio rural mineiro. Em algumas regiões desse Estado, como no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, são negociações frequentes no cotidiano das pessoas, sendo os negociantes – catireiros – extremamente dedicados na execução dessa arte (RIBEIRO; GALIZONI, 2007; SANTOS, 2016). Além disso, as movimentações sociais e financeiras das catiras, regidas por práticas próprias, são responsáveis pela conservação, geração e ampliação de renda de muitas famílias do interior do estado de Minas Gerais (SANTOS, 2016). Como evidenciado por Ribeiro e Galizoni (2007), as catiras impulsionam grandes e pequenas negociações, originam e distribuem riquezas, revigoram poupanças e aumentam o patrimônio comercial ao estabelecer relações corriqueiras de confiança que embasam novas e continuadas catiras entre os agentes econômicos.
Assim, com esta pesquisa buscamos contribuir para o entendimento da Administração sobre uma análise das diversas práticas cotidianas (estratégias e táticas) e as maneiras de fazer em que os catireiros organizam o dia-a-dia de seus negócios. A importância acadêmica se deve ao fato de que esses sujeitos podem contribuir para com os Estudos Organizacionais ao dissertarem sobre temáticas da linha e revelarem práticas e negócios antes pouco conhecidos, uma vez que as catiras e os catireiros do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba guardam e (re)constroem diariamente práticas, histórias, conhecimentos, estratégias e táticas que merecem e precisam ser destacados na nossa área. Além disso, há também a relevância social desta pesquisa, quando damos ouvidos aos catireiros, gestores ordinários que cotidianamente (re)criam práticas em suas catiras como forma de sobrevivência e ampliação de riqueza, mas que antes eram invisíveis para academia.
O surgimento da abordagem da estratégia como prática é marcado pela publicação do artigo “Strategy as practice”, de autoria de Richard Whittington (1996), cujo pesquisador sugeriu que a estratégia fosse vista como uma prática social (CANHADA; RESE, 2009). A concepção do termo “estratégia como prática” surge na academia em meados da década de 90, quando Whittington (1996) viu a necessidade de se explorar questões centrais decorrentes do estudo sobre estratégia, tais como: O que seria a estratégia? Quais são seus praticantes? O que eles fazem? Como a teoria da administração estratégica enfoca e sustenta a noção de estratégia como prática? Nesse momento, grande parte dos estudos sobre estratégia passou a se preocupar com o papel dos agentes organizacionais para a construção da mesma.
A abordagem da estratégia como prática é predominante, especialmente, em países europeus, como, por exemplo, na Inglaterra. Autores como Whittington (2004) e Wilson e Jarzabkowski (2004) são considerados os principais difusores dessa perspectiva nas pesquisas brasileiras, já que eles foram responsáveis pela introdução dessa temática no Brasil, por meio de dois estudos reeditados e publicados no país. Entretanto, a concepção da estratégia como prática no Brasil ainda está caminhando, a passos curtos, para a sua solidificação na academia, devido ao baixo número de estudos publicados aqui, ou até mesmo porque tal abordagem foi introduzida posteriormente no nosso país, quase dez anos depois da primeira publicação no exterior (OKAYAMA et al., 2014; WALTER; AUGUSTO, 2011).
Ao destacar a vertente da estratégia como prática, enfatizamos que ela representa uma perspectiva diferente – mais reflexiva –, que provocou modificações significativas no modo de se produzir conhecimento sobre a prática de fazer estratégia (JARZABKOWSKI, 2004; JARZABKOWSKI; SEIDL, 2008; WHITTINGTON, 1996). Para os autores europeus, trata-se da revisão de pressupostos epistemológicos, ontológicos e metodológicos no campo da teoria da administração estratégica, haja vista que a vertente da estratégia como prática emergiu em virtude da saturação dos modelos normativo-prescritivos formulados pela visão clássica da administração estratégica e da necessidade de produzir novas explicações sobre a ação dos agentes organizacionais, tanto no nível micro (ações cotidianas) quanto no nível macro (ambiente de atuação) (JARZABKOWSKI; SEIDL, 2008; WHITTINGTON, 2006).
Desse modo, a estratégia como prática pode ser compreendida como um conjunto de atividades desenvolvidas nas interrelações sociais estabelecidas nas organizações. É por meio de tais atividades que emergem as práticas, formais ou informais, que são compostas pelas estratégias (CANHADA; RESE, 2009). Assim, quando se coloca uma estratégia em execução, nessa perspectiva, há a preocupação em perceber como ocorrem as atividades cotidianas e sua relação com a esfera social. Para Jarzabkowski (2005), a forma de se fazer estratégia no cotidiano pode ser compreendida como a habilidade sagaz para operar, moldar e manipular os recursos utilizados para engajar-se na construção da atividade da estratégia ao longo do tempo, preocupando-se com questões que envolvam as ações dos sujeitos, suas reflexões, como eles pensam e as técnicas utilizadas quando essa estratégia é colocada em prática.
Contudo, é importante mediar aqui que autores como Whittington (2004) e Wilson e Jarzabkowski (2004) pensam a estratégia como prática aplicada nas organizações burocráticas e os meios de torná-las mais eficientes, e não nas práticas da gestão ordinária de sujeitos comuns. Tais autores priorizam o desempenho organizacional, mudando apenas o enfoque da análise na busca pela eficiência da organização. Por isso, nos referenciamos, especialmente, em Certeau (1994; 1998), a fim de desvelar as “artes de fazer” de sujeitos cuja relevância para a formação da sociedade não é analisada. Desse modo, nosso viés aqui não é o organizacional, mas sim o social.
Para Certeau (1994), é através das artes de fazer que os sujeitos (re)inventam seu cotidiano. Em suas obras, o autor narra algumas práticas cotidianas que, além de compreenderem as artes de fazer dos sujeitos, também constituem as estratégias e táticas utilizadas pelos mesmos. Nesse sentido, algumas dessas práticas lidam com a estrutura no sentido de mantê-las e legitimá-las; mas há também práticas que atuam no sentido de subverter os próprios componentes da estrutura. É nesse contexto que surgem os conceitos de estratégias e táticas. De acordo com o autor, a estratégia pode ser concebida como
[...] o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta (CERTEAU, 1994, p. 46).
Ou seja, as estratégias são práticas cotidianas que contam com um lugar próprio de poder. Dessa forma, um sujeito, dotado de poder e querer, e advindo de um lugar privilegiado, pode articular e manipular suas estratégias sobre outras pessoas. A essas últimas, em posições desfavoráveis de querer e poder, cabe a manipulação e articulação de ações calculadas que podem até subverter a ordem social estabelecida, o que Certeau (1994) designa como táticas. Dessa forma, a estratégia seria o meio de uma pessoa – detentora do poder – gerir as relações com os outros, e a tática seria a arte do fraco – as ações daqueles despossuídos de poder. Nas palavras do autor, a tática é um
[...] cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias (CERTEAU, 1994, p. 46).
Desse modo, as táticas são práticas que não possuem lugar próprio de poder, além de serem situacionais e circunstanciais, dependendo do tempo e da ocasião. É uma arte do improviso. Há um relacionamento dessas práticas com a astúcia do indivíduo para aproveitar as circunstâncias. São as maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro (CERTEAU, 1994). Tais práticas têm por objetivo tornar mais forte o lado mais fraco por meio do aproveitamento de ocasiões para originar resultados imediatos. Nesse sentido, a tática é a ação dentro do campo de visão do inimigo e no espaço que ele controla. Tal prática opera golpe por golpe, lance por lance, usufruindo das ocasiões e delas dependendo (CERTEAU, 1994).
Em sequência, no que se refere à diferença entre essas duas práticas (estratégias e táticas), Carrieri et al. (2012) afirmam que sua distinção pode ser visualizada quando se conhece o lugar de quem as pratica – se o praticante está no poder naquele momento específico ou não. Para Souza e Carrieri (2012), a prática estratégica se destina ao acúmulo futuro, à prescrição e ao controle, enquanto a tática é uma ação circunstancial e efêmera. Além disso, outra diferença apontada pelos autores é que através das estratégias pode-se impor, produzir e mapear espaços, enquanto que por meio das táticas pode-se somente utilizá-los, alterá-los ou manipulá-los pontualmente.
Certeau (1994) nos alerta de que, na análise das práticas, há a necessidade de compreendermos, ao invés do “além da ação realizada”, o “como ela é realizada”, isto é, as maneiras de fazer estratégia no cotidiano. Nesse sentido, Carrieri et al. (2012) inferem que os estudos sobre estratégia como prática devem ser associados ao cotidiano e ao contexto, os quais, segundo os autores, influenciam no saber-fazer dos indivíduos, na gestão ordinária.
Mas do que se trata o cotidiano? A importância dessa temática para a pesquisa se dá no momento em que foi possível compreender as ações diárias praticadas pelos indivíduos, caracterizados nesta pesquisa como sujeitos comuns (MARTINS, 2008), que não são envolvidos pelas metanarrativas nas pesquisas tradicionais em Administração e que dependem do dia-a-dia para garantirem sua sobrevivência (PATTO, 1993). É na vida cotidiana que esses sujeitos se inserem na sociedade e se relacionam (HELLER, 1985), (re)produzindo constantemente suas práticas diárias (CERTEAU, 1994). De acordo com Certeau (1994), as atividades diárias desenvolvidas por esses sujeitos constituem a formação de saberes que mantém a cotidianidade, os quais, por sua vez, compõem as artes de fazer.
A temática do cotidiano, além de ser pouco explorada na área de Administração, é retratada de maneira trivial nos estudos ocidentais (LEFEBVRE, 1991). Segundo Carrieri (2012), pesquisas sobre o cotidiano praticado socialmente não se constituem como um trabalho de relevância e necessidade acadêmica para a visão dominante na Administração. Por outro lado, ao analisar o cotidiano de negócio de indivíduos comuns, é possível compreender como eles (re)criam suas estratégias e táticas em sua gestão ordinária.
A gestão ordinária é aquela exercida no cotidiano dos negócios ordinários, uma prática caracterizada como social e cultural, composta por uma diversidade de códigos, referências e interesses pessoais e relacionais (CARRIERI; PERDIGÃO; AGUIAR, 2014). São práticas administrativas vivenciadas no dia-a-dia de micro, pequenos e médios negócios formais ou informais, que, embora possuam pontos de contato com a Administração, não são diretamente modeladas por ela. Desse modo, há a figura do gestor ordinário que, por exemplo, faz cálculos de cabeça para fechar seus negócios no cotidiano, mas que desconhece os conceitos de matemática financeira. Esses gestores ordinários refletem um ponto de vista sobre o contexto no qual estão inseridos, contudo, são marginalizados nas narrativas de e sobre a Administração (BARROS; CARRIERI, 2015).
A fim de buscar compreender as práticas cotidianas de negócio dos catireiros da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba na arte da catira, trilhamos os caminhos de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório. Nesse sentido, concordamos com Chizzotti (2004) quando o autor infere que esse tipo de investigação qualitativa permite estudar os fenômenos em um contexto em que há uma relação entre os pesquisadores e os atores da pesquisa, e não interpretar os dados de maneira isolada. Ademais, corroboramos as ideias de Certeau (1994) quando este propõe que, ao se investigar as práticas cotidianas, nos preocupemos não com o seu material, com aquilo que é utilizado no dia-a-dia, mas sim em sua forma, o movimento astucioso e as maneiras de utilizarem as práticas. E, nesse contexto, para o autor, os métodos estatísticos não são capazes de representar as trajetórias táticas, que são suprimidas pelas generalizações.
No mais, quando nos referimos a um caráter exploratório de pesquisa, temos consciência de que o fenômeno investigado, isto é, as práticas cotidianas, não é uma temática nova a ser explorada na Administração. Entretanto, ao relacionar essas práticas à arte da catira, trazemos aí uma temática pouco explorada na academia. Esse também foi um fator limitante da pesquisa, uma vez que há poucos trabalhos que descrevem o cotidiano dos catireiros e da prática da catira para dar subsídio a esta pesquisa.
Em sequência, por meio de conversas informais com agrônomos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado Minas Gerais (EMATER) e com pessoas inseridas nos Sindicatos dos Produtores Rurais, bem como pelas entrevistas com os catireiros, estima-se que o universo atual de catireiros tradicionais praticantes na região analisada é formado por aproximadamente 250 sujeitos.
A investigação foi operacionalizada mediante um processo amostral não probabilístico. Assim, o corpus da pesquisa foi constituído por meio de entrevistas semiestruturadas coletadas no período de junho a novembro de 2015 com 31 catireiros que atualmente moram e catiram na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. De acordo com Boni e Quaresma (2005), essa técnica possui algumas vantagens, como a elasticidade da duração das entrevistas, que permite uma cobertura mais profunda sobre os temas necessários a serem investigados e a possibilidade de se promover uma maior interação entre o pesquisador e os entrevistados, favorecendo a captação de respostas mais espontâneas e na proximidade entre esses sujeitos envolvidos, permitindo que o pesquisador toque em assuntos mais complexos e delicados.
A escolha desses sujeitos envolveu, a priori, uma rede de contatos que os pesquisadores possuíam. Contudo, a partir do momento em que o primeiro catireiro aceitou participar da pesquisa, os demais foram encontrados por meio da técnica da bola de neve (snowball sampling), que tem sido amplamente utilizada em pesquisas sociais qualitativas, quando os sujeitos de pesquisa compartilham e reconhecem outros indivíduos que possuem características semelhantes ao interesse da investigação (BIERNARCKI; WALDORF, 1981). Vale ressaltar que na pesquisa qualitativa não é a quantidade de sujeitos investigados que define a validade da pesquisa, mas suas especificidades (DENZIN; LINCOLN, 2000). Dessa forma, as entrevistas foram interrompidas seguindo o princípio de saturação, ou seja, quando observamos que a imersão no campo não mais contribuiria com novos elementos para reflexão teórica.
A delimitação dos entrevistados levou em consideração os catireiros que fazem negócios/catiras nas regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba e que se autoidentificam como catireiros. Desse modo, a escolha desses atores não foi pelo que ele negocia, nem pela questão de ele ser do meio rural ou urbano. Esses catireiros negociam tanto animais (que é o mais comum) como também bens materiais. Além disso, delimitamos os catireiros do estado de Minas Gerais por essa ser uma das regiões em que a catira está mais consolidada, principalmente no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (RIBEIRO; GALIZONI, 2007).
Por fim, os dados coletados foram analisados por meio da Análise Crítica do Discurso (ACD). De acordo com Fairclough (2003), a Análise Crítica do Discurso trata a linguagem como discurso, e este como um elemento do processo social que está interconectado com outros elementos da prática social, isto é, o discurso é a linguagem como uma forma de prática social, sendo a ACD uma analítica de como os (con)textos interagem inseridos em práticas socioculturais. Os discursos, segundo O’Connor (1995), é o lócus através do qual os atores expressam suas práticas, valores, símbolos e visões de mundo. Portanto, mediante ACD buscamos reconstruir e interpretar as práticas cotidianas de negócio (JARZABKOWSKI, 2005) dos catireiros – nossa principal categoria de análise –, as quais se subdividem em estratégias e táticas (CERTEAU, 1994), que constituem as subcategorias de análise deste estudo.
Dos 31 catireiros participantes da pesquisa, 28 são homens e 3 são mulheres. Os entrevistados possuem entre 25 e 82 anos de idade e a escolarização varia desde o ensino fundamental incompleto até o ensino superior completo. As principais cidades dos catireiros entrevistados foram Sacramento, Uberaba, Araxá, Perdizes, dentre outras localizadas na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.
Iniciamos as entrevistas pedindo que os catireiros nos falassem um pouco mais sobre quem eram aqueles sujeitos, solicitando que eles se identificassem e nos contassem um pouco sobre suas histórias de vida. De forma geral, as entrevistas foram fluidas. Entretanto, não foram muito descontraídas. Ao contrário, percebemos certo receio por parte de muitos catireiros ao serem entrevistados, talvez por não termos tido um contato prévio com os mesmos, o que pode ter dificultado nossa interação naquele momento, ou até mesmo por muitos deles serem mais reservados, mais tímidos.
Desse modo, muitas vezes não sentimos os entrevistados a vontade para falar sobre as práticas (estratégias e táticas) que eles utilizam no cotidiano da catira, ora por perceber que éramos desconhecidos para eles e que os indagava sobre particularidades que fazem a diferença na hora de fechar um negócio, ora por perceber que eles mesmos acham que isso é um assunto tão comum que não veem a necessidade de discutirem ou de se fazer uma pesquisa sobre o tema. Portanto, como afirmam Ribeiro e Galizoni (2007), a temática das relações comerciais de troca surgiu em um contexto em que os próprios praticantes diminuíam a importância delas por meio de evasivas, e isso ainda é visto nas pesquisas sobre a catira, como pode ser observado abaixo, nos fragmentos retirados das entrevistas.
01 Mas cê vai fazer pergunta sobre catira pra que? É uma coisa tão simples, não tem muito segredo, não tem muito o que falar (...) O mercado rural que a gente tem que ficar atento, isso tem muita coisa, mas catira é simples demais, a gente fecha negócio de olho fechado. (C12)
02 Você tem certeza que tá fazendo um trabalho de escola sobre catira mesmo? (...) E o pessoal de lá fica querendo saber dessas coisas? Porque a gente tá tão acostumada com isso que pra nós não é novidade mais, né?! Pra gente já é coisa fácil. (C31)
Como é possível observar pelos trechos acima, os entrevistados utilizam adjetivos como “simples” e “fácil” para tentar diminuir a importância da catira nas pesquisas acadêmicas. Além disso, no primeiro fragmento podemos observar que o sujeito não vê motivos suficientes para que se estude as catiras, embora ela esteja inserida no contexto do mercado rural, o qual ele já vê a importância de ser pesquisado. Podemos observar ainda pelos trechos acima que a catira é algo muito comum no cotidiano desses entrevistados, por meio das escolhas dos vocábulos “acostumada”, “não é novidade” e “fecha negócio de olho fechado”, este último reforçando, ainda, além do caráter corriqueiro da catira, que essas contínuas transações parecem ser algo mais simples do que a gente imagina.
Foi perguntado aos catireiros como eles aprenderam a praticar a catira e os respondentes indicaram que o aprendizado da catira se dá por meio da prática, como pode ser observado abaixo.
03 A gente vai aprendendo na prática, não tem escola pra catira não. E levando, talvez levando manta, prejuízo, você vai pegando a prática de fazer catira pro cê não errar. (C11)
04 Isso a gente aprende... Eu cresci trabalhando na enxada, capinando e fazendo de tudo na roça. Aí cê vê os outros... Um negocia aqui e ali. Observa o pessoal catirar. Daí virei catireiro também. (C12)
05 Na prática mesmo... Que isso num tem outro jeito. Cê que tem que aprender mesmo.. Num tem um manual. Então é a escola da vida que te ensina, né?! (C13)
Nos trechos acima, fica notório que a arte da catira, para muitos entrevistados, foi aprendida por meio da prática contínua com outros catireiros. No trecho 03, o entrevistado utiliza de uma expressão local (manta) para também dizer que a prática da catira se aprende com os erros, com os prejuízos nos negócios. Nos fragmentos 03 e 05, os enunciadores reforçam que a catira é aprendida somente mediante a prática, que as pessoas não conseguirão catirar por meio de manuais ou até mesmo em escola, a não ser que seja a escola da vida que te ensina, com as práticas contínuas estabelecidas com outros catireiros em seus cotidianos, que envolvem os tombos, as mantas, os prejuízos.
Além disso, podemos notar nos fragmentos acima a utilização de verbos como “observa”, “pega” (a prática), “aprende”, “vê” e “negocia”. A utilização dos verbos no tempo indicativo do presente demonstra que, embora os enunciadores estejam nos contando sobre sua iniciação na arte da catira que ocorreu anos atrás, essas ações de “observar”, “aprender”, “negociar”, “pegar a prática” ainda ocorrem nos dias de hoje, demonstrando que as práticas na catira precisam ser acuradas constantemente em seus cotidianos, que é um aprendizado contínuo. Os catireiros precisam estar atentos às catiras que estão acontecendo ao seu redor. E como isso acontece? Observa um, vê os outros, negocia aqui e ali, e vai aprendendo constantemente em seu dia-a-dia.
Em sequência, tendo em vista que a estratégia está relacionada com a prática na abordagem da estratégia como prática (WHITTINGTON, 1996) e que a primeira não é vista como algo exclusivo que as organizações possuem, mas aquilo que as pessoas fazem em seu dia-a-dia (JOHNSON et al., 2007), perguntamos aos catireiros o que eles fazem em seu cotidiano, quais são e como se dão as práticas cotidianas na catira.
06 O catireiro tem que ser bom negociador e catirar de tudo hoje. Tem que especular as coisas também, saber argumentar, mostrar, saber se relacionar, falar, igual vendedor de loja mesmo. Eu catiro vaca gorda, bezerro, vaca magra, qualquer trem, né! Porque se você for especificar “Vou catirar bezerro, só bezerro”, aí você vai na fazenda, lá tem bezerro, tem umas vacas magras. “Não, só quero vaca gorda.” Acaba perdendo, aí você mesmo denigre a sua imagem. (C06)
07 Então, a gente levanta cedo é... anda, procura outros catireiros pra ganhar seu sustento ali. Com essa economia que nós tamo teno no nosso país, uma dificuldade financeira, nós sabemo que todo mundo tá passando uma crise danada. Mas a gente procura mesmo assim, né?! Aí a gente já faz com mais pé no chão, sem buscar ganhar muito em cima. As vezes você compra uma vaca e troca aquela vaca por quatro, cinco bezerro. Depois pega o bezerro e já troca por mais duas vaca e vai indo... Tem que procurar, pode ficar parado não. (C19)
Podemos afirmar que as práticas dos catireiros no cotidiano da catira são expressadas por meio de verbos, como andar, procurar, perguntar, negociar, comprar, argumentar, mostrar, falar, conhecer, especular, saber, dentre outros contidos nas entrevistas. Todos os catireiros deixaram em evidência que uma das principais práticas na arte de fazer catira é ser um caminhante, isto é, o catireiro precisa andar muito para especular quem são os possíveis catireiros com quem eles poderão se relacionar e o que eles catiram em seu cotidiano.
Além disso, outro aspecto relevante que sobressaiu quando indagados sobre o que fazem em seu cotidiano diz respeito à necessidade de se manterem atualizados sobre o mercado, os preços das mercadorias, os praticantes da catira e o que eles têm negociado, pois como seus negócios vão de fazendas a navios, de galinhas a vacas, de carro a éguas, é preciso que eles saibam o valor desses produtos a todo o momento, sua cotação no mercado financeiro local e não local (principalmente dos animais) a fim de que se possa fazer as proporções para as trocas em produtos e ou dinheiro. Dessa forma, é por meio dessas práticas, ou maneiras de fazer catira, que os sujeitos catireiros (re)inventam seu cotidiano diariamente e o reproduz. Essas atividades diárias constituem a formação de saberes que mantém a cotidianidade e que compõem as artes de fazer (CERTEAU, 1994; 1996) catira.
Outro ponto que gostaríamos de destacar sobre os fragmentos acima é em relação à tática (CERTEAU, 1994) exposta na prática da catira pelo enunciador C19, no trecho 07. Esse entrevistado, ao evidenciar a necessidade de conhecimento do mercado e da economia, ressalta que quando identifica que os catireiros estão em um momento de dificuldade financeira ou que a região passa por uma crise econômica, para driblar essas dificuldades e continuar fechando seus negócios, ele busca não ganhar lucros exorbitantes em cima das catiras fechadas. Ou seja, segundo esse entrevistado, como um movimento situacional e subversivo (CERTEAU, 1994), para tentar reverter o difícil momento de estabelecer negócios – tendo em vista as crises econômicas e dificuldades financeiras locais – a tática que ele enxergou para continuar catirando seus produtos e serviços com outros sujeitos naquele determinado momento foi a de negociar com mais pé no chão, sem buscar ganhar muito em cima do outro.
Em sequência, detalhamos como os catireiros praticam a catira no cotidiano. Nesse sentido, buscamos compreender, ao invés do “além da ação realizada”, o “como ela é realizada” (CERTEAU, 1994), isto é, as maneiras dos catireiros de fazerem as catiras, como destacado nas passagens a seguir.
08 A catira você pratica assim: oferecendo a sua mercadoria e o outro catireiro te oferece a dele. “Vamos trocar? O que que cê me volta? Quanto que você quer de volta?” É mais ou menos isso aí, tem que pensar no valor das mercadorias e falar bem da sua que você tá mostrando. Tem que saber realçar as qualidades daquilo que cê tem. Outro exemplo: cê vai na fazenda, vai no curral da pessoa, vê o gado dele. Vamos lá: “Eu tenho umas vacas. Cê quer trocar as suas vaca de leite nuns bezerros? Ou num boi reprodutor?”. É assim que é o catira, tem que ir oferecendo o que você tem pra trocar naquilo que você quer. (C01)
09 A primeira coisa que tem que ver é o que que eu quero, né! Primeira coisa tem que ter o foco no que eu tô querendo pra fazer catira, no que eu to interessado. “Tô precisando de um parafuso amarelo”. Daí eu vou atrás de quem tem pra poder catirar, oferecer o que eu tenho em troca do parafuso amarelo que eu preciso. (C02)
Assim, algumas ações são importantes na prática da catira, como saber oferecer as mercadorias, realçar as qualidades dos produtos e serviços, pensar sobre o valor de troca, definir pelo que se está interessado, dentre outras. Nessas passagens, os enunciadores deixam em evidência que a prática da catira envolve a definição daquilo que o catireiro quer (o que lhe interessa), para que ele possa ir atrás de quem tem esse produto/serviço para oferecer outra(s) mercadoria(s) em troca e iniciar a negociação. Tais práticas podem ser caracterizadas como uma forma estratégica de praticar a catira, pois se tratam de uma habilidade astuciosa de usar e adaptar os recursos disponíveis para engajar-se na formação de estratégias de negócio ao longo do tempo (JARZABKOWSKI, 2005).
Desse modo, é possível afirmar ainda sobre os discursos presentes nesses dois trechos que uma das estratégias utilizadas por alguns catireiros na prática da catira seria definir o que lhe interessa, para que ele possa direcionar suas próximas ações de negociação, como a quem ele vai recorrer (quem tem o produto que ele quer), o que ele vai oferecer em troca e pensar quanto vale ambas as mercadorias.
Além disso, outra estratégia praticada na catira exposta no trecho 08 é sobre como falar bem do que se catira (produto/serviço) para o outro praticante, saber realçar as qualidades da sua mercadoria para instigar o interesse do outro catireiro com quem se negocia. Visualizamos tais práticas como estratégia, pois são ações articuladas para gerir as relações e negociações com os outros, destinadas ao acúmulo futuro e a prescrição do modo como se faz catiras, e não como ações subversivas ou circunstanciais (CERTEAU, 1994). Nos fragmentos seguintes há outros relatos em que destacamos as práticas estratégicas utilizadas no cotidiano da catira.
10 Ver o mercado, saber como o mercado que tá girando, se tá em alta, se tá em baixa. Você tem que tá por dentro do valor da mercadoria que você tem. Ninguém vai catirar fora do preço de mercado. Tá no meio de pessoas que tão no meio também é importante, porque aí você vai sabendo tudo, quem tem o gado, quem não tem. Andando, procurando saber das coisas. Porque hoje você sabe que ele tá valendo tanto, amanhã você não sabe quanto que ele vai tá valendo. (...) Então tem que tá atento nisso, nas oscilação do mercado. (C02)
Na passagem 10, o enunciador afirma que ter conhecimento sobre o mercado financeiro e de produtos agropecuários e suas oscilações é uma prática importante no cotidiano da catira. Outros entrevistados relatam sobre o cuidado contínuo necessário com a mercadoria que se vai catirar, de forma a tornar o produto/serviço mais apresentável e despertar o interesse do outro praticante. Outros ainda expõem a necessidade de se ter conhecimento da época em que se está catirando, como uma prática que influencia na realização ou não das negociações, pois há épocas melhores que outras para se catirar.
Já nos fragmentos abaixo, ressaltamos algumas táticas evidenciadas nos discursos dos catireiros sobre suas práticas cotidianas de negócio.
11 Quando eu tô fazendo catira eu reparo se o catireiro pechincha. O bom pagador ele pechincha no preço. O mau pagador ele não tá nem ai, porque ele não vai te pagar mesmo... (C13)
12 Tem que induzir a pessoa a catirar a sua mercadoria e você ganhando um lucro. Ela também vai ganhar. Todo mundo tem que ganhar. Mas o que você não pode ter é um prejuízo. Isso você tem que induzir com ele com as suas estratégias, os conhecimentos, tudo mais. É um tipo de jogo, cada um tem suas cartas. E aí você tem que improvisar pra tentar induzir o outro. (C02)
13 Vou te dar um exemplo dessa menina que eu catiro que mexe com decoração e que trabalha no carnaval: a Adriana. Ela queria fazer uma festa de aniversário pra filha dela. Como que ela fez? Um dia, o Mimi, que mexe com eventos, tava numa festa, e ele comentou com a Adriana que ia chamar ela pra decorar uma festa pra ele. E ela aceitou o trabalho. Ela tinha tudo o que ele queria, ela não ia precisar gastar comprando nada. Tudo que ele queria que enfeitasse o lugar ela tinha. Aí ele falou: “quanto que vai ficar?” E ela: “não, vamos fazer o seguinte. Ao invés de você me pagar, o aniversário da minha filha vai ser mês que vem. Eu uso o seu espaço de eventos pra fazer a festa.” Por que ela fez isso? Ela teria que cobrar seiscentos reais dele pelo serviço de decoração, mas ela não teria coragem de cobrar seiscentos reais dele. Por que? Porque ela tinha tudo em casa, não gastou com nada, e ela achou que seiscentos reais ficaria muito e ele não ia pagar. Ela foi lá e fez essa catira. Então, quer dizer, ficou mais interessante tanto pra ela quanto pra ele. (C03)
Podemos perceber que no trecho 11, o entrevistado nos apresenta uma prática caracterizada como tática – contextual e efêmera (SOUZA; CARRIERI, 2012) – que necessita da astúcia do catireiro para perceber se, naquela determinada ocasião em que ele está catirando, o outro praticante está pechinchando ou não. Assim, ele demonstra que o catireiro precisa estar atento as ações dentro do campo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado (CERTEAU, 1994), pois tem que atentar-se se o outro praticante pechincha ou não, uma vez que o bom pagador pechincha no preço.
Do mesmo modo, o entrevistado C02 afirma no fragmento 12 que as negociações feitas enquanto se catira são permeadas pela indução, e que a própria negociação seria um jogo de improvisação, onde cada catireiro tem suas cartas para serem jogadas e onde cada um adentra no campo de visão controlado pelo inimigo (CERTEAU, 1994). Assim, cabe a cada um deles tentar induzir o outro, em um movimento tático e contextual, para que a catira se concretize sem que nenhum dos dois saia no prejuízo. Outro entrevistado também expôs uma tática ao relatar sobre a necessidade de o catireiro ser astuto para identificar determinadas ocasiões quando o outro catireiro está sendo velhaco (trapaceiro, que engana, ludibria).
No fragmento 13, fica evidente que a própria prática da catira seria caracterizada como uma tática, isto é, uma ação situacional e circunstancial, que depende do tempo, local e astúcia dos catireiros para aproveitar oportunidades e ocasiões (CERTEAU, 1994) de se catirar, como a oportunidade em que a amiga da enunciadora enxergou e a astúcia que teve para catirar o salão de eventos para fazer o aniversário de sua filha em troca dos serviços de decoração prestados ao dono do salão.
Ademais, até mesmo a ação de fingir não cobrar de Mimi pelos serviços decorativos prestados – utilizando os termos “ao invés de você me pagar” – e usufruir do espaço do salão de eventos por meio da troca de serviços, pode ser caracterizado como uma tática, pois foi uma das maneiras que a Adriana enxergou para jogar o jogo do outro (CERTEAU, 1994), tornando mais forte o seu lado, que seria o mais fraco, uma vez que ela não teria coragem de cobrar os seiscentos reais de Mimi e, por isso, não ia fechar negócio.
Portanto, as práticas cotidianas de negócio dos catireiros da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba são múltiplas e diversas. Assim, a gestão ordinária desses negociantes envolve práticas sociais e culturais compostas por uma variedade de códigos, referências e interesses pessoais e relacionais (CARRIERI; PERDIGÃO; AGUIAR, 2014). O catireiro dessa região (re)cria e (re)produz diariamente estratégias e táticas como forma de fechar e angariar novas negociações e, dessa forma, expressa as diversas maneiras de fazer catira em seu cotidiano.
O objetivo proposto nesta pesquisa foi compreender as práticas cotidianas de negócio dos catireiros da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. É possível afirmar que essas práticas na arte da catira são múltiplas e diversas entre os catireiros dessa região. Apesar de os catireiros ainda suavizarem a importância de suas práticas cotidianas na gestão de seus negócios, eles exprimem a relevância delas na forma de verbos, como o andar, procurar, negociar, argumentar, especular, saber, pechinchar, dentre outras. Ademais, eles demonstram também que essas práticas precisam ser acuradas constantemente em seus cotidianos, pois a catira exige que se tenha um aprendizado contínuo sobre as mesmas.
Percebeu-se que as estratégias estão relacionadas com o conhecimento sobre o mercado rural em que estão inseridos, sobre as melhores épocas para se catirar, entender as diversas peças-chave que fazem girar a engrenagem da catira. Já as táticas são aquelas operações circunstanciais envolvidas na negociação das catiras, práticas situacionais para tirar vantagem ou para não ter prejuízo nas negociações. São improvisações que dependem da astúcia do catireiro em perceber as oportunidades para se catirar, uma vez que a ação de catirar também pode ser considerada uma tática.
Desse modo, a contribuição acadêmica desse estudo para a área está no fato de os negócios ordinários questionarem a universalidade dos modelos hegemônicos de gestão – que priorizam as grandes corporações e os estrategistas da alta administração –, uma vez que o gestor ordinário (re)cria, organiza e utiliza diversas estratégias e táticas cotidianas para geração de renda e manutenção de seus negócios que nem sempre estão calcadas nos conceitos reconhecidos pela Administração. Assim, ao analisarmos as práticas cotidianas de gestão dos catireiros que são negligenciadas pela academia, estamos contribuindo para o reposicionamento dos saberes já legitimados do nosso campo.
Nesse sentido, o movimento que buscamos com esta pesquisa não é analisar como as práticas dos catireiros irão beneficiar a Administração, mas tentar compreender como a Administração pode incorporar as práticas cotidianas desses sujeitos como um saber prático da gestão ordinária de seus negócios. O avanço para área diz respeito a como essas práticas analisadas neste trabalho, que compõem o cotidiano de negócios dos catireiros, podem ser incorporadas à gestão de outros negócios. Visto isso, será que práticas como o pechinchar, o andar, o especular, o conhecer o mercado, preços e praticantes, dentre várias outras, são práticas frequentes em outros negócios? Se sim, como elas são realizadas por esses outros gestores ordinários? Quais são as maneiras de fazer negócios desses outros sujeitos comuns? Como são praticadas as estratégias e táticas na gestão de seus negócios ordinários? Por meio dessas e de outras perguntas possíveis de se retirar da análise deste estudo é que buscamos avançar no conhecimento da área e não por meio de respostas estáticas e finalizadas.
Como principais dificuldades da pesquisa, pontuamos a pouca literatura existente sobre os sujeitos catireiros e também as interferências e ruídos presentes nas entrevistas, principalmente naquelas que ocorreram em leilões de gado. Por fim, como sugestão de pesquisas posteriores, indicamos explorar o aporte teórico da estratégia como prática para analisar práticas cotidianas de outros sujeitos comuns que também são marginalizados pelos discursos acadêmicos universalizantes, mas que possuem diversas maneiras para gerir o seu cotidiano de negócio por meio de estratégias e táticas distintas, como os produtores rurais, por exemplo.
Endereço dos autores: José Vitor Palhares titopalhares@hotmail.com Alexandre de Pádua Carrieri Aguiar.paduacarrieri@terra.com.br Alice de Freitas Oleto aliceoleto@hotmail.com