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Recepción: 02 Febrero 2021
Aprobación: 26 Abril 2022
Resumo: O objetivo deste estudo é compreender como os mecanismos da certificação Fairtrade influenciam no arranjo organizacional das cooperativas enquanto organizações híbridas. Fundamentado no hibridismo organizacional como base teórica, o estudo se guia pelas contribuições dos estudiosos interpretativistas de gestão, que consideram as cooperativas como organizações sociais híbridas. Essa investigação estrutura-se como uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, realizada a partir de um estudo de caso em uma cooperativa de cafeicultores Fairtrade do Espírito Santo. Como instrumento de coleta de dados foi utilizada da triangulação de técnicas, por meio de entrevista semiestruturada, observação não participante e documentos, analisados a partir da análise de conteúdo. Os principais resultados apontaram a necessidade de forjar o arranjo da cooperativa ao desenho do Fairtrade, para se adequar aos instrumentos normativos, criando mecanismos de governança específicos para evitar a perda de legitimidade.
Palavras-chave: comércio justo, organizações híbridas, cooperativas.
Abstract: The aim of this study is to understand how Fairtrade certification mechanisms influence on the organizational design of cooperatives as hybrid organizations. Based on organizational hybridism as a theoretical basis, the study is guided by the contributions of interpretive management scholars who consider cooperatives as hybrid social organizations. This investigation is structured as a qualitative, exploratory research, carried out from a case study in a Fairtrade coffee growers cooperative in Espírito Santo. As a data collection instrument, the triangulation of techniques was used, through semi-structured interviews, non-participant observation and documents, analyzed through content analysis. The main results pointed to the need to forge the cooperative design to the Fairtrade design to adapt to the normative instruments, creating specific governance mechanisms to avoid the loss of legitimacy.
Keywords: fair trade, hybrid organizations, cooperatives.
1 INTRODUÇÃO
As constantes mudanças nas relações de trabalho, na produção de bens e serviços e no acesso a diferentes mercados, vem sendo desenvolvidas a partir de uma mudança de perspectiva de inúmeras organizações (HUDSON; HUDSON, 2003). Se por um lado as organizações vistas como tradicionais têm por foco seu viés econômico e sua finalidade lucrativa, por outro, as organizações sociais, no intuito de promover trocas a seus públicos, vê m se fortificando cada vez mais em diferentes áreas de atuação (BATTILANA, 2006).
Todavia, apesar do rápido crescimento tanto das organizações econômicas quanto sociais, um fenômeno que mescla essas duas vertentes e abre o leque para outras lógicas, tem se configurado como estratégia desobrevivência deinúmeros empreendimentos: o hibridismo organizacional (BATTILANA; DORADO, 2010; BATTILANA; LEE, 2014; LEE; BATTILANA, 2020).
A abordagem do hibridismo organizacional como uma forma de combinação de múltiplas lógicas deatuação, ganhou força nos estudos de gestão da última década, por considerar a multiplicidade na atuação das organizações, a partir de inúmeros mercados e cenários que são constituídos pela relação e percepção dos sujeitos envolvidos (OCASIO; THORNTON; LOUNSBURY, 2017).
Assim, o hibridismo organizacional representa um campo de estudos focado na possibilidade de convivência de distintas vertentes, distintos objetivos, partes ou formatos organizacionais, para a busca de objetivos comuns nas organizações (WOOD JR., 2010). As organizações híbridas fruto desse processo, têm por exemplo, suas vertentes econômicas, sociais e ambientais justapostas em um mesmo formato organizacional, visando alcançar nichos específicos de mercado, atendendo às demandas específicas de seus públicos (CHU; WOOD JR., 2008).
Inúmeras pesquisas lançam luzespara as organizações híbridas. As principaisestão voltadas para a compreensão das comunidades locais que se sustentam a partir da ação de múltiplas lógicas de atuação das organizações (DIMITRIADIS et al., 2017; MARQUIS; BATTILANA, 2009); os mecanismos de identidade dos híbridos (BATTILANA, 2006; BATTILANA; DORADO, 2010); o papel da liderança nos híbridos (BATTILANA; DORADO, 2010); a mudança institucional gerada pela união de projetos híbridos em uma mesma organização (BATTILANA; CASCIARO, 2013); os processos de governança (EBRAHIM; BATTILANA; MAIR, 2014) e; principalmente, o papel das organizações sociais híbridas para administração das tensões geradas pelassuas múltiplas vertentes (BATTILANA; LEE, 2014; LEE; JAY, 2015).
Nessa concepção, ganham destaque as cooperativas, como um modelo especial de organização híbrida, cujo objetivo é o atendimento dos interesses de seus cooperados, a partir do avanço de suas dimensões econômicas, sociais em alguns casos ambientais (AUDEBRAND, 2017). Tais organizações atuam na busca por resultados múltiplos, para além do retorno financeiro, vivendo o embate de uma organização econômica e uma associação democrática, coexistindo em um mesmo espaço organizacional (BAUWENS; HUYBRECHTS; DUFAYS, 2020). Tais elementos caracterizam assim, um terreno fértil para o complexo desdobramento do projeto híbrido (PARANQUE; WILLMOTT, 2014).
A complexidade envolvida nos processos de uma organização híbrida como as cooperativas, leva a tensões que geram inúmeros paradoxos, que podem impulsionar ou estagnar a gestão do empreendimento (AUDEBRAND, 2017). Contudo, apesar dos movimentos permissíveis a partir dessas tensões e paradoxos, as cooperativas, têm potencializado suas vertentes híbridas para acesso a determinados mercados. Muitos desses mercados são regulados por normas específicas, exigindo que as relações de produção e distribuição sejam consideradas mais justas (eticamente e economicamente)para todas as partes (BACON, 2005; PARANQUE; WILLMOTT, 2014).
Nesse contexto, o comércio justo institucionalizado pelo Sistema Fairtrade, tem sido acessado como meio para potencializar essas vertentes, uma vez que produtores, distribuidores e consumidores finais são resguardados por princípios ambientais, sociais e econômicos em suas transações (GEIGER-ONETO; ARNOULD, 2011).
O Fairtrade no Brasil teve ampla aderência a partir de Organizações de Pequenos Produtores (OPPs) como associações e cooperativas, principalmente de produtores de café. As organizações de produtores de café Fairtrade, se inserem em uma ampla rede de atores como negociantes nacionais e exportadores (conhecidos como traders), fortemente dependentes das demandas e padrões de produção ditos pelo mercado e, de gestores públicos que investem em projetos das organizações. Os interesses particulares desses atores podemimpulsionara criação de arranjosorganizacionais específicos para atender a diferentes demandas, criando formatos muito particulares em cada organização(BOSSLE et al., 2017; MIRANDA; SAES, 2012).
Em face desse contexto, o objetivo desse artigo é compreender como os mecanismos da certificação Fairtrade influenciam no arranjo organizacional das cooperativas enquanto organizações híbridas. Para alcançar tal objetivo, o estudo se fundamenta nas contribuições teóricas de autores epistemologicamente mais próximos às vertentes interpretativistas, que compreendem o hibridismo organizacional como um fenômeno plausível de interpretações em organizações sociais como as cooperativas. A estruturação principal dessa vertente teórica decorre do artigo seminal sobre o tema de Julie Battilana e Matthew Lee (BATTILANA; LEE, 2014), no qual é apresentado um modelo para compreensão das dimensões em organizações híbridas.
Paralelamente são adotadas as demais contribuições da autora em parcerias com outros pesquisadores que exploram os ajustes e tensões provenientes do modelo híbrido de organização(BATTILANA, 2006; BATTILANA et al., 2015; BATTILANA; CASCIARO, 2013; BATTILANA; LECA; BOXENBAUM, 2009; DIMITRIADIS et al., 2017; EBRAHIM; BATTILANA; MAIR, 2014; LEE; BATTILANA, 2020). Além desses são adotadas contribuições de autores que compreendem o hibridismo como um processo ancorado de forma mais crítica às particularidades do modelo cooperativista (ARRUDA et al., 2018; AUDEBRAND, 2017; BAUWENS; HUYBRECHTS; DUFAYS, 2020; KOLK; LENFANT, 2016; TEIXEIRA; ROGLIO, 2015).
O artigo tem potencial para avançar no campo dos estudos interpretativistas de gestão, ao compreender os elementos institucionais que fazem e dão sentido para os seus praticantes (LIMA, 2011), no caso os produtores inseridos na rede Fairtrade, em organizações híbridas. Além disso, acreditamos no potencial do mesmo, para tecer novos argumentos para confirmar ou contestar os estudos sobre cooperativas, que as consideram como organizações sociais híbridas que se moldam a partir de distintos atores, processos, conflitos, negociações e pressões institucionais.
2 HIBRIDISMO ORGANIZACIONAL EM COOPERATIVAS
Os estudos de base neoinstitucionalistas voltaram-se ao longo do tempo para compreensão do papel das instituições na ação dos sujeitos, na realização de determinadas práticas e na institucionalização de determinadas políticas(SELZNICK, 1996). Os pesquisadores da vertente do neoinstitucionalismo sociológico, preocupados em compreender os modelos socialmente apropriados para construção da identidade dos atores, deram ênfase no papel da cultura como elemento responsável por criar e recriar a percepção destes nas organizações (MORRISON; WILHELM JR., 2007). A partir da década de 90, onde estes estudos exploraram robustamente tal perspectiva, os estudos ficaram mais concernidos com o papel de múltiplas lógicas institucionais para atuação dos sujeitos nas organizações (OCASIO; THORNTON; LOUNSBURY, 2017; THORNTON; OCASIO; LOUNSBURY, 2012).
A abordagem de lógicasinstitucionais surge como uma metateoria preocupada em compreender formas subjacentes de atuação das organizações, responsáveis por moldar as condições heterogêneas, a estabilidade e a mudança, tanto nos indivíduos quanto nas organizações (OCASIO; THORNTON; LOUNSBURY, 2017). Essas múltiplas lógicas institucionais, tornaram-se resultado dos cenários múltiplos que as organizações se desenvolvem, fundamentadas na atuação entre o público e o privado; entre oeconômico e o social; entre o social e o ambiental; dentre tantas outras formas(VILLAR, E. G.; RESE; ROGLIO, 2019).
Essas lógicas institucionais ganharam fôlego e força na literatura contemporânea, principalmente por explorar o complexo cenário de vivência das organizações, a partir de adaptações, sobreposições e lutas por espaço, direcionando a organização para a mudança(LEE; BATTILANA, 2020). Nesse contexto, surge o hibridismo de lógicas institucionais ou como é convencionalmente caracterizado, o hibridismo organizacional (HAIGH et al., 2015).
O hibridismo organizacional pode ser compreendido como um fenômeno, uma qualidade ou um estado adquirido, no qual as organizações expostas ao compartilhamento de atividades estão envolvidas (BATTILANA; LEE, 2014; WOOD JR., 2010). O hibridismo organizacional representa, então, a junção de distintas lógicas de atuação, adotadaspela organização de forma conjunta em um mesmo tempo e espaço, podendo ser desenvolvidas na busca por uma lógica dominante, ou a partir da adaptação de estruturas pré-concebidas (como a partir de normas de qualidade e certificação) ou pela atuação permanente de lógicas institucionais complementares (BATTILANA; DORADO, 2010).
A atuação dos atores neste ambiente de múltiplas lógicas é fundamental para ampliar a concepção da organização e permitir que os espaços de tensões, justaposições e diálogos não paralisem a organização (CHU; WOOD JR., 2008; WOOD JR., 2010). Nessa pesquisa, o foco está voltado para o hibridismo organizacional formado a partir de estruturas pré-concebidas, que no caso estudado, advém das normas do Fairtrade.
Vários estudos têm explorado o hibridismo organizacional a partir de, ou como resultado de distintos formatos organizacionais. Boa parte das pesquisas exploram o crítico papel da governança para alinhar as missões econômicas e sociais evitando assim a deriva de uma das partesconstituintes (EBRAHIM; BATTILANA; MAIR, 2014; GROSSI; THOMASSON, 2015; MAIR; MAYER; LUTZ, 2015; WOLF; MAIR, 2019).
Outros, enfatizam as inúmeras tensões geradas pelo forçoso ajuste entre as partes (AUDEBRAND, 2017; CHU; WOOD JR., 2008; TEIXEIRA; ROGLIO, 2015) e a valorização da comunidade local em organizações com caráter mais social (DIMITRIADIS et al., 2017; FERNANDES et al., 2015; MARQUIS; BATTILANA, 2009). De forma complementar, alguns estudos mais recentes se dedicaram a compreender o papel da força de trabalho para a composição das organizações híbridas (BAUWENS; HUYBRECHTS; DUFAYS, 2020; DUFAYS; HUYBRECHTS, 2016; KOLK; LENFANT, 2016).
Apesar dessas múltiplas abordagens presentes na literatura a respeito do hibridismo organizacional, os estudos de Julie Battilana e Mathew Lee são utilizados como base neste estudo, uma vez que os autores vêm ao longo do tempo, desenvolvendo pesquisas a respeito de organizações sociais híbridas que representariam um modelo “ideal” de hibridismo organizacionalem uma perspectiva interpretativista. Para os autores, tais organizações têm a dupla missão de buscar resultado econômico e propósito social ao mesmo tempo, não podendo assim serem encaixadas como organizações com finalidade lucrativa, ou como organizações filantrópicas, tampouco como instituições públicas, mas sim, como uma organização híbrida (BATTILANA; LEE, 2014). Assim, Battilana e Lee (2014) desenvolveram um modelo para ser refletido em organizações sociais híbridas como as cooperativas.
O modelo preconizado pelas autoras considera cinco dimensões que compartilham em seu núcleo o negócio, como um produto econômico e a ajuda para o desenvolvimento de grupos, como um produto social. Tais dimensões estão distribuídas em cinco, sendo elas: 1) Relacionamentos Interorganizacionais; 2) Cultura; 3) Arranjo Organizacional; 4) Composição da força de trabalho e; 5) Atividades Organizacionais.
Cada dimensão pode ter seus aspectos sociais e comerciais mais diferenciados ou mais integrados, dependendo das estratégias e ações implementadas. Isso determinará o quão central ou periférico é cada aspecto para o empreendimento e o quanto o projeto híbrido está consolidado, conforme apresentado na Figura 1:

Segundo Battilana e Lee (2014), oArranjo Organizacional tem a preocupação direta em compreender o caminho pelos quais os líderes transformam estratégia em ação a partir de três mecanismos: 1) Estrutura Organizacional; 2) Incentivos e Sistemas de Controle e; 3) Governança. Cada um dessesmecanismos, deve especificar como os gestores conduzem os objetivos do empreendimento a partir da estrutura desenvolvida, quais mecanismos permitem incentivar e controlar a deriva da missão econômica e social e, quais mecanismos de governança estão articulados a isso.
A preocupação com essas questões pode revelar o projeto de gestão desenvolvido pelas organizações híbridas para evitar a supervalorização de uma de suas vertentes, bem como as formas de governança que permitem a administração de tensões e conflitos (EBRAHIM; BATTILANA; MAIR, 2014).
As cooperativas por compartilharem desde a sua constituição sua natureza econômica e social, se enquadram na perspectiva das organizações híbridas vivendo o constante paradoxo para ajuste das partes de sua empresa econômica e sua associação democrática (AUDEBRAND, 2017). A preocupação a respeito do arranjoorganizacional desenvolvido nas cooperativas, têm levantado questionamentos a respeito das garantias do modelo cooperativista para sustentar esse projeto híbrido.
Conforme apontado por Paranque e Willmot (2014) as estruturas de propriedade e governança dos cooperados podem se confundir na condução do empreendimento,criando paralisias organizacionais, impedindo que a organização avance. De forma complementar, a vigília aos princípios democráticos, pode impedir a adaptação aosmodelos prontos de empreendimento, garantindo que os desejos dos cooperados sejam traduzidos em estratégias de gestão.
3 O COMÉRCIO JUSTO A PARTIR DO FAIRTRADE
Nessa nova concepção de organizações híbridas, atuando em múltiplos cenários e mediadas por novas relações de produção, distribuiçãoe consumo, o comércio justo surge como um movimento capaz de tentar diminuir as assimetrias de poder presentes na lógica mercantilista que alimenta o modelo econômico vigente (RAYNOLDS; MURRAY; TAYLOR, 2004; SCHMELZER, 2010; VAIL, 2010).
De acordo com Cotera e Ortiz (2009) o comércio justo pode ser entendido como “(...) o processo de intercâmbio de produção-distribuição-consumo, visando a um desenvolvimento solidário e sustentável. (COTERA; ORTIZ, 2009, p.60)”. Essa proposta de justiça nos elos da cadeia, culminou na busca por certificação de produtos para garantir sua procedência e assegurar práticas confiáveis aos consumidores.
O início dessa proposta data o final dos anos 1980 e início da década de 1990, a partir da iniciativa de certificação conhecida inicialmente como Max Havelaar. Tal iniciativa ganhou notoriedade em grande parte da Europa e em alguns países da Ásia, passando a ser replicado em outros mercados (FAIRTRADE, 2019). Assim, em 1997 cria-se a Fairtrade Labelling Organizations International (FLO) em Bonn, Alemanha, unindo organizações ligadas ao comércio justo em diferentes esferas nacionais, responsáveis por criarem normas de certificação em todo o mundo (FLOCERT, 2021).
Para Cortera e Ortiz (2009) a união de todas as iniciativas em um selo de comércio justo internacional permitiu o trabalho em conjunto, no intuito de promover a exportação de pequenos produtores distantes em todas suas dimensões, dos grandes mercados, em uma tentativa mais justa de redução da desigualdade na distribuição de bens entre Norte e Sul.
O Sistema Fairtrade, passa a ser compreendido então, como um sistema de governança e certificaçãoque tenta diminuir as injustas relações de produção, distribuição e consumo, remunerando melhor a produção, valorizando as práticas e a cultura local (RAYNOLDS, 2017). Enquanto sistema de governança é instituído pela FLO regulando normas e comportamentos a partir de fóruns de diálogo e aprendizagem coletiva. Enquanto sistema de certificação, o Fairtrade é desenvolvido por um conjunto de critérios desenvolvido pela FLOCERT, fundamentado no tripé econômico, social e ambiental e cuidadosamente auditado nos empreendimentos certificados (FAIRTRADE, 2019; FLOCERT, 2017).
No Brasil, o sistema Fairtrade é desenvolvido pela Coordenadora Latino-Americana e do Caribe de Pequenos Produtores e Trabalhadores do Comércio Justo (CLAC) e pela Associação das Organizações de produtores Fairtrade do Brasil (BRFAIR), articulando produtores e exportadores de café, ervas, chás herbais, especiarias, frutas, mel, nozes, suco de frutas, polpas, oleaginosas e frutos oleaginosos (FLOCERT, 2021).
A CLAC forma redes específicas a partir de cada grupo de produtores, no intuito de fortalecê-los em suas cadeias produtivas específicas, como por exemplo a “Rede Café”, que agrega 155 organizações de produtores por toda América Latina e Caribe (CLAC, 2019). A BRFAIR por sua vez, atua identificando as demandas das OPP e, articulando estratégias para o fortalecimento dos grupos produtivos considerando as particularidades de cada produto (BRFAIR, 2019).
Os empreendimentos de produtores de café dominam o cenário do Fairtrade nacional, visto que dos 57 empreendimentos de produtores certificados, 29 são de produtores de café (51%) (FLOCERT, 2021) . O mercado de café Fairtrade é uma alternativa para as injustiças do mercado convencional, que explora a produção dos países do hemisfério sul, oferecendo cafés de baixa qualidade aos grandes consumidores finais do produto, além de oligopolizar o mercado, comercializando seus produtos apenas com as grandesorganizações (FRIDELL; HUDSON; HUDSON, 2008; OLIVEIRA; ARAÚJO; SANTOS, 2008)
O Fairtrade por sua vez, garante melhor poder de barganha aos cafeicultores, melhorias nas práticas de produção com incentivo à produção orgânica, redução ao máximo de pesticidas, acesso a linhas específicas de crédito, garantias de preços mínimos, pagamento de prêmio com caráter social, além da inserção dos filhos em atividades educacionais e culturais sem que os mesmos sejam obrigados ao trabalho no campo (GEIGER-ONETO; ARNOULD, 2011; LEVI; LINTON, 2003).
Apesar de existirem outras formas institucionalizadas de operacionalização do comércio justo (com uso de outros selos e até sem o seu uso), pode-se dizer que o sistema Fairtrade é uma das formas mais reconhecidas e exitosas em todo o mundo (FAIRTRADE, 2019). Esse sistema apesar de ser amplamente difundido e buscar diminuir as desigualdades principalmente no rentável mercado de café é alvo também de críticas pelos que não identificam toda essa justiça na cadeia (BEJI-BECHEUR; DIAZ PEDREGAL; OZCAGLAR-TOULOUSE, 2008; KHAREL; MIDDENDORF, 2015).
Além disso, existem questionamentos desse modelo, a respeito do real potencial dos mecanismos criados, para de fato estabelecer transparência nas transações entre os membros da cadeia e verdadeiros incentivos à participação dos produtores(RAYNOLDS; MURRAY; TAYLOR, 2004; VÁSQUEZ-LEÓN, 2010).
No entanto, conforme apresentado por Bacon (2005), apesar das críticas, o Fairtrade representa uma alternativa para os pequenos produtores de café tão vulneráveis às diversas oscilações do mercado, mas que enxergam nesse modelo, oportunidades para o crescimento e valorização de suas práticas mais solidárias e adaptadas às suas realidades.
Cabe analisar com maior rigor se as normas, regras e incentivos criados pelo Fairtrade, de fato auxiliam nessa busca para um cenário alternativo ao convencional, ou se as mesmas, restringem e moldam a organização para adotar um arranjo pré-moldado, cerceando a liberdade e as práticas culturais dos atores locais.
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O presente estudo pode ser classificado como uma pesquisa qualitativa, pois objetivamos compreender as infinitassubjetividades presentes no cotidiano da organização de forma íntima, a partir domomento que foi possível interagir com a realidade dos sujeitos (BANSAL, PRATIMA, KEVIN, 2011). Paralelamente,o estudo se classifica como exploratório, pois permitiu compreender a realidade apresentada pelos diferentes sujeitos da pesquisa, a partir da vivência do seu cotidiano, dos espaços de articulações e do contexto local em que estão inseridos (STEBBINS, 2001).
A investigação se fundamentou no estudo de caso, no intuito de valorizar a riqueza do específico (SIGGELKOW, 2007; YIN, 2003), realizado durante dois anos (2017-2018) na Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (CAFESUL), localizada na cidade de Muqui, região sul do Espírito Santo. A organização foi criada em 1998, faz parte do modelo de cooperativismo da OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), possui cerca de 150 cooperados, 11 funcionários e aderiu à certificação do Fairtrade em 2008. Atualmente, a organização é a única cooperativa de produtores de café, certificada pelo Fairtrade no Espírito Santo e a primeira do Brasil certificada com o café da variedade Conilon (FLOCERT, 2021). Tais elementos enfatizam as particularidades do caso escolhido para a investigação.
Para compreensão dessa realidade foi estabelecida a triangulação de técnicas de coleta de dados, a partir de 46 entrevistas semiestruturadas, 9 observaçõesnão participantes e 7 documentos. As entrevistas foram conduzidas por meio de um roteiro pré-determinado, construído com base no quadro teórico dessa investigaçãoe aplicadas a membros internos da cooperativa (cooperados e dirigentes), membros de organizações de apoio e capacitação, membros de instituições financeiras locais, membros do poder público local e estadual e traders. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.
Para compreensão dessa realidade foi estabelecida a triangulação de técnicas de coleta de dados, a partir de 46 entrevistas semiestruturadas, 9 observaçõesnão participantes e 7 documentos. As entrevistas foram conduzidas por meio de um roteiro pré-determinado, construído com base no quadro teórico dessa investigaçãoe aplicadas a membros internos da cooperativa (cooperados e dirigentes), membros de organizações de apoio e capacitação, membros de instituições financeiras locais, membros do poder público local e estadual e traders. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.
Os documentos(internos da cooperativa e referentes às orientações do Fairtrade e CLAC) por sua vez, foram selecionados a partir dos critérios de autenticidade (origem não questionável), representatividade (representa publicações comuns sobre o assunto) e significação (claro e compreensível) considerando a originalidade, pertinência e contribuição para interpretação das informações, conforme defendido por Flick (2009).
Os dados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo, adaptando o protocolo desenvolvido por Sonpar e Golden-Biddle (2008). Tal protocolo foi então desenvolvido em quatro etapas: 1) Leitura Flutuante dos dados; 2) Codificação Temática; 3) Categorização Analítica; 4) Categorização Teórica.
A partir da leitura flutuante dos dados, visando adequar o texto e corrigir erros de digitação, todo o corpus (material coletado) foi inserido no software Atlas.ti. O segundo passo consistiu na codificação temática, identificando possíveis códigos e temas a partir dos segmentos de texto que representavam o assunto da pesquisa. Na terceira fase foi realizada a Categorização Analítica, reunindo temas e códigos em Categorias que fizesse sentido comum, ou seja, categorias que explicassem a reunião do grupo de códigos.
Tais categorias, por sua vez, foram aproximadas ao final, às três categorias teóricas, definidas por Battilana e Lee (2014), na discussão sobre arranjoorganizacional das organizações sociais híbridas. A síntese do protocolo utilizado está disposta no Quadro 2, bem como o objetivo de cada categoria.

Visando resguardar a identidade dos respondentes, os entrevistados foramnomeados apenas pelo cargo que ocupam.
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO
5.1 A estrutura organizacional forjada a partir do Fairtrade
O surgimento da CAFESUL é resultado de um conjunto de esforços dos produtores rurais de Muqui-ES para a busca de melhores oportunidades no mercado cafeeiro. O principal desejo era o de constituir um empreendimento que os tirasse das dependências dos atravessadores de café.
No entanto de 1998 a 2002 conforme dito pelo Presidente “ela ficou praticamente estagnada, ou seja, existia no papel, mas não existia funcionando [...](Presidente)”. A cooperativa demorou então quatro anos para de fato atender às demandas dos produtores. Um dos motivos dessa estagnação inicial apontada pelos cooperados e identificado constantemente a partir das observações em campo, era o perfil estritamente econômico do Presidente nos anos iniciais, como apontado na fala do cooperado:
[...] Então na época, o outro gestor que aqui estava ele tinha uma visão muito grande, eu acho que ele se esqueceu de que ele estava aqui em Muqui. Isso aí a pessoa tem que saber onde você está qual o público que você tem, ele tinha uma visão muito grande e ele passava um pouco disso para os sócios que isso aqui ia se tornar uma mega cooperativa e não é assim. Se nós somos pequenos a cooperativa tem que ser pequena, se nós somos um grupo de sócios de baixa renda, de baixa produção porque os nossos limites são limitados no caso, tem que ser também uma cooperativa pequena, mas ela tem que ser autossustentável, aqui para o movimento dela e também a vida de quem está lá no campo. [...] (Cooperado 5).
Como apontado na fala do cooperado, havia um desequilíbrio entre o perfil de gestor demandado pelos cooperados frente à realidade local e, o perfil encontrado na organização.
A sintonia entre o perfil do líder e o perfil da organização pode ser vista como um dos grandes problemas enfrentados pelas organizações híbridas, pois tal descompasso pode gerar problemas de definição de seu núcleo de negócio e núcleo social, visto que ao invés de promover atividades balizadas entre os dois campos, o perfil do gestor pode levar um dos lados a se tornar periférico. Tal cenário é similar ao apontado nos estudos de Battilana e Dorado (2010), a respeito do desalinhamento de perfis de trabalhadores nas organizações de microfinanças da Bolívia.
A perifericidade dada ao núcleo social da CAFESUL, em seus anos iniciais, demandou uma articulação dos cooperados para decidir o que deveria ser feito com o empreendimento. Em 2002, um grupo de produtores mais próximos às demandas da cooperativa, elegeu um novo presidente que reconhecia a necessidade de atendimento ao mercado e a fuga dos atravessadores, ao mesmo passo que melhorias sociais fossem construídas junto aos cooperados.
Nessa retomada da organização pelos cooperados, que acreditaram no empreendimento e organizaram uma nova diretoria, a proposta da certificação Fairtrade foi apresentada pelo atual Gerente de Agricultura Familiar da Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (SEAG), que na época era secretário municipal de agricultura e já conhecia a certificação. A proposta para a certificação da CAFESUL surge a partir da indicação de um membro ligado ao poder público municipal em um período turbulento de mudança de postura da organização, tanto para sobrevivência, quanto para tentar se reposicionar enquanto empreendimento. As circunstâncias foram totalmente favoráveis à certificação e essa aconteceu, como descrito no relato do Presidente:
[...] Aí vimos a palestra dele [do consultor do Fairtrade] e voltamos empolgados, “opa, tábua de salvação”,ou seja, nós vamos ter um diferencial a esse povo que atravessa café aqui e eles não tem como chegar nesse diferencial porquê? É uma certificação coletiva, tem que ser a cooperativa, ou uma associação, mas a cooperativa como um todo é certificada não é uma certificação individual nem posso fazer grupos, então quer dizer, tudo vem amarrado [...] (Presidente).
A fala do atual presidente sinaliza como a certificação tornou-se fundamental para resgatar a cooperativa da situação dramática em que se encontrava. O uso da expressão “tábua de salvação” evidencia que a certificação chega como uma salvadora, por permitir que a organização tentasse se reerguer, se adequando a algumas diretrizes e conseguindo se posicionar ao que tanto almejava: a desvinculação da figura de mais um atravessador na cidade.
Além disso, a visão estritamente comercial dos atravessadores se sobressai na fala do Presidente como algo de que eles gostariam de se desvincular. A imagem organizacional centrada em uma visão estereotipada ou controversa como essa, pode atrapalhar a missão das organizações híbridas, pois tanto seu público local quanto os possíveis investidores, podem não se reconhecerem enquanto participantes dessa estrutura como já evidenciado por Ebrahim, Battilana e Mair (2014) e Marquis e Battilana (2009).
O atendimento aos critérios estipulados, demandou da CAFESUL uma drástica postura em relação ao perfil de cooperado que atendia a essa nova realidade. A cooperativa realizou uma consulta individual com cada cooperado interessado a atender ou não aos critérios da certificação e viu seu quadro social reduzir de 540 para 127 cooperados (24%).
Tal redução impactou o lado econômico da organização que perdeu um volume expressivo de receitas justamente em um momento que demandava maiores investimentos. Como apontado por Marquis e Battilana (2009) o processo de mudança nas organizações híbridas é permeado por momentos de desequilíbrios de uma das partes do negócio, que se não bem administrados, podem gerar tensões e conflitos irretratáveis.No caso da CAFESUL, taisdesequilíbrios comprometeram a princípio a lógica econômica do empreendimento.
No intuito então de atender a essa nova estrutura indiretamente demanda pelo Fairtrade, a cooperativa ampliou seus laços de parcerias para construção de uma rede de apoio que garantiria a infraestrutura necessária para o negócio.
Parcerias foram estabelecidas como o poder público local e estadual para a captação de emendas parlamentares para a compra de maquinários. Junto às fundaçõespúblicas como por exemplo a Fundação Banco do Brasil, foram captados recursos para compra de equipamentos e viabilização de projetos ambientais. Junto ao INCAPER, SENAR, SEBRAE e OCB/SESCOOP-ES foram estabelecidas parcerias para treinamentos nas questões ligadas respectivamente às questões de capacitação rural, gestão do negócio e capacitações em cooperativismo. Junto aos tradersforam estabelecidas parcerias comerciais para a compra do café conilon certificado Fairtrade.
Como apontado por Dimitriadis et al. (2017), as empresas sociais híbridas tendem a garantir a sua proposta de negócio híbrido à medida que se estruturam em uma rede de apoio que garantem tanto sua impressão comercial quanto social. Enquanto os órgãos de apoio garantiram o desenvolvimento das questões sociais da cooperativa, os traders e órgãos públicos garantiram o investimento às questões econômicas da organização.
Pelo exposto é possível constatar o que Mair, Mayer e Lutz (2015) já apontavam em seus estudosem organizações sociais híbridas: a adoção de lógicas institucionais conflitantes pode causar uma mudança institucional ou paralisia na tomada de decisão. No caso da CAFESUL, a articulação democrática dos membros a partir do que Audebrand (2017)caracteriza como “senso de comunalidade” típico em cooperativas, permitiu uma rearticulação do grupo aos verdadeiros interesses.
Nesse processo de retomada da missão, que se desviava para o que Battilana e Lee (2014) enfatizam como perifericidade dos objetivos, ou perda da orientação, não houve estagnação da cooperativa, não houve comprometimentodo projeto híbrido, mas o impulsionamento da mesma para a mudança organizacional.
Ebrahim, Battilana e Mair (2014)destacam que no processo de mudança organizacional as tensões são inevitáveis, cabendo aos principais líderes assumirem o papel de empreendedores institucionais. Para Battilana (2006), nas organizações sociais híbridas os empreendedores institucionais conduzem as práticas ora econômicas, ora sociais, equilibrando-as para que os envolvidos não levem a organização para outros formatos ou não assumam apenas um deles, inviabilizando assim o caminho para a mudança conjunta das lógicas de atuação.
Na CAFESUL essa construção do caminho da mudança veio com o Fairtrade, encabeçado pelos principais interessados no negócio e que não queriam desistir de uma das partes híbridas da organização. Assim, as parcerias estabelecidas permitiram que perante à queda de arrecadação financeira culminada pela redução no volume de cooperados, a organização priorizasse a qualidade e o atendimento à novos nichos de mercado.
Tais parcerias, visando o atendimento ora às demandas por conhecimento dos produtores, ora por melhorias em suas condições de trabalho, ora por práticas mais robustas de gestão, ora por mudanças socioambientais do processo de produção e ora por atendimento aos parâmetros de qualidade do mercado, ao invés de destituírem o modelo híbrido, o reforçou. A cooperativa passou a transitar em novas lógicas institucionais de atuação para além de uma simples comerciante de café.
Apesar das diferentes escalas de hibridização, podendo uma organização ser mais ou menos híbrida, dependendo dos movimentos e parcerias que faz(BAUWENS; HUYBRECHTS; DUFAYS, 2020), para Dufays e Huybrechts (2016), independentemente dos graus, o que permite o projeto adotado ter força é o potencial tanto da equipe de trabalho quanto da visão fornecida pelos parceiros de negócio. A visão mais horizontalizada e estruturada permitiu que, apesar das demandas para produção e comercialização Fairtrade, os membros se tornassem mais capacitados para atender tanto aos anseios dos novos mercados, quanto melhorarem suas condições de trabalho e vida.
5.2 Os incentivos e sistemas de controle
Nem tudo são flores no vasto cenário das novas regras vindas com a certificação Fairtrade. Vários novos mecanismos determinados pelo Fairtrade para que a organização estruturasse suas atividades, passaram a existir a partir dessa nova realidade.
Dentre os principais instrumentos, cabe destacar os que demandaram maiores cuidados da organização, para adequação ao seu arranjo organizacional: o Prêmio Fairtrade; o PDCJ e; o Preço mínimo. Taismecanismos agem no intuito de garantir que os princípios de justiça do Fairtrade sejamrespeitados em toda a cadeia (do produtor ao consumidor final) (FLOCERT, 2021).
Os mecanismos de compra e venda do café Fairtrade devem respeitar a proposta desenvolvida pela FloCert para certificação que considera a cotação pela Bolsa de Londres para o café robusta (conilon), os preços fixos de preço mínimo, o prêmio Fairtrade, além dos incentivos para produção do orgânico, conforme especificado abaixo:
O preço mínimo fairtrade é um valor que deve ser respeitado em todas as transações com café Fairtrade. Que varia pela espécie (arábicas ou robustas) e por processos de pós-colheita (lavado ou natural) [...] O prêmio Fairtrade é um valor fixo de USD$0,20 centavos/libras que não pode sofrer nenhuma dedução. Nos contratos, o prêmio Fairtrade deve ser indicado como um valor separado e adicional ao preço. Além destes dois componentes do preço, o sistema Fairtrade também tem um diferencial para cafés orgânicos de USD$0,30 centavos/ libras que, igualmente ao prêmio anterior, não pode sofrer deduções (CLAC, 2016, p.2).
Como demostrando no documento que expõe os procedimentos para cálculo de preço do comércio justo, o sistema de precificação deve considerar dois cenários: 1) Quando a referência do preço de mercado é menor ou igual que o Preço Mínimo Fair Trade; 2) Quando a referência do preço de mercado é maior que o Preço Mínimo Fair Trade (CLAC, 2016).
Sempre se deve considerar qual é o maior valor: a referência de preço de mercado (bolsas) ou Preço Mínimo. Contudo, se o preço de referência de mercado observado nas cotações da bolsa é menor ou igual ao preço mínimo, o Fairtrade garante que o mínimo será pago aos produtores, cobrindo os seus custos de produção e um valor adicional. Neste caso, o preço pago será o valor fixo do preço mínimo para cada tipo de café, acrescido do prêmio e do diferencial de orgânico, caso seja.
Por se tratar de um mecanismo mais complexo de mercado, a CAFESUL investiu para que o presidente e os funcionários ligados à compra e negociação de café, tivessem conhecimento para compreender os parâmetros de preço mínimo e as formas de aplicação do prêmio Fairtrade. Os mecanismos de incentivo à essa vertente comercial da organização tornaram-se possíveis a partir de cursos de negociação da Bolsa feito pelo Presidente e cursos de Q Grader (R Grader para o café Robusta) feito pelo Gerente Operacional, voltados para degustação e classificação do café conilon.
Apesar do Fairtrade não estipular qualidade do café, os traders estabelecem seus parâmetros de compra, demandando conhecimento do Gerente Operacional que é responsável pela compra junto aos cooperados. Quanto maior for a compra de café, maior é o valor pago pelo Prêmio Fairtrade. Como evidenciado, o Prêmio Fairtrade é utilizado para os investimentos às questões ligadas ao comércio justo, ou seja, o mecanismo econômico que regula o mercado de café Fairtrade é diretamente responsável pelo fomento às demandas sociais(CEZAR; ROSA, 2020; OLIVEIRA; ARAÚJO; SANTOS, 2008).
A utilização do Prêmio Fairtrade é viabilizada a partir do Plano de Desenvolvimento do Comércio Justo (PDCJ). Os recursos financeiros provenientes do Prêmio Fairtrade são investidos nas questões sociais e ambientais da organização em três linhas específicas: 1) no investimento do negócio; 2) no sustento ou; 3) na comunidade (FLOCERT, 2021).
Na AGO, a prestação de contas do PDCJ do ano anterior é apresentada e o PDCJ do próximo ano é votado. No caso da CAFESUL, no ano de 2017, o investimento do Prêmio foi delimitado em sete tipos de despesas: 1) Melhoria da qualidade do café; 2) Despesas administrativas; 3) Capacitações; 4) Comunicações; 5) Eventos Sociais; 6) Uso de parte do Prêmio para eventuais oscilações do mercado e; 7) Ambientais. Apesar do dinamismo na aplicação dos recursos, boa parte das despesas estão voltadas para atividades de “Melhorias da Qualidade do Café” e “Ambientais”visando o aumento sustentável da produção.
Mesmo a organização dotando de outros mecanismos de planejamento como o Planejamento Estratégico, é pelo PDCJ que se observa a valorização da sua proposta híbrida ao utilizar um mecanismos de incentivo e controle para que, em assembleia, o quadro social tenha condições de visualizar, questionar, aprovar ou reprovar o que será investido em suas esferas econômicas e sociais. Essa proposta é alinhada ao que a CLAC incentiva:
[...] mas o que a gente quer com o planejamento, os valores que estão por trás disso são democracia, que todo mundo participe, que tenha uma avaliação de necessidades dos sócios, que os sócios possam compartilhar essas expectativas e desenvolver estratégias conjuntas para chegar nas metas que eles querem conseguir, então é um cumprimento do check list, mas atrás disso tem uma série de valores e desenvolvimento também de habilidades né, porque a pessoa tem que aprender a planejar, os líderes têm que funcionar melhor, então são desenvolvimentos sociais de como uma coisa vai puxando a outra né [...] (Coordenadora da CLAC).
Como apontado pela coordenadora da CLAC, esse planejamento pode ser encarado como um mecanismo formal da organização para incentivar seus funcionários à execução de atividades pautadas no ritmo de desenvolvimento que seus líderes desejam e incentivar a transparência na organização.
O crescimento a todo custo não é uma postura da organização e reforçar essa ideologia junto aos funcionários por meio de mecanismos formais, como na elaboração do PDCJ e do Planejamento Estratégico, diminui tanto interesses particulares, como a execução de atividades não fundamentadas.
Caso as estratégias de atuação não sejam pautadas em um planejamento que considere sua estrutura híbrida, tensões e conflitos intratáveis podem ser gerados pelo descompasso de suas múltiplas vertentes, comprometendo o futuro da organização uma vez que ela pode não se reequilibrar mais (BATTILANA et al., 2015). Todavia, apesar dos instrumentos de controle estipulados pelos Fairtrade demandaremuma intervenção direta dos gestores e funcionários junto aos cooperados, a organização age por meio de capacitações, incentivo à participação e transparência para se adequar ao estipulado e evitar os conflitos.
Apesar da literatura sobre hibridismo deixar nítida a separação entre incentivos para o reforço do projeto híbrido e controle para evitar a deriva da missão, essa realidade é turva na cooperativa estudada. Ao mesmo tempo que as estratégias de capacitação e incentivo à participação podem ser vistas como formas de garantir o exercício democrático e os anseios da certificação, elas também podem ser vistas como formas de controle.
Para Paranque e Willmott (2014) é curioso ter que resguardar práticas democráticas em cooperativas para que elasnão sejam “engolidas pelo capitalismo” (AUDEBRAND, 2017). Porém, os autores destacam o quão contraditório isso pode ser, à medida que, desde a constituição, é na adaptação ou no enfrentamento a esse modelo que essas organizaçõesse desenvolvem.
Visto dessa forma, entendemos que o modelo Fairtrade não determina as parcerias que a organização deva fazer, mas a impulsiona a adotar um padrão como toda forma de certificação. E é nesse padrão principalmente para alcançar maior valor do Prêmio Fairtrade, que o que é essência do modelo organizacional torna-se auditado e reforçado em práticas que já deveriam ser exercidas. Isso foi apontado também nos estudos de cooperativas romenas realizados por Bauwens, Huybrechts e Dufays (2020)que vistas pelas lentes do hibridismo,apontaram a necessidade de reforço do modelo cooperativista para não se perderemnas práticas de mercado.
De forma complementar, os instrumentos da certificação como o Preço Mínimo e PDCJ também se mostram ao mesmo tempo como mecanismos de incentivo e controle. O incentivo às decisões participativas articuladas pelo PDCJ, garante o que Raynolds (2020)caracteriza como “empoderamento comunitário”. A autora enfatiza que os produtos são valorizados por suas práticas que garantem uma produção mais sustentável e, ao invés de vender tal intangível ao atravessador, os produtores recebem um valor que os incentiva a continuar e planejar coletivamente.
O mesmo acontece com oinstrumento de Preço Mínimo, que apesar de restringir a venda por um preço abaixo do valor estipulado, garante que nenhum produtor seja prejudicado na ânsia de vender rápido o que produziu a um preço irrisório. Para Kolk e Lenfant (2016) em seu estudo com 53 organizações sociais híbridas, entre elas 5 cooperativas que atuam na comercialização de café na República Democrática do Congo e Ruanda, tais mecanismos de preço promovem uma educação de todos os membros da cadeia. Para os autores isso ocorre à medida que socializam a ideia de valorização do trabalho desses grupos, que muitas vezes só se reconhecem valorizados, à medida que as organizações cooperativas os enxergam e os promovem em diferentes espaços.
5.3 Governança
Ao atender às exigências da certificação, a cooperativa adere à uma estrutura pré-concebida do Fairtrade, porém, desenvolve mecanismos de governança que representam a verdadeira identidade da organização. Conforme apontado porEbrahim, Battilana e Mair (2014), esses mecanismos são utilizados na organização híbrida, para coordenar os interesses de seus públicos, na responsabilização por desempenho e na prestação de contas, evitando o pêndulo para um dos lados.
Assim, para traduzir as estratégias desenhadas em ação e de certa forma amenizar as cobranças da certificação, a CAFESUL age por meio de três mecanismos de governança: 1) alinhamento de perfis da equipe de trabalho; 2) articulação democrática em rede e; 3) a não subversão aos apelos mercadológicos.
Ao forjar o seu arranjo enquanto organização cooperativa ao desenho do Fairtrade, a CAFESUL utilizou de seus mecanismos para conhecer novos mercados a partir de feiras nacionais e internacionais da cafeicultura. Com o projeto de transitar para a produção orgânica (uma vez que como demonstrado é um critério de pagamento de maior valor à produção e por ser um desejo dos cooperados), a organização decidiu alinhar seus parâmetros na contratação de funcionários, como apontado na fala abaixo:
[...] na parte técnica a gente até olha um pouco assim um pouquinho como que é aquela questão do olhar daquele técnico para a questão do ambiental, do social porque na verdade é o que a gente vai trabalhar lá na frente então se você pega um cara que trabalhou numa empresa de agroquímico a vida inteira, ele não tem o perfil para trabalhar com a gente né, com certeza não vai ter [...] (Presidente).
Conforme dito pelo Presidente, o perfil esperado para os cargos técnicos faz parte de uma estratégia definida para verificar se há aderência com o perfil da cooperativa. Os candidatos devem possuir experiências que facilitem o trabalho das questões ambientais e sociais.
Experiências passadas com atividades que possam interferir o trabalho e o aprendizado nessa direção, não são bem vistas pela diretoria, que tem clara sua vertente de buscar uma produção mais sustentável, que caminhe para o orgânico e valorize o desenvolvimento social dos cooperados.
Como mencionado por Battilana e Dorado (2010), a complexidade na contratação da força de trabalho das organizações híbridas é latente, pois mecanismos de contratação e socialização do trabalho devem ser condizentes com os dúbios ideais que a organização defende. Além disso, o perfil deve alinhar o funcionário à missão comercial e social do empreendimento, pois essessão os responsáveis por possíveis mudanças na organização (BATTILANA; LECA; BOXENBAUM, 2009).
A partir do foco na contratação de técnicos concisos de sua atuação ambiental e social, a cooperativa criou um setor específico para a preparação dos cooperados para as auditorias. Apesar da CLAC realizar o acompanhamento, a cooperativa decidiu ter um setor e um funcionário específico para isso, evitando que o cooperado seja surpreendido com uma auditoria sem a devida preparação.
Esse acompanhamento é essencial para o cooperado, uma vez que, com o passar dos anos, os critérios vão se tornando mais específicos, demandado maior compreensão a respeito do que é permitido ou não, como especificado na fala abaixo:
[...] acho que tá apertando um pouquinho agora, questão de depósito de herbicida esses negócios, inseticida e todo aquele trabalho que tem que fazer com o pessoal da propriedade lá, questão de lixo, questão da moradia não pode ser perto da lavoura e uma moradia minha é perto da lavoura, então botamos placa pra proteger esse pessoal perto da casa né, no mais tá aí tranquilo não tem. Agora essa outra, eles estão querendo parar com esse negócio de Roundup né, aí que eu não sei se eu não consigo capinar a lavoura hoje [...] (Cooperado 7).
Essa mudança dos padrões de produção apontada pelo Cooperado 7, demanda uma mudança de postura do cooperado e da organização. Apesar de pequena em relação ao número de sócios, a cooperativa tem uma preocupação em se estruturar de forma sustentável e criar mecanismos para que os cooperados vejam sentido nas mudanças propostas.
Dessa forma, ao alinhar o perfil de contratação ao que de fato era demandado pelo cooperado, a cooperativa possibilitou a partir dos mecanismos criados, o subsídio àmudançainstitucional proposta(BATTILANA, 2006), sem afastar o cooperado do empreendimento.
O segundo mecanismos criado pela cooperativa é a proposta de articulação democrática em rede, conforme explanado na Figura 2:

Localmente, a CAFESUL age segundo os princípios cooperativistas da OCB-ES e sendo estruturada pelas parcerias com esferas de governo (Prefeitura Municipal e Governo Estadual), Instituições Financeiras (Fundação Banco do Brasil, Banco do Brasil, Cresol e SICOOB) e Instituições de Apoio e Capacitação (INCAPER, SEBRAE, SENAR, SESCOOP-ES). Essas instituições de apoio e capacitação preparam (cada uma em sua área) os cooperados para atenderem ao que é cobrado pelo Sistema Fairtrade.
Ao fazer parte do Sistema Fairtrade, a CAFESUL segue um conjunto de normas de certificação (desenvolvidas pela FLOCERT) e um sistema de governança (instituído pela FLO), construindo fóruns de diálogo e aprendizagem coletiva. Para manter e desenvolver a certificação, a CLAC age no intuito de ajustar democraticamente as normas às realidades dos produtores de cada um dos empreendimentos pertencentes à BRFAIR.
De forma paralela, a CLAC fomenta a “Rede Café” para fortalecer os produtores latino-americanos e do Caribe em um formato próximo de suas demandas relacionadas ao produto café. A “Rede Café” ajusta as diretrizes que serão validadas periodicamente pela FLO e FLOCert. Tais regras determinam os mecanismos de compra e venda pelos traders até o consumidor final.
Como apontado por Battilana et al. (2015) algumas tensões podem se tornar produtivas para o desempenho das organizações híbridas. No caso da CAFESUL, a governança democrática articulada em rede cria inúmeros espaços de tensões que são produtivos para a organização. No processo de adequação de normas, os cooperados têm a oportunidade de ajustar as normas “vindas de fora” à realidade brasileira. Essa articulação democrática ocorre nos espaços democráticos como fóruns e reuniões promovidos pela CLAC e BRFAIR onde cada organização tem direito a voz e voto. Assim, essa governança incentivada pela participação, possibilita um respiro da organização, frente ao emaranhado denormas vindas de cima pra baixo pelo sistema Fairtrade.
Outro mecanismo de governança no qual a cooperativa tenta se impor é a não subversão aos apelos mercadológicos. Como apontado, a cooperativa realiza suas transações comerciais em uma rede de traders certificados pelo Fairtrade. No entanto, apesar de o Fairtrade não cobrar um padrão de qualidade de café, os traders têm seus critérios de compra muito bem definidos, como apontado na fala abaixo:
[...] a gente tentou fazer um café que precisaria especificamente de uma bebida, que na região é muito difícil e eles não conseguiram atender à bebida, porque tipo a máquina faz, independente do que vai sair na máquina lá vai sair um café bom, agora bebida a máquina não resolve. Então, tipo assim, ele tem uma boa intenção, o [Gerente Operacional] sabe o que ele tem que fazer, poxa, ele prova concurso e tal, ele sabe provar café, mas ele sabe da dificuldade que a região dá pra ele também. Tanto que nós tentamos fazer um café arábica com eles também, toda a vida. Pô, se tiver um arábica traz que a gente tem mais giro para esse padrão de café e a região dele infelizmente ali onde está o cooperado deles é mais Conilon que já é por altitude porque por produção mesmo ele não consegue [...] (Trader1 Empresa A)[...] Fazer conilon especial é penoso! (Trader 2 Empresa A)
Como apontado nas falas dos traders“bebida a máquina não resolve” e “é penoso”, o café conilon é difícil de ser comercializado enquanto bebida. Uma saída fortemente apontada pelos traders é a transição para o café arábica.
Essa luta para a cooperativa se posicionar em um mercado dominado pelo café arábica como no Fairtrade, torna o projeto cada vez mais questionado pelos seus parceiros de negócios e demais membros da BRFAIR. Nas observações realizadas durante a reunião de revisão das normas Fairtrade foi possível notar como a luta pelo reconhecimento é complexa, na rede formada quase que em sua totalidade por produtores de café arábica. Contudo apesar dessa pressão dos traders, a cooperativa não tem a intenção de realizar atransição, pois esse tipo de café representa um mecanismo de identidade junto aos cooperados que sempre produziram essetipo de produto.
Devido ao não atendimento aos apelos do mercado, a cooperativa teve que se inclinar para novos rumos e elaborar novas estratégias para sobrevivência enquanto organização híbrida. Assim, foram desenvolvidas marcas próprias de café: Casario (valorizando as questões do patrimônio histórico local) e o PóDe Mulheres (produzido por Mulheres com reforço para as questões de gênero). Esses novos nichos de mercado permitiram que a organização se aproximasse ainda mais dos cooperados que, apesar de tantas adaptações para se adequarem à certificação, viram seus projetos antigos se concretizando.
Como apontado, a governança representa uma das áreas mais estudadas no campo do hibridismo organizacional. É possível observar no caso da CAFESUL, uma confirmação da teoria em relação à necessidade de articulação da equipe de trabalho, como apontado por Kolj e Lenfant(2016) eDufays e Huybrechts (2016). A rede de parceiros comerciais, políticos e capacitadores (tanto nas práticas de produção, quanto no reconhecimento das questões do trabalhador) é que impede o pêndulo para um dos lados como apontado por Lee e Battilana (2020). Assim, ratificamos o que a literatura é enfática em dizer: o tipo de parceria (comercial, social, ambiental, etc.) pode influenciar a forma de governança híbrida e a busca por resultados organizacionais.
No entanto, como defendido no artigo de Battilana e Lee (2014) que representa a espinha dorsal desse artigo, a organização social ao representar um modelo ideal de organização híbrida, consegue reunir elementos particulares que não permite encaixá-la de forma única nos formatos existentes.
Dessa forma, a articulação democrática, tão valorizada nas cooperativas e resgatada como um elemento basilar para ser certificada como organização Fairtrade, torna as cooperativas um modelo ainda mais particular de organização híbrida. Para Villar, Rese e Roglio (2019) o modelo preconizado pelas cooperativas, além de resgatar os valores associativos que as valorizam, permitem uma tradução da estratégia de forma mais aberta, compartilhando de forma transparente suas ações, a partir dosdistintos membros presentes na rede.
6 CONCLUSÃO
No intuito de compreender como os mecanismos da certificação Fairtrade influenciam no arranjo das cooperativas enquanto organizações híbridas,esse estudo de caráter exploratório, se apoiou no estudo de caso de uma pequena cooperativa de produtores de café, para trazer à tona elementos particulares da organização para tal compreensão.
Apesar de não generalizável, o estudo evidenciou que existe um transbordamento de estruturas ao forjar o arranjo organizacional da cooperativa ao desenho do Fairtrade. Esse transbordar estrutural leva partes da cooperativa a não se encaixarem na estrutura do Fairtrade (como por exemplo os mecanismos de governança que valorizam a identidade do empreendimento) e, leva partes do Fairtrade a não serem desenvolvidas pela cooperativaem sua integridade (como o planejamento de mais ações sociais no PDCJ).
A estrutura organizacional desenvolvida pela cooperativa para atender principalmente aos normativos sistemas de controle do Fairtrade, foi propiciada a partir das parcerias estabelecidas. Apesar do impacto, para se adaptar e se articular democraticamente em uma rede de atores, a cooperativa conseguiu manter o seu projeto híbrido enquanto empreendimento econômico e associação democrática, sem perder sua identidade enquanto uma cooperativa do interior do Espírito Santo, produtora de café conilon. Esse processo evidenciou a importância do crescimento sustentável das organizações híbridas para que suas partes constituintes não promovam desequilíbrios.
O Fairtrade, enquanto certificação e mecanismo de governança, participa entãopositivamente do projeto híbrido da cooperativa, ao reforçar certas práticas de gestão econômica e social, mas ao mesmo tempo, deve ser analisado de forma crítica, ao demandar da organização a formalização de parcerias que podem levar à perda de identidade.
Como já salientado, o reforço das práticas econômicas e sociais deveriam já vir como essência do modelo cooperativista, todavia, como o mercado de café é altamente mercantilizado e demanda mais de uma atuação econômica do que social, a certificação assegura o projeto híbrido. Paralelamente, a formação de parcerias comerciais e até as de capacitação podem impulsionar a organização para um padrão de produção que não necessariamente represente o desejo dos produtores. Isso deve ser vigiado com maior cuidado, de forma crítica, para que, como apontado por Battilana e Lee (2014) não ocorra a deriva da missão.
Assim, esse estudo avança na discussão das organizações híbridas por evidenciar que os mecanismos de certificação pré-determinados como o Fairtrade, podem comprometer o projeto híbrido das cooperativas, uma vez que, indiretamente, ao se aproximarem das demandas de mercado, podem comprometer a vertente social.
Por mais que o Fairtrade possibilite relações mais justas e éticas, no cenário da cafeicultura, a rede formada é muito influenciada pelos critérios de qualidade do mercado e isso incentiva as cooperativas a se adequarem. Todavia, o estudo mostrou que a criação de mecanismos de governança, que valorizam a identidade do empreendimento, podem representar um meio para subverter essa lógica sem se desfazer da certificação.
Além disso, o artigo avança ao mostrar que em organizações híbridas como cooperativas regidas por normas de certificação, e regras cuidadosamente auditadas, os instrumentos de governança e controle podem ser confusos, pois à medida que impulsiona a organização para a mudança organizacional, também a restringe. Novos estudos podem apontar se essa restrição é para a garantia do modelo híbrido e da atuação das distintas lógicas institucionais em prol da missão ou se existem fatores particulares que demandam tal movimento.
O estudo de caso por mais que apresente particularidades locais, deixa de apresentar uma visão mais abrangente dos demais empreendimentos certificados pelo Fairtrade no Brasil. Em face dessa limitação do estudo, novas investigações podem apontar estudos de toda a rede formada, apontar as principais tensões estruturais, bem como os mecanismos próprios de governança desenvolvidos. De forma complementar, questões relacionadas à justiça em toda a cadeia do Fairtrade, também podem se configurar como pauta de novas investigações.
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