Entrevista
Entrevista realizada com Annateresa Fabris para o dossiê “Fotografia, cultura visual e história: perspectivas teóricas e metodológicas” (dezembro 2017)
Entrevista realizada com Annateresa Fabris para o dossiê “Fotografia, cultura visual e história: perspectivas teóricas e metodológicas” (dezembro 2017)
Estudos Ibero-Americanos, vol. 44, núm. 1, pp. 162-165, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Resumo: Annateresa Fabris é formada em História pela Universidade de São Paulo (1969), com mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo (1977) e doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (1984). Professora titular da Universidade de São Paulo, onde dedicou uma vida ao estudo das Artes, com contribuições incontornáveis nos domínios da Teoria e História da Arte Contemporânea. Nesta entrevista nos brinda com uma reflexão sobre o percurso original que traçou ao relacionar fotografia, história e artes. Agradecemos à professora a generosidade e disposição em compartilhar com os nossos leitores um pouco da sua história.
▪ Conte-nos um pouco sobre a sua formação e a sua aproximação à fotografia como objeto de estudo.
□ Formei-me em História em 1969, na Universidade de São Paulo, e, naquele momento, não havia no curso nenhuma disciplina que lidasse com a questão da imagem, a não ser História da Arte. Como havia estudado História da Arte no colegial, inscrevi-me na disciplina, que era optativa, no segundo ano do curso (1967) e isso acabou determinando meu encaminhamento futuro. Até terminar o curso de História, realizei em paralelo um primeiro aprofundamento em História da Arte, lendo uma bibliografia aconselhada pelo Prof. Walter Zanini, frequentando cursos livres e conferências e visitando exposições. A fotografia, naquele momento, representava para mim uma possibilidade visual entre outras, que eu acompanhava por meio de exposições.
O interesse por ela como objeto de estudo surgiu na Itália, quando frequentei o curso de Pós-Graduação em História da Arte Medieval e Moderna da Universidade de Nápoles (1978-1980). Tratou-se, porém, de um interesse paralelo, já eu que estava realizando pesquisas sobre o futurismo, que renderam dois livros publicados e um terceiro no prelo. Em novembro de 1979, como tema de seminário das disciplinas História da Arte Contemporânea e Crítica de Arte, fui incumbida de uma pesquisa sobre as repercussões sociais da fotografia entre 1860 e 1876, usando como principal fonte de referência cinco jornais napolitanos. Naquele momento, entrei em contato com livros como Arte e fotografia, de Aaron Scharf, e Sobre fotografia, de Susan Sontag, que eu, aliás, adquirira ao chegar à Itália.
De volta ao Brasil no segundo semestre de 1980, deixei um pouco de lado o estudo da fotografia. No primeiro semestre de 1982, estimulada por Anna Mae Barbosa, ministrei a disciplina “Arte e fotografia no século XIX” no programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Ao longo da década de 1980, a fotografia dividiu espaço com outras atividades profissionais, mas mesmo não sendo um tema predominante em minha reflexão, ela foi abordada em três disciplinas de Pós-graduação: “Arte e fotografia no século XX” (1º semestre de 1985), “Fotografia: usos e funções no século XIX” (1º semestre de 1989) e “Arte e fotografia nos séculos XIX e XX” (2º semestre de 1990). Da disciplina ministrada em 1989 resultou o livro Fotografia: usos e funções no século XIX, publicado pela Edusp em 1991, no qual publiquei a pesquisa realizada nos jornais napolitanos. Se bem que de maneira não sistemática, a reflexão sobre a fotografia começou a adensar-se, tendo como fios condutores a questão do estatuto realista da fotografia e a problemática do simulacro e da construção artificial como estratégias fundamentais da imagem técnica. Preocupada com a necessidade de oferecer aos estudantes de Artes Plásticas um leque maior de oportunidades de estudo da questão da imagem, criei uma disciplina optativa para o curso de graduação, História da fotografia, que ministrei entre 1993 e 1996, ano de minha aposentadoria. Infelizmente, ela acabou sendo extinta pouco depois.
Nesse novo momento de trabalho, pude dedicar-me, de maneira mais intensiva aos estudos fotográficos. No 1º semestre de 1999, com a proposta “Percorrendo o retrato fotográfico: a construção de uma identidade virtual”, participei do projeto interdisciplinar “Modernidades tardias no Brasil”, coordenado pelo Centro de Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, com o patrocínio da Fundação Rockefeller. O interesse pelo tema levou-me a extrapolar a exigência de produção de um ensaio e eu acabei escrevendo o livro Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico, publicado em 2004 pela Editora UFMG. No 2º semestre de 1999, obtive uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq com o projeto “O desafio do olhar: arte e fotografia no período das vanguardas históricas”, que se transformou numa publicação em dois volumes (2011 e 2013). Outro projeto patrocinado pelo CNPq – “A fotografia e a crise da modernidade: da arte pop às vertentes pós-modernas” – teve como primeiro resultado o livro A fotografia e a crise da modernidade (2015), no qual, dado o volume de material analítico, só pude analisar alguns aspectos da problemática. Desde 2008, quando deixei de colaborar com a Pós-Graduação da ECA, tenho financiado minhas pesquisas, pois resolvi não solicitar mais bolsas ao CNPq. A análise das relações entre pop art e fotografia, abordada no livro de 2015, teve outros resultados, publicados sob forma de artigos, mas não tenho conseguido levá-la adiante no ritmo que eu pretendia imprimir-lhe, pois me voltei para outras temáticas fotográficas. Mas tenho intenção de, neste ano, dedicar-me ao tema com o estudo das imagens anacrônicas de James Rosenquist. Resta lembrar nesse breve perfil que tentei interessar editoras na criação de coleções destinadas a estudos fotográficos, mas os resultados não foram os esperados, já que os projetos “Fotografia: texto e imagem” (em colaboração com Yvoty Macambira para a editora Mercado de Letras, de Campinas) e Arte&Fotografia (em colaboração com Tadeu Chiarelli para a editora Martins Fontes, de São Paulo) tiveram curta duração.
▪ Nesse início deste século a história da arte foi confrontada com uma série desafios, entre os quais as noções de cultura visual, de antropologia da imagem, estudos visuais, etc. Como você avalia esse cenário?
□ Nas pesquisas realizadas para O desafio do olhar: arte e fotografia no período das vanguardas históricas e A fotografia e a crise da modernidade, tive oportunidade de constatar o desinteresse quase total dos historiadores da arte pela questão fotográfica. E isso mesmo no caso de artistas como László Moholy-Nagy e Aleksandr Ródtchenko, cuja produção fotográfica não pode ser esquecida, já que ela é parte integrante de sua poética. Vi-me obrigada a compor uma espécie de quebracabeça para configurar um mapa possível da questão da relação entre fotografia e artes visuais e realizar alguns recortes, já que me interessava fazer alguns estudos de caso e não articular um panorama mais geral e necessariamente mais superficial. Estou fazendo esse preâmbulo porque acredito que a História da Arte não deve apenas dialogar com disciplinas como cultura visual/estudos visuais ou antropologia da imagem, mas sobretudo repensar o que ela deveria fazer ao deparar-se com a questão da imagem técnica. Tenho a impressão de que muitos historiadores da arte não conseguem lidar ainda hoje com os desafios propostos pela fotografia, entre os quais a contestação do ato criador, que retira do objeto sua aura de subjetividade, e seu caráter de produto múltiplo e serial, que põe em xeque o conceito de unicum. Diria que essa mesma dificuldade se aplica ao estudo de estratégias de deslocamento como a colagem e a fotomontagem, nem sempre estudadas em suas devidas dimensões: discussão das convenções representativas, das noções de autoria e habilidade artesanal e contribuição da imagem técnica na configuração de uma nova iconografia baseada na fragmentação e na descontinuidade. Esses dois exemplos parecem-me suficientes para afirmar que boa parte da historiografia artística continua a não interrogar-se sobre a propriedade de categorias marcadas pela temporalidade histórica e, logo, pelo obsoletismo e pela necessidade de revisão constante. Trazendo a questão para o momento atual, no qual as imagens tecnológicas desempenham um papel fundamental, a necessidade de revisão de parâmetros parece-me ainda mais urgente. Carregados de uma carga ideológica associada a funções passadas, os termos “autoria”, “artista” e “obra” deveriam ser substituídos por novas denominações, capazes de demarcar mais claramente as potenciais inovações que as novas imagens trazem a concepções ainda vigentes por preguiça mental e interesses mercadológicos. Já que a nova imagem não é mais “mimese”, “representação”, “impressão”, “derivação” ou “marca”, pois se apresenta como uma “intuição intelectual”, uma “entidade autônoma”, uma “epifania” (Mario Costa), seria necessário deixar de lado um vocabulário associado a um conjunto de referências fundamentadas numa história milenar, que mantinha outras relações com o universo da técnica.
Os desafios da História da Arte não param por aí, envolvendo, por exemplo, a problemática das questões de gênero, das representações étnicas, da velha disputa centro/periferia, transformada agora em global/local, e assim por diante. Como a História da Arte, que não pode prescindir de parâmetros qualitativos, conseguirá enfrentar a presença de novos atores? Uma vez que não seria possível incorporá-los automaticamente numa narrativa complexa, que critérios adotar para avaliar sua contribuição (e/ou sua marginalidade em relação) a um sistema mais amplo, integrado por sistemas de educação artística, mercado, concepções estéticas diferenciadas etc.?
Não tenho bem certeza se a História da Arte recebe desafios efetivos das novas disciplinas, já que ela está, por exemplo, na base das formulações da Cultura Visual, ao lado da Antropologia e dos Estudos Culturais. Se a Cultura Visual for pensada como o estudo das relações dos sistemas sociais com os processos visuais de entendimento da realidade, parece-me que vários historiadores da Arte fizeram isso e de maneira competente, bastando citar o nome de Michel Baxandall. O mesmo pode ser dito em relação aos Estudos Visuais, se eles forem entendidos como um campo de análise das relações entre sistemas visuais e poder. Evidentemente, essas novas disciplinas têm uma diferença em relação à História da Arte, pois lidam com todo tipo de manifestação visual, sem estabelecer hierarquias. No caso da História da Arte, parece-me que esse tipo de questão deveria ser analisado pontualmente, a cada caso concreto, pois não é sua tarefa primordial lidar com todas as imagens produzidas por uma sociedade, e sim com aquelas que receberam a qualificação de arte. Mas, mesmo nesse caso, existem antecedentes de historiadores da arte interessados em ampliar esse leque. Lembraria o caso de Alois Riegl, que, em 1901, publica o livro Artesanato romano tardio, no qual abole qualquer hierarquia entre artes maiores e artes menores, uma vez que uma ajuda a compreender a outra. Lembraria ainda um exemplo bem recente: o de Georges Didi-Huberman, o qual, na mostra Levantes, expõe um argumento – o gesto sem fim, incessantemente retomado da pulsão de liberdade – acompanhado de uma exposição de imagens de diferentes naturezas e proveniências, que não funcionam como ilustração e sim como a forma visual possível para compreender o recorte proposto. É interessante notar que o historiador, ao justificar sua proposta – testar como as imagens apelam às nossas memórias para dar forma a nossos desejos de emancipação –, fala num projeto estético, integrado também por imagens artísticas…
▪ A fotografia passaria a ser objeto de uma crítica especializada no final do século XX, com uma série publicações, entre as mais badaladas a revista October. Na sua avaliação essa crítica prosperou? Quais os desdobramentos que você poderia apontar?
□ October foi, sem dúvida, fundamental para uma reavaliação da questão fotográfica, assim como foi determinante para o debate sobre a Cultura Visual. Mas ela tem um viés peculiar, que não contempla outras possibilidades de estudo da imagem fotográfica. Por isso, parece-me importante lembrar a contribuição de publicações como History of Photography, Afterimage, das infelizmente extintas La Recherche Photographique e Études Photographiques, da recémcriada Transbordeur, além de revistas gerais de arte que trazem frequentemente artigos dedicados à fotografia. No caso do Brasil, lembraria Zum, Boletim (que creio não existir mais), Anais do Museu Paulista, sem deixar de lado outras publicações periódicas abertas à questão da fotografia, como, por exemplo, ArtCultura. Seria também necessário frisar que, atualmente, é difícil circunscrever a questão da fotografia a um campo restrito, haja vista seu uso pelos artistas visuais, o que abre outras possibilidades de análise e enriquece as possibilidades de abordagem de uma imagem que foi vista com desconfiança em seus primórdios. Outro dado a ser levado em conta é a crescente atenção dada pelos museus à fotografia e a existência no Brasil do Instituto Moreira Salles que tem impulsionado de maneira decisiva o interesse do público por esse tipo de imagem e incentivado a formação de curadores especializados.
▪ Em seus estudos como você considera a abordagem histórica?
□ Meu interesse pela fotografia é, primordialmente, de natureza estética, já que a abordagem escolhida é a das relações entre duas formas de visualidade. Isso não significa que eu não lance mão de questões históricas, mas elas brotam da análise das imagens, ou seja, elas não são anteriores ao corpo a corpo com a obra. Levanto essa questão porque me parece que muitos historiadores não sabem trabalhar devidamente com a imagem. Em muitas análises, ela continua a funcionar como uma ilustração, já que a problemática não brota dela, mas gira em volta dela. Isso me parece preocupante porque significa, no fundo, a permanência de uma desconfiança em relação à possibilidade de a imagem ser uma fonte efetiva de conhecimento e informação. Existem, evidentemente, exceções nesse panorama, mas o quadro geral é ainda bastante problemático.