Entrevista

“O racismo tem uma história” – Entrevista com Silvia Hunold Lara

“The Racism Has a History” – Interview with Silvia Hunold Lara

“El racismo tiene una historia” – Entrevista con Silvia Hunold Lara

Mariana P. Candido
Universidade de Lisboa, Portugal
Eugénia Rodrigues
University of Notre Dame, Estados Unidos da América

“O racismo tem uma história” – Entrevista com Silvia Hunold Lara

Estudos Ibero-Americanos, vol. 44, núm. 3, pp. 518-524, 2018

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Recepção: 03 Outubro 2018

Aprovação: 03 Outubro 2018

Resumo: Silvia Hunold Lara graduou-se em História (1977) e doutorou-se em História Social (1986) pela Universidade de São Paulo. Nesse ano, tornou-se professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), passando a professora livre-docente em 2004 e a titular em 2009. Atualmente, é professora colaboradora aposentada. Foi pesquisadora visitante em diversas instituições, como o centro Latin American and Caribbean Studies da Northwestern University (2006). Dirigiu e integrou diversos projetos de pesquisa financiados por agências públicas, sendo pesquisadora 1A do CNPq. Suas pesquisas incidem sobre a história da escravidão, das relações entre cultura e poder na América portuguesa e História e Direito. É autora de Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808 (1988) e Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder (2007); editora, com Joseli M. Nunes Mendonça, de Direitos e Justiças no Brasil (2006) e, com Gustavo Pacheco, de Memória do Jongo (2007); e organizadora da edição comentada de Ordenações Filipinas, livro V (1999) e do repertório Legislação sobre Escravos Africanos na América Portuguesa, in: José Andrés-Gallego (coord), Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica (2000, CD-Rom).

▪ Mariana P. Candido - Eugénia Rodrigues

A sua trajetória acadêmica começa com a investigação sobre a violência contra a população escrava em meados da década de 1980, área na qual o livro Campos da Violência abriu novos paradigmas e revelou novos temas e fontes. Como vê a questão da produção acadêmica no Brasil e no exterior sobre a escravidão e a violência, um tema recorrente na sua obra?

□ Silvia Hunold Lara

Desde a década de 1980 a historiografia brasileira sobre a escravidão cresceu e se diversificou muito. Até então, os principais debates situavam-se em torno das características econômicas do escravismo (se capitalista, feudal ou um modo de produção próprio) e do caráter da relação senhor-escravo (se paternalista ou violenta). Hoje há uma profusão de estudos acadêmicos sobre vários temas, com discussões sobre tópicos específicos e muita pesquisa baseada em fontes primárias. Esse desenvolvimento decorre em grande parte das mudanças historiográficas ocorridas na década de 1980, que colocaram os escravos no centro da história da escravidão – um movimento que ocorreu quase simultaneamente no Brasil e nos Estados Unidos, então os principais centros de estudos sobre essa temática.

Quando fiz a pesquisa e escrevi o Campos da Violência, um dos debates importantes era aquele sobre o caráter benevolente ou cruel da escravidão. Procurei quebrar essa oposição, mostrando que “rigor” e “mercê” (para usar palavras do século XVIII) se combinavam no exercício do domínio senhorial sobre os escravos. Tratei de entender como funcionava a relação de dominação, como poucos homens brancos exerciam seu poder sobre muitos homens e mulheres escravizados, deslocando o modo como a questão era apreendida até então. E mostrei que havia pelo menos duas maneiras de analisá-la, examinando a lógica senhorial e o ponto de vista dos escravos. Vários colegas que estavam pesquisando e escrevendo suas teses e livros nesse momento também buscavam entender a perspectiva escrava, procurando analisar a história da escravidão “a partir de baixo”, como então se dizia.

Incluir a visão escrava da escravidão redimensionou a abordagem de temas e questões que até então haviam orientado os estudos sobre a escravidão no Brasil. Essa “virada” historiográfica foi marcante e, desde então, os historiadores passaram a prestar mais atenção aos sujeitos históricos – não apenas em senhores e escravos, em geral e de forma abstrata, mas em senhores de grandes e pequenas posses, que viviam da exploração de escravos em lavouras, minas ou nas cidades, exercendo seu domínio direto ou colocando-os ao ganho; em traficantes que transportavam muitos ou poucos cativos, pelo Atlântico ou pelas rotas internas; em cativos recém-chegados ou nascidos no Brasil, procedentes desta ou daquela região da África, especializados ou não; em libertandos que estavam em vias de obter a liberdade de diversos modos; em libertos de primeira ou segunda geração, antes ou depois da abolição do tráfico ou da própria escravidão; em homens livres pobres que não tinham escravos ou tinham um ou dois cativos. Uma sociedade bem mais complexa, composta por categorias sociais que tinham interesses e lógicas diversos. A própria história da escravidão ganhou modulações importantes, conforme a periodização e as características regionais. Ainda que se possa falar em escravismo, há muitas diferenças entre o modo como escravos e senhores viveram a escravidão em Pernambuco no século XVII ou nas Minas do ouro na primeira metade do século XVIII, por exemplo.

Desde então, os historiadores também passaram a desconfiar cada vez mais de explicações genéricas e abstratas, estruturadas por lógicas sistêmicas, distanciando-se dos cientistas sociais. Já não basta mais ter bons conceitos e uma boa teoria, e fazer um “estudo de caso” para testá-los; tornou-se imprescindível realizar uma pesquisa empírica extensiva e fazer emergir dela as explicações capazes de abarcar a complexidade das situações históricas examinadas.

Como já disse no Campos da Violência, afirmar simplesmente que a escravidão é violenta explica pouco. Qual a relação de dominação que não é violenta? No início do século XVIII, alguns padres achavam que ministrar 400 chicotadas em lotes de 40, por dez dias alternados, era um castigo “justo, moderado e cristão”. Hoje uma única chicotada é um inadmissível. Contudo, consideramos “normal” ter o tempo de trabalho controlado em horas. Mas, no século XVIII, houve revoltas contra isso e muitos relógios foram destruídos. O trabalho do historiador é justamente mostrar essas diferenças. Mais que qualificar a escravidão como violenta é preciso identificar o que caracteriza o domínio escravista e o distingue das demais formas de dominação e exploração. É por isso que, hoje em dia, o binômio escravidão e violência já não orienta as pesquisas históricas, que se voltam para diversos outros aspectos da experiência de senhores, escravos e libertos durante a vigência do escravismo e depois dele.

No entanto, esse binômio ainda permanece vivo a orientar debates importantes – não na pesquisa histórica, mas em várias áreas das ciências humanas e no Direito. A discussão sobre a escravidão contemporânea é um bom exemplo. Do ponto de vista legal, desde 2003 no Brasil, esse crime se define por submeter alguém a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou condições degradantes de trabalho, ou por restringir a locomoção do trabalhador em razão de dívida ou retenção de documentos, ou ainda por manter vigilância ostensiva no local de trabalho. Sem ser nomeada, a violência está presente – já não é a do castigo físico como na escravidão histórica, mas se desdobra em vários elementos que vão além da presença de armas e capangas para vigiar os trabalhadores. A definição diz muito sobre os limites do que pode ser tolerado em termos de exploração do trabalho no nosso mundo e esse é um tema interessantíssimo para a pesquisa histórica. No entanto, já li o pronunciamento de um juiz que se opunha a caracterizar uma situação como sendo de escravidão, pois os trabalhadores “resgatados” não haviam sido encontrados presos (literalmente!) dentro dos barracões da fazenda… Esse juiz tinha uma imagem da escravidão histórica, que a associava diretamente ao uso de grilhões e ao confinamento nas senzalas, e queria aplicá-la para caracterizar as relações de trabalho numa fazenda no século XX! Evidentemente adotava uma abordagem conservadora ao julgar a situação, mas não é isso que quero ressaltar aqui. O que quero destacar é a enorme distância entre essa forma de ver a escravidão e aquela que resulta das pesquisas que vêm sendo feitas nos últimos 30 anos.

▪ MPC-ER

A sua obra trouxe importantes contribuições não só ao tema da escravidão no Brasil, mas, igualmente, sobre legislação e justiça. Também publicou importantes artigos sobre Palmares e sobre a batalha de Pungo Andongo, em Angola. Como foi essa transição e a sua aproximação a esses temas?

□ SHL

A legislação sempre esteve presente em minhas pesquisas. Foi por onde comecei: fazendo um levantamento da legislação portuguesa sobre a escravidão no Brasil no período colonial. O primeiro artigo que publiquei compara as determinações referentes aos cativos (apreendidos nas guerras contra os mouros) com aquelas sobre os escravos africanos, constatando que, além de não haver uma continuidade entre essas determinações, do ponto de vista legal, as relações escravistas na América portuguesa eram pouco reguladas. Estudando temas do Direito, da administração e do governo no Antigo Regime, compreendi que o exercício do poder senhorial se fazia no âmbito doméstico e que a lei tinha um significado bem diferente do que tem hoje. Era preciso ir além das normas legais, buscar o modo como as relações entre senhores e escravos eram operadas cotidianamente. Para isso, era preciso superar uma dificuldade em termos de fontes: a documentação oficial é silenciosa sobre o modo de vida de senhores e escravos e há poucos relatos de viajantes para o período colonial. Foi a documentação judicial que me permitiu conhecer o dia a dia das fazendas e reconstituir aspectos da experiência dos escravos. Para poder utilizá-la, é preciso compreender seus filtros e então continuei a lidar com os temas do Direito e da justiça.

Dentre os vários temas que abordei ao analisar as relações entre senhores e escravos em Campos dos Goitacases no século XVIII, incluíam-se as fugas e a apreensão dos fugitivos. Em 1995, João Reis e Flávio Gomes estavam organizando uma coletânea (que depois foi publicada com o título de Liberdade por um fio) e me convidaram para escrever um artigo. Resolvi retomar o tema das fugas e fiz uma pesquisa sobre os capitães-do-mato, que resultou no artigo que foi publicado naquele volume. Ao fazer essa pesquisa, topei com um livro inédito de Ernesto Ennes, que dava continuidade à compilação de fontes sobre Palmares que ele havia publicado em 1938. Isso, por si só, já indicava que havia mais documentos sobre Palmares dos que os que eram conhecidos… Nesse período, porém, eu estava envolvida na elaboração de um inventário da legislação sobre a escravidão africana na América Portuguesa (desdobramento das pesquisas sobre legislação iniciadas no final dos anos 1970, que foi publicado em 2000). Nesse conjunto documental, havia um alvará, de 1682, que trazia determinações sobre a escravidão e a liberdade dos negros dos Palmares. Era o único documento legal do período colonial publicado por Perdigão Malheiro, cujo livro (publicado em 1866) até então servia como uma espécie de manual para os que quisessem saber algo sobre os aspectos legais da escravidão no Brasil. A dificuldade de entender o sentido daquele alvará, que remetia a um episódio pouco conhecido da história de Palmares, e a leitura que dele fazia Perdigão Malheiro, completamente alheia ao contexto palmarista, reforçavam a percepção de que havia muito o que investigar sobre Palmares e seus significados ao longo da história do Brasil. Mas, nesse período, eu também estava desenvolvendo outras pesquisas, sobre as relações entre cultura, escravidão e poder no século XVIII, que resultaram no Fragmentos setecentistas (publicado em 2007).

Palmares foi ficando para depois – e tornou-se o centro de minhas preocupações nos últimos dez anos. Comecei pela documentação: primeiro compilando tudo o que havia sido publicado e, depois, indo atrás dos originais. Como eu suspeitava, havia muito mais documentos do que até então se imaginava – muita coisa importante que não havia sido publicada e muitos problemas de transcrição nas compilações de fontes e nas referências presentes na bibliografia. Na pesquisa, me concentrei em estudar alguns episódios que eram mencionados apenas de passagem pela historiografia – o principal deles é o acordo de paz entre Gana Zumba e o governo de Pernambuco, firmado em 1678. Foi esse acordo que deu origem à aldeia de Cucaú, destruída em 1680. A reescravização dos que estavam em Cucaú causou polêmicas em Portugal e está na origem das determinações do alvará de 1682, que mencionei há pouco. Esse enigma me parece bem resolvido – seja a respeito dos encaminhamentos que levaram a sua promulgação, seja em relação ao interesse que ele despertou em meados dos anos 1860 em juristas como Perdigão Malheiro.

Realizar uma pesquisa extensiva nos arquivos e reler toda a bibliografia sobre Palmares foram atividades instigantes, especialmente em virtude do diálogo entre o que eu ia descobrindo nas fontes e os caminhos interpretativos que haviam ficado em segundo plano na historiografia sobre Palmares mas que se revelavam importantes tanto para compreender a história desses mocambos e sua gente, quanto em termos dos movimentos historiográficos mais amplos sobre a diáspora africana nas Américas. Explicando melhor: nos últimos quinze anos, cada vez mais, os estudos sobre a escravidão africana e a experiência dos escravos nas Américas passaram a levar em conta a cultura dos escravizados. Paradoxalmente, no entanto, nos estudos sobre Palmares, essa vertente historiográfica – que havia sido importante no início do século XX – ficou praticamente relegada ao esquecimento diante de abordagens que enfatizavam interpretações mais classistas, multiculturalistas ou atlântica de Palmares. Retomei a tradição historiográfica que enfatizava as raízes africanas de Palmares, combinando-a com os estudos mais recentes sobre a história da África Central (proveniência da maioria esmagadora dos escravos levados para Pernambuco) pois elas ajudam a entender melhor a percepção que as autoridades coloniais tinham dos mocambos e de seus habitantes. E eles sabiam que estavam lidando com gente africana, que havia organizado um mundo que seguia valores e procedimentos políticos centro-africanos. As fontes indicam isso. Por exemplo: governantes de Angola e Pernambuco e conselheiros do Ultramarino concordavam não ser conveniente que os herdeiros do reino do Ndongo que havia sido aprisionados depois da batalha de Pungo Andongo, em 1671, ficassem no Brasil pois poderiam voltar para Angola ou fugir para Palmares! Eles percebiam muito bem os significados das conexões políticas entre as duas margens do Atlântico para os escravizados e para os habitantes dos Palmares. A história da África Central de colonização portuguesa nos séculos XVI e XVII ajuda também a entender melhor o que vai dito nas entrelinhas da documentação sobre os habitantes dos mocambos palmaristas e sobre como sobreviveram ao longo de tanto tempo (e de diferentes modos) nas matas de Pernambuco.

A diáspora dos herdeiros do Ndongo deportados para Portugal chamou minha atenção e investiguei um pouco mais o tema, escrevendo um artigo sobre eles. Nessa pesquisa, outra questão se fez presente: depois da batalha de Pungo Andongo, não apenas não se cogitou transformar os príncipes do Ndongo em escravos, como houve debates sobre a impossibilidade de escravizar outros africanos que haviam sido aprisionados na guerra ou que dela haviam fugido para reinos vizinhos. Os processos de escravização em curso nos sertões angolanos e, especialmente, os debates que geraram entre centro-africanos, autoridades coloniais e metropolitanas têm sido pouco estudados… Estou levantando fontes interessantíssimas sobre isso em minhas últimas visitas aos arquivos.

Como se vê, um fio puxa o outro… Mas, de certo modo, acabo acompanhando um movimento historiográfico mais amplo, que vai africanizando cada vez mais a história da América portuguesa!

▪ MPC-ER

Considerando o tema deste dossier, como vê a questão das classificações baseadas na cor e da estruturação de hierarquias sociais na história do Brasil e da África? E, designadamente, retomando os seus estudos, por exemplo em The Signs of Color, como vê o papel de códigos como os de vestuário e outros adereços na configuração de categorias sociais em sociedades escravistas e pós-escravistas?

□ SHL

Tenho estudado o tema nos séculos XVII e XVIII e posso falar algo sobre cor e hierarquias sociais no Antigo Regime. Nesse período, a condição social das pessoas se definia sobretudo pelo nascimento e pela honra. A riqueza contava, mas bem menos e de modo diferente de como acontece hoje. A posição de cada um nas hierarquias sociais era exibida visualmente, por meio de roupas e adornos, séquitos, lugar na igreja e em procissões, etc. A cor da pele e outras características físicas eram lidas como parte desse código visual, mas fazia diferença se essa “leitura” acontecia em uma sociedade estruturada ou não pela escravidão dos africanos. Assim, é importante considerar que a cor da pele não serviu de base para a classificação social, mas foi incorporada como mais um elemento a diferenciar a condição social das pessoas. No mundo colonial, em que a escravidão africana era estruturante, a associação entre a cor branca e a liberdade serviu para aproximar todos os não brancos da escravidão. O argumento que desenvolvo no Fragmentos setecentistas é que, no momento em que cada vez mais e em maior número os não brancos se tornavam livres, essa ordem social se desestabilizou. Isso aconteceu na segunda metade do século XVIII, quando se pode captar nas fontes um movimento no qual a menção à cor passa a substituir a referência à condição social. Isso é particularmente perceptível no caso dos libertos mestiços, que passam a ser designados como “pardos” ou “mulatos” conforme a avaliação positiva ou negativa de seu nascimento (se associado à bastardia ou não) e de sua liberdade (se julgada indevida ou não). O uso dos termos para designar a cor das pessoas variou ao longo do tempo e teve significados diversos conforme quem chamava alguém de algo. Assim, no final do século XVIII, era possível interditar o envio de “pretos” para Portugal (para proibir o tráfico de escravos para a metrópole) ou falar mal dos “mulatos soberbos” que não “queriam servir a senhor algum” (para criticar os libertos).

Essa substituição da condição social pela cor foi o terreno no qual as ideias racistas se desenvolveram. Isso significa dizer que o racismo tem uma história: está enraizado em um contexto social específico, diretamente relacionado à liberdade. É comum ouvir dizer que o racismo decorre da escravidão ou que a justifica; nem uma coisa nem outra: o ideário racista fortaleceu os instrumentos que serviam para associar os não brancos à escravidão justamente quando eles conseguiam alcançar a liberdade. Isso quer dizer também que o racismo está diretamente ligado ao jogo de forças que constitui certa sociedade. A racialização das relações sociais que se desenvolveu a partir do final do século XVIII e o modo como o racismo se enraizou na sociedade brasileira ao longo do século XIX fazem parte dos mecanismos de dominação que integram o mundo em que vivemos. É por isso que os “negros que não sabem seu lugar” incomodam tanto os que não querem abrir mão de seus privilégios: se negros e pardos permanecessem submissos e serviçais, reconhecendo “que todo branco era seu senhor”, como dizia Luís Vilhena no início do século XIX, o racismo não teria tanta importância… É,também, por isso que são necessárias políticas públicas para o combate ao racismo.

▪ MPC-ER

Ao longo da sua carreira, manteve-se sempre muito ligada à pesquisa de arquivo e próxima das fontes primárias. Na sua opinião, quais são os arquivos ou tipo de fontes que permitem aprofundar o conhecimento do papel dos africanos no Brasil e os processos de classificação social?

□ SHL

Ao comentar as dificuldades enfrentadas pelos historiadores dos movimentos populares, Eric Hobsbawm observou que “muitas fontes só foram reconhecidas como tais porque alguém fez uma pergunta e depois sondou desesperadamente em busca de alguma maneira – qualquer maneira – de respondê-la”. Creio que a afirmação se aplica muito bem para responder a essa questão: todas as fontes podem fornecer informações preciosas sobre a experiência dos africanos no Brasil – tudo depende da pergunta que fazemos a elas e dos instrumentos que usamos para analisá-las. Veja o caso de Palmares. Muitos historiadores discutiram o viés ideológico das fontes disponíveis, todas “oficiais”, produzidas por aqueles que queriam destruir os Palmares, concluindo ser praticamente impossível colher o ponto de vista dos palmaristas. Mas se iluminarmos essas fontes com o que sabemos sobre o mundo centro-africano no século XVII, podemos achar nelas muitos dados sobre o modo como os habitantes dos mocambos organizaram suas vidas e quais eram seus projetos. Tenho um colega, Aldair Rodrigues, que está usando fontes cartoriais – registros de alforrias e testamentos – para reconstituir a diáspora de escravizados levados para as Minas Gerais desde zonas no interior da África Ocidental no século XVIII. Ele utiliza uma documentação produzida no interior do Brasil para estudar guerras e deslocamentos ocorridos na outra margem do Atlântico!

Não basta, portanto, ter documentos – é preciso transformá-los em fontes. Isso é parte essencial do trabalho do historiador: fazer perguntas e achar formas de respondê-las por meio da análise dos registros deixados pelos homens e mulheres do passado. Quaisquer registros: visuais, sonoros, textuais; diretos ou indiretos. Quantos mais, melhor. Para todos eles é preciso sofisticar os recursos de análise, ter sempre em conta que foram produzidos em contextos específicos, por sujeitos históricos definidos, dirigidos a uma audiência determinada, com intenções deliberadas, e seguem normas discursivas ou códigos particulares. Ou seja, todas as informações que podemos colher vêm impregnadas de elementos que precisam ser também analisados.

Certamente há documentos mais pródigos que outros, conforme as perguntas que fazemos. Ao estudar as formas de classificação social no Brasil da segunda metade do século XVIII, preferi fontes que registrassem o cenário urbano (especialmente do Rio de Janeiro e Salvador) pois nele as hierarquias se exibiam mais publicamente. Recorri a relatos de viajantes, processos de injúria, descrições de festas, documentos camarários, correspondência entre autoridades coloniais e metropolitanas, e consultas do Conselho Ultramarino. Paralelamente, utilizei textos de caráter mais amplo, como a legislação e os dicionários. O cruzamento das fontes ajudava a iluminar os dados colhidos nesses diversos registros e contribuíram muito para a análise dos poucos registros iconográficos disponíveis para esse período.

▪ MPC-ER

Finalmente, que mudanças nota na produção acadêmica nos últimos 30 anos na pesquisa sobre a presença africana no Brasil e a própria história da África?

□ SHL

A minha geração não aprendeu praticamente nada de história da África na universidade. Sem uma disciplina nos cursos de História e sem especialistas nessa área, no Brasil, apenas alguns pesquisadores se dedicavam aos estudos africanistas, geralmente desenvolvidos nas ciências sociais ou na literatura. Esse panorama persistiu até praticamente a década de 1980, mesmo com o fortalecimento do movimento negro a partir do final dos anos 1970. Foi a mobilização ocorrida nos anos 1990 e 2000 que fez com que a história da África entrasse nos currículos dos cursos de graduação em História e isso promoveu a formação de áreas de pesquisa na pós-graduação. Esse impulso se combinou com os desdobramentos historiográficos que vinham ocorrendo desde os anos 1980, que abriram campo para que se desenvolvesse um interesse específico sobre a história da África. No início, esse interesse se voltou para o estudo de temas ligados ao tráfico atlântico e às áreas de procedência dos africanos escravizados trazidos para as Américas. Mas, hoje em dia, ele se ampliou para a história de outras regiões e períodos da história africana.

A produção historiográfica brasileira é muito grande e consistente. Cresceu muito nas últimas décadas e a abertura de um campo “novo”, como a história da África tem se beneficiado muito desse vigor. Há muitos jovens pesquisadores que estão fazendo teses e publicando livros sobre temas importantes da história da África, com contribuições relevantes. Essa produção já começa a fazer diferença no cenário internacional e deve ter um peso cada vez maior. Há ainda muitos passos a dar, como por exemplo aprofundar o diálogo com a produção africana sobre a história da África (e não apenas com os estudiosos norte-americanos e europeus). Mas as coisas têm caminhado rapidamente e vejo com muito otimismo o desenvolvimento dos estudos africanistas no Brasil.

Disse há pouco que a história da América portuguesa vem se africanizando. Esse é um movimento historiográfico relativamente recente e se faz em pelo menos três direções. A primeira é mais imediata: se a escravidão africana estruturou a sociedade colonial, as duas margens do Atlântico estão necessariamente conectadas e a história de uma está imbricada na outra. Não se trata apenas de incorporar os elos derivados do tráfico negreiro, mas de entender a multiplicidade de conexões que ligavam as sociedades que se formaram no Brasil e na África de colonização portuguesa. A segunda diz respeito à incorporação das várias dimensões da experiência africana na história colonial que, durante muito tempo, foi pensada a partir do processo colonizador, sem levar em conta a atuação das populações nativas das regiões colonizadas. Há duas ou três décadas atrás era possível pensar na cultura colonial sem considerar os africanos e seus descendentes, por exemplo. Apesar de contestadas, as teses freyrianas ainda balizavam análises que afirmavam a incorporação de elementos “culturais” (hábitos, comidas, palavras, religião) trazidos pelos africanos que se somavam a outros de vários modos, mas não havia nenhum estudo que mencionasse conhecimentos africanos que tivessem feito diferença, que não tivesse somente “contribuído” para uma cultura que se queria “brasileira”. Somente nos últimos anos os conhecimentos africanos na mineração, na agricultura, na fabricação de tecidos têm sido incorporados à história da ciência e das técnicas no período colonial, por exemplo. Mesmo “iletrados”, eram intelectuais, pensavam o mundo a partir de uma lógica diferente que precisa ser mais bem conhecida pelos historiadores. Mas há ainda uma terceira vertente da africanização da história do Brasil colonial que considero muito importante. É o que diz respeito às categorias de análise, que começam a deixar de ser eurocêntricas. Estamos acostumados a pensar a política separadamente da religião – mesmo quando se trata da época moderna – e a trabalhar com um processo de individuação em desenvolvimento a partir dos séculos XV e XVI. Mas religião e política eram indissociáveis nas sociedades africanas desse mesmo período; na África, a identidade das pessoas, mais que individual, era marcada pela experiência coletiva. Ainda que possamos encontrar muitas similitudes entre os reinos africanos e as monarquias europeias nos séculos XVII e XVIII, que permitiram que eles se conectassem sob o domínio colonial, estes eram mundos que possuíam valores e formas de organização bem diferentes. Africanizar a história da América portuguesa implica considerar esses aspectos na construção dos argumentos, na elaboração das interpretações que fazemos das fontes.

Creio que as duas historiografias – sobre a presença africana no Brasil e sobre os africanos na África – tendem a se alimentar mutuamente, com grandes ganhos analíticos, teóricos e, porque não dizer, políticos.

Referências

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LARA, Silvia Hunold. (Org.). Ordenações Filipinas. Edição comentada. Livro V. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.

LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre Escravos Africanos na América Portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera/Digibis/Fundación Hernando de Larramendi, 2000. CD-Rom.

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli M. N. (Ed.). Direitos e Justiças no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo (Ed.). Memória do Jongo. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007.

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