Dossiê: Direitos Humanos, História e Memória (1968-2018)
Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da população sobre a prática da tortura
Presences of the dictatorship and hopes in the Constitution: the social demands on the practice of torture
Presencias de la dictadura y esperanzas en la Constitución: las demandas sociales sobre la práctica de la tortura
Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da população sobre a prática da tortura
Estudos Ibero-Americanos, vol. 45, núm. 1, pp. 91-103, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Recepção: 23 Junho 2018
Aprovação: 24 Setembro 2018
Publicado: 20 Março 2019
Resumo: Nos anos de 1986 e 1987, paralelamente aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, através de uma iniciativa de servidores do Senado Federal para a participação da população na elaboração do texto constitucional, desenvolveu-se o projeto Diga Gente, que possibilitava o envio de sugestões aos constituintes. Propõem-se neste artigo, uma reflexão em relação às presenças da ditadura e às esperanças na Constituição a partir das demandas relativas à tortura que foram apresentadas pelos cidadãos. Para tanto, serão feitas algumas considerações sobre como a promulgação da Lei de Anistia, entendida como uma “política de esquecimento”, procurou interditar o tema na conjuntura da transição política, para, em seguida, apresentar o projeto Diga Gente e, finalmente, analisar a irrupção de falas sobre a ditadura e suas práticas, principalmente a tortura, nas reivindicações encaminhadas aos parlamentares.
Palavras chave: Assembleia Nacional Constituinte, Constituição de 1988, Ditadura civil-militar, Tortura, Transição política.
Abstract: In 1986 and 1987, in parallel to the work of the Assembleia Nacional Constituinte, through an initiative of the Senate's employees the “ Diga Gente” project was developed to increase the participation of the population in the elaboration of the constitutional text sending suggestions to constituents. In this article, we propose a reflection on the presences of the dictatorship and the hopes in the Constitution based on the demands related to torture that were presented by the citizens. To do so, some considerations will be made about how the Amnesty Law, understood as a “policy of forgetfulness”, tried to interdict the issue in the conjuncture of the political transition, to then present the “ Diga Gente” project, and finally, to analyze the irruption of speeches about the dictatorship and its practices, mainly torture, in the claims sent to the parliamentarians.
Keywords: Assembleia Nacional Constituinte, Constituição de 1988, Civil-military dictatorship, Torture, Political transition.
Resumen: En los años 1986 y 1987, paralelamente a los trabajos de la Assembleia Nacional Constituinte, a través de una iniciativa de los funcionarios de la Cámara Federal para participación de los ciudadanos en la elaboración del texto constitucional, se desarrolló el proyecto “ Diga Gente”, que posibilitaba envío de sugerencias a los constituyentes. Se propone, en este artículo, una reflexión en relación con las presencias de la dictadura ya las esperanzas en la Constitución a partir de las demandas relativas a la tortura que fueron presentadas por los ciudadanos. Para ello, se harán algunas consideraciones sobre cómo la promulgación de la Ley de Amnistía, entendida como una “política de olvido”, intentó impedir el debate sobre el tema en la coyuntura de la transición política, para luego presentar el proyecto “Diga Gente”, y, finalmente, analizar la irrupción de las memorias sobre la dictadura y sus prácticas, principalmente la tortura, en las reivindicaciones encaminadas a los parlamentarios.
Palabras clave: Assembleia Nacional Constituinte, Constituição de 1988, Ditadura cívico-militar, Tortura, Transición política.
Introdução
A historiografia sobre a ditadura civil-militar brasileira cresceu exponencialmente nos últimos anos a partir da disponibilização de fundos documentais que permaneciam inacessíveis; de transformações na disciplina, como o rompimento com antigos óbices, tais como a necessidade de distanciamento ideológico ou temporal do pesquisador em relação ao seu objeto; da ampliação do acesso à graduação e à pós-graduação, permitindo que sujeitos historicamente excluídos desses espaços pudessem narrar suas experiências e leituras do período; e, também, estimulada pelos debates políticos e públicos sobre a temática, principalmente a partir dos anos 2000.
Nesse vasto campo de difícil mapeamento e impossível sistematização, os interesses de pesquisa variaram conforme as conjunturas, recuperando-se determinados episódios ou conferindo novas interpretações a assuntos já consagrados. Entretanto, no âmbito das produções históricas, a década de 1980, em seus mais diversos aspectos, parece ser a menos explorada, destacando-se a pouca atenção conferida à Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e à Constituição de 1988, que completa 30 anos em 2018. Poder-se-ia argumentar que esses temas, circunscritos aos anos de 1986 a 1988, não correspondem à cronologia da ditadura civil-militar, porém, algumas análises recentes têm sugerido algumas modificações na pouco problematizada periodização do regime instaurado com o golpe civil-militar de 1964 1.
O projeto de pesquisa do qual esse artigo se origina pressupõe que a transição política brasileira possui dois momentos distintos: o primeiro, de 1974 a 1984, pode ser caracterizado como transição militar, e, o segundo, que corresponderia aos anos 1985 a 1988, como transição civil, pois não se pode considerar o ano de 1985 como um marco cronológico de passagem à democracia tão somente porque um civil assumiu o cargo de Presidente da República – ainda mais através de eleições indiretas e na vigência de uma constituição autoritária.
A própria noção de transição pode ser problematizada a partir de questões temporais, permanecendo, até os dias de hoje, inconclusa, especialmente em relação à tortura, que não foi erradicada enquanto prática das forças de segurança. Mesmo que a Constituição de 1988 seja categórica quanto ao tema – no inciso III do Artigo 5º, lê-se “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988), o Brasil registra dados significativos sobre o cometimento dessa prática, lembrando que tratam de subnotificações, porque dependem de denúncia. Além disso, em pesquisa realizada no mês de fevereiro de 2014, pelo Instituto Datafolha, um em cada cinco brasileiros adultos (21%) afirmou que acredita que a tortura pode ser praticada se for a única forma de obter provas e punir criminosos, e 14% disse que concorda que o governo deveria ter o direito de torturar suspeitos para tentar obter confissões ou informações, sendo que, entre os jovens, a porcentagem chega a 19%. (DATAFOLHA, 2014).
Durante os anos 1980, a temática da tortura esteve presente nos debates públicos, entre outros motivos, devido ao processo de transição política argentino e a responsabilização penal das juntas militares em relação às violações de direitos humanos e ao medo de elites civis e militares de um “aprendizado por contágio” ( BAUER, 2013); à pressão de setores da sociedade civil para que o então presidente José Sarney assinasse a “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura” e a “Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” – que foram ratificadas apenas em setembro de 1989, quase um ano após a promulgação da Constituição; e pelo lançamento do livro Brasil: Nunca Mais (1985) e a posterior divulgação de uma lista de 444 torturadores arrolados a partir das investigações realizadas pelo grupo nos processos localizados no Supremo Tribunal Militar 2.
Isso não significa que não houvesse conhecimento social sobre a prática da tortura durante a ditadura. A publicação do livro Tortura e Torturados, de Marcio Moreira Alves, em 1966 ( ALVES, 1966), apenas dois anos após o golpe civil-militar, uma coletânea de seus textos publicados no Correio da Manhã; as reportagens investigativas de jornais e revistas, que muitas vezes estamparam suas capas; a publicação de diversas “listas de torturadores” divulgadas por ex-presos políticos e organizações de direitos humanos; e as denúncias realizadas no exterior, são exemplos de enfrentamento à ditadura e à censura, e de rompimento do silêncio do Estado.
Este artigo, portanto, propõe uma reflexão em relação às presenças da ditadura e às esperanças na Constituição de 1988 a partir das demandas relativas à tortura que foram apresentadas pelos cidadãos aos deputados e senadores através do projeto Diga Gente, uma iniciativa de servidores do Senado Federal para a participação da população na elaboração do texto constitucional.
Para a realização dessa pesquisa, utilizou-se o acervo do referido projeto, até agora inexplorado pela historiografia 3, a despeito de sua disponibilização integral no site do Senado Federal. São 72.719 cartas-respostas preenchidas por homens e mulheres e remetidas à ANC, em que puderam manifestar seus desejos e expectativas sobre a elaboração da Constituição e a construção da democracia no Brasil. Esses documentos foram digitados e transformados em um banco de dados para consulta dos constituintes pelo Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal (PRODASEN), constituindo o Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC).
O histórico da construção desse acervo será recuperado no tópico “O projeto Diga Gente e a formação de um acervo de desejos sobre a democracia”, após a digressão sobre como a promulgação da Lei de Anistia, entendida como uma “política de esquecimento”, procurou interditar o tema na conjuntura da transição política. Finalmente, será analisada a irrupção de falas sobre a ditadura e suas práticas, principalmente a tortura, nas reivindicações encaminhadas aos parlamentares.
Retornar a esse tema em 2018 extrapola a conjuntura rememorativa dos 30 anos de promulgação da Constituição de 1988; ao buscar os desejos e as expectativas daquele presente, procura-se explicitar as esperanças e as inquietudes que nos movem neste presente.
O silenciamento sobre a tortura durante a transição política
A tortura foi uma prática empregada de forma científica, institucional e sistemática ao longo de toda a ditadura civil-militar, em suas formas física e psicológica. Ainda que seu emprego seja anterior a 1964 como castigo e metodologia de repressão a movimentos oposicionistas, atingindo presos comuns e presos políticos, o ineditismo durante o período ditatorial assenta-se no envolvimento das Forças Armadas e por se constituir como uma política de Estado.
Seu emprego extrapolava a obtenção de informações ou a confissão de culpabilidade, residindo na submissão do torturado à vontade de seu torturador. Ainda, possuía um “efeito demonstrativo” ( ALVES, 1987, p. 204) atingindo não somente a vítima, mas seu entorno afetivo e de militância e, assim, disseminando o terror na população. Essa prática podia gerar traumas devido à intensidade das agressões físicas e psíquicas que, no seu limite, constituíam uma ameaça à vida.
Durante a vigência da ditadura civil-militar brasileira, a tortura nas prisões e nos interrogatórios foi terminantemente negada pelo Estado. Contudo, havia um conhecimento socialmente partilhado de sua existência, mesmo com a existência da censura. De acordo com Maria Helena Moreira Alves,
Durante o período referido era difícil encontrar um brasileiro que não tivesse entrado em contato pessoal direto ou indireto com uma vítima de tortura, ou que não se tivesse envolvido em alguma operação militar de busca e detenção. Histórias de violência institucional tornaram-se parte da cultura política quotidiana ( ALVES, 1987, p. 204).
No processo de transição política, quando as denúncias sobre a tortura ocupam espaços públicos, a prática continuou sendo negada pelos militares, que afirmavam que se tratava de uma “invenção da esquerda para justificar suas próprias delações” ou, ainda, que havia “muito exagero por parte da esquerda ao relatar as formas como foi interrogada” ( D'ARAÚJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 26). Admitida por alguns como “excesso”, nenhuma providência foi tomada para investigação de denúncias ou para punição dos responsáveis.
Dados do princípio da década de 1980 afirmam que em um terço dos países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos – aprovada na Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, onde em seu quinto artigo consta que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” – a tortura era sistematicamente aplicada – ou, ao menos, tolerada – por governos, fazendo parte dos métodos de interrogatório das forças de segurança desses países ( BRASIL, 1985, p. 1).
Desta forma, é importante lembrar que a transição política não significou o fim da prática da tortura. A autora Zilda Iokoi afirma que, no Brasil, convencionou-se chamar de “transição” os anos compreendidos entre 1974 e 1985, porém, como se trata de processo marcado por permanências, pode-se afirmar que a utilização do termo se dá de forma metafórica, o que chama de “transição metaforizada” ( IOKOI, 2009, p. 501), indicativa de uma retórica de mudança sem mudanças. O término da ditadura não significou, desta forma, o fim do terror e a superação dos traumas ( BECKER; CALDERÓN, 1993, p. 71), permanecendo os medos e condicionando as ações políticas dos governos transicionais e das primeiras administrações civis pós-ditadura. O medo em relação aos contornos da futura democracia era significativo, pois seria necessário enfrentar o legado de anos de autoritarismo.
Como afirmado anteriormente, reportagens em jornais e revistas de grande circulação, investigações realizadas pelos jornais “nanicos”, e depoimentos de ex-presos e perseguidos políticos em seus livros-testemunhos, publicados após seu retorno do exílio ou saída dos presídios, foram os principais veículos para a disseminação de informações sobre a prática da tortura. Isso ocorreu majoritariamente após o abrandamento da censura e o fim da lei de imprensa. Entretanto, as denúncias sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante a ditadura foram denunciadas à medida que ocorriam internacionalmente, principalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ocupando, no final dos anos 1970, o segundo lugar em número de denúncias ( SANTOS, 2009, p. 478-479).
A ditadura, contudo, elaborou estratégias mais ou menos diretas de controle sobre o acesso às informações sobre suas práticas repressivas. Nesse sentido, a promulgação da Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, deve ser entendida para além de uma medida de extinção de punibilidade, mas como uma “política de esquecimento”, quando decreta a interdição do passado, entendido como imposição do esquecimento e do silêncio. Tratou-se de mais ou desdobramento da tentativa de controle do processo de transição e de garantir algumas prerrogativas para o futuro, ao estabelecer que pessoas envolvidas na violação de direitos humanos não seriam investigadas, indiciadas e culpabilizadas e, da mesma forma, os fatos que se tornavam conhecidos não seriam apurados. Impunidade em relação ao passado, imunidade assegurada no futuro.
Esses valores estavam presentes na mensagem encaminhada por João Batista Figueiredo, no dia 27 de junho de 1979, ao Congresso Nacional, em que afirmava que aquele era “o momento propício para a Anistia” ( GONÇALVES, 2009, p. 277), pois, desta forma, “seria reaberto o campo da ação política, e possibilitaria o reencontro, a reunião e a congregação para a construção do futuro” ( GONÇALVES, 2009, p. 277). Afirmava o general:
Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento e eu não estou pedindo a eles que se arrependam até de pegar em armas contra nós. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco ( MONTEIRO, 2009, [s. p.]).
A campanha pela anistia iniciara-se alguns anos antes, com a formação de comitês por todo o País. A grande imprensa também se posicionava, ainda que afirmassem que outras reformas eram prioritárias. A revista Veja, por exemplo, “[…] considerava a anistia um problema sem urgência, e que os movimentos sociais que lutavam por uma anistia ampla, geral e irrestrita eram, em grande parte, compostos por pessoas que haviam perdido entes queridos e, por isso, eram tão ardorosas” (VICO, [s. d.]). Em seu editorial da edição de 13 de setembro de 1978, a revista afirmava: “mas o problema essencial, agora, é muito menos gritar contra o arbítrio e muito mais assegurar uma passagem tranquila do país para um regime democrático” (VICO, [s. d.]).
No dia 22 de agosto de 1979, após a votação da proposta de anistia da oposição política, o projeto proposto pelo Executivo foi aprovado por 206 votos contra 201, gerando insatisfação dos deputados oposicionistas. “Essa anistia tem o tamanho, tem a proporção exata de quem a está propondo, isto é, é uma anistia mesquinha, discriminatória, do tamanho do próprio governo, do tamanho da própria ditadura militar que tenta nos impô-la agora”, declarou o deputado Edison Khair do MDB. A ARENA afirmava: “A bancada do nosso partido […] tem a consciência tranquila de que está aqui fazendo o máximo que pode, o máximo ao seu alcance, o máximo sem risco, o máximo sem anarquia, sem titubeio, sem que haja choques no país”, ponderava Nelson Marchezan 4. Seis dias depois de sua aprovação, a Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, era sancionada pelo general que ocupava o cargo de presidente.
Desta forma, a Lei de Anistia consolidou o espírito de conciliação: ficava previsto que a abertura não significava o questionamento do passado, além do compromisso de que o aparato repressivo não seria investigado nem julgado. Essa medida, portanto, possui características de indulto, porque para haver anistia é necessário o cometimento de crimes, e os militares e agentes de segurança envolvidos em violações de direitos humanos nunca foram investigados, indiciados ou punidos pelos crimes cometidos. Da demanda de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” obteve-se uma anistia parcial, restritiva, pois não contemplava os chamados “crimes de sangue”, e recíproca, levando-se em consideração um impossível critério de equiparação entre crimes cometidos por indivíduos e pelo Estado.
Amplos setores da sociedade civil mobilizaram-se novamente contra a ditadura em 1983 e 1984, após a campanha pela anistia, desta vez por eleições presidenciais diretas. Mais uma vez, as concessões dos militares foram parciais. Ocorreram eleições indiretas com a escolha de Tancredo Neves, e de seu vice, José Sarney. De acordo com D'Araújo, Soares e Castro,
Os momentos finais da transição democrática e os iniciais do novo regime foram acompanhados de uma grande euforia, de expectativas pouco realistas a respeito do futuro. O fim de um regime militar pode gerar um otimismo ilimitado, baseado no falso suposto de que o autoritarismo era responsável por todos ou quase todos os males do país ( D'ARAÚJO; SOARES; CASTRO, 1995, p. 41).
Contudo, os autores chamam a atenção para o fato de que a crise econômica – que se agravaria com o fracasso do Plano Cruzado e a declaração de moratória dos juros da dívida externa –, a derrota da emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas para Presidente da República, e a morte de Tancredo Neves, em 21 de abril de 1985, as expectativas para o futuro “foram mais modestas”: “o entusiasmo democrático deu lugar a um perigoso cinismo que só recentemente começou a ser superado” ( SOARES; D'ARAÚJO; CASTRO, 1995, p. 41).
O projeto Diga Gente e a formação de um acervo de desejos sobre a democracia
No dia 28 de junho de 1985, José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional a proposta de convocação da ANC. Após longos debates metodológicos, em 1º de fevereiro de 1987 iniciaram-se os trabalhos, com deputados e senadores divididos em 24 subcomissões temáticas. A participação popular foi intensa, com o encaminhamento de milhares de sugestões via emendas populares – eram necessárias 30 mil assinaturas para que as propostas fossem apreciadas pela constituinte –, através das audiências públicas promovidas pelas subcomissões temáticas, para além da mobilização nas ruas. Esse engajamento era fomentado por slogans como “Constituinte sem povo não cria nada de novo” 5. Entretanto, o processo foi marcado por algumas contradições. A frustração 6 e a crise econômica e política também contribuíram para a criação de “um sentimento de apatia e desconfiança” ( MICHELES et al., 1989, p. 12). A aprovação do texto constitucional ocorreu no dia 22 de setembro de 1988 e sua promulgação, em 5 de outubro de 1988 7.
Entre março de 1986 e julho de 1987, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal lançou a campanha Diga Gente. Cinco milhões de formulários carta-resposta foram disponibilizados nas agências dos correios, escolas e repartições públicas para que homens e mulheres expressassem seus anseios quanto à nova Constituição. Deste universo, retornaram a Brasília 72.719 cartas-respostas de todo o País – ou seja, aproximadamente 2%.
A participação suscitada por essa campanha apresentava algumas limitações para boa parte da população brasileira. Primeiramente, era necessário que a pessoa tivesse um grau de letramento mínimo. Segundo as séries históricas do IBGE, em 1980, 25,4% da população brasileira acima de 15 anos de idade era analfabeta. Naquele contexto, analfabeta era uma pessoa que declarava não saber ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhece. Além disso, aquele que desejasse enviar sua sugestão deveria se deslocar até um local onde os formulários fossem disponibilizados e encontrá-los disponíveis.
Essas cartas-respostas passaram por um tratamento técnico de sistematização, que resultou na formação de um banco de dados, com o objetivo de facilitar o acesso e a consulta por parte dos constituintes. Criou-se, dessa forma, o Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC), com o apoio do Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal (PRODASEN).
Há que se considerar que a concepção e o desenvolvimento de um banco de dados informatizado podem parecer banais nos dias de hoje, porém para aquela conjuntura de incipiente introdução da informática do serviço público federal, em que o trabalho se realizava diante de uma tela cinza-chumbo, com caracteres verdes pixelizados, representou um significativo avanço metodológico e técnico.
A sistematização das demandas da população permitiu não somente que constituintes tivessem acesso aos medos e às esperanças de brasileiros e brasileiras, mas também possibilitou o desenvolvimento de uma análise a partir da ciência política e da sociologia das organizações, sob a coordenação do professor Stéphane Monclaire, que publicou os resultados na obra A constituição desejada, lançada em 1991 ( MONCLAIRE, 1991). Após essa publicação, no entanto, o acervo caiu no esquecimento. Seria um indício da frustração já referenciada, acrescida do impeachment, em 1992, do primeiro presidente eleito democraticamente em um período de quase três décadas?
Ainda que a resposta para essa questão exija estudos mais aprofundados, é inegável a importância da participação popular e do projeto Diga Gente, que são indícios do exercício da cidadania na construção da democracia, após décadas de ditadura civil-militar e terrorismo de Estado. Além disto, é uma fonte com muitas potencialidades para se avaliar de que maneira, a partir das experiências vivenciadas durante a ditadura, esses demandantes construíam seus horizontes de expectativas. É preciso, contudo, lembrar as dificuldades de se trabalhar com essas questões:
O conhecimento histórico é sempre mais do que aquilo que se encontra nas fontes. Uma fonte pode existir previamente ao início da investigação ou ser descoberta por ela. Mas ela também pode não existir mais. Assim, o historiador vê-se na necessidade de arriscar proposições. Mas o que impede o historiador de se assegurar na história do presente ou do passado por meio, unicamente, da interpretação de fontes não é apenas sua escassez (ou, no caso da história moderna, o excesso de oferta). Toda fonte ou, mais precisamente, todo vestígio que se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma história que é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, e sempre algo diferente dele. Uma história nunca é idêntica à fonte que dela dá testemunho. Se assim fosse, toda fonte que jorra cristalina seria já a própria história que se busca conhecer ( KOSELLECK, 2006, p. 186).
O SAIC, portanto, originou-se em 15 de agosto de 1985, por iniciativa de William Sérgio Mendonça Dupin, analista de sistema e gerente de conta do Prodasen. Em entrevista de 1989 à equipe de investigadores coordenada por Monclaire, Dupin assim se refere ao seu projeto:
Eu sabia que a população, na sua grande maioria, distinguia mal o presidencialismo do parlamentarismo. Mas a questão do governo só é um dos temas da nova carta. Eu não esperava sugestões em forma de constituição, organizadas em artigos e itens. O essencial, depois de vinte anos de ditadura, era de dar a palavra ao povo, de saber enfim o eu ele pensava e de avaliar, graças à informática, o que ele desejava ( MONCLAIRE, 1991, p. 21).
Como dito anteriormente, houve muitas campanhas e manifestações para que se assegurasse a participação do povo no processo da constituinte. Porém, o engajamento almejado com a campanha não era visto positivamente por todos os deputados e senadores. De acordo com Sérgio Otero Ribeiro (1991):
Certos parlamentares diziam: escrever uma constituição não é um ato ordinário. O que conhece o povo do direito constitucional? Quase nada, infelizmente. Quando a população é tão inculta e quando um país não tem dinheiro, não creio que seja necessário difundir milhões de formulários que custarão milhões de cruzados. Eu não sou contra o princípio de dar a palavra ao povo sobre este ou aquele assunto; mas eu sou contra um projeto milionário que daria a palavra a um povo quase ignorante sobre um assunto sobre o que ele deveria se exprimir (apud MONCLAIRE, 1991, p. 46).
O projeto teve um orçamento estimado em 509 milhões de reais em valores atuais, que compreendiam a impressão dos formulários, o contrato com os correios, o envio da carta-resposta e a indexação do material. A Organizações Globo financiou parte dos custos, com a contrapartida de sua logomarca estar presente no material a ser distribuído. Da mesma forma, foi incumbida de elaborar peças publicitárias para “esclarecer à população o papel e a importância da Constituição e da Assembleia Nacional Constituinte” ( MONCLAIRE, 1991, p. 35). As cartas-respostas foram disponibilizadas nas prefeituras, nas Assembleias Legislativas e nas agências dos correios, na quase totalidade dos municípios brasileiros.
É impossível sintetizar todas as sugestões e questões que, no entender de cada cidadão, deveriam ser contemplados pela nova carta constitucional. Os itens de maior ocorrência se relacionam com lobbies de políticos, mas sobretudo, com preocupações materiais do cotidiano: ensino, ensino religioso, punição, política de emprego, magistério, pena de morte, aposentadoria, salário, sistema educacional, reforma agrária, “menores carentes”, segurança pública, assistência ao “menor”, salário mínimo, ensino gratuito, ensino superior, política salarial, categoria profissional, corrupção, justiça social. Eram demandas mais pontuais e urgentes pelas quais ansiava a população brasileira.
O projeto Diga Gente constitui um acervo riquíssimo para se explorar o envolvimento de setores da população brasileira com o processo constituinte, bem como explicitar os medos e as esperanças da cidadania com a construção da democracia no País.
As demandas da população sobre a prática da tortura
Quais eram as demandas da sociedade brasileira que vivia a construção de um novo regime político? Que experiências partilhavam e a partir de quais vivências imaginavam o país que se inauguraria após a promulgação da constituição?
De acordo com Stéphane Monclaire, se havia um desconhecimento por parte dos brasileiros sobre o direito constitucional, as cartas-resposta armazenadas no SAIC demonstravam “o quanto a população sonhou com um Brasil melhor, esperou um futuro suportável, desejou ser ouvida” ( MONCLAIRE, 1991, p. 11).
Assim, é necessário atentar que as esperanças e as frustrações surgidas durante os trabalhos da ANC, e, mais amplamente, ao longo da década de 1980, desde a campanha das Diretas Já que, em si, carregava muito mais que um pedido de eleições diretas para a Presidência da República 8, são importantes para se pensar como essas pessoas representavam a ditadura e a tortura. É a memória do período ditatorial sendo construída a partir de determinado presente, projetando nesse passado “expectativas retroativas” ( KOSELLECK, 2006, p. 313).
Realizando uma busca no SAIC pelo termo “tortura”, houve o retorno de 181 ocorrências 9. No entanto, devido aos problemas de digitação e de indexação ocorridos no processo de informatização dos formulários, é provável que nem todas as manifestações relativas à tortura tenham retornado a partir dessa consulta, e que nem todos os registros correspondem, realmente, a percepções e sugestões sobre o tema 10. Além disso, esse número não corresponde a 181 pessoas que manifestaram sua opinião, porque muitas escreveram mais de um formulário, destinado a diferentes parlamentares.
Não é possível sequer falar sobre a existência de uma cultura de direitos humanos, mesmo que alguns citem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a proibição da tortura, porque a maioria das sugestões é de condenação à prática, mas defendem, por exemplo, a aplicação da pena de morte, o que demonstra a complexidade de lidar com essas opiniões e os perigos de generalizações apressadas 11. Há, inclusive, os que defendem a pena de morte para os torturadores: “Pena de morte ou trabalhos forçados aos torturadores, que sejam isentos de anistia” 12. Se, majoritariamente, as manifestações são de condenação da tortura, isso não significa que manifestações apologéticas não sejam encontradas nos formulários: “Eu e minha cidade [Passos, Minas Gerais] desejamos a PENA DE MORTE E TORTURA PARA MARGINAIS [maiúsculas no original]” 13. Como afirma Koselleck, “só pode surpreender aquilo que não é esperado” ( KOSELLECK, 2006, p. 313).
Das demandas encaminhadas sobre a temática, muitos reconhecem que a tortura era, naquele momento, empregada contra presos comuns: “[…] que sejam respeitados os direitos humanos, pois é de meu conhecimento que em certas delegacias ainda submetem pessoas a certas torturas” 14. O advérbio “ainda” traz a marca da continuidade de uma prática esperada ou que acontecia durante o período anterior, mas que não se extinguiu, apesar de uma propalada mudança em 1985. Essa argumentação é reforçada por outra sugestão que, em sua redação, evidencia que, em algum momento no passado, a tortura foi empregada, mas não há convicção de que siga sendo utilizada pelas forças de segurança: “abolir totalmente à tortura, se é que ainda existe, nos presídios, respeitando profundamente os direitos humanos” 15. Como essas pessoas, oriundas de diferentes cidades e estados do país, souberam que a tortura foi utilizada nesse passado é uma resposta que seus desejos expressos nos formulários não permitem alcançar. Entretanto, muitas pessoas encaminharam sugestões a partir de experiências pessoais.
Nesse sentido, podem-se citar duas sugestões enviadas por pessoas diferentes, sobre o mesmo caso: um menor de idade, que não se encontrava sob custódia policial, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e que foi morto sob tortura. A primeira pessoa relata que “Aqui na minha cidade está havendo ultimamente, terríveis casos de torturas, houve um, inclusive contra um menor, eu gostaria que o Governo tomasse uma urgente medida contra todo e qualquer tipo de torturas, […]” 16, e é corroborada por outra cidadã:
Deveria ir para a nova Constituição uma lei que proibisse terminantemente torturas em cadeias. Aqui em minha cidade está um horror; um dia desses mataram um menor com torturas. Basta estar preso numa cela para já estar mentalmente torturado. Desde já agradeço, tendo certeza que serei ouvida 17.
A última frase, que evidencia uma expectativa no atendimento da demanda encaminhada, também demonstra o desejo de estabelecer uma interlocução entre a população e os constituintes; uma proximidade do campo decisório, para muitos inédita frente à experiência do autoritarismo e do cerceamento da cidadania durante a ditadura.
Posteriormente, será apresentado um caso de uma vítima direta da tortura, no entanto, é importante observar que as pessoas que encaminharam sugestões sobre o tema não necessariamente foram torturadas. As vivências experimentadas durante a ditadura não são condicionantes para as demandas pela erradicação da tortura. Como lembra Koselleck, os prognósticos se orientam por expectativas, mas elas, por sua vez, não se alimentam, somente de experiências:
Voltada para um campo de ação mais amplo ou mais estreito, a previsão libera expectativas, a que se misturam também temor ou esperança. As condições alternativas têm que ser levadas em conta, pois sempre entram em jogo possibilidades que contêm mais do que a realidade futura é capaz de cumprir. Assim, um prognóstico abre expectativas que não decorrem apenas da experiência. Fazer um prognóstico já significa modificar a situação de onde ele surge. Noutras palavras: o espaço de experiência anterior nunca chega a determinar o horizonte de expectativa ( KOSELLECK, 2006, p. 313).
Para explicitar os cuidados em se analisar as experiências e as expectativas, diferentemente do que poderia se supor em função da promulgação da Lei de Anistia, diversos respondentes posicionaram-se favoravelmente à investigação das violações de direitos humanos e à punição dos torturadores, sem necessariamente defender a anulação ou revisão da referida lei. No primeiro caso, houve manifestações pedindo o “fim da tortura e esclarecimentos sobre os desaparecidos durante a revolução [sic]” 18, e sugerindo “indenização dos [sic] parentes de mortos ou desaparecidos pela repressão política” 19, medida que seria atendida apenas em 1995, com a promulgação da Lei n. 9.140, de 4 de dezembro. Quanto à responsabilização penal, alguns sugeriram punições judiciais: “Julgar os crimes de tortura e de corrupção administrativa cometidos desde 1964” 20; outros, manifestaram-se pela “expulsão da corporação” 21; e, houve aqueles que solicitaram a “proibição do Brasil conceder asilo político a torturadores e ladrões” 22, e exigiram penas mais rígidas ao cometimento da tortura: “[…] será que a nova constituição não deveria penalizar com mais rigor os torturadores? Gostaria de receber vossa opinião a respeito, já que a tortura é desumana, irracional e não combate a criminalidade. Pelo contrário” 23.
Outras duas sugestões comentam os perigos do esquecimento e da impunidade para o combate à tortura e, mais amplamente, para a elaboração da Constituição:
A nova ‘Constituição’ não é só um assunto para ser discutido entre juristas ou intelectuais. A Constituição tem que ser discutida entre o povo e os trabalhadores e também pelos desempregados. Que a nova Constituição garanta ao empregado a estabilidade e o direito de greve. Espero que a nova Constituição traga algo de bom para os trabalhadores sofridos a mais de 20 anos de ditadura militar, e governos corruptos e inescrupulosos, que só fizeram destruir o patrimônio do Brasil. E que os culpados sejam punidos e não esquecidos, por não podermos esquecer o que fizeram, torturas, mortes e tantas outras coisas, mais que não dá para serem relacionadas 24.
Existe, nessa demanda, uma esperança que estabelece contribui para o estabelecimento de um antes e um depois tendo como referência a ditadura. O outro exemplo, marcado pelo ceticismo ou descrédito, ainda que o cidadão tenha enviado sua sugestão, afirma a força da impunidade, e lembra que a Lei de Anistia não impede a garantia do direito à verdade:
Mesmo achando que a opinião popular no Brasil não vale nada, mando a minha sugestão. Dentre as muitas condições que foram impostas à sociedade brasileira durante o regime de exceção e arbítrio, figura a evidência de que centenas de criminosos, corruptos e torturadores que envergonharam o país nos anos setenta, principalmente, jamais serão punidos. Foi esse o duro preço que pagamos para sair das trevas e seguir adiante. Mas tal ‘acordo’ não impede que o Brasil tenha preservado o direito à verdade. Identificar tais elementos é vital para escrever a passagem histórica como ela foi. O povo brasileiro clama por uma justa punição aos criminosos de farda e/ou de colarinho branco, que de 64 aos nossos dias mancharam de sangue os aparelhos de tortura e lesaram os cofres públicos, mantidos à custa da parcela contribuinte do povo brasileiro. O povo brasileiro exige justiça. O Brasil não pode ficar conhecido como o país da impunidade 25.
Para encerrar os exemplos em relação à punição da tortura, um respondente citou a experiência argentina como exemplo das medidas a serem tomadas quanto à tortura no Brasil: “Prisão de 5 a 10 anos, para polícia militar, polícia civil, polícia federal ou para qualquer pessoa que práticar [sic] torturas para obter provas, como existe na Argentina” 26.
Um ano antes do encaminhamento desta sugestão, José Sarney, então candidato à vice-presidente, afirmou em artigo publicado no jornal Correio Braziliense:
A força irresistível da candidatura Tancredo é o fascínio da união, da conciliação, da transição sem traumas, de um reencontro sem retaliações nem rupturas, de mudanças. Para melhor confundir, invocam o nome de Alfonsín e o que está ocorrendo na Argentina. Erram no exemplo, quando buscam criar uma síndrome do temor a hipótese da vendeta. A política argentina é totalmente diferente da nossa. Em nada o processo brasileiro tem qualquer conotação com o que ocorreu na Argentina e fazer essa comparação é, no fundo, ofender as Forças Armadas brasileiras, em particular, o nosso Exército ( SARNEY, 1984, [s. p.]).
Havia, portanto, certo receio por parte das elites civis e militares de um “aprendizado por contágio”, que levaria a democracia brasileira a sofrer uma “argentinização” quanto ao passado recente, ou seja, as violações de direitos humanos seriam investigadas e punidas.
É importante lembrar que, naquele momento, havia prerrogativas jurídicas no Código Penal, no Código Penal Militar e na constituição em vigor para que uma pessoa fosse responsabilizada pela prática de tortura. No entanto, a tipificação do crime de tortura ocorreu apenas em 1997, com a promulgação da Lei n. 9.455, de 7 de abril, quase uma década após o País ter ratificado a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Houve, porém, encaminhamentos demandando a revisão da Lei de Anistia para a punição das torturas cometidas durante a ditadura: “Revisão na lei de anistia, procedendo-se ao julgamento dos envolvidos em torturas durante o regime militar, dado o caráter de crime contra a humanidade” 27. Nesse caso, chama a atenção a faixa etária da pessoa, que tinha entre 20 a 24 anos quando elaborou essa sugestão, ou seja, crescera durante a ditadura civil-militar. Outro caso bastante semelhante é o da jovem que possuía entre 15 a 19 anos, portanto, nascida no início dos anos 1970, e que “gostaria que houvesse mais apoio à polícia, como salário mais alto […], com severa punição para quem torturasse” 28.
Recuperando os aspectos de continuidade entre o período ditatorial e aquele presente, os respondentes estabeleceram diferentes permanências entendidas como formas de continuidade do emprego da tortura.
Na seguinte sugestão encaminhada aos constituintes, um deles fez referência à manutenção na administração pública de políticos que ocuparam cargos importantes durante o período ditatorial:
Foi quando vi a maior caçada humana nas ruas de São Paulo, foi quando tive medo de ir parar no (DOPS). Foi naquele dia que foi preso o presidente da (UNE) o jovem estudante, Raul Travasso, foi no governo Sodré que Raul Travasso, foi preso e banido do Brasil para fora. Não só Raul Travasso, mais muitos outros que não recordo me. Vi companheiros presos pela polícia do então governador [Roberto Abreu Sodré] e comandada pelo Fleury, famoso na época da tortura. É lamentável este Sr. ocupar o cargo 29.
A referência à continuidade, neste caso, não é em relação a Sérgio Paranhos Fleury, morto em 1979 em um episódio bastante controverso, mas a Roberto Abreu Sodré, governador do Estado de São Paulo. A sugestão, na verdade, é muito mais um desabafo e um relato de experiência, e diversos trechos permitem problematizações em relação aos objetivos desse artigo. Quando este senhor afirma “foi quando tive medo de ir para no (DOPS)”, pode-se questionar o que se sabia sobre o órgão para ter medo de ir para lá, e como se ficou sabendo essas informações. Da mesma forma, ao fazer referência a Fleury como “famoso na época da tortura”, evidencia-se um entendimento sobre uma determinada temporalidade marcada pela experiência da tortura, que, neste caso, não possui datação precisa.
Esse último aspecto assemelha-se a outra sugestão presente no SAIC:
Ilmo [sic] Sr. Deputado minha sugestão é que na próxima Constituinte seja levada a discussão tudo que se relacionar com os tempos de tortura e repressão acontecida nos anos 70. Não é só uma pessoa comum que clama por justiça, foram cometidos muito erros e os erros não devem ser repetidos e para tal deve ser feita um total esclarecimento de tais procedimentos. Agradeço desde ja [sic] a oportunidade de entrar em contato com tão ilustre político os [sic] melhor, tão ILUSTRES BRASILEIROS 30.
Ainda que uma alusão cronológica esteja mais explícita na expressão “os tempos de tortura e repressão acontecida nos anos 70”, permanece a indagação sobre o conhecimento desses episódios por parte da população. Nesse caso, também chama a atenção a justificativa para que se investigasse essas práticas, explicitando a ideia de que o conhecimento do passado evitaria o cometimento dos mesmos “erros” no futuro.
Outras vezes, a continuidade da prática da tortura foi vinculada à manutenção da legislação autoritária, como a Lei de Segurança Nacional, ou de instituições que conformaram o aparato repressivo e de informações da ditadura. Assim, foram encaminhadas sugestões exigindo o “fim da censura e seus órgãos. Extinção da LSN. Lei de julgamento para os torturadores” 31 e o desmonte da estrutura do Estado ditatorial: “Extinguir o SNI, CENIMAR, CISA, CIE, DOI-CODI e órgãos de repressão criados pela ditadura militar. Estabelecer punições severas para todas as autoridades que participem, ou sejam coniventes de torturas aos presos ou detidos” 32.
Em outras palavras, como sintetizado por um cidadão do município de Barra do Piraí, Rio de Janeiro, que não quis se identificar: “Aniquilar entulho autoritário” 33. Ou como preconizado por D. F. I, morador de Mafra, Santa Catarina, que enviou nove vezes a mesma sugestão: “Proibir a prática medieval de torturas” 34.
Por fim, pelo menos três cidadãos da amostragem retornada pelo SAIC elaboraram suas sugestões a partir da leitura do livro Brasil: Nunca Mais (1985). O primeiro, apenas sugere sua leitura – “Brasil: Nunca mais. A) Ver: torturas no regime militar” – e pergunta aos constituintes: “Como os senhores viram este livro?” 35. Novamente, tem-se o estabelecimento de uma interlocução, mas, desta vez, como uma cobrança em relação à ação.
Tive oportunidade de ler ‘Brasil nunca mais’ sentindo na pele, o meio inadequado que fora usado pelo regime militar, visando arrancar confissões de presos políticos, tachados de subversivos. Concluo, que o inquérito sob tortura ou ameaça chega a absurdo e nutilidade [sic] ainda maiores. É uma violação degradante, é um crime cruel, bárbaro contra a pessoa humana. Somente com o diálago [sic], e uma vida de confiança e respeito mútuos [sic], chegaremos a verdadeira segurança. O que aconteceu no Brasil, precisa ser visto à luz do dia. O Brasil vive hoje momentos de esperança. Mudanças foram pregadas em praças públicas diante de corações angustiados. Isto não pode, não deve repetir. A esperança de hoje, não pode e não deve ser passageira. É preciso tomar decisões, medidas corajosas, edificando o legítimo estado de direito sólido e permeável à crítica, onde não seja proibido participar nem discordar, nem contestar, afinal onde o grito dos fracos possa ser ouvido. Que o governo assine e ratifique a convenção contra a tortura. Inserido na Constituição e [sic] a sugestão 36.
O terceiro exemplo, além de sustentar sua sugestão na leitura do Brasil: Nunca Mais, relaciona-a diretamente à sua experiência como ex-preso político:
Sou anistiado e aposentado pela Lei no.6683 de 28-08-79, reafirmada pela emenda Constitucional n.26 de 27-11-85, que convoca a Constituinte para elaborar a nova Constituição, sem receber ainda. Em consequência da tortura no DOI-CODI de São Paulo-SP, a partir de 11-02-69 perdi a saúde, meu processo administrativo no INPS de São Paulo-SP, desde março de 1985, para a aposentadoria, está sem resposta ainda. Por isso minhas sugestões para a Constituinte elaborar a nova Constituição: […] – Estudo do livro “Brasil Nunca Mais” – Editora Vozes – Petrópolis, RJ, como justiça aos perseguidos políticos no Brasil 37.
O estudo do referido livro como “justiça aos perseguidos políticos no Brasil” evidencia uma expectativa que, como afirma Koselleck, é constituída por “esperança e medo, desejo e vontade” ( KOSELLECK, 2006, p. 310).
Considerações finais
Este artigo procurou demonstrar a potencialidade do SAIC para pesquisas sobre os anos 1980 no Brasil. O recorte apresentado, o estudo sobre as demandas dos encaminhadas aos constituintes sobre a tortura e a forma como a relacionavam com a experiência da ditadura civil-militar, é apenas um dos recortes possíveis.
Passados mais de trinta anos daqueles acontecimentos, é importante recuperar que, ao término do regime ditatorial, havia um campo de possibilidades em aberto, e boa parte da população sentiu-se impelida a participar dos processos decisórios em relação ao futuro do País. O acúmulo de frustrações com a crise econômica, a derrota da Emenda Dante Oliveira e a morte de Tancredo não esmoreceu a esperança de setores da sociedade, que enviaram suas esperanças em formato de sugestões ao texto constitucional.
Quanto aos desejos, às esperanças e às recomendações enviadas à ANC, pode-se afirmar que a maioria reconhece que a tortura era uma prática corriqueira, atingindo presos comuns, e que foi empregada, durante a ditadura, como forma de punição aos presos políticos. Futuras pesquisas poderão problematizar os meios pelos quais as pessoas se informaram ou souberam da existência da tortura, para além de possíveis experiências pessoais.
Além disso, muitas sugestões apontam uma continuidade entre o passado ditatorial e o presente desses sujeitos em se tratando da prática da tortura, permanência vinculada ao silêncio, à presença de políticos do período discricionário em cargos públicos e à vigência de legislações autoritárias e à manutenção de órgãos vinculados à repressão e ao aparato de inteligência da ditadura.
Ainda que houvesse demandas específicas para a revisão da Lei de Anistia, outras recomendações ignoram os empecilhos que a interpretação vigente do texto legal criara, especialmente no que diz respeito às investigações sobre os casos de mortes e desaparecimentos e à punição dos torturadores. Nesse sentido, valores morais ou experiências de países vizinhos, como a Argentina, parecem influenciar as sugestões, tornando inadmissíveis a imposição do esquecimento e a impunidade.
Este artigo ainda analisou algumas manifestações que contrapuseram aquele presente dos anos 1980 aos anos anteriores da ditadura a partir de referências ao livro Brasil: Nunca Mais (1985) obra que, duas semanas após seu lançamento, em julho de 1985, tornou-se a obra de não ficção mais vendida de acordo com o ranking do Jornal do Brasil, e assim permaneceu por aproximadamente 91 semanas. Até o final de 1985, havia vendido 100 mil exemplares em nove edições.
Ao retornar aos anos 1980, é preciso ressaltar a imprevisibilidade em relação à conclusão do processo de transição política e o desenvolvimento dos trabalhos da ANC. Mas, além disso, é preciso voltar àquele tempo e recuperar o que um dia foi o possível, às centelhas da esperança benjaminianas presentes nas sugestões de brasileiros e brasileiras, porque, para aqueles futuros não realizados, os projetos não estão escritos no presente, mas no passado.
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Notas