Resumo: Por meio de uma análise da Minga, protesto realizado em 2008, este estudo visa problematizar o repertório indígena nas mobilizações indígenas contemporâneas em Cauca, na Colômbia. Em diálogo com o debate acadêmico, que destaca a dimensão política dessas mobilizações, se revisaram fontes documentais, observaram algumas manifestações indígenas e realizaram entrevistas com lideranças desses protestos. O trabalho revelou que historicidade e territorialidade são categorias centrais desse repertório. Os discursos colocam em evidência disputas políticas por legitimidade tanto das reivindicações quanto dos mecanismos estatais de contenção.
Palavras-chave: ProtestoProtesto,RepertórioRepertório,MarchaMarcha,DiscursoDiscurso,MingaMinga.
Resumen: Mediante el estudio de la Minga se busca problematizar el repertorio de movilización de los indígenas del Cauca (Colombia). Este trabajo dialoga con el debate académico que destaca el carácter político de la protesta social. El enfoque metodológico se centró en la revisión documental, la observación participante y la realización de entrevistas con líderes indígenas. El estudio muestra que historicidad y territorialidad son categorías centrales en dicho repertorio. Los discursos colocan en evidencia disputas políticas por legitimidad tanto en las reivindicaciones como en los mecanismos estatales de contención.
Palabras clave: Protesta, Repertorio, Marcha, Discurso, Minga.
Abstract: We are seeking to problematize the repertoire of the indigenous mobilization in Cauca, Colombia, through the analysis of the Minga. This paper dialogues with the academic debate which highlights the political nature of the social protest. The methodological approach is focused on the documentary review, participant observation and conduct of interviews with the indigenous leaders. The study shows that historicity and territoriality are central categories in such repertoire. The discourses reveal political disputes due to legitimacy both in the claims and in the state containment mechanisms.
Keywords: Protest, Repertoire, March, Discourse, Minga.
Seção Livre
Repertório de protesto indígena: análise histórica a partir das mobilizações dos povos de Cauca (Colômbia)
Repertoires of protest of the indigenous mobilization in Cauca, department of Colombia
Repertorio de protesta indígena: análisis histórico a partir de las movilizaciones de los pueblos del Cauca (Colombia)
Recepção: 31 Março 2018
Aprovação: 26 Setembro 2018
Publicado: 05 Julho 2019
O ponto de partida deste artigo é a indagação sobre a Minga de Resistencia Social y Comunitária del Suroccidente Colombiano, em diante Minga 2. Esse protesto ocorreu entre outubro e dezembro de 2008 em Cauca 3, Colômbia. Mediante a análise das formas de protesto que compõem o repertório da Minga se busca evidenciar as tensões nas relações entre os povos indígenas e o Estado colombiano. Destacase a apropriação, reelaboração e rotinização desse repertório em contraste com as práticas e modalidades estatais de contenção dos protestos.
Metodologicamente, retomou-se a perspectiva da etnografia histórica ( LIMA, 1995), a qual privilegia a pesquisa documental e da análise crítica do discurso, que privilegia a problematização das condições de produção e dialogicidade dentre os diferentes documentos analisados. A revisão priorizou um total de 62 documentos sendo, três cartas, oito vídeos, cinco relatórios do Observatório Social de América Latina (OSAL) 4 e 47 matérias jornalísticas que abrangem o período compreendido entre 9 de outubro e 31 de dezembro de 2008. Dessas notícias, 25 foram publicadas na Revista Semana5, 19 em El Liberal6 e duas matérias publicadas no sitio web da agência de notícias da Inter Press Service.
Landsman (1985) destacou a importância das publicações jornalísticas como fonte de pesquisa acadêmica. Para a autora, a mídia apresenta-se como ator constitutivo dos protestos por ser o principal meio a partir do qual se constrói a interpretação pública sobre a legitimidade ou não das manifestações. Dado que os manifestantes não conseguem divulgar amplamente suas pretensões, a imagem que sobre eles é divulgada depende em grande parte da cobertura midiática. Laborda (2000) também reconheceu essa relevância afirmando que os discursos veiculados pela mídia, amparados em uma pretensa neutralidade, exercem seu poder conferindo sentidos ou deslegitimando essas ações.
Contudo, os jornais e jornalistas pouco dizem sobre os antecedentes dos protestos e sobre seu desfecho. Nesse sentido, mediante a realização de entrevistas e observação direta, buscou-se um retorno à experiência dos participantes da Minga. A rotina de pesquisa consistiu-se em visitas diárias às diferentes sedes do Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC 7), localizadas em Popayán, cidade capital de Cauca, e ao território indígena La Maria 8. Também foram realizadas entrevistas nas residências das lideranças indígenas.
Foram entrevistados 12 líderes da Minga. Essa escolha foi facilitada pela revisão documental que deu destaque a atuação deles no protesto. A maioria dos entrevistados possuía formação escolar básica, somente dois deles possuíam estudos de pós-graduação, com idades entre 28 e 60 anos. O grupo de entrevistados foi formado por 10 homens e duas mulheres. Esse dado sobre o gênero dos entrevistados dialoga com os estudos ( RAMOS, 2013) que indicam que a participação das mulheres na política é minoritária em comparação com a masculina.
As entrevistas e a observação participante ocorreram entre novembro de 2010 e março de 2011. Esse período foi marcado por eventos de intensa atividade política, dentre eles: i) a comemoração dos 40 anos do CRIC celebrada entre 21 e 24 de fevereiro de 2011; ii) finalização da vigência da Consejeria9 do CRIC; iii) comemorações dos 20 anos da constituição política colombiana; e iv) início do período presidencial de Santos.
A construção do problema de pesquisa, em que a análise documental e as entrevistas com agentes chaves tornaram-se relevantes instrumentos para apreender empiricamente dito fenômeno, partiu do pressuposto sobre a escassa reflexão nas ciências sociais sobre o protesto indígena. Tal ausência relativa pode estar associada à priorização do estudioso das organizações indígenas e das dinâmicas institucionalizadas de interlocução com o Estado. Em contraste, a mídia colombiana veicula frequentemente manifestações que são enquadradas como alteração da ordem ou baderna. Estudiosos da teoria democrática também frisaram a pouca virtude dos protestos em comparação com mecanismos de negociação pacífica de demandas. Para tanto, a investigação desenvolvida entre 2009 e 2012 questionou sobre a história de apropriação ou reelaboração dos repertórios de protesto indígena neste país.
Adotou-se o conceito de repertório, que compreende o conhecimento social sedimentado e compartilhado mediante relações sociais e “ações amalgamadas em padrões conhecidos e recorrentes” ( TILLY, 1995, p. 27). Complementarmente, Swidler (1995) cunhou a definição de repertórios culturais para denotar atributos e sentidos próprios que os agentes sociais constroem em torno da sua ação política. Landsman (1985), ressaltou que cada nova ação traz símbolos e interpretações derivadas de um estágio anterior e que, do mesmo modo, novos símbolos são criados para audiências específicas, lugares ou tempos.
A interpretação de Tilly (1995) poder-se-ia aplicar à história de seu conceito, apropriado em performances de outros intérpretes. Além da sua aplicação a novos casos, ganhou especificações, contestações, dilatações, e usos imprevistos. “A noção de repertório partiu de formas de ação reiteradas em diferentes tipos de conflito, na abordagem estruturalista e racionalista, concentrada na ligação entre interesse e ação, e privilegiando atores singulares” ( ALONSO, 2012, p. 25). Décadas depois, apresenta-se relacional e interacionista, privilegia as interações conflituosas e a interpretação de performances.
O trabalho está composto por dois itens, além da introdução e das conclusões. Na primeira parte é apresentada uma análise das diferentes modalidades que conformaram o repertório da Minga, trazendo à tona a história de adoção dessas formas de protesto na mobilização indígena de Cauca. Na segunda parte, analisa-se a marcha, modalidade de protesto que alcançou maior destaque na cobertura midiática da Minga, mediante uma revisão histórica que destaca as motivações e o âmbito de realização.
A duração extensa, a diversidade e grande contingente de manifestantes e a densa agenda reivindicativa permitem argumentar que a Minga é um evento social complexo. Essa mobilização durou os três últimos meses de 2008 e defendeu a seguinte agenda de reivindicações: i) defesa da autonomia territorial indígena diante da guerra; ii) a refundação da normatividade sobre “usos” e distribuição de terra; iii) seguimento aos acordos 10 prévios; iv) respeito estatal à Declaração das Nações Unidas sobre os povos indígenas; e v) denúncia do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos 11. A legitimidade histórica da defesa territorial, atravessa os cinco itens dessa pauta ( RUANO, 2013).
O repertório da Minga remete ao histórico de descontentamento indígena na Colômbia. Segundo González (2010), esse protesto foi emblemático dentro da mobilização indígena colombiana. Conforme o Gráfico 1, o repertório da Minga esteve formado por oito modalidades 12 de protesto: i) carta aberta; ii) bloqueio de rodovia; iii) campanha midiática; iv) discursos em praça pública; v) marchas; vi) concentrações multitudinárias; vii) passeata; e viii) retirada dos espaços governamentais de diálogo.
A historicidade constitui essas formas de ação política como repertório cultural ( SWIDLER, 1995) das mobilizações indígenas de Cauca. Isso é, denotam conhecimentos, habilidades, símbolos étnicos e atribuições de sentidos próprios emoldurados nas vivências e experiências desse processo de mobilização ( ALONSO, 2012). A Minga acionou em três oportunidades a marcha, as concentrações multitudinárias e os discursos em praça pública. A literatura confirma que a utilização da carta aberta, das concentrações multitudinárias, dos discursos públicos, das marchas e das passeatas no repertório de protesto indígena remete à década de 1970 quando surgiu o movimento indígena de Cauca.
Estudos anteriores ( GROS, 1992; ESPINOSA, 1995, RAPPAPORT, 2000; RUANO, 2016) confirmam que o endereçamento de cartas abertas é uma ação política indígena de reconhecida trajetória. A carta aberta encaminhada pela Minga se configurou como uma ação, com certo caráter conservador, em resposta ao contexto de criminalização do governo Uribe. Mediante sua divulgação, os manifestantes demandaram a presença do presidente Uribe, em 14 de outubro de 2008, em La Maria. Esse local representa o sucesso da dinâmica de recuperação territorial indígena iniciada em 1970 ( ESPINOSA, 2005). O documento representou uma tentativa de legitimação, pois segundo as lideranças indígenas, objetivou “uma base de entendimento para negociar com o governo […] a carta foi um mecanismo respeitoso e de boa vontade (YAFUÉ, 2011) 13.
Sánchez e Molina (2010) destacaram a importância das cartas abertas como ação política direcionada ao âmbito institucional. Mediante essas comunicações escritas na língua oficial – espanhol – os indígenas solicitam ao Estado colombiano a garantia dos seus direitos. Na literatura, a apresentação de cartas abertas aparece como o primeiro recurso acionado para processar as reivindicações indígenas. No entanto, comprovada sua ineficácia, são incorporadas outras modalidades ao repertorio.
A passeata no contexto da Minga, remete ao encerramento do V congresso do CRIC, em 1978. Nessa oportunidade, a passeata com aproximadamente 2.000 indígenas percorreu o centro urbano do município de Coconuco (Cauca). Nos anos 2000, os indígenas realizaram várias passeatas para protestar contra o acirramento do conflito armado em territórios indígenas. Uma passeata em Puracé (Cauca), em 2001, se tornou representativa porque ocorreu durante um confronto bélico entre o grupo subversivo chamado Ejército de Liberación Nacional (ELN) e a polícia nacional. Os indígenas conseguiram o cessar fogo com uma passeata ambientada com megafones e música.
Em 21 de novembro de 2008, aproximadamente 60 mil manifestantes da Minga, realizaram uma passeata entre o prédio da Universidade Nacional até a Praça de Bolívar em Bogotá. Na universidade ficaram sediados os marchantes após percorrer 500 quilômetros durante 10 dias ( CORREA; CÁRDENAS, 2008). Conforme González (2010), a Praça de Bolívar representa um espaço de poder, tornando-se, portanto, alvo privilegiado das mais importantes mobilizações sociais do País. A passeata culminou em uma concentração multitudinária acompanhada de discursos e palavras de ordem.
A inclusão das concentrações multitudinárias no repertório indígena remonta à década de 1970. Podem apresentar diferentes conotações como congressos, assembleias, reuniões ou audiências. Segundo Muelas e Urdaneta (2005), as reuniões e a exibição de vestuário ou símbolos étnicos eram qualificados como crime de rebelião na Colômbia. Tal criminalização, amparada em normativas, justificaram processos judiciais e prisão de líderes indígenas.
Contudo, a partir de 1970, consecutivas concentrações indígenas multitudinárias foram realizadas legitimando o surgimento do CRIC. Nas reuniões ocorridas entre fevereiro e setembro de 1971, aprovouse o programa político e se elegeu o comitê executivo dessa organização. Posteriormente, iniciou-se a realização de um congresso trienal, com duração de três dias. Esses eventos constituíram-se como espaços de sociabilidade que reforçam a crença partilhada da coletividade no fortalecimento da organização política indígena.
Os referidos congressos têm caráter comemorativo, político e pedagógico. Nesses espaços ocorre a eleição dos conselheiros do CRIC, ratificada mediante rituais de harmonização para os conselheiros eleitos. A concepção de grupos de trabalho objetiva a discussão de problemas e planejamento de atividades, subdivididos em comissões de discussão e acompanhamento de temas específicos como política, educação e saúde. A realização periódica dos congressos coloca em evidência um aprimorado processo de coesão política entre os povos indígenas reunidos no CRIC ( RUANO, 2017).
A priorização dos locais de encontro para essas reuniões é marcada por referências étnicas que denotam o território enquanto campo de forças em disputa e a territorialidade como práticas de regulação das interações sociais. Conforme Friedemann (1981), antes de 1970 os encontros indígenas ocorriam em locais demarcados por comemorações da sociedade dominante e promovidas, principalmente, pelo Estado. Porém, os processos de reivindicação e recuperação territorial iniciados em 1970 resultaram na ressignificação dos resguardos indígenas. Na atualidade, esses territórios, principalmente La Maria, são cenários privilegiados para a realização de reuniões, assembleias e congressos indígenas na Colômbia.
A Minga realizou três concentrações multitudinárias. A primeira, em La Maria, em 21 de outubro de 2008, compareceram 20 mil indígenas, o presidente Uribe e seus ministros. Apesar de não terem avançado no compromisso governamental com a pauta reivindicativa, os manifestantes declaram-se satisfeitos pela concretização desse “diálogo cara a cara”. No imaginário indígena esse diálogo denota a eficácia do protesto para conseguir o envolvimento de autoridades de alta posição hierárquica na administração pública, nomeadamente o presidente e/ou ministros, na negociação da agenda reivindicativa.
A segunda, foi realizada no Centro Administrativo Municipal (CAM) na cidade de Cali, em 2 de novembro de 2008. Nessa oportunidade aproximadamente 40 mil indígenas foram informados que imprevistos 14 na agenda do presidente Uribe impossibilitaram seu comparecimento ( CABALLERO, 2009). Porém, após atraso de pelo menos de três horas, Uribe se apresentou. Os manifestantes não o receberam, alegando que o desrespeito pelo horário combinado refletia o descaso desse governo para com as reivindicações indígenas ( CORREA; CÁRDENAS, 2008).
A terceira ocorreu em 20 de novembro, na Praça de Bolívar, em Bogotá, e alcançou um contingente de 60 mil manifestantes. Aida Quilcué 15, conselheira maior do CRIC, fez um discurso direcionado não apenas ao governo, mas principalmente aos manifestantes. Na intervenção, destacou-se a importância da cacica Gaitana, líder indígena do período colonial, denotando a longa duração das problemáticas denunciadas por esses povos, mencionando a pluralidade dos manifestantes –.trabalhadores, estudantes, camponeses e negros – ali concentrados. A concentração revelou a Minga como dinâmica que precisa ser impulsionada socialmente para evidenciar a dominação sofrida por esses povos.
Os discursos em praça pública apresentam uma frequência relativamente alta como ação política indígena, sendo proferidos publicamente buscam não somente atingir um público externo, mas também aos próprios indígenas. Para exemplificar a importância dos discursos, convém citar aquele proferido pelo indígena Julio Tunubalá, em 1970, na Praça principal do município de Silvia (Cauca). Esse discurso, em língua nativa, com tradução simultânea para o espanhol, focou na apresentação da plataforma política do CRIC ( GROS; MORALES, 2009).
Outro discurso indígena célebre foi proferido durante a visita do Papa João Paulo II, em julho de 1986. Nesse discurso, o líder indígena Guillermo Tenório (1986) declarou que a “história indígena é construída no silêncio, na dor, no desprezo e na marginalização”. Afirmou ainda que a Igreja Católica, concentradora de vastas extensões de terra, criminaliza a disputa territorial imputando-lhes a condição de delinquentes. Durante o discurso foram silenciados os microfones, retomados a pedido do Papa ( CRIC, 2017).
O bloqueio da estrada Panamericana foi acionado pela Minga em 14 de outubro de 2008. A importância dessa estrada se justifica nos seguintes elementos: a) conecta 11 dos 32 departamentos do País; b) interliga cidades menores – Pasto e Popayán – com as principais cidades capitais do País – Cali e Bogotá – e c) comunica a Colômbia com o Equador e a Venezuela ( DÍAZ; MUESES, 2011). O referente de apropriação dessa forma de protesto remete ao primeiro bloqueio ocorrido em julho de 1996. Nessa oportunidade, o CRIC convocou a “tomada” dessa estrada em defesa da autonomia territorial e contra as fumigações aéreas dos cultivos de coca e papoula nos territórios indígenas ( SUHNER, 2002).
Desde então, a eficácia do bloqueio de rodovias se instaurou no imaginário do processo de mobilização indígena. Esse bloqueio foi levantado quando o governo colombiano publicou dois decretos como resposta à agenda reivindicativa desse protesto. O Decreto n° 1396 de 1996 criou a Comisión de Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas e o Programa Especial de Atención a los Pueblos Indígenas. O Decreto n° 1397 de 1996 regulamentou a Mesa Permanente de Concertación ( CAVIEDES, 2011).
O “gran bloqueo del Cauca”, ocorrido em outubro de 1999, também contribuiu na consolidação desse mecanismo nos repertórios de mobilização social ( ESPINOSA, 1995). Liderado pela organização camponesa chamada Comité de Integración del Macizo Colombiano (CIMA), contou com a vinculação do CRIC e outras organizações sociais. Suhner (2002) destacou os vinte dias de duração, a organização interna, a agenda de reivindicações, o apoio conquistado e a repressão armada enfrentada. Esse bloqueio finalizou com a promulgação do Decreto presidencial nº 982 de 1999 que declarou a “emergência social, econômica e cultural. de Cauca.
Segundo os entrevistados, o bloqueio da estrada Panamericana é uma ação política de alto risco dada a repressão de natureza diversificada acionada contra essa modalidade de protesto (CHICANGANA, 2011 16). Essa narrativa veicula a denúncia da coação estatal, a qual não fica restrita aos limites administrativos e jurídicos. As práticas estatais de contenção desdobram-se em lesões graves, morte 17, perseguição, desaparecimento e prisão das lideranças e dos manifestantes. Essas ações de intimidação estatal são comuns na tentativa de mitigar os bloqueios dessa estrada.
Durante a Minga, a repressão militar arremeteu contra o bloqueio e avançou ao território La Maria. A televisão internacional, Cable News Network (CNN), divulgou vídeos inéditos que evidenciaram a desproporção no uso das forças armadas estatais. Reproduzidas posteriormente na televisão nacional, as imagens mostraram a polícia fortemente armada atacando os indígenas que reagiam com bastões de mando 18, pedras e paus. Essa ação militar produziu ferimentos nos indígenas, majoritariamente crianças, mulheres e idosos, alguns sofreram lesões incapacitantes. O centro de saúde, a escola, moradias e plantios dos indígenas sofreram danos significativos ( CORREA; CÁRDENAS, 2008).
A Minga explorou politicamente a midiatização dessa arremetida militar através da campanha midiática veiculada no rádio e na internet 19. Essa “minga informativa”, denunciou o enquadramento governamental que ao catalogá-la como alteração da ordem, enfatizou seu caráter político. Ocorreram manifestações internacionais e locais deslegitimando a violência do governo Uribe. Posteriormente, Uribe e o chefe da polícia nacional admitiram, em discurso transmitido na televisão nacional, o excesso no uso da violência.
Essa campanha e seus desdobramentos denotaram a eficácia política das estratégias de constrangimento social. Segundo Niezen (2009), quem estudou a ação política do povo Cree da Baía de James, no Québec, o potencial de dito constrangimento é eficaz enquanto mecanismo que publicita, nacional e internacionalmente, as injustiças e inconsistências da ação estatal diante dos indígenas. A violência sofrida pela Minga tornou-se fato político porque constrangeu o uso abusivo da abordagem policial.
Complementarmente, a Minga acionou ações políticas com caráter institucional. Senadores e deputados indígenas exigiram a exoneração do chefe da polícia nacional. Na Defensoria del Pueblo, na Comissão Interamericana de Direitos humanos (CIDH) e na Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), os indígenas promoveram reuniões e comunicações buscando alcançar a legitimação dessas instituições de defesa dos direitos humanos. Também conseguiram cartas de questionamento da repressão do governo endereçadas pelo Parlamento Europeu e o Sindicato Canadense de Trabalhadores Públicos ( CORREA; CÁRDENAS, 2008).
Segundo os manifestantes, a eficácia do protesto radica na sua capacidade para findar espaços institucionais de diálogo com o governo. A importância desses espaços radica na ritualização simbólica da reparação pelos abusos e omissões estatais, isto é a dimensão moral atravessa a mobilização indígena. Para os manifestantes é relativamente consensual que os protestos não concretizam a pauta reivindicativa no curto prazo. Segundo uma liderança: “sabemos que não regressaremos com os bolsos cheios de recursos financeiros, mas a dignidade é um ganho político” (HUILA, 2011) 20. Ou seja, a visibilidade e a legitimidade conquistadas durante os protestos são valorizadas como capital político fundamental para a organização indígena.
No entanto, os governos utilizam esses espaços de diálogo para neutralizar politicamente os protestos e apaziguar o descontentamento social. A negociação da pauta reivindicativa enquadra-se obrigatoriamente na lógica governamental que é regida pela burocratização e as delongas para efetivar as obrigações estatais. Por isso, conforme Correa e Cárdenas (2008), em 3 de dezembro de 2008, a Comissão Política da Minga, presidida por Aida Quilcué, decidiu unilateralmente encerrar o diálogo, alegando descaso dos representantes governamentais diante da pauta da Minga.
O fato de a presidência dessa comissão ter sido assumida por uma mulher é um evento de significativa importância para questionar sobre gênero na ação política indígena. Aida Quilcué foi a primeira, e até o momento a única, mulher indígena eleita para a principal função no CRIC. Atuou como conselheira maior, assumindo a representação indígena no cenário nacional e internacional, do período de 2007 a 2009. Essa tímida incursão feminina na liderança do CRIC, em mais de quatro décadas de existência dessa importante organização indígena, revela a hierarquia masculina na cena interétnica. No entanto, Ruano e Sousa (2017) mostraram que essa invisibilização não implica ausência das mulheres nas mobilizações.
Em outubro de 2008 uma operação militar atacou o bloqueio da estrada Pan-americana “produzindo uma centena de feridos, incluindo, mulheres, crianças e idosos que sofreram lesões incapacitantes” ( Ruano, 2013, p. 158). Porém, longe de intimidarem-se, as mulheres indígenas radicalizaram o engajamento apoiando as novas empreitadas da Minga (ZUÑIGA, 2008). Cometa (2008) conseguiu a seguinte declaração, após ter sofrido a repressão policial antes referida. Leydi Ipia, uma jovem mulher indígena, teria declarado:
Nós como mulheres ajudamos na resistência, é difícil porque temos enfrentado homens armados […] nós somente temos as bengalas [símbolo étnico de autoridade] eles têm fuzis, armas de fogo, esse é o terror mais grave, o que faz o Esmad [Esquadrão Antimotins]. Quando estamos diante deles sentimonos impotentes porque somete temos a bengala, talvez uma pedra. Mas, encontramos que eles disparam balas, granadas, estão nos matando. No jornal dizem que nos disparamos granadas, isso não é assim. Isso nos faz sentir sem ferramenta para a justa luta 21.
As fontes documentais e as observações no campo revelaram que, apesar da liderança ser assumida majoritariamente pelos homens, o contingente feminino nos protestos é equiparável com o masculino. Segundo Gros e Morales (2009), em 1970 mulheres e homens, indígenas e campesinos marcharam em silêncio para demarcar a fundação do CRIC. Curiosamente, ser mulher indígena, de forma alguma agrega atributos que as dispensem de ocupar posições nas atividades de menor hierarquia, embora possam representar risco iminente. Segundo Caballero (2009), em 24 de novembro de 2008, Aida Quilcué e mais 30 mulheres teriam sido atropeladas pela polícia montada que tentava impedir o ingresso da Minga na cidade de Ibagué, local obrigatório rumo à Bogotá.
Retomando o debate sobre o encerramento unilateral das negociações com o governo por parte da comissão política da Minga, pode-se afirmar que tal ação reflete a racionalização indígena sobre essa estratégia estatal que busca diluir no tempo o conteúdo político da mobilização social. Dado que as dimensões temporal e contextual são coadjuvantes na busca pela legitimidade dos protestos, a lentidão burocrática e jurídica estatal age na contramão. Esse esvaziamento político deliberado enquanto estratégia estatal pode colocar em xeque a eficácia dos repertórios de protesto e, em consequência, comprometer a capacidade indígena de convocatória no futuro.
Ciente dessa armadilha, a liderança da Minga buscou, sem sucesso, deslegitimar os espaços estatais de negociação. Os manifestantes qualificaram as reuniões interministeriais como “perda de tempo”. Em julho de 2009, um ano depois da marcha da Minga, a representação da comissão política retornou a Bogotá para “oficializar” a retirada dos indígenas das negociações com o governo Uribe. Nessa oportunidade, Aida Quilcué, presidenta da comissão, teria sido “retirada à força” do Ministério do Interior pela segurança do prédio e “sofrido hematomas em braços e pernas” (CHICANGANA, 2011; QUILQUÉ, 2011 22).
A ênfase na perspectiva de gênero na análise dos protestos indígenas permite observar que as mulheres indígenas sofrem violência física perpetrada, principalmente, pelos agentes estatais, e simbólica quando preteridas da liderança. Como verificado empiricamente, mulheres de diferentes faixas etárias, incluindo crianças de colo e idosas, não negligenciam os chamados para adensar a multidão indígena necessária para legitimar os protestos. Há também registros documentais e bibliográficos ( RUANO, 2013; COMETA, 2008; ZUÑIGA, 2008) que confirmam o engajamento feminino na histórica luta pelos direitos desses povos.
Foge ao escopo deste artigo aprofundar na reflexão sobre as interpelações do debate sobre gênero e feminismos aos movimentos indígenas. Dito seja de passagem, com Gargallo (2014) que os feminismos indígenas e comunitários nas Américas ainda não alcançaram consensos em torno das estratégias de despatriarcalização e descolonização. Poder-se-ia, porém, demarcar duas tendências. De um lado, a radicalização da complementaridade dos gêneros defendendo que não se busca prescindir dos homens, mas exigir equidade. De outro, a liberação do corpo-território do patriarcado ancestral fortalecido pelo colonialismo.
Avelina Pancho (2007), indígena Misak revela que a agenda feminina na Colômbia iniciou disputando o direito de participar das reuniões, encontros, seminários e, principalmente, da tomada de decisões dentro do movimento indígena. Destaca que as indígenas colombianas defendem a complementaridade entre homens e mulheres, identifica avanços sem ocultar os empecilhos. Nas conquistas elenca que, gênero e família constituem o eixo transversal do projeto político pedagógico da Universidad Autónoma Indígena e Intercultural (UAIIN) onde as mulheres lideram o programa de educação bilíngue e intercultural. Essa instituição universitária, idealizada pelo CRIC, busca redimensionar a identidade indígena, o resgate das línguas originarias, das cosmovisões indígenas e saberes ancestrais.
Para encerrar essa seção cabe frisar que o desrespeito estatal, corriqueiro nas esferas institucionalizadas, justifica os repertórios de protesto como mecanismo legítimo para exigir direitos na Colômbia. Caracterizar os espaços estatais de negociação das reivindicações indígenas como estratégias de despolitização contribui para questionar a virtude democrática da chamada “negociação pacífica” do descontentamento social. Em democracias de baixa intensidade, como a colombiana, os protestos têm a virtude de encarnar uma pedagogia política no cotidiano de agentes historicamente excluídos das esferas ditas democráticas.
A marcha é uma modalidade de mobilização social registrada historicamente em distintas tradições e épocas. Seu aspecto estereotipado lhe permite revestir-se de múltiplos significados enquanto adquire contornos diferenciados ( CHAVES, 2000). Espinosa (1995) advertiu que as marchas indígenas possibilitam a experimentação social demarcada pela busca de informação e reconhecimento identitário. Para Rappaport (2000), durante os deslocamentos alcançados nas marchas o território nativo é reafirmado, no entendimento dele como campo de forças em disputa.
Nas mobilizações indígenas, a marcha se constitui como uma modalidade de protesto que explora performances étnicas. As marchas indígenas conseguem mobilizar significativo contingente de manifestantes, esse deslocamento geralmente implica trajetos do âmbito rural para o urbano ( RUANO, 2013). A literatura sobre os movimentos indígenas indica que a apropriação desse repertório surgiu na década de 1970, período de florescimento do movimento indígena de Cauca ( PRADA, 2005; CAVIEDES, 2008; JIMENO, 2010).
O Quadro 1 apresenta as marchas identificadas na revisão de literatura sobre o movimento indígena de Cauca. Das realizadas entre 1970 e 2010, o maior número se concentra na década de 2000, representando 50% do total. Em contraste, a década de 1970 apenas registrou uma marcha. Posteriormente, foram realizadas duas marchas por década. As dimensões percurso e âmbito de realização confirmam o predomínio do âmbito regional como escopo dessas ações políticas. Isto é, os itinerários dessas marchas envolvem majoritariamente territórios com abrangência de municípios localizados em dois ou mais departamentos colombianos.

A primeira marcha indígena de Cauca data de 1970 mobilizou aproximadamente três mil indígenas do vilarejo de San Fernando até a sede municipal em Silvia (Cauca). “Homens e mulheres indígenas marcharam em silêncio” ( Gros e Morales, 2009, p. 141). O silêncio nessa marcha remete à acirrada repressão na qual ocorreu o surgimento desse movimento indígena. No encerramento da marcha houve discursos em língua nativa, que foram traduzidos para o espanhol. Os discursos destacaram a importância da criação do CRIC.
Na década de 1980 ocorreram três marchas indígenas, as quais reivindicavam questões territoriais. No ano de 1980, os indígenas marcham pela primeira vez até Bogotá, na denominada “ 1 ª marcha das Autoridades Indígenas do Sul-ocidente de Colômbia . Com o lema “ em defesa dos nossos direitos”, os representantes da Organização de Autoridades Indígenas do Sul Ocidente Colombiano (AISO 23), expressaram no Congresso da República contrariedade diante do projeto de Lei que buscava instaurar o novo Estatuto Indígena ( FRIEDEMANN, 1981). Dito projeto, segundo os indígenas, afetava a autonomia territorial indígena e limitava a criação de novos territórios.
Em 1986, uma marcha indígena percorreu 97 quilômetros, entre o município de Santander de Quilichao e Popayán ( ESPINOSA, 2005), em oposição à construção da hidroelétrica La Salvajina. Tal empreendimento previa a inundação de 10 mil hectares e abrangia uma porcentagem significativa de terras ocupadas pelos indígenas, que além de serem planas e férteis, representavam um legado cultural e simbólico para esses povos. De outro lado, ameaças, perseguição e morte de lideranças indígenas foram comuns na época da construção.
Em 1987, a 1 ª Marcha de AICO adotou o lema: Recuperar a terra para recuperar tudo: Autoridade, Autonomia e Cultura. Mediante essa marcha, os indígenas reclamaram a reconstrução política, econômica, social e cultural dos territórios indígenas da Colômbia. As marchas realizadas na década de 1980 colocavam em destaque protestos indígenas de caráter nacional contra as reformas normativas voltadas para anular a legislação vigente que favorecia os direitos territoriais indígenas. Conforme Gros (2010), esses protestos evidenciaram o descontentamento diante da tentativa de reorganizar a administração estatal indigenista de modo a instaurar um controle tutelar estatal efetivo.
A década de 1990, registrou a realização de duas marchas cujas motivações remetem a agendas reivindicativas diferenciadas. A questão territorial continuou na agenda e a representação partidária surgiu como nova reivindicação. A Constituição Política de 1991 instaurou a circunscripción especial que outorgou duas cadeiras para representantes indígenas no Congresso colombiano. Na primeira eleição em que dita normativa vigorou, foram eleitos os indígenas Gabriel Muyuy e Floro Tunubalá. O indígena Anatólio Quirá também obteve votação suficiente para uma vaga adicional. No entanto, foi negada sua efetivação ( Caviedes, 2011). A marcha de protesto foi determinante para que os três representantes indígenas conseguissem exercer o mandato durante o período legislativo entre 1991 e 1994 no Congresso Nacional.
A Marcha de Novirao ocorreu no ano de 1999, percorreu os 34 quilômetros que separam os municípios de Totoró e Popayán (Cauca). Esse protesto exigiu o cumprimento do acordo assinado pelo governo nacional em 1996. Dito acordo estipulou a aquisição de aproximadamente cinco mil hectares de terra para ampliar o território do Resguardo de Novirao. Esse território foi reconhecido no final da década de 1980 e representa uma conquista na dinâmica de recuperação territorial liderada pelo CRIC.
As marchas realizadas na década de 2000 tiveram como motivação comum a defesa da vida. Essa reivindicação, em contraste com as motivações das marchas citadas, denota o crescimento dos índices de assassinatos e desaparecimentos de lideranças indígenas durante o governo Uribe 24. O desaparecimento e a detenção arbitrária de lideranças e ativistas foram mecanismos de coerção nesse período. Segundo Villa (2005), em 2002, primeiro ano desse governo, foram assassinados 496 indígenas na Colômbia. Esse número é equivalente a um quarto do total de assassinatos indígenas durante as décadas de 1980 até 2000.
Em 2001, trinta mil indígenas marcharam 100 quilômetros entre Popayán (Cauca) e Cali (Valle). Intitulada Minga pela vida e contra a violência, a marcha denunciou o massacre do Naya ( JIMENO, 2010), no qual foram assassinadas 200 pessoas. A marcha durou cinco dias pois percorreu os vilarejos atingidos pelo massacre. Segundo Archila (2005), essa marcha demandou por uma saída política para o conflito armado colombiano e colocou em relevo um novo horizonte sociopolítico do protesto indígena no país.
No ano de 2004, na marcha denominada Minga por la Vida, la Justicia, la Alegría, la Autonomía y la Libertad de los Pueblos os marchantes reclamaram respeito pelos direitos indígenas e rejeitaram os tratados econômicos internacionais ( Galeano, 2006). A marcha desdobrou-se na realização do Congreso de Pueblos y Movimientos Sociales, que reuniu aproximadamente 80 mil participantes entre indígenas e outras organizações sociais. Em 2005, a Organização Nacional Indígena de Colômbia (ONIC) 25 convocou a Marcha de la semilla. Mediante esse protesto questionaram a aprovação do Tratado de libre comercio (TLC) entre a Colômbia e os Estados Unidos. Em 2007, o CRIC convocou a marcha chamada Minga Pública em Defesa da Vida, a Livre Autodeterminação e o Território, cujo início ocorreu em Toribio, município que enfrentou vários confrontos armados.
Durante a Minga de 2008, realizaram-se duas marchas. A primeira com um contingente de 40 mil manifestantes percorreu, em 21 de outubro, 34 quilômetros entre o Município de Santander (Cauca) e a cidade de Cali (Valle). Nas entrevistas, a importância econômica dessa cidade foi destacada para afirmar que essa localidade facilitou suporte político e logístico para a realização da Minga (PECHENE, 2011 26. Na ocasião, Uribe prometeu que dialogaria com os marchantes reunidos em Cali, no entanto, esse diálogo não aconteceu.
A segunda marcha da Minga percorreu 500 quilômetros e durou dez dias, entre 10 e 21 de novembro de 2008. Teve como ponto de partida La Maria e como destino a Praça de Bolívar em Bogotá. Esse deslocamento geográfico até a capital do país sugere mudanças no repertório indígena que indagaremos a seguir. De acordo com as entrevistas, as autoridades tradicionais não concordaram com essa ação, pois entendiam que não dariam conta dos custos dessa empreitada. Apesar do dissenso alguns líderes decidiram pela sua execução. A marcha iniciou com um tímido contingente de aproximadamente mil participantes (CHICANGANA, 2011 27).
Esse desacordo entre as lideranças tradicionais e os novos líderes revela compreensões diferentes sobre a eficácia e a pertinência do repertório de mobilização. Essas visões dissonantes também refletem relações de poder e hierarquia na mobilização indígena. O receio dos primeiros justifica-se em ponderações sobre os custos financeiros e políticos do deslocamento até Bogotá. De outro lado, a nova geração indígena na liderança defendia que a conjuntura exigia ousadia. Porém, a concretização da marcha até Bogotá somente foi alcançada pela gestão desse dissenso inicial. Segundo Ruano e Souza (2017), o apoio das lideranças tradicionais se tornou fundamental para arranjar alimentos, mobilizar manifestantes e dinamizar articulações políticas nas cidades-chave do percurso dessa marcha.
Além da baixa adesão inicial, a marcha enfrentou outros obstáculos. Chuva, frio, calor, lama, precariedade no abastecimento de água potável e insegurança das rodovias foram aspectos logísticos que incidiram no percurso dos 500 quilômetros percorridos pela marcha ( RUANO, 2016). Contudo, a repressão policial, tentativas estatais de cooptação e intimidação se apresentam como penúrias que configuram o caráter sacrificial das marchas de protesto. Segundo Molina (2012, p. 15), um grafite com a inscrição “viva a histórica luta dos povos indígenas de Americaapareceu nos muros das cidades pelas quais passou a marcha. Um boneco representando Uribe ( MOSQUERA, 2008) acompanhou todo o percurso da marcha. O grafite e o boneco somaram-se como diferencial das marchas previamente realizadas.
No percurso da Marcha, representantes governamentais recorreram à prática rotineira de desqualificação do protesto. O ministro da Defesa sugeriu mecanismos obscuros no financiamento da marcha. Uribe chamou os marchantes de “mentirosos” e os acusou de esconder interesses políticos. Nesse discurso, o termo político atribui conotações pejorativas à ação política indígena. No confronto discursivo, a Minga reafirmou sua condição de sujeito político. Segundo o líder indígena Feliciano Valencia 28:
É claro que nossa Minga é política com P (maiúsculo], porque político é defender os direitos coletivos indígenas; Político é defender as conquistas que logramos na Constituição; […] político é defender a vida e a dignidade; político é rejeitar que o Estado social de direito seja dilacerado; político é defender o caráter de entidade territorial de todos os territórios indígenas e seu governo próprio […]; político é rejeitar os assassinatos, desaparições, deslocamentos forçados; político é discordar da chamada segurança democrática 29 (VIEIRA, 2008, p. 5, tradução nossa).
A legítima defesa dos direitos coletivos encorajou aos marchantes, cujo contingente cresceu permanentemente durante o deslocamento até Bogotá, alcançando um total de 60 mil manifestantes. Desse modo, a visibilidade da mobilização indígena e a articulação política com outros atores sociais se fez evidente. A incursão dessa marcha no território nacional, apesar de passageira, instaurou uma imagem vívida dos povos indígenas colombianos na contemporaneidade.
A marcha, as concentrações multitudinárias e os discursos em praça pública permitem explorar disputas discursivas. Nesse sentido, merece destaque a adoção do termo minga como nomeação das marchas realizadas na década de 2000. Segundo Arrieta (2009), essa nomeação representou uma reorientação de caráter político no processo de mobilização indígena na Colômbia. O primeiro congresso da ONIC determinou que a conhecida dinâmica de mobilização indígena iniciada em 1970, em diante, seria nomeada minga. Além do caráter coletivo que o termo representa, indica também reafirmação espiritual e cosmogônica.
A autodenominação das marchas indígenas na década de 2000, mediante o termo minga, revela que os sentidos da etnicidade atravessam os processos organizativos indígenas. Segundo Díaz (2008), os protestos denominados Minga incidiram na criação de “propostas metodológicas” para fazer política cotidianamente. Para Rozental (2009), a minga enquanto noção indígena refere a partilha, a troca e a consolidação de laços entre esses povos. No entanto, como processo social dinâmico não é alheio às contradições.
Sobre o contexto de realização das marchas realizadas entre 1970 e 2010 salienta-se o âmbito local – municipal e departamental – como principal cenário de atuação, sugerindo certo caráter paroquial na ação política indígena. Isto é, esse caráter revela que a ação direta foi motivada por questões puramente locais. No entanto, as marchas até a capital do país e a exigência do diálogo com o presidente e os ministros sugerem a busca por um repertório cosmopolita com assuntos transversais às localidades que possam influenciar a agenda política nacional. Essa alternância de modalidades paroquiais e cosmopolitas de ação política indígena reflete aprendizados a partir dos quais se ultrapassam as fronteiras locais que encurralam os indígenas nos Resguardos.
A defesa territorial e da vida constituíram as principais reivindicações nas pautas dessas marchas. Nelas destaca-se a exibição padronizada de bandeiras, faixas, bonés e lenços institucionais das organizações indígenas. Durante as marchas, os vestuários tradicionais e a guardia indígena se apresentam como símbolos da vitalidade do processo organizativo indígena de Cauca. O contingente de manifestantes mobilizado em ambas as marchas outorgou legitimidade ao protesto. No entanto, sua execução implica em riscos políticos e custos financeiros, situação que explicaria o receio das autoridades tradicionais diante dessa empreitada no âmbito da Minga.
Essa prevenção quanto ao risco político decorrente da ousadia de marchar até a capital do país pode ser explorada analisando os desdobramentos das alianças sociais exploradas pela Minga. Os integrantes da comissão política possuíam diferentes graus de experiência e aptidões conquistadas em anteriores processos de negociação com o governo (MUÑOZ, 2010 30. Tal expertise reflete a pedagogia política vivenciada pelos líderes indígenas em negociações com o Estado. A partir dessas vivências identificaram e apropriaram estratégias como a produção de dados estatísticos e arquivamento de documentos assinados pelos governos. Isto é, os indígenas entenderam que estatísticas e documentos assinados representam a lógica burocrática e tecnicista da administração pública a partir da qual legitima ou não as demandas sociais.
A pluralidade dos atores que marcharam até Bogotá justificou suas pretensões de legitimidade, denotando a importância dessa articulação sociopolítica. No entanto, a negociação com o Estado derivou em contendas por recursos públicos. Essa competição suscitada pelos agentes estatais – ministros de Saúde, Educação, Agricultura e do Interior – durante as reuniões institucionais foi eficaz para colocar em xeque a tímida sincronia entre as agendas dos atores recentemente reunidos na Minga. Essas disputas pelo financiamento público mobilizam práticas de clientelismo, corporativismo e oportunismo que agem despolitizando a coesão social pretendida.
A análise do repertório de protesto da Minga evidenciou que as tensões nas relações contemporâneas entre o Estado colombiano e os indígenas são atravessadas por demandas antigas e um histórico de desrespeito aos direitos desses povos reconhecidos constitucionalmente. Na mobilização indígena, os protestos, além da eficácia na abertura de espaços institucionais de diálogo com o governo, disseminam uma pedagogia da política na prática. Os aprendizados abrangem a atualização de sentidos para as modalidades de protesto e a apropriação de práticas de negociação em cenários institucionais.
Na esfera institucional, as lideranças da Minga exploraram articulações políticas no âmbito nacional e internacional. Conseguiram que o Congresso Nacional e as instituições de defesa dos direitos humanos questionassem a violência estatal na contenção desse protesto. O presidente Uribe também recebeu questionamentos internacionais pela negligência em dirimir pacificamente essas manifestações. Contudo, as reuniões de negociação entre o governo e os manifestantes constituem a principal conquista institucional dos protestos indígenas, fundamentalmente pelo caráter de reparação simbólica dos abusos e omissões estatais.
O início da Minga, em 12 de outubro de 2008, mediante a divulgação de uma carta aberta endereçada ao presidente Uribe, revela que esse protesto explorou a tradição reivindicativa conservadora do repertório cultural indígena na Colômbia. No país, em outubro, comemora-se oficialmente o “descobrimento das Américas 31”. Nesse sentido, há que salientar o deliberado direcionamento desse protesto ao sentido histórico das reivindicações indígenas colombianas.
Alguns estudiosos associaram a Minga com a conjuntura política e relativizam a sua historicidade. Para Díaz (2008), a conjunção de diversos atores sociais evidenciou o descontentamento com o governo Uribe. Rappaport (2011) também entendeu essa diversidade como uma estratégia contra o militarismo neoliberal desse governo. Essa compreensão se fundamenta a partir do contraste entre o “apaziguamento” social do primeiro semestre e “agitação social” do segundo semestre de 2008. No primeiro semestre foram registrados apenas dois protestos 32 de repúdio ao conflito armado colombiano. No segundo semestre, ocorreram oito protestos, dois contra o conflito armado 33 e sete protestos trabalhistas 34 ( LAURENT, 2010).
Porém, a agenda de reivindicações indica que a Minga não foi apenas um protesto contra Uribe. A defesa da autonomia territorial indígena atravessa cada um dos pontos dessa pauta. A revisão da legislação sobre uso e distribuição de terras e a rejeição do Tratado de Livre Comércio com Estados Unidos se justifica na histórica disputa territorial enfrentada por esses povos. A exigência quanto ao cumprimento da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas e dos acordos assinados pelo governo colombiano também se direciona para questões territoriais. Contudo, não pode ser negligenciada a criminalização desse governo, que além de qualificar a mobilização social como terrorismo e delinquência, incentivou a estratégia de pagamento pela sinalização e delação de lideranças indígenas. Esse período presidencial – 2002 a 2010 – comportou o maior incremento dos índices de vulneração dos direitos indígenas desde 1980.
A Minga buscou a ampliação do campo social da mobilização indígena de Cauca. Segundo González (2010), esse protesto de 2008 destacou o poder multitudinário indígena e seu crescente protagonismo nas lutas sociais nacionais. Para Castaño (2015), a Minga instalou uma nova forma de trabalho político que dinamiza diversos processos de mobilização social na Colômbia. Os líderes indígenas reconheceram esse caráter utópico do protesto, para Feliciano Valencia (2008), “a Minga é um processo de diálogo e encontro que precisa ser impulsionado socialmente”. Nas palavras de Aida Quilcué, “a Minga é encontro para dialogar” (CNP, 2008).
◦ Visiting professor in the Department of Latin American Studies at the University of Brasília (UnB). Permanent professor of the Graduate Program on the Social Sciences with focus on the Comparative Research of the Americas (PPG/ECsA). Researcher at the Autonomous University Corporation of Cauca.
◦ Profesora visitante en el Departamento de Estudios Latinoamericanos (ELA) de la Universidad de Brasilia (UnB). Profesora Permanente del Programa de Posgrado en Ciencias Sociales – Estudios comparados sobre las Américas (PPG-ECsA). Investigadora de la Corporación Universitaria Autónoma del Cauca.
