Editorial
Tramas das relações vinculares do contemporâneo a partir de diversas perspectivas e saberes
Plots of contemporary binding relationships from different perspectives and knowledge
Tramas de las relaciones vincular del contemporáneo desde diversas perspectivas y saberes
Recepção: 30 Setembro 2022
Aprovação: 18 Outubro 2022
O presente número da Vínculo - Revista do Nesme, apresenta aos seus leitores um conjunto de temas que exploram as particularidades dos vínculos em diferentes momentos do desenvolvimento das relações familiares e dos desafios inerentes em situações de estresse.
Destacamos os estudos que contribuirāo para a compreensão do desenvolvimento humano visto a partir das crises existentes nas relações familiares, fruto das grandes transformações contemporâneas da constituição da conjugalidade e da família, Tais crises podem representar mudanças permanentes no status e na função de seus membros.
Algumas destas crises de desenvolvimento podem ser habituais, com mudanças evolutivas sutis, graduais; outras são abruptas e dramáticas. Encontramos referências a este aspecto nos trabalhos de Carter e McGoldrick (2007) e de Cerveny e Berthoud (2007) ao apresentarem as diversas etapas do ciclo de vida da família. A constituição da relação de intimidade é uma destas etapas e a formação do casal é uma das tarefas mais complexas e difíceis do ciclo de vida familiar.
O trabalho sobre o ciclo de vida da família de Monica McGoldrick e Betty Carter na década de 1970, descreve o ciclo de vida familiar em fases diferenciadas de acordo com os momentos de entrada de novos membros, da necessidade de aquisições e de processos de aprendizagem para superar determinadas crises do desenvolvimento. As fases são caracterizadas por participação em eventos, como por exemplo, frequência à escola, participação no mercado de trabalho, saída de casa dos pais ou constituição do próprio domicílio, casamento/descasamento, maternidade, aposentadoria, viuvez e morte.
Segundo este modelo, a primeira etapa do ciclo corresponde ao adulto jovem cujo objetivo é a independência em relação à família, sendo esta tarefa do desenvolvimento essencial ao ingresso na vida adulta. Neste processo encontram-se dois grandes desafios: de um lado, o ingresso no mercado de trabalho e a respectiva independência financeira, e, de outro, o estabelecimento das relações de intimidade.
No geral, os anos da vida do adulto jovem são caracterizados por um elevado grau de diversidade e instabilidade, refletindo a ênfase na mudança e exploração, período de vida que oferece a maior oportunidade para as explorações de identidade nas áreas do amor, trabalho e visões de mundo
O que encontraremos, nesta primeira fase, é uma etapa de negociação, de criação de um padrão de comunicação própria dos parceiros, entrando em jogo as expectativas, as características pessoais e as histórias das famílias de origem. Portanto, são duas pessoas constituindo o núcleo de uma estrutura familiar em torno de ideias, crenças, valores pessoais e da interrelação destes (Carter e McGoldrich, 2007).
Outra referencia que contribui para o entendimento da complexidade das relações de intimidade é Giddens (2003) em sua obra “A Transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas Sociedades Modernas”. O autor apresenta como as transformações da intimidade repercutem nos relacionamentos nos dias de hoje, referindo-se à fase de transição entre padrões morais antigos que convivem simultaneamente com novos, em que o amor romântico caminha para o amor puro, no qual a relação seria mais simétrica ou igualitária, não ocorrendo as atuais desigualdades de gênero, e, neste, as diferenças de gênero teriam cada vez menos lugar na conjugalidade.
Além da perspectiva da compreensão da constituição da relação de intimidade, dos aspectos associados ao processo de desenvolvimento das relações afetivas e das questões de gênero presentes, aprofundar o conhecimento do fenômeno do namoro também traz contribuição expressiva, isto porque, a fase de namoro até metade do século XX praticamente não existia e era considerado um período de passagem para o casamento (Flake et al., 2013, Fonseca e Duarte, 2014).
Segundo Siqueira (2001) um dos critérios de saúde mental e de satisfação interpessoal é a capacidade, ao final da juventude, de construir e manter relações de intimidade. Apesar da importância da intimidade e do compromisso nesta fase, os autores que discorrem sobre o desenvolvimento humano nos fornecem poucas informações sobre a intimidade e os compromissos (Erikson, 1972, 1988).
Até muito recentemente, o estudo da violência na fase de namoro tinha uma sistematização teórica pouco consistente utilizando-se na maioria das vezes da compreensão geral da ‘violência interpessoal’.
Com a especificidade contemporânea do namoro e com as particularidades da questão de gênero, se mostrou necessário ampliar a compreensão sobre as transformações que as relações de intimidade vêm sofrendo a partir de uma perspectiva histórica, além de um olhar mais voltado para as novas configurações das relações entre jovens já presentes na sociedade atual - o ficar e o namoro.
Já na fase do adulto jovem pode-se afirmar que é um período da vida em que ocorrem muitas mudanças, como a definição de um caminho profissional, o alcance da independência dos pais, a formação de uma identidade, experimentação e estabelecimento de relacionamentos de intimidade mais estáveis (Arnett, 2000).
Apesar da importância da fase do adulto jovem, tanto da perspectiva individual quanto familiar, este é um tema pouco estudado e explorado, ainda mais quando considerado da perspectiva dos relacionamentos de intimidade. Deve-se destacar também que, nos últimos anos, há mudanças drásticas neste cenário, pois com a entrada da mulher no mercado de trabalho e o acesso à educação ocorrem mudanças significativas nas relações de intimidade, e consequentemente, nas configurações familiares ou de formação da família.
Para os antropólogos, na maioria das culturas tradicionais o foco da transição para a idade adulta está no casamento (Arnett, 1998).
Neste aspecto Carter e McGoldrick (2007) apontam que é na área da intimidade e do relacionamento que surge o maior estresse para o adulto jovem. Nela estão as questões de amor, compartilhamento e comprometimento, que apesar de suas importâncias, recebem pouca atenção por parte da maioria dos autores que escreve sobre desenvolvimento adulto. Assim, a literatura sobre desenvolvimento humano em particular pouco tem se debruçado sobre esta etapa do desenvolvimento em que o indivíduo passa a ter uma orientação relacional de cunho íntimo.
Diante disso, faz-se necessário ampliar a compreensão das relações de intimidade nesta fase do desenvolvimento, importância esta já mencionada por Gelles em 1988, como também as conexões com a noção de amor romântico que caminham para a consolidação da situação de namoro.
Da mesma forma que as etapas do ciclo vital da familiar são caracterizadas por crises previsíveis conforme abordadas aqui, as não previsíveis, como as doenças, o luto, as violências, as famílias podem ter sua saúde física e mental afetada pela crise. As resoluções das crises da vida podem levar a uma deterioração no funcionamento, status quo ou funcionamento aprimorado. Há pouco na literatura que indique um funcionamento aprimorado como resultado da resolução de crises produtivas.
É neste caminho que neste número contamos com artigos que irão explorar a constituição do grupo familiar, desde a fase de namoro, abordando questões presentes em variados contextos das relações e propondo perspectivas e reflexões sobre esses temas.
A formação inicial de um relacionamento é composta de contrato construído entre as partes integrantes com o intuito de estabelecer, ordenar e clarificar as normas da relação. Tais acordos podem favorecer a sustentação da relação e contribuir para o vínculo entre as partes. Porém, apesar dos combinados e cuidados investidos, as conexões também podem sofrer rupturas e finalizações, gerando consequências diversas na vida dos sujeitos. O artigo “E quando o namoro chega ao fim?”: um estudo exploratório sobre a experiência do término do namoro entre jovens universitários”, se propõe a refletir sobre esses temas, lançando também ponderações sobre o lugar ao qual o namoro ocupa na vida cotidiana dos jovens. Um espaço para além do psíquico, que pode promover segurança e acolhimento frente as adversidades na vida dos sujeitos, quando finalizado, gera efeitos dolorosos que necessitam de processo e amparo que possibilitem sua elaboração para novos arranjos de vida.
Existente e constatado nas relações vinculares, a violência se apresenta também como fator importante na relação entre os jovens - o que preocupa a sociedade e comunidade escolar. Considerando as circunstâncias problemáticas desses fenômenos no contexto educativo, diversas ações de intervenções são desenvolvidas e aplicadas em escolas com o intuito de prevenir ou até mesmo reduzir episódios de violência. Com a proposta de analisar os resultados de algumas intervenções, o artigo “Violência nas relações de intimidade entre adolescentes: revisão sistemática de intervenções realizadas na escola” encontrou resultados favoráveis, que contribuem para a educação, identificação e estratégias de como lidar diante dessas situações. O artigo destaca que as intervenções em escolas são importantes para a atenuação ou prevenção de violência nas relações de intimidade entre os jovens.
Dentre os inúmeros obstáculos inerentes ao campo social, recentemente os jovens adolescentes também necessitaram enfrentar os desafios oriundos da convivência em família mediante a pandemia da COVID-19. Através de uma pesquisa qualitativa o trabalho “Habilidades para a vida na melhoria da convivência familiar de adolescentes em situação de distanciamento social devido à pandemia da COVID-19” investigou como os jovens compreendiam suas relações e desenvolviam recursos para lidar com a família no contexto de distanciamento social.
Adentrando nas perspectivas do contexto familiar, na sequência, este número conta com um trabalho que se propõe a apresentar potencialidades presentes na relação íntima de casais adultos frente a quadro de adoecimento. Através de revisão sistemática, o artigo “A Intimidade do Casal como Fator de Proteção para Cuidados em Saúde: uma Revisão Sistemática” elege a temática do adoecimento crônico de um dos companheiros para investigar sobre como se dá a compreensão a respeito do papel da intimidade e formas de atuação do casal frente a esse tipo de adversidade. O trabalho aponta que, diante dessas circunstâncias, as relações de intimidade podem ser promotores de subsídios que favorecem a vida dos pacientes, uma vez que, através da relação, o sujeito pode encontrar acolhimento, segurança e apoio.
Seguindo as temáticas sobre cuidado e acolhimento, o artigo “Adesão de mães de bebês prematuros com indicadores clínicos de saúde emocional à grupos psicoeducativos” apresenta em sua pesquisa a necessidade de atenção à saúde emocional de mães de bebês prematuros.
Este número da Vínculo também conta com trabalhos que discutem a importância do aparato teórico para pensar em diagnósticos e relações. O artigo “Diagnóstico do Autismo. A Complexidade Vincular em Pauta” convida o leitor a observar as alterações do DSM e suas implicações diagnósticas. O artigo lança luz as condensações realizadas pelo DSM.
Atravessados pelo momento sócio-histórico cultural da pandemia COVID-19, metodologicamente também foi imprescindível pensar em formatos de atuação que pudessem atender ao formato remoto de trabalho com grupos. O artigo “Relato de Experiência: Formação e Vinculação em Tempos de Pandemia” apresentou o resultado do trabalho da formação de coordenador de grupo na modalidade on-line, inéditas até o momento de sua execução. Outro relato de experiência de trabalho realizado na modalidade on-line é apresentado no artigo “Grupo operativo em um caps durante a pandemia da covid-19: um relato de experiência“. O relato teve como proposta partilhar e dialogar com os usuários do CAPS os materiais produzidos e identificados ao longo dos encontros.
O décimo e penúltimo artigo titulado por “Quando Édipo encontra lábdaco: sobre o complexo de édipo entre um avô e uma neta à luz da psicanálise vincular” oferta a proposta de repensar o conceito do complexo de Édipo para além da relação pais e filhos. Por meio do aporte teórico da psicanálise vincular e de um caso peculiar, o trabalho lança contribuições para estudos específicos sobre a relação entre avôs e netos. Por fim, no último artigo titulado como “Mudanças de Paradigma em Psicanálise, Neurobiologia da Memória e Grupanálise”, somos convidados pela autora a considerar a possibilidade de interlocução entre psicanálise, grupanálise e as neurociências.
Desta forma, o conjunto de artigos desta edição apresenta aos leitores a oportunidade de explorar temas vivos, pulsantes e urgentes. Conteúdos que contribuem para a reflexão sobre as tramas das relações vinculares do contemporâneo a partir de diversas perspectivas e saberes.