Resumo: O complexo de Édipo é até hoje um dos conceitos mais centrais no campo da psicanálise e se refere a uma dada situação familiar prototípica que supostamente atravessa todo sujeito no decorrer de seu desenvolvimento emocional. Tendo o conceito passado por diversas revisões, complementações e críticas ao longo do tempo, e, embora tenha perdido seu caráter universal, não ocorrendo necessariamente entre pai, mãe e criança, como acreditava Freud, ainda assim tem sua importância. Entretanto, são poucos os trabalhos que abordam outras dinâmicas relacionais na família, para além do relacionamento pais e filhos. Este artigo se propõe a contribuir para o estudo específico do vínculo entre avós e netos, por meio de um relato de caso bastante particular acerca de um complexo edípico envolvendo esse tipo de dupla. O aporte teórico da psicanálise vincular foi eleito por ser um referencial que enfatiza o âmbito intersubjetivo e o todo familiar, podendo, assim, melhor abarcar uma reflexão aprofundada sobre essa temática.
Palavras-chave: Avós, netos, vínculo, complexo de Édipo, psicanálise vincular.
Abstract: The Oedipus complex is to this day one of the most central concepts in the field of psychoanalysis and refers to a given prototypical family situation that supposedly crosses every subject in the course of his emotional development. Since the concept has undergone several revisions, complements and criticisms over time, and although it has lost its universal character, not necessarily occurring between father, mother and child, as Freud believed, it still has its importance. However, few studies deal with other relational dynamics in the family, in addition to the relationship between parents and children. This article proposes to contribute to the specific study of the bond between grandparents and grandchildren, through a very particular case report about an oedipal complex involving this type of pair. The theoretical contribution of the links psychoanalysis was chosen because it is a reference that emphasizes the intersubjective scope and the family, and, therefore, better to include a deep reflection on this theme.
Keywords: Grandparents, grandchildren, bond, Oedipus complex, links psychoanalysis.
Resumen: El complejo de Edipo es hasta hoy uno de los conceptos más centrales en el campo del psicoanálisis y se refiere a una determinada situación familiar prototípica que supuestamente atraviesa a todo sujeto en el transcurso de su desarrollo emocional. Con el concepto pasado por diversas revisiones, complementaciones y críticas a lo largo del tiempo, y, aunque ha perdido su carácter universal, no ocurriendo necesariamente entre padre, madre y niño, como creía Freud, todavía tiene su importancia. Sin embargo, son pocos los trabajos que abordan otras dinámicas relacionales en la familia, además de la relación padres e hijos. Este artículo se propone contribuir al estudio específico del vínculo entre abuelos y nietos, por medio de un relato de caso bastante particular acerca de un complejo edípico envolviendo ese tipo de doble. El aporte teórico del psicoanálisis vincular fue elegido por ser un referencial que enfatiza el ámbito intersubjetivo y el todo familiar, pudiendo así mejor abarcar una reflexión profundizada sobre esa temática.
Palabras clave: Abuelos, nietos, vínculo, complejo de Edipo, psicoanálisis vincular.
Pesquisa
Quando Édipo encontra Lábdaco: Sobre o Complexo de Édipo entre um avô e uma neta à luz da Psicanálise Vincular
When Oedipus meets Lábdaco: About the Oedipus Complex between a grandfather and a granddaughter in the light of Links Psychoanalysis
Cuando Edipo encuentra Lábdaco: Sobre el Complejo de Edipo entre un abuelo y una nieta a la luz de Psicoanálisis Vincular
Recepção: 29 Outubro 2018
Aprovação: 21 Setembro 2022
Freud se vale da mitologia grega para cunhar um dos termos que até hoje possui certa centralidade na psicanálise: o “complexo de Édipo”, conceito que circunscreve uma determinada situação familiar complexa, prototípica e universal, segundo seu entendimento. Cabe destacar que aqui não discutiremos seu caráter universal, mas enfatizaremos que, para além de uma situação familiar, o complexo edípico representa o núcleo da sexualidade humana e das neuroses, de cuja resolução dependeria a forma de subjetivação de cada um (Moreira, 2004). Grosso modo, tomando-se o modelo da família tradicional patriarcal, ele pode ser resumido no desejo da criança de possuir o genitor do sexo oposto para si, tornando-o seu objeto de amor e de investimento libidinal, e de eliminar a presença do genitor do mesmo sexo2, competindo e ao mesmo tempo se identificando com ele. Diante do medo da castração e do medo da perda do amor, entretanto, o menino e a menina, respectivamente, se veem compelidos a abandonar esse objetivo e a contentar-se com outros objetos substitutos3 (Freud, 1924/2006).
No mito original, Édipo não consegue fugir do seu destino proferido pelo oráculo de Delfos de matar o próprio pai, Laio, e de se casar com a própria mãe, Jocasta, cegando a si próprio em seguida como castigo. Apesar da maior visibilidade do protagonista Édipo, pouco se enfoca os seus demais familiares e as relações travadas com eles, como, por exemplo, seu avô Lábdaco ou seus filhos - ou filhos-netos, mais precisamente - Etéocles, Ismênia, Antígona e Polinices. Isso pode tanto reforçar o quanto o mito de Édipo realmente traduz algo muito elementar do funcionamento do psiquismo humano, como evidenciar o quanto os outros tipos de vínculos familiares até então foram postos em segundo plano em detrimento do de pais e filhos.
Com a chegada da contemporaneidade e as diversas mudanças em diferentes níveis que ela representou, como a reestruturação da configuração da família tradicional (Roudinesco, 2003), somadas ao aumento da expectativa de vida e da população idosa no mundo ocidental (Ferrigno, 2013), observa-se hoje que os avós assumem maior importância e variedade de papéis no seio familiar (Marangoni & Oliveira, 2010; Harper, 2003). Desta forma, torna-se patente o estudo e aprofundamento sobre o vínculo avós-netos na atualidade, e não sem razão tem aumentado progressivamente o número de pesquisas a esse respeito (Dias, 2016).
Ainda assim, no campo psicanalítico, dado o maior foco na relação pais-filhos, são poucos os trabalhos que tratam especificamente do laço entre avós e netos, sendo que a maior parte dos estudos sobre o assunto aborda a função dos avós apenas tangencialmente à trama edípica, de forma que o que se pretende aqui é apresentar um caso em que o avô fazia parte dela.
Por abarcar não apenas a noção de “vínculo”, que extrapola o plano intrapsíquico, como também por privilegiar o todo familiar e suas formas de organização nos níveis intrapsíquico e intersubjetivo, entende-se que o referencial da psicanálise vincular se mostra mais apropositado para compreender a dinâmica entre avós e netos. Sendo assim, a relevância deste estudo consiste em poder demonstrar a importância de se debruçar sobre outros vínculos familiares, especificamente o da díade avós-netos, no contexto familiar, para além da relação entre pais e filhos.
Ao longo das décadas, o conceito - complexo de Édipo - passou por diversas revisões, reformulações e complementações (Deleuze & Gatarri, 2011; Laplanche, 2015) e, apesar de atualmente não ser mais novidade que ele não ocorre necessariamente entre pai, mãe e criança, e que tampouco é um padrão universal, como queria Freud (1924/2006), no caso que será apresentado a seguir destaca-se uma triangulação edípica envolvendo um avô e uma neta bastante peculiar, que traz contribuições significativas ao campo. Uma breve revisão bibliográfica exibindo alguns dos principais conceitos e as contribuições da psicanálise vincular a respeito do tema precederá o relato do caso.
A psicanálise vincular, partindo dos pressupostos do inconsciente, é um campo teórico que se preocupa em compreender o plano intersubjetivo e transubjetivo, ou seja, as relações que envolvem pelo menos dois sujeitos, bem como grupos e instituições, em especial a família. Desta forma, é uma abordagem que rompe com a visão restritiva do fenômeno intrassubjetivo apenas, em preferência do estudo do vínculo. Este alcança status de conceito, que pode ser definido essencialmente como o campo psíquico existente entre duas pessoas ou entre um grupo de pessoas, tal qual um terceiro elemento que se coloca em cada laço intersubjetivo (Kaës, 1993).
Um vínculo se mantém desde que se cultivem objetivos em comum e, logo, não deixa de ser um pacto ou um contrato em que cada membro envolvido precisa se comprometer com algo ao mesmo tempo em que recebe algum benefício também (Correa, 2002). Esses objetivos nem sempre são só conscientes, podendo também passar pela via inconsciente, donde surge o conceito de aliança inconsciente, definida como uma forma de ligação em que certos conteúdos psíquicos intoleráveis devem ser excluídos, ou seja, mantidos recalcados, para que se mantenha o vínculo, sob pena de ele se desfazer (Kaës, 2014).
No contexto familiar, ao mesmo tempo em que os vínculos são dados em função dos lugares de parentesco, de forma que o vínculo avós-netos já é preestabelecido, eles também precisam ser construídos. Destaca-se aqui que, por se estar partindo de uma perspectiva vincular, o foco não é sobre o avô ou sobre a neta simplesmente, mas antes sobre a dinâmica envolvida entre os dois.
A despeito de ser objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento, para psicanálise vincular, a família é essencialmente entendida como um tipo especial de conformação grupal, baseada em laços de parentesco, filiação e consanguinidade e fundada a partir da união do casal, que culmina no nascimento da criança (Eiguer, 1998), definição que assume hoje maior flexibilidade (Sei, 2009). No tocante à família, no campo da psicanálise vincular interessam então as dimensões psíquicas e as dinâmicas conscientes e inconscientes atinentes a ela.
A família se apresenta como um grupo organizado, que ordena certos fatores, como a lei, a linguagem, os valores e ideais, enquanto proscreve outros, como o incesto e o assassinato, por exemplo (Carreteiro, 2001). Tem, ainda, a função de articular e demarcar três diferenças fundamentais: a dos sexos, a das gerações e a das culturas, conforme Kaës (1993).
A família se estrutura em lugares, de acordo com os laços de parentesco, que por sua vez determinam as respectivas funções e expectativas sobre cada membro e os posicionam uns em relação aos outros de formas específicas. Tais posições podem ir se alterando ou se somando ao longo da vida do sujeito (Berenstein, 2011). Para além da existência concreta do grupo familiar, constitui-se em seu seio um espaço psíquico, espaço este em que ocorrem as trocas geracionais e o armazenamento de fantasias e fantasmas pertinentes a cada família (Correa, 2002). Logo, há também um aparelho psíquico familiar, responsável por processar tais conteúdos (Granjon, 2001).
Por se tratar de um grupo que se perpetua ao longo do tempo e que é marcado por gerações que se sucedem umas às outras, na família ocorre um fenômeno característico e de suma importância: a transmissão psíquica geracional, que diz respeito à passagem de determinados conteúdos psíquicos de uma geração à outra, consciente e/ou inconscientemente. A transmissão psíquica nem sempre é linear, podendo se dar em diferentes temporalidades, de forma circular, intermitente ou com lacunas, por exemplo (Kaës, 2001).
O fenômeno da transmissão psíquica revela que o sujeito é fruto não apenas de uma herança biológica ou genética, mas também psíquica (Granjon, 2001). Mostra ainda que ele é determinado não só por suas pulsões e por seu inconsciente, mas também por essa carga psíquica que diz respeito a diversos outros que o precederam, isto é, seus ancestrais e antecessores (Kaës, 2005).
Considera-se, então, os avós como figuras bastante significativas, na medida em que normalmente articulam cinco gerações, as dos seus próprios pais e avós com as de seus filhos e netos (Barros, 1987), fazendo uma ponte entre o passado da família e o futuro dela. A partir da noção de aparelho psíquico familiar (Granjon, 2001), como representantes vivos da matriz de transmissão, pode-se pensar nos avós como importantes agentes da função de metabolização do material psíquico do grupo familiar. Seriam, ainda nesse sentido, os detentores das fantasias e fantasmas pertencentes a este último, e possuiriam grande relevância para a transmissão de conteúdos cujos filhos e netos precisam se apropriar para poderem traçar seu próprio caminho.
Para Berenstein (2011), o irmão da mãe e/ou seu pai, o avô da criança, seriam como o quarto termo em uma triangulação familiar típica e deteriam assim certas funções especiais. Embora o autor esteja partindo de um modelo de família tradicional, em que a mulher precisava da autorização de alguma figura masculina para poder se casar, e embora esteja estendendo sua leitura para a figura do irmão da mãe, entende-se que suas considerações podem ser aplicadas aos avós, que teriam então a função de processar uma série de abstenções: devem renunciar à relação de pais de seus filhos, que agora serão pais, o que significa renunciar, por sua vez, ao que restava da sexualidade infantil em relação a eles; devem renunciar também à função de serem os principais indicadores dos valores, mitos, proibições e preceitos familiares; finalmente, devem aceitar o lugar de exclusão relativamente à nova família que seu filho ou filha formou, em outras palavras, supõe-se que os avós serão os terceiros excluídos em relação ao vínculo pais-filhos.
Desta forma, considerando-se certas famílias disfuncionais e/ou incestuosas, quando um avô, por exemplo, ao engravidar sua própria filha, torna-se avô-pai de seu filho-neto, ele não apenas teria fracassado em realizar as renúncias que supostamente são esperadas dele, como também acabaria por corromper uma das missões da família, que é a de demarcar as três diferenças fundamentais, como citado acima, sendo uma delas a das gerações (Kaës, 1993). Retomando o mito de Édipo, vê-se que o personagem teria falhado nessa empreitada, uma vez que as gerações ficam confundidas.
Tendo em vista as considerações aqui apresentadas, vemos que, em suma, os avós parecem ficar em uma espécie de limbo na família, pois ao mesmo tempo que são parte dela, também ficam à margem do seu núcleo. Eles teriam, assim, a função de encontrar um delicado equilíbrio na dinâmica familiar entre ação e participação, de um lado, e renúncia e distanciamento, de outro.
Este artigo deriva de um recorte de uma pesquisa de mestrado já concluída, que adotou o método clínico-qualitativo, além do método de estudo de caso como forma de análise dos dados, privilegiando a profundidade e singularidade de cada caso. Como referencial norteador, foi eleito o aporte teórico da psicanálise vincular e das configurações vinculares, de forma que a transferência e a contratransferência foram usadas como ferramentas de análise. Foi realizada uma entrevista semidirigida com uma dupla de um avô e uma neta, juntos, a fim de também poder observar o vínculo entre eles. Os procedimentos éticos foram atendidos, tendo a pesquisa sido aprovada por um Comitê de Ética, e obteve-se o consentimento dos participantes previamente. A entrevista foi realizada na residência do avô, à escolha da dupla, com duração aproximada de duas horas. No intuito de manter o sigilo dos participantes, os nomes escolhidos são fictícios.
A dupla consistiu de Carlos, avô materno, e de Carol, aquele com 83 e esta com 18 anos de idade na época da entrevista. Ele era aposentado há cerca de 30 anos por invalidez, tendo trabalhado como comerciante no passado e continuado a trabalhar em casa mesmo depois de se aposentar; além disso era casado e morava com a esposa no seu apartamento. Já Carol estava cursando o primeiro ano da graduação em Administração, bem como fazia estágio. Ela morava com seus pais, era filha única e namorava um rapaz há cerca de 6 meses. Foi criada em parte pelos avós na infância, enquanto seus pais trabalhavam, e o vínculo desta dupla era muito forte, a neta fazendo questão de afirmar reiteradas vezes sua “paixão” (Carol) pelo avô. Viam-se todos os fins de semana, mas anteriormente, quando moravam no mesmo prédio, há até três anos atrás, encontravam-se diariamente. Mesmo quando estão distantes, comunicam-se frequentemente por ligação telefônica, geralmente por iniciativa da jovem.
A família era bastante pequena e restrita basicamente aos avós, suas duas filhas e respectivos maridos, e Carol. A filha mais velha de Carlos, que não teve filhos, ainda morava no mesmo prédio dos pais, de forma que esse pequeno núcleo familiar, composto de sete membros apenas, se reunia todos os fins de semana, sem exceção. Era uma família que se mostrava bastante unida e fechada em si mesma, pois, embora existissem outros familiares, como os avós paternos da jovem entrevistada, era como se eles não fossem considerados como parte dela, havendo inclusive uma certa inimizade para com eles. Também os membros por parte da avó pareciam ser ignorados.
Moguillansky e Nussbaum (2011), ao propor uma classificação nosográfica de família, dissertam sobre um tipo específico, em que já se teria alcançado uma base narcísica, mas que não se conseguiria ainda conceber uma ordem diferente da sua, dividindo o mundo entre o que lhe é familiar e o que lhe faz oposição. Essas famílias vão se fechando em um núcleo restrito, que serve de limite entre seus elementos bons e ruins, estes últimos os quais, por sua vez, são expulsos para fora. Esse parecia ser o caso aqui, que além de se resumir a alguns poucos familiares, também pôde ser observado no fato de excluírem de seu convívio aqueles vistos com alguma reprovação, como os avós paternos de Carol, por exemplo, enquanto permaneciam incluídos aqueles vistos de forma positiva. Essa noção nosográfica também vai ao encontro da proposição de Kaës (2014) a respeito das alianças inconscientes e da ideia de pacto (Correa, 2002), ou seja, enquanto alguns membros são incluídos sob uma ordem, outros são excluídos em função dessa mesma ordem.
Aos poucos, na entrevista, foi chamando muito a atenção a grande identificação que avô e neta apresentavam, não apenas pelas afinidades que tinham entre si, como, por exemplo, o forte senso de responsabilidade e de cuidado que ambos apresentavam, o fato de os dois serem filhos únicos, mas, principalmente, pela grande afetividade demonstrada entre eles. A neta parecia explicitar mais essa afeição, chegando a afirmar que até começar a se envolver amorosamente com os rapazes chamava o avô de seu “namorado” (Carol). Uma fala sua evidencia o quanto seus avós eram hierarquicamente mais importantes para ela: “[...] eu gosto muito de dar atenção [para os avós], às vezes é diferente do que, sei lá, quando meu namorado fala alguma coisa, eu dou menos atenção do que quando meu vô fala alguma coisa” (Carol) - note-se que em seguida a neta sussurra nos ouvidos da pesquisadora, em tom jocoso, que na verdade a pessoa de que mais gostava era seu avô.
A partir dessas e outras constatações, levantou-se, então, a hipótese de que ocorria aqui uma triangulação edípica entre o avô, sua filha caçula e sua única neta4 - um “complexo de Édivô”, com o perdão do chiste.
Battistelle e Farnetti (1991) trabalham com a hipótese de que, em uma família, os avós são figuras importantes para ajudar os netos na sua elaboração edípica e, com efeito, já na análise do Pequeno Hans é possível perceber como os avós do menino contracenavam com os pais deste na trama edípica (Freud, 1909/2006). O que se verifica nesta dupla, entretanto, é que o avô, para além de auxiliar a neta nessa tarefa, ele mesmo se constituía como parte da triangulação edípica. Assim como na mitologia Édipo comete o crime do incesto, casando-se com sua mãe e tendo filhos-netos com ela, neste caso poderíamos interpretar como uma espécie de incesto “simbólico” entre avô e neta.
Tomando por base Berenstein (2011), entendemos que uma das funções dos avós é a de aceitarem o lugar de terceiros excluídos em relação à nova família que seus filhos e genros/noras formam juntamente com seus próprios filhos. Ou seja, se em uma triangulação edípica tradicional, que envolve duas gerações apenas, a criança deve aceitar o lugar de terceira excluída em relação aos pais, quando considerada a família estendida, os avós devem ser capazes de processar esse lugar de exclusão relativamente à família dos filhos e netos. Interpreta-se, assim, que neste caso o avô, ao configurar um complexo edípico que enlaça as três gerações, conseguia se manter incluído na dinâmica familiar, abstendo-se de ter que elaborar a questão da exclusão - ou melhor, fazendo dessa estratégia a própria forma de elaboração dessa questão.
Fundamentados no relato do avô, compreendemos que essa estratégia, entretanto, não era atual, mas remontava aos substratos infantis seus que remetiam, por sua vez, ao passado. Ele mesmo descreveu o quanto era próximo de sua avó paterna quando criança e o quanto ela também era muito afetuosa com ele. Como filho único, é possível que tenha encontrado nesse vínculo um tipo de agrado especial e talvez uma resolução para o seu próprio complexo edípico, semelhante à encontrada pelo Pequeno Hans (Freud, 1909/2006), mas às avessas: enquanto este último sugere ao seu pai que se case com sua mãe, ao passo que ele poderia ficar com a dele, vemos que, talvez como condição para aceitar deixar a mãe para o pai, Carlos o atravessa, “ficando” ele mesmo com a mãe do pai, como se realizasse um feito do qual este não foi capaz.
Essa estratégia parecia ocorrer de maneira espelhada, formando um padrão: do mesmo modo que o avô se liga à sua avó por parte de pai; por sua vez, Carol, ao se vincular fortemente com Carlos, seu avô materno, espelha o padrão, que pode então ser caracterizado por uma ligação do/a neto/a com o/a avô/ó do gênero oposto e com o genitor do mesmo gênero, tal qual em um complexo de Édipo tradicional, mas com a diferença de que, enquanto um dos membros implicados na triangulação é o genitor, o outro é o/a avô/ó. De todo modo, esse padrão espelhado parece reforçar a hipótese de um complexo de Édipo envolvendo as três gerações.
Pensando na psicanálise vincular, seria uma dinâmica e um modo de configuração familiar que se repetiam pelas gerações, sob a forma de transmissão psíquica inconsciente (Kaës, 2005), motivada pela incapacidade de elaborar uma questão, no caso, o lugar de exclusão. Assim, é possível conceber que talvez esse padrão tenha se originado até mesmo antes de Carlos e que sua gênese possa não ser encontrada nele. Logo, também a dificuldade em lidar com a questão da exclusão não seria um problema do avô, mas antes uma problemática central da família.
A propósito, não só o avô obtinha vantagem com a estratégia aqui discutida, pois também a neta se beneficiava desse tipo especial de vinculação, fato que caracteriza a existência de uma aliança inconsciente (Kaës, 2014) entre a dupla, que favorecia as duas partes. A aliança encontrada aqui parecia ajudar ambos a lidar com a mesma questão da exclusão, o avô em relação à família das filhas, genros e neta, como já descrito, e a neta em relação ao casal parental e ao mundo dos adultos.
Note-se também que esse padrão familiar se repetia de forma específica e não simplesmente linear, isto é, com os conteúdos psíquicos sendo transmitidos não necessariamente a cada geração, mas, sim, como se fossem transmitidos de uma forma cíclica, a cada turno de três gerações, que por sua vez também seria diferente de um turno de duas gerações. Trocando em miúdos, essa forma especial de vinculação entre avós e netos parecia ocorrer apenas a cada novo ciclo de três gerações, como se a dinâmica entre os pais de Carlos, ele próprio e suas filhas, por exemplo, não seguisse o padrão aqui descrito, que agora só voltará a se repetir quando (e se) Carol se tornar avó. Tal constatação é uma boa ilustração de como a transmissão psíquica pode se dar de diferentes formas, além da linear (Kaës, 2001).
Até o momento, o foco recaiu sobre a primeira e terceira gerações, mas como fica a segunda geração, ou geração intermediária, frente a essa dinâmica? Carlos conta que não sente que foi um bom pai ou um bom marido antes de se tornar avô, momento de reviravolta em sua vida, quando resolve se retratar da má conduta que julga ter tido no passado, movido pela esperança de poder fazer diferente com a neta e poder ser um modelo para ela e dar-lhe o que não foi possível dar para as filhas na condição de pai. Observamos, por meio de uma fala sua, como a neta lhe deu a possibilidade de reparar algo interno que sentia como negativo:
Ah, foi uma, uma das grandes coisas que a vida me deu, primeiramente: neta [pausa]. Aquele carinho que eu devia ter dado para as minhas filhas, que, um pouco a cabeça e um pouco o tempo que me consumia tanto no trabalho, eu não pude dar. Então eu tinha que dar pra neta. Eu achei tão BOM, nossa, coisa rica, eu chamo até hoje de “coisa rica” [risos da neta e da pesquisadora] (Carlos, ênfase dele na fala).
Desta forma, é como se estar na posição intermediária ou da segunda geração fosse algo negativo. O problema não residiria na pessoa em si, mas na posição que ocuparia na família, como se a geração intermediária fosse “maldita” e como se passar para a terceira geração instantaneamente acarretasse uma mudança subjetiva - a exemplo dos vícios que o avô descreveu ter se livrado quando se tornou avô. Isso está em conformidade com as teorias de Jones (1913/1938), sobre casos em que primeira e terceira gerações travam uma forte aliança contra a segunda, que daí fica em meio a um “fogo cruzado” entre aquelas duas. Isso ocorreria porque, ao mesmo tempo os avós são alvo dos impulsos hostis de seus filhos, derivados do processo de repressão e castração, podem se sentir vingados por seus netos, que direcionarão, por sua vez, sua hostilidade contra seus próprios pais.
Além disso, aqui novamente a repetição familiar aparece, já que as mesmas más condutas que Carlos julga ter tido são referidas também ao seu avô materno. A repetição se revela não apenas nesses hábitos, mas também na ruptura com essa parte da linhagem materna de sua família, pois o participante diz que tinha um afastamento com relação a esses familiares, da mesma forma que rompem os laços com a porção paterna da família de Carol - outro espelhamento, a propósito.
Essa dinâmica também está em conformidade com o modelo de família comentado acima (Moguillansky & Nussbaum, 2011) que, devido ao esforço de se manter apenas com os elementos bons, vai se restringindo, pois vai excluindo coisas e pessoas que considera ruins. A partir disso, talvez seja possível conjecturar que, quanto mais fechada em si mesma uma família, como podemos observar ser o caso aqui em questão, mais ela tenda a ficar restrita aos mesmos modelos de identificação presentes no seu reduzido círculo de convívio e, consequentemente, mais tenda à repetição desses poucos modelos, ainda que não seja necessariamente repetição patológica e ainda que haja exceções.
Interpreta-se ainda que, ao escolher construir uma família reduzida, Carlos poderia garantir mais facilmente a manutenção do controle sobre a mesma, dado que pôde ser observado na proximidade geográfica e na forte ligação que os membros mantinham entre si, bem como no fato de o avô relatar que considerava seus genros como filhos. É como se assim os colocasse simbolicamente em uma posição subalterna e aparentemente não por acaso Carol comentou em outro momento da entrevista que era como se seu pai fosse como um “irmãozinho” (Carol) para ela. Assim, o avô parecia se manter como o grande patriarca da família.
Por fim, resta considerar a responsabilidade que recai sobre a neta, a única descendente e herdeira dessa família, logo, aquela que tem em suas mãos o poder de decidir pelo destino dela: se se perpetuará ou se terá seu legado findado.
Apesar de os estudos referentes a avós e netos estarem em franca expansão, chama a atenção que ainda sejam escassos os trabalhos dedicados ao tema, especialmente no campo da psicanálise vincular, que se dedica, entre outros tópicos, precisamente ao estudo da família, mas também no da psicanálise tradicional, como colocado anteriormente. Dado o crescente ganho de importância dos avós no seio da família, a apresentação desse estudo de caso pretendeu demonstrar um tipo específico de dinâmica vincular e familiar com o intuito de trazer contribuições para essa área de conhecimento, sem, com isso, reduzir a gama de possibilidades de dinâmicas existentes entre avós e netos à da dupla aqui apresentada.
Foi possível constatar uma forma de organização edípica na família citada que poderia ser descrita como um complexo de Édipo trigeracional, por, justamente, enlaçar três gerações. O complexo de Édipo do modo aqui descrito seria como o script ou a narrativa que daria forma à configuração específica dessa família e contorno aos seus conteúdos e fantasmas.
Acreditamos que dinâmicas semelhantes possam ser encontradas em outras famílias com perfis parecidos. Identificar futuramente outros casos como esse auxiliaria na compreensão de mais aspectos desse tipo de conformação e talvez até mesmo na proposição e traçado de um modelo ou de uma topografia de família específicos, o que poderia trazer contribuições teóricas e clínicas, por sua vez.
Ressalta-se, ainda, que a constatação dessa configuração particular de complexo edípico não implica necessariamente a presença de patologia na família. Antes disso, diz respeito simplesmente a uma dada forma de organização familiar entre tantas outras possíveis. Também se está ciente de que uma única entrevista nem sempre é suficiente para depreender uma análise completa e que uma investigação mais extensa poderia ajudar a confirmar e/ou aprofundar certos aspectos aqui debatidos.
Finalmente, considera-se que o ganho de centralidade dos avós na família, bem como o aumento do número de netos sendo criados por seus avós (Wilton & Davey, 2006) levem à possibilidade de começarmos a nos deparar cada vez mais com casos de complexos edípicos travados entre avós e netos, a exemplo do aqui visitado. Com efeito, Birman (1997) já reconhecia que, frente à contínua diminuição do valor social do idoso, ajudar a reinseri-lo na trama edípica familiar poderia beneficiá-lo na medida em que lhe traria trocas simbólicas importantes para a sua saúde física e psíquica.
As autoras agradecem à FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo nº: 2016/13849-2), pelo apoio financeiro oferecido ao desenvolvimento da pesquisa que teve como fruto este artigo.