Pesquisa

O psicanalista e sua inserção em uma instituição de saúde da gestante

The psychoanalyst and his/her insertion in a pregnant woman's health institution

El psicoanalista y sus intersecciones en una institución de salud de la gestante

Luma Fabiane Morais de Souza
Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Fuad Kyrillos
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Maria Gláucia Pires Calzavara
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil

O psicanalista e sua inserção em uma instituição de saúde da gestante

Vínculo - Revista do NESME, vol. 20, núm. 1, pp. 16-24, 2023

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares

Recepção: 11 Agosto 2022

Aprovação: 16 Dezembro 2022

Resumo: Tem-se como objetivo investigar a necessidade da escuta subjetiva das gestantes em instituição de atenção à saúde da mulher, localizada em Minas Gerais, a partir da perspectiva psicanalítica. Ao se ater aos discursos que regem a instituição, este encontro possibilita a elaboração de novos saberes sob a ótica da hipótese do inconsciente. Após uma experiência institucional, identificou-se os impactos da perda de documentos, evidenciando uma lacuna em sua história. Compreende-se que os preceitos da micro-história enodados com a psicanálise aplicada podem nortear esta investigação, fazendo emergir memórias marginalizadas. Constata-se que o espaço da gestante na instituição se restringe ao acompanhamento obstétrico. Por fim, efetuou-se, a partir de elementos da psicanálise, a constatação da carência de uma escuta na instituição.

Palavras-chave: Maternidade, feminilidade, psicanálise, instituição.

Abstract: The objective is to investigate the need for subjective listening of pregnant women in an institution of women's health care, located in Minas Gerais, from the psychoanalytic perspective. By sticking to the discourses that govern the institution, this meeting enables the elaboration of new knowledge from the perspective of the hypothesis of the unconscious. After an institutional experience, the impacts of the loss of institutional documents were identified, evidencing a gap in its history. It is understood that the precepts of micro-history knotted with applied psychoanalysis can guide this investigation, bringing out marginalized memories It appears that the pregnant woman's space in the institution is restricted to obstetric follow-up. Finally, based on elements of psychoanalysis, the verification of the lack of listening in the institution was carried out.

Keywords: Maternity, femininity, psychoanalysis, institution.

Resumen: Se tiene como objetivo investigar la necesidad de escucha subjetiva de las gestantes en institución de atención a la salud de la mujer, ubicada en Minas Gerais, a partir de la perspectiva psicoanalítica. Al atenerse a los discursos que rigen la institución este encuentro posibilita la elaboración de nuevos saberes bajo la óptica de la hipótesis del inconsciente. Después de una experiencia institucional, se identificó los impactos de la pérdida de documentos, evidenciando un déficit en su historia. Se comprende que los preceptos de la microhistoria enlazados con el psicoanálisis aplicada pueden nortear esta investigación, haciendo emerger memorias marginalizadas. Se constata que el espacio de la gestante en la institución se restringe al acompañamiento obstétrico. Finalmente, se efectuó, a partir de elementos del psicoanálisis, la constatación de la carencia de una escucha en la institución.

Palabras llave: Maternidad, femineidad, psicoanálisis, institución.

Introdução

Partimos de uma pesquisa 1 em andamento, que tem como objetivo ouvir as mulheres gestantes em um serviço público de saúde da mulher em uma cidade no interior de Minas Gerais. A partir da entrada da pesquisadora no campo, um certo estranhamento frente às situações do cotidiano institucional exigiu um olhar atento e particularizado sobre a dinâmica de trabalho na instituição, o que gerou efeitos para este estudo.

No primeiro contato com a instituição, propomos uma conversação com as gestantes e ouvimos a seguinte resposta da coordenadora:

Você até pode vir fazer a pesquisa. Podemos reservar uma sala para você e o seu professor atenderem às gestantes. Mas já te adianto que provavelmente virão poucas. É porque elas só vêm aqui quando recebem algo em troca, quando você pode oferecer algo a elas, entende? Mas podem vir atendê-las, sim.

As formações de estranhamento nesse discurso surgiram da interrogação sobre o que seria este “algo em troca” e o que deveria ser “oferecido” a essas gestantes e que, talvez, a pesquisadora não seria capaz de fornecer, o que justificaria o número reduzido de interessadas.

A instituição pesquisada é um serviço de saúde, que se atenta apenas aos aspectos fisiológicos da maternidade, considerando que as consultas de pré-natal têm como finalidade garantir a saúde física da mãe e do bebê. Sabendo que as mudanças causadas por uma gestação não afetam somente o corpo de uma mulher, acreditamos na relevância de um serviço, que se atente também à sua subjetividade durante o processo gestacional.

Frente a isso, delineamos nossos problemas: qual a importância de uma escuta da subjetividade da mulher mãe nas instituições de saúde pública? Há, nesses serviços, a necessidade de um espaço destinado ao acolhimento psicológico das gestantes? A pertinência deste trabalho se justifica por considerarmos que investir em espaços abertos à circulação dos discursos dessas mulheres é vislumbrar a construção de novos destinos para o feminino e o materno no campo da saúde pública e, consequentemente, em nossa cultura.

Outro ponto, que nos causou um estranhamento, diz respeito à dificuldade no acesso aos documentos e regimentos institucionais para a caracterização e análise da história e do funcionamento da instituição. O que mais nos intrigou foi o fato de que os documentos do antigo programa de atenção à saúde da mulher, o PAISM, bem como os da instituição pesquisada foram queimados e descartados nas trocas de gestões municipais. Alguns deles estão guardados em um depósito junto de centenas de documentos de outras instituições e sem a possibilidade de identificação e armazenamento nas devidas localidades. Isso nos leva a pensar: o que quer dizer essa desorganização?

Do mesmo modo, havia um desconforto da equipe quando era indagada sobre essa perda documental como também quando eram questionados sobre as mudanças na oferta e qualidade do serviço ao longo dos anos. As frases “mas isso é melhor nem dizer” e “melhor não mexer nesse assunto” foram recorrentes. O que nos fica evidente nessa questão é que existe um não dito que circula por essa instituição, o qual revela aspectos recalcados na história institucional, que buscamos analisar neste trabalho.

Frente a essas questões, atemo-nos às formações de estranhamento que emergem do contato com essa instituição. As formações de estranhamento, como nos diz Dunker (2013), são a base necessária para que um discurso analisante se articule na pesquisa, de modo que o analista se interrogue eticamente sobre os conteúdos com os quais se depara, implicando-se, assim, com a construção de evidências clínicas. É sobre este encontro entre o analista e o seu fazer em uma instituição de acolhimento a gestantes que buscaremos tratar neste artigo.

Ressaltamos, ainda, que não intentamos realizar uma paródia de intervenções clínicas nesse contexto, pois não se trata de transpor as práticas do setting terapêutico para as instituições ( Rosa, 2004). Embora a Psicanálise aplicada nos dispositivos sociais seja atravessada pelo rigor ético que norteia a práxis analítica em seu enquadre tradicional – os consultórios – sua aplicação no contexto institucional se diferencia do percurso trilhado com o analisante em seu tratamento. O que Lacan (1967/2003) nomeia como psicanálise em extensão diz respeito à atuação psicanalítica no mundo e sua aplicação para além da transmissão teórica e clínica – a psicanálise em intensão. O enlaçamento entre essas duas dimensões é o que nos permite atuar na escuta do sujeito do inconsciente em qualquer lugar onde ele esteja. É isso que Lacan nos diz quando afirma que “é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão” (p. 261).

Portanto, faz-se necessária uma análise do contexto no qual nos lançamos com a psicanálise e que nos permitiu examinar os estranhamentos oriundos do encontro da pesquisadora com a instituição.

A psicanálise no contexto institucional

Trata-se de uma instituição localizada no interior de Minas Gerais, responsável por oferecer consultas de pré-natal e atendimentos ginecológicos às mulheres da cidade e região. Ainda que realize atendimentos de atenção primária, como o acompanhamento pré-natal, a instituição é catalogada como uma Unidade de Atenção Secundária ( PET-Saúde UFSJ, 2021). Notamos a imprecisão na classificação desse serviço e o seu caráter incomum, que responde à rede como “híbrido”, desarticulado. Esses e outros detalhes peculiares serão demonstrados ao longo do artigo, levando-se em conta a atuação da unidade e os contrassensos nos discursos que por ela circulam.

Por isso, explorar o contexto no qual uma investigação se desenvolve se torna primordial para o acesso à hipótese do inconsciente, sendo ele – o contexto – que permitirá qualquer significação subsequente. Dor (1989) afirma que o contexto é um conjunto de outros signos e a realidade do signo só existe em função dos outros signos. Ele sublinha a importância de se considerarem os significantes que emergem nas enunciações em um determinado cenário, levando em conta as especificidades do encontro entre a psicanálise e o campo. Essa escuta é feita pelas entrelinhas do discurso, pois é apenas indo a fundo nos ditos e não-ditos que se revela uma história, a qual ainda não pôde ser narrada. É como se o analista tivesse como ferramentas seus olhos, seus ouvidos e sua memória ( Gallo & Ramírez, 2012). Podemos acrescentar à consideração dos autores o trabalho inconsciente do analista como uma das suas mais importantes ferramentas em campo, uma vez que os estranhamentos que o mobilizam não se encerram nas apreensões pelos sentidos objetivos.

Este trabalho resgatou as memórias coletivas dos funcionários que trabalham ou já trabalharam na rede de saúde pública da cidade, o que nos coloca frente a uma história de apagamentos e regressos no que tange ao feminino e ao materno também na instituição. Desde a implementação do primeiro Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) datado de 1992, observamos que o lugar de escuta à gestante passou por diversas mudanças. A princípio, eram oferecidos o atendimento psicológico e o curso de gestantes –uma iniciativa que preparava as mulheres para os desafios da maternagem, além de oferecer um acolhimento das angústias ante o processo gestacional. Com o encerramento do PAISM e a fundação do Núcleo Materno Infantil em 1995, esse espaço reservado às demandas subjetivas das mulheres foi perdido, sendo mantida apenas a atenção psicológica às crianças.

Descobrir motivações reprimidas e repetições na história é um dos meios de atuação da psicanálise, diz-nos Gay (1985/1989). Por isso, debruçamo-nos sobre esses mal-entendidos do passado, que se presentificam e abrem caminhos para que a psicanálise penetre os espaços de coletividade, não se restringindo aos dilemas dos divãs.

Desse modo, reiteramos que é do nosso interesse um trabalho extramuros, que vise à inclusão da psicanálise nos dispositivos sociais, valendo-se, também, da sua posição de “não-toda” no contexto institucional, sendo aquela que atua como um “excluído necessário”, como nos diz Rosa (2004). Esse lugar incômodo da psicanálise nas instituições, acrescenta a autora, nos convida a analisar o contexto e seus enunciados, para que possamos debater e atuar frente às manifestações sintomáticas de nosso tempo.

Acompanhando o dia a dia na instituição, constatamos que o acolhimento às gestantes feito pela equipe de enfermagem é parte primordial do serviço. Essas profissionais são as primeiras a receber as gestantes que chegam à instituição, de modo que muitos relatos de sofrimento mental são compartilhados nesse momento. Antes de serem atendidas pelos médicos, as mulheres são acolhidas pelas enfermeiras, que aferem a pressão, checam o peso da gestante e preenchem uma ficha, que é encaminhada ao médico. Nesse primeiro contato, a equipe de enfermagem identifica que algumas gestantes apresentam demandas de acolhimento subjetivo, e não somente de acompanhamento pré-natal. Queixas sobre as dificuldades na gestação, gravidez indesejada e falta de apoio dos (as) companheiros(as) ou da família são recorrentes nesses relatos.

As angústias maternas são identificadas pelas enfermeiras. Segundo a equipe, as gestantes que apresentam essas demandas são encaminhadas para o serviço de saúde mental. Na ausência desse espaço de acolhimento subjetivo dentro da instituição, a experiência gestacional é fragmentada, não possibilitando que as instâncias física e psíquica sejam integradas e elaboradas como parte da vivência com a maternidade.

Ainda que certas angústias e inseguranças façam parte do processo gestacional, percebemos que, em diversos casos, esses sentimentos sinalizam um intenso sofrimento, que demanda elaboração e acolhimento para que essas mulheres possam elaborar esse sofrimento, de modo que este não seja naturalizado e banalizado apenas por ser intrínseco à gestação. De acordo com a equipe, algumas gestantes se sentem até mesmo receosas em compartilhar esses conteúdos na consulta de pré-natal por acreditarem que as suas questões subjetivas não serão consideradas como parte importante da gestação e passíveis de tratamento. Por isso, ouvir as mulheres dessa instituição implica também escutar as demais, que fazem parte desse serviço – a equipe de enfermagem e a coordenação –, composta majoritariamente por mulheres, pois existem saberes que se apresentam nesses discursos, os quais sinalizam a maneira como as gestantes ocupam o serviço de saúde pública.

Compreender o que as gestantes demandam e de quem demandam é uma tarefa imprescindível para que se possa oferecer uma escuta às gestantes nesses serviços. Elas, desde o princípio, foram apontadas pela instituição como aquelas que precisavam receber algo para estarem presentes nos atendimentos. Essa posição sublinha um certo status de carência, de quem precisaria desse “algo” para se haver com o próprio processo gestacional na dimensão subjetiva. Assim, parece-nos significativo averiguar de que ordem são essas carências. Somente propondo uma escuta dessas mulheres é que conseguiremos compreender qual a importância desse lugar de acolhimento subjetivo para elas. Portanto, podemos entender a proposta de escuta como um meio e um fim para a realização deste trabalho.

Por compreendermos que se trata de uma instituição que sofreu com a perda de suas memórias e registros históricos, utilizamos os preceitos da micro-história em articulação com o método de psicanálise aplicada para reconstruir sua história. A ausência de registros históricos nos parece comprometer o vínculo da equipe de acolhimento e saúde com a instituição na qual trabalham. As instituições também precisam de investimento libidinal para crescerem e oferecerem melhores serviços.

O método psicanalítico e a micro-história na análise da instituição

A complexidade presente em qualquer narrativa histórica nos convida a examinar o nosso objeto sob um prisma multifacetado, considerando que a imersão na instituição nos revelou alguns pormenores e contradições de sua trajetória, que demandam maior atenção.

A fim de investigar esses conteúdos, propusemo-nos a trabalhar com a metodologia de psicanálise aplicada, presente em todo o nosso trabalho, cingida à micro-história. Isso porque reconhecemos a queima de arquivos e o consequente apagamento de parte da história institucional como um pormenor revelador, que norteia este trabalho e que nos motiva na busca por reconstruir essas memórias, recolhendo os vestígios que foram desprezados para examiná-los sob a ótica analisante. Como nos faz notar Dunker (2013), é um discurso analisante que se liga diretamente à psicanálise aplicada como método investigativo justamente por se dispor a ouvir o inconsciente, o encoberto, o que não se entrega em prontuários. Sendo assim, tanto o analista quanto a Instituição, nesse encontro ímpar, estão ancorados nesse discurso.

A escolha pela micro-história se justifica pela dificuldade no acesso aos documentos e por nos depararmos com uma instituição, que teve sua história esfacelada e fragmentada. O meio que encontramos de acessar as narrativas históricas foi indo em busca de ex-funcionários e atuais servidores públicos no campo da saúde, que se atrelam, de algum modo, à instituição. As entrevistas realizadas dentro e fora da instituição forneceram as informações a partir das quais elaboramos as evidências clínicas neste trabalho

Levando em conta que este enodamento entre psicanálise aplicada e micro-história nos acompanhará nas próximas discussões, consideramos pertinente uma breve elucidação das suas bases como método historiográfico, o que reitera a relevância de sua aplicação neste artigo.

A micro-história, gênero historiográfico inaugurado por Carlo Ginzburg (1986), propõe um método de conhecimento, que avança frente às modalidades tradicionais da história e que nos permite reconstruir narrativas coletando pistas, resíduos e resquícios, os quais foram negligenciados ou passaram despercebidos, a fim de investigá-los sob a ótica analítica. Embora Ginzburg seja reconhecido como o fundador da micro-história, o autor se recusou a aceitar o título de “teórico do paradigma indiciário” ( Gallo& Ramírez, 2012 grifo nosso), visto que, como nos dizem os autores, a construção desse novo modelo epistemológico do século XX proposto por Ginzburg só foi possível com um retorno aos métodos investigativos do final do século XIX de Giovanni Morelli, Sigmund Freud e Conan Doyle. Amparado na análise investigativa de Morelli, Ginzburg (1986) diz, em sua obra “Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história”:

Nessas páginas tentarei mostrar como, por volta do final do século XIX, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas um modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma) o qual até agora não se prestou suficiente atenção. A análise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre ‘“racionalismo’” e ‘“irracionalismo’” (p. 143).

Dessa forma, para Ginzburg (1986), tais propostas metodológicas para descrever e analisar a realidade foram as pioneiras no estreitamento dos limites entre racionalismo e irracionalismo, tornando possível sua aplicação em diversos campos e dando margem para um diálogo interdisciplinar entre história e psicanálise. Essa conexão também foi identificada por Freud (1914/1996) em “Moisés de Michelangelo” quando o autor indica:

Parece-me que seu método [de Morelli] de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações (p. 150, grifo nosso).

Tanto para Freud, quanto para Ginzburg, o método investigativo presente nesse novo paradigma fortemente influenciado pelo trabalho de Morelli se ancora na análise minuciosa do que fora desprezado e que não é “imediatamente visível e identificável, um dado” ( Garcia-Roza, 2000, p. 80). Por isso, o denominador comum no trabalho desses três estudiosos é o ponto de partida, o indício nebuloso a partir do qual uma análise se torna possível e que aqui apresentaremos como o “paradigma indiciário”.

O paradigma indiciário, conceito fundamental na micro-história , se baseia nos indícios ou vestígios, que foram marginalizados na construção de uma narrativa histórica, não tendo como ponto de partida grandes eventos e evidências para a caracterização do objeto. A queima documental se revelou para nós como um “indício”, impulsionando-nos na busca pelos rastros deixados por esse evento. Na contramão desta proposta de pesquisa em menor escala, observamos que a macro-história considera os registros palpáveis e documentais como norteadores na sua investigação, não havendo espaço para as evidências que não sejam do campo objetivo. Por isso, o que Ginzburg apresenta não é apenas uma alternativa ao modelo de historiografia dominante, mas um trabalho investigativo, que atua em diferentes escalas e em uma perspectiva pluridisciplinar, a fim de agregar outras perspectivas à complexidade de uma realidade histórica ( Gomes, 2019).

Os saberes e os ditos marginalizados e subalternos são de grande valor para uma investigação deste âmbito, levando a pesquisadora a se atentar aos pormenores da história dessa instituição e suas interlocuções. Essa perspectiva não descarta as referências da macro-história, da cultura e das grandes escalas, mas agrega a esses saberes aquilo que, talvez, não quiseram saber na construção da história. Isso se torna viável a partir de um método de investigação, que não se limita ao estatuto de tratamento, tampouco de um conhecimento teórico. Retomamos a posição de analisante da pesquisadora pautados em um trabalho que se atente aos enunciados, não para apenas conectar narrativas, mas que tenha como alicerce a aposta no inconsciente ( Dunker, 2013).

A saída encontrada para não deixar que essas histórias permaneçam soterradas nos escombros da saúde pública é atuar com a psicanálise na escuta dos sujeitos dessa instituição. As informações apresentadas pelos atuais e ex-funcionários da rede de saúde foram de enorme valor para esse processo investigativo, que visa, em última instância, a escutar atentamente os sujeitos que participaram da construção dessas narrativas. Com base nessa escuta, pudemos observar as alterações ocorridas nos serviços de atenção à saúde da mulher na cidade, onde a instituição pesquisada se encontra, e quais aspectos dessas mudanças interessam à psicanálise.

Do silenciamento histórico do feminino à escuta recalcada na instituição

Entendemos que uma instituição de atenção à saúde da mulher, que atua na cidade há mais de 20 anos e que sofreu com a queima de seus documentos, perdeu também parte de sua história. Por isso, pensar sobre a expansão da assistência às gestantes e à saúde da mulher como um todo, até o modo como esses serviços se articulam atualmente, nos convida a enlaçar passado e presente no campo do discurso. É também permitir que, no presente, seja dada a possibilidade de construção de um novo saber. É nesse espaço que a psicanálise se presentifica, uma vez que lida com a linguagem e, sobretudo, com a dimensão do inconsciente, que se estrutura como linguagem (Lacan/1953/1998). O trabalho de um analista, contribui ( Bezerra, 2012), é também investigativo, revela as angústias da história por meio de sua escrita. O que mobiliza um pesquisador é poder se aprofundar no discurso concreto e consciente, indo até as entrelinhas do não- dito. Para o autor, “vamos encontrar significantes que remetam a falas sobre o ontem e sobre o hoje do sujeito” (p. 34). Nessa perspectiva, a maneira como se escolhe trazer à tona esses discursos também diz muito sobre como produzimos saberes e (re) construímos a história.

Por esse motivo, não podemos nos esquecer das especificidades dos sujeitos assistidos pela instituição, por que se trata de um serviço público de saúde da mulher e que tem como objetivo oferecer assistência a uma comunidade composta majoritariamente por mulheres, em sua maioria, em situação de risco social. Pensar no lugar ocupado por essas mulheres em nossa cultura nos coloca frente às dissidências no campo do materno e do feminino, as quais só poderemos nomear com maior clareza quando essas mulheres forem, de fato, ouvidas.

O que compreendemos é que não existe nesse serviço um espaço destinado para o acolhimento subjetivo das gestantes, revelando uma impossibilidade de escuta nessa instituição. Ser mãe não é só gestar e parir. A maternidade é uma função simbólica inscrita no campo da linguagem por uma mulher, que também está gestando uma mãe dentro de si. Esse modo de ver a mãe a retira de uma posição biológica para buscar seu entendimento subjetivo; ou seja, nascer mulher não é prerrogativa para ser mãe.

Explorar os impasses vividos pela mulher em seu processo de tornar-se mãe nos permite avançar diante dos discursos normativos, que centralizam a mãe neste lugar de cuidadora por natureza e mãe por instinto. Como produto disso, notamos a invalidação das angústias inerentes a esse processo singular para cada gestante e a ausência de um espaço que auxilie as mulheres na construção do ser mãe. Mulheres, que, ao longo dos séculos, foram ditas por terceiros e não tiveram a oportunidade de narrar sua história em primeira pessoa, ainda se encontram silenciadas e homogeneizadas no nosso tempo.

Esta discussão é muito cara à psicanálise, considerando que o seu advento se dá justamente a partir da escuta freudiana oferecida às mulheres ( Freud, 1893-1895/1996). As mulheres que se destinavam à clínica freudiana carregavam em seus corpos sintomas que o médico de Viena soube interpretar para além do somático. A grande percepção de Freud é justamente esta: elucidar que o psíquico e o somático possuem estreitas conexões e um não se sobrepõe ao outro, diferentemente do que pensavam os médicos de seu tempo. Essa assimilação demonstra o ponto em que Freud não se agarra a todas as construções biologicistas e resultantes da diferença anatômica entre os órgãos. A partir dos estudos com as histéricas, Freud fez com que as vozes femininas fossem ouvidas, o que deu margem à construção de novos saberes pelas mulheres acerca dos seus sintomas e impasses constitutivos em detrimento dos saberes médicos e normativos. Na visão de Maia (1999), “a psicanálise é o resultado do desejo freudiano de saber o que ele situou como enigma da feminilidade” (p. 22).

O percurso freudiano pelo enigma da feminilidade e a sua relação com a maternidade, realizado desde o início dos seus postulados sobre a psicanálise no século XIX até os seus últimos escritos sobre o feminino na década de 1930, entende a maternidade como a saída para a menina tornar-se mulher ( Freud, 1923/1996). Considerando que Freud apresentava em suas teorias o que se dizia das mulheres em seu entorno é que se entende o porquê da centralização da mulher no papel de mãe. No entanto, compreendemos que não se tem uma mãe apenas por se ter uma mulher, o que subverte a universalidade de ambos os lugares.

No bojo dessa perspectiva, Lacan propõe um retorno a Freud e continua avançando nessa discussão. O autor aborda as faltas vividas nessas diferentes posições, tomando o desejo da mulher como marca inconsciente dessa divisão. Em suas palavras, “o papel da mãe é o desejo da mãe. É capital” ( Lacan, 1969-1970/1992, p. 105). Sendo assim, a maternidade é concebida como “uma” das respostas da mulher frente à castração. O que atravessa cada mulher em sua constituição subjetiva é o que definirá sua escolha (ou não) pela maternidade.

Adquire relevância analisarmos o discurso das mulheres dessa instituição tendo como pano de fundo os fundamentos psicanalíticos sobre o feminino e o materno, posto que as mães contemporâneas são atravessadas por discursos que as precedem, sejam eles normativos ou dissidentes. Vendo assim, nas palavras de Iaconelli (2012) “nunca estamos acima ou fora de nosso próprio tempo” (p. 26). Escutar o que foi dito sobre as mulheres é o que nos possibilita abrir espaços para que novos discursos se inscrevam. Dessa forma, interessa-nos tanto o que foi dito quanto o que não encontrou espaço para ser narrado na história das mulheres.

O não- dito, que grita por entre brechas e que se presentifica como um retorno daquilo que não foi simbolizado no passado, traz um mal-entendido na história dessa instituição. Refazer esse percurso histórico nos permitiu analisar com mais afinco tais contradições da instituição, abrindo caminhos para debates que agreguem as discussões sobre a feminilidade e a maternidade. Esses campos se entrelaçam na medida em que revelam feridas mal curadas da nossa cultura, que ainda latejam no campo do feminino e, também, das instituições que têm como finalidade o atendimento das mulheres. Como nos aponta Mandelbaum (2018), “as mesmas dinâmicas e enigmas que permitem entrar em contato e pensar sobre nossos fantasmas pessoais auxiliam-nos a compreender também o destino de memórias coletivas” (p. 193).

Considerações finais

No bojo dos enunciados que circulam na instituição, notamos uma queixa constante sobre a qualidade dos serviços e o funcionamento da unidade. As trabalhadoras que foram escutadas, ainda que tenham denunciado problemas na rotina da rede e da instituição, também mantêm certos mistérios em torno desse assunto, optando por não dizer alguns detalhes do processo.

Do mesmo modo, os documentos perdidos e parte da história que foi suprimida, dizem respeito a discursos que foram silenciados e que circulam no contexto institucional de forma subterrânea e sintomática como repetições, esquecimentos e inibições nas tarefas cotidianas.

Ainda no que concerne à função da mãe, Lacan (1958/1998) nos diz que o complexo de castração aponta, acima de tudo, para o falo que a mãe não tem. Isso porque, na relação mãe e filho, estão em jogo o desejo da mãe pela criança e a forma como esta quer ocupar o lugar de falo para sua mãe.

Dessa forma, mulheres, que, diante da maternidade acreditam estarem completas, tomando o filho como substituto fálico, como tudo aquilo que lhe faltava, denunciam a dificuldade em sustentar a sua posição de sujeito barrado, empenhando-se para não a deixar aparecer, inserindo a criança, um objeto real, na posição de fetiche ( Marcos, 2017). Essas mães, que não sustentam a divisão entre a mulher e a mãe, acabam se colocando numa posição defensiva frente à castração.

Perante essas questões, fica-nos patente que a proposta de escuta das mulheres na instituição é uma necessidade tanto da subjetividade destas como da implementação de um trabalho mais efetivo da instituição. Do mesmo modo, sabemos que as dificuldades contemporâneas atinentes à divisão mãe- mulher causam sofrimento a muitas mulheres gestantes, trazendo demandas de saber sobre a posição materna. Portanto, podemos entender a proposta de escuta dessas mulheres como mais uma possibilidade da inserção do trabalho do psicanalista nessa instituição, na qual sua práxis seria embasada na escuta das angústias das gestantes, para que estas possam bem dizer as suas questões subjetivas.

Referências

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Notas

1 Esta é uma pesquisa de mestrado, que foi submetida à apreciação do Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, sendo aprovada por esse Conselho sob o número 47980721.0.0000.5151.
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