Teórico
Considerações sobre a construção da noção de objeto em psicanálise: Freud, Klein e Pichon-Rivière
Reflections on the building of object notion in psychoanalysis: Freud, Klein, and Pichon-Rivière
Consideraciones sobre la construcción de la noción de objeto en psicoanálisis: Freud, Klein y Pichon-Rivière
Considerações sobre a construção da noção de objeto em psicanálise: Freud, Klein e Pichon-Rivière
Vínculo - Revista do NESME, vol. 20, núm. 1, pp. 73-85, 2023
Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
Recepção: 23 Fevereiro 2023
Aprovação: 08 Maio 2023
Resumo: Visamos com este trabalho contribuir com algumas considerações sobre a construção da noção de objeto em psicanálise, partindo dos referenciais teóricos de Freud e Melanie Klein, para em seguida pensar a abordagem de Pichon-Rivière, a qual traz uma relação de complementariedade a modificações inovadoras significativas. Foi a partir do curso em Coordenação e Manejo de Grupos em diferentes contextos realizado no Núcleo de estudos em saúde mental e psicanálise das configurações vinculares (NESME), que nasceram algumas inquietações que conduziram a este trabalho. Ao coordenar grupos trazemos conosco as nossas representações a respeito do que seja o objeto, e se o grupo é tomado como objeto, portaremos também uma noção de grupo internalizada. Pareceu-nos importante que essas questões pudessem ser alvo de reflexões constantes por parte de coordenadores de grupos, bem como a apropriação e fundamentação teórica de como se deram essas construções a partir da psicanálise. Este estudo introdutório poderá servir de base para a compreensão dos respectivos desdobramentos relacionados à constituição da subjetividade humana em psicanálise, alimentando posteriormente uma continuidade para pensar os fenômenos grupais propriamente ditos.
Palavras-chave: Psicanálise, Objeto, Relações de Objeto, Vínculo.
Abstract: With this study, we aim to achieve a few considerations on the building of object notion in psychoanalysis, with a starting reference from Freud and Melanie Klein's theories, to then, consider Pichon-Rivière's approach, which brings a relationship of complementarity and significant innovative modifications. It was from the Group Management and Coordination course in different contexts carried out at the Center of mental health studies and psychoanalysis of linking configurations (NESME), where some disquietudes emerged and lead to this study. By coordinating groups, we bring with us our representations about what the object is and if the group is taken as object, and will also consider an internalized notion of group. It seemed important to us that these questions could be the target of constant deliberations from group coordinators, as well as the appropriation and theoretical foundations as to how these concepts from psychoanalysis came to be. This introductory study may serve as a basis for the comprehension of the respective unfolding related to the formation of human subjectivity in psychoanalysis, subsequently fostering a way to continue thinking about group phenomena per se.
Keywords: Psychoanalysis, object, object relations, link.
Resumen: Con este trabajo pretendemos contribuir con algunas consideraciones sobre la construcción de la noción de objeto en psicoanálisis, a partir de los referenciales teóricos de Freud y Melanie Klein, para luego pensar en el enfoque de Pichon-Rivière, que trae una relación de complementariedad a modificaciones innovadoras significativas. Fue a partir del curso de Coordinación y Gestión de Grupos en diferentes contextos realizado en el Núcleo de Estudios en salud mental y psicoanálisis de las configuraciones vinculares (NESME), que nacieron algunas inquietudes que llevaron a este trabajo. Al coordinar grupos, traemos con nosotros nuestras representaciones de lo que es el objeto, y si el grupo se toma como un objeto, también llevaremos una noción interiorizada de grupo. Nos pareció importante que estos temas pudieran ser objeto de constante reflexión por parte de los coordinadores de los grupos, así como la apropiación y fundamentación teórica de cómo se dieron estas construcciones desde el psicoanálisis. Este estudio introductorio puede servir de base para comprender los respectivos desarrollos relacionados con la constitución de la subjetividad humana en psicoanálisis, alimentando posteriormente una continuidad para pensar los fenómenos grupales propiamente dichos.
Palabras clave: Psicoanálisis, objeto, relaciones de objeto, vínculo.
Introdução
Nada mais tocante do que as fábulas clássicas tão antigas e que tradicionalmente são mantidas vivas, sendo reeditadas, adaptadas ao longo do tempo. Refiro-me aqui, por exemplo, à estória infantil do patinho feio que me inspirou parte deste tema. A publicação é de 1843 pelo dinamarquês Hans Christian Andersen. A todos tão conhecida, curtinha e condensada, continua a tocar as crianças que a ouvem e os adultos que a narram, extraindo em ambos, diversos afetos e reflexões.
A estória do patinho feio fala de uma angústia que propõe como desfecho na melhor das hipóteses o aconchego no seio cultural. A questão central é a rejeição que o patinho feio enfrenta por ser considerado feio no seu meio social. A primeira impressão de grupo para ele é sentida com muita hostilidade.
Klain (1998) em seu trabalho “A herança do desamparo”, reflete sobre esta fábula que traz a grande evidência da importância do outro como objeto real, ou mais precisamente do grupo na constituição do sujeito. O filhote de cisne, desengonçado, maior e cinza, não se parecia com os demais patinhos. O que provocou rejeição, hostilidade e abandono até mesmo pela família. Passou a acreditar-se feio. Era preciso ser acolhido em seu grupo para que pudesse aceitar-se a si mesmo. O reconhecimento inicial pelo externo é necessário para sentir-se um semelhante. O que confirma que o grupo ou o outro enquanto objeto precede o eu nessa estória. Mas de fato o outro precede, mas pode também exceder o eu, e isto pode ser traumático, sendo que “o desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais”. ( Freud, 1895/1996a, p.379).
No entanto na estória do patinho feio o sentimento e a exclusão observados referem-se a aspectos de inadequação de natureza dos patos com relação a dos cisnes. Assim o pequeno cisne desconhecia o seu habitat, sofrendo somente as consequências dessa inadequação. Não precisou fazer nada a não ser encontrar o seu habitat, para que se reconhecesse entre os seus iguais. ( Klain, 1998)
Se pensarmos agora no ser humano, mesmo sendo filhos legítimos da espécie, podemos sentir não raramente o mesmo sentimento do patinho feio, de inadequação e exclusão dentro de nossos grupos, inclusive o familiar. Mas de outro lado podemos também nos sentir os patinhos bonitinhos adequados a hostilizar supostos cisnes pela diferença.
Iniciamos este trabalho portanto introduzindo a presença e a grande importância da alteridade nas constituições subjetivas do ser humano. Quem é este outro em nossa vida? Vivemos um momento marcado pela intolerância e preconceitos, onde o diferente é sempre pouco acolhido. Pensar e assimilar o conceito de objeto pode ser um princípio que possibilite aprender, estudar, refletir e vivenciar as relações intersubjetivas em todas as dimensões possíveis, o que vem sendo de importância crucial. E segundo Coelho Jr. (2012) trazer o conceito de intersubjetividade para a psicanálise não tem ocorrido sem debates, uma vez que o foco sempre foi a dimensão intrapsíquica, com o receio de que se retirasse a ênfase clínica e teórica, e se passasse para a dimensão relacional com pouca precisão. Mas aos poucos vão surgindo novos elementos que têm sido introduzidos por boa parte de psicanalistas no contemporâneo valorizando também o potencial da intersubjetividade como um conceito propriamente psicanalítico. E disso decorre o tom que será dado tanto à prática individual como grupal de orientação psicanalítica.
Quando falamos de relações humanas em psicanálise podemos pensá-las em termos de relações de objeto. Que por sua vez são diferentes maneiras de relacionamentos do sujeito com outras pessoas, consigo mesmo, com seu desejo e necessidades, sua sexualidade e com os impulsos agressivos, de forma dialética entre o intrapsíquico e o campo intersubjetivo. (Fulgêncio & Gurfinkel, 2022)
Assim a seguir trataremos o conceito de objeto na psicanálise desde Freud, Melanie Klein e Pichon-Rivière, sem a pretensão de um aprofundamento, mas de forma a possibilitar alguma visibilidade de suas concepções e evoluções, uma vez que desde o princípio pensar o sujeito em sua constituição psíquica, sempre exigiu de alguma forma pensar o objeto, ou melhor o: “em relação a que” seja originariamente constitutivo. E essas construções internas afetam diretamente o modo como nos colocamos nas relações e nos grupos em que estamos inseridos, sobretudo no papel de coordenadores.
Freud e o objeto em psicanálise, onde tudo começou
Um grupo de porcos espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. Schopenhauer, 18511.
O interesse de Freud pelo objeto foi considerado no contexto da Teoria das pulsões. Sempre que o ser humano se envolve ou refere-se a algo em sua existência, de alguma forma a presença de outros será inferida. Freud (1905/1996b) na primeira teoria da pulsão, formulou que o objeto de uma pulsão, pensando em geral, à pessoa a qual a pulsão é dirigida, juntamente com sua fonte e com o alvo, constituía uma das suas principais características. Esse objeto era encarado como um elemento variável numa pulsão, ou que não estava originariamente conectado com ela. De outra parte não poderia haver a expressão da exigência da pulsão, sem haver no mínimo um objeto implícito.
Assim o objeto em Freud é o objeto da libido e mais avante também objeto da pulsão de morte (Freud, 1920/1996f). “Neste sentido, o significado da palavra ‘objeto’ … se refere tanto a uma coisa como a um objetivo ou alvo. O objeto de Freud é uma coisa, mas não é qualquer coisa; é a coisa que é alvo da pulsão”. ( Greenberg & Mitchell, 1994, p.8).
Em As Pulsões e seus Destinos, Freud (1915/1996d) traz esse conceito de pulsão como fundamental, pois está na base dos processos que determinam o modo como nós amamos, desejamos, sofremos, ele “ilumina a Metapsicologia e demarca a especificidade da clínica psicanalítica”. (Iannini &Tavares, 2017, p. 8).
Assim a concepção predominante na obra de Freud sobre objeto traz as pulsões como originárias da constituição da subjetividade e os objetos são secundários.
Como sempre em Freud cabem aberturas e novas interpretações. Segundo discorre, considerando contribuições de outros autores, Coelho Jr. (2001), expõe também ser possível que se parta de Freud a outra posição metapsicológica que considere ao invés da pulsão, os próprios objetos como determinantes originários na constituição da subjetividade. Esta posição influenciou boa parte dos teóricos pós-freudianos, em primeira linha Melanie Klein, trazendo à tona um persistente olhar para as relações de objeto em sua dimensão intersubjetiva.
É em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/1996g) que Freud se questiona sobre o interesse das pessoas em se agregarem, de manterem-se em grupo ou quererem dele se afastar. Quer pensar de que forma a psicanálise pode analisar esse fenômeno, e que mudanças ocorrem na mente individual nessas condições. Pareceu-lhe inegável nesta obra, no entanto, a relevância dos grupos ao ser humano.
De fato, o mais relevante ainda, é que esse magnífico trabalho de Freud sobre as massas colocou um ponto final à pretensão que se podia ter alguns em manter a psicanálise longe da análise do social. Logo de cara Freud dá o tom com que irá se ocupar nesse texto:
“O contraste entre a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significado, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. …. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social”. ( Freud, 1921/1996g, p.77).
As suas ideias sobre um ideal de ego espelhado a partir do líder, vai conduzindo ao conceito formulado de identificação primária, que já desponta neste trabalho, sendo que:
“primeiro a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma pessoa que não é objeto de instinto sexual”. (p.111).
Marca então uma nova etapa para a psicanálise que passa a “abrir espaço” para reconhecer a alteridade como constituinte, o que vai dar um passo adiante nas investigações da estrutura anatômica da mente (segunda tópica) em O Ego e o Id (1923/1996h).
Mas Freud não deixa de se apoiar na teoria da libido, marcando a força de Eros na esfera do social, como o que une e trabalha para criação dos laços afetivos. E vai aprofundando-se na influência do líder, o seu fascínio e retornando o seu interesse pelo hipnotismo e a sugestão, até trazer o conceito de ideal de ego.
Embora Freud suponha a responsabilidade da coesão da massa à Eros, discute também a hostilidade entre as pessoas dentro da massa, e a outros grupos, como a força mortífera de Tanatos ( Freud, 1920/1996f), remetendo a conceitos sobre o narcisismo ( Freud, 1914/1996c):
“Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo …. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos”. ( Freud, 1921/1996g, p.107).
A parábola dos porcos espinhos de Schopenhauer que introduzimos, utilizada por Freud (1921, p.106)), sabiamente, é finalizada após várias tentativas de aproximação e afastamento, pois esses porquinhos-espinhos não conseguem tolerar uma aproximação demasiada com o outro, assim a saída é encontrar uma distância satisfatória entre eles passível de coexistir sem se ferir.
Outra grande referência que abriu espaço a essas novas concepções pós-freudianas, foi um dos principais trabalhos de Freud (1917/1996e) Luto e Melancolia, o qual segundo Ogden (2014), possibilitou uma abertura para pensar essa dimensão intersubjetiva na psicanálise. Ali está a raiz para os fundamentos da teoria freudiana das relações objetais internas inconscientes, onde a perda do objeto abandonado é preservada sob a forma de identificação com ele, possibilitando os desenvolvimentos posteriores, trazendo a importância do objeto para a constituição subjetiva do sujeito no curso do seu desenvolvimento.
Objeto em Melanie Klein – Complementariedade original
“Mas o amor ergueu a sua mansão no lugar do excremento; porque nada pode ser único ou completo que não tenha sido dilacerado 2”. W.B. Yeats.
Melanie Klein sempre se denominou freudiana, e nesse sentido não desconsiderou o seu modelo pulsional. Mas sua teoria vai além, complementa Freud de forma muito original. Foi influenciada por Abraham, que trouxe a ideia de objeto parcial, para compreender a origem precoce da psicose através das relações arcaicas da criança com seu meio. Ao passo que Freud (1905/1996b) nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, sublinhava não os objetos, mas as pulsões como parciais, “que tomam por objetos algumas partes do corpo, ou matérias desligadas do corpo: o seio, fezes (matéria fecal) ou o fetiche”. Abraham trouxe a ideia de que as atividades dos sujeitos são moldadas pelos próprios objetos, que o sujeito se constrói relacionando-se com os objetos parciais. (Roudinesco, 1944/1998, p. 551).
Seguindo-se a Abraham Klein traz o conceito de “objeto bom 3” e “objeto mau 4”, enfatizando que as relações de objeto ocorrem desde o princípio da vida pós natal, trazendo em cena a mãe (seu seio) com um papel primordial na constituição psíquica. Klein diverge de Freud quanto à descrição de uma pulsão autoerótica independente de relação com objeto. Para ela o autoerotismo e o narcisismo acontecem ao mesmo tempo que se dão as primeiras relações de objetos, internos ou externos. Diz Klein:
“O uso que Freud faz do termo objeto é aqui um tanto diferente do uso que eu faço, pois ele está se referindo ao objeto de um alvo pulsional, ao passo que eu tenho em mente, além disso, uma relação de objeto que envolve as emoções, fantasias, ansiedades e defesas do bebê”. ( Klein, 1952/1991b, p.74).
Assim Klein traz transformações no conceito de pulsão por meio da noção de fantasia inconsciente, a qual foi trabalhada minunciosamente por Susan Isaacs (1952/1969), e vem sendo desenvolvida por psicanalistas mais recentes. A fantasia inconsciente é o correspondente subjetivo das pulsões.
Freud descobriu muito cedo que no inconsciente lembranças e fantasias não se distinguem, o que o fez abandonar as ideias iniciais sobre a neurose, que se apoiava na teoria da sedução. Da lembrança de algo factual, Freud vai migrar para a fantasia e a vida pulsional. A partir daí as fantasias alcançaram mais visibilidade na psicanálise. Na sua visão a unidade básica do inconsciente é o desejo instintivo (as pulsões) e não a fantasia inconsciente. Para Klein as fantasias inconscientes são o conteúdo primário do sistema inconsciente, o seu motor. Em relação à fantasia: “O uso central de Freud ressalta o aspecto fictício, de satisfação de desejo ao passo que o de Klein focaliza o aspecto imaginativo”. ( Spillius, 1924/2006, pp. 183-184)
Analisando as crianças aprendeu que “não existe urgência pulsional, situações de ansiedade, processo mental que não envolva objeto, externo ou interno; em outras palavras as relações de objeto estão no centro da vida emocional”. ( Klein, 1952/1991b, p.76).
Klein através de seus conceitos trouxe um alcance de elementos muito arcaicos da mente humana, de onde brotam fantasias inconscientes que são seus conteúdos primários constituintes.
Conhecer o mundo no princípio da vida para Klein traz um modo arcaico (oral e anal) que devora e agarra, em fantasia, para se apropriar deste. A fantasia inconsciente a partir do que se vive é capaz de criar, imprimindo sentido às coisas. ( Cintra & Ribeiro, 2018). Ela, por exemplo, compreende em continuidade ao desenvolvimento esse processo criativo que vai desde “gestos que estão tentando virar palavras”, como o agarrar de um bebê na busca de conhecer, até o compreender mais elevado da atividade do pensamento no adulto, como devorar livros, significando a apreensão de seus conteúdos. ( Cintra, 2022, p.72).
As fantasias inconscientes trazem o aspecto “psíquico” dos impulsos, necessidades e seus estímulos internos, como sensações, tendências, processos corporais fisiológicos, etc. “Nada do que ocorre no corpo e na mente deixa de estar, de alguma forma, associado a esta atividade inconsciente … que dá sentido e valor afetivo a tudo que se faz e a tudo que nos acontece”. ( Figueiredo, 2012, p. 25).
Ogden (2014), acredita que as concepções kleinianas do papel da fantasia inconsciente, podem contribuir para uma revisão sobre a atividade da mente, “o que sugere uma substituição do modelo estrutural de Freud por um modelo de mundo interno estruturado por relações fantasiadas de objeto interno”. (p. 62).
Uma metáfora interessante nos faz Heimann (1952/1969), quando diz que sob o ponto de vista kleiniano, a introjeção e a projeção são os “arquitetos da estrutura mental” (p.144), com a combinação desses dois mecanismos incessantemente. Assim a partir dos mecanismos de introjeção e projeção em ação, um mundo interno complexo de fantasias, self e objetos vai sendo construído, mas que possui realidade psíquica 5.
Para ela o senso de si mesmo de uma pessoa deriva desse movimento de Projeção e introjeção, quase como uma respiração psíquica que expulsa e absorve o ar, numa interrelação do dentro com o fora. Mas que são conteúdos inconscientes povoados de objetos internos criados em fantasia a partir do soma 6 e que são introjetados.
É bom ressaltar que em psicanálise, geralmente a fantasia é sempre considerada inconsciente, sendo que em Freud ela refere-se ao inconsciente recalcado da primeira tópica e em Klein engloba este, mas inclui a condição operante da fantasia desde o início da vida, a qual se expressa primeiramente e de forma inconsciente encenando-se no soma, nesse caso falamos de inconsciente primário anterior ao recalque. ( Persicano, 2013).
Essas introjeções iniciais do objeto materno pela criança são distorcidas em relação à realidade externa, pelo motivo de suas tentativas em regular a angústia sentida por ação das intensidades pulsionais (de vida e morte) que emanam de seu interior. A fantasias inconscientes como representantes psíquicas das pulsões, originam desde dentro, ajudando o bebê a navegar no mundo externo, conectando impulsos, sentimentos, defesas e objetos. ( Segal, 1975).
Melanie Klein ao analisar relações primitivas de objeto tanto projetivas, como introjetivas trouxe à luz fantasias de objetos introjetados no ego desde o início da vida, começando pelos seios divididos em ideal e persecutório, por meio do mecanismo de defesa da cisão 7. Diante do desenvolvimento, o sentido de realidade vai operando e os objetos internos antes divididos se aproximam mais das pessoas reais no mundo externo.
Ocorre uma identificação introjetiva quando esses objetos são assimilados ao ego e contribuem para o seu crescimento forjando certas características a ele. Outros permanecem internamente, mas separados e o ego mantém “relações” com eles. É o que acontece com o superego 8. Dessa maneira, “a estrutura da personalidade é amplamente determinada pelas mais permanentes das fantasias que o ego tem sobre si mesmo e sobre os objetos que contém”. ( Segal, 1975, pp.30-31).
Um conceito original e muito relevante em sua obra nitidamente visto da perspectiva objetal é a identificação projetiva (Klein, 1946/1991a). Nada mais é do que uma identificação por projeção que atribui a outra pessoa, ou ao objeto, uma parte projetada de si mesmo. Isso provoca uma transformação nesse objeto, pois um sentimento mau sentido é agora visto em outra pessoa, passando a ser completamente negado e desconsiderado como próprio, mas agora pertencente ao outro.
A partir de Bion 9, esse mecanismo foi reconhecido em sua dimensão intersubjetiva, como uma forma de comunicação a ser contida e possibilitar elaboração na relação analítica. Com isso o seu avanço traz de forma mais evidente o campo interpessoal, se entendemos a ênfase de Klein em aspectos do mundo interno. ( Figueiredo, 2022).
Para Klein o fato de tudo isso estar relacionado com as fantasias inconscientes traz um nexo muito importante, pois torna possível que se mobilize a estrutura do ego e do superego através da análise: “É analisando as relações do ego com objetos, internos e externos, e alterando as fantasias sobre esses objetos, que podemos afetar de maneira substancial a estrutura mais permanente do ego”. ( Segal, 1975, p.31).
O Objeto em Pichon-Rivière, o social dentro – Uma abordagem inovadora
“Todo homem carrega dentro de si um mundo feito de tudo o que viu e amou; e é para este mundo que ele retorna incessantemente, embora possa atravessar de, e parecer viver em, um mundo bem estranho a ele”. Chateaubriand 10
Falar de objeto a partir da obra pichoniana nos exige um passo a mais, ou um grande desafio, uma vez que nos lança agora a pensar esse conceito mergulhando também num campo multipessoal e compartilhado, pois Pichon em sua trajetória expandiu a sua prática para além da terapia individual, na intervenção com família, grupo e comunidade.
Ao corpo teórico de Pichon escolhemos nos apropriar a partir da psicanálise. A sua abordagem sendo multi e interdisciplinar, imprime certo grau de complexidade, o que exige um aprofundamento cuidadoso para a compreensão de suas ideias. A liberdade e vivacidade com que as criou, demonstrava sua busca para desenvolver a psicanálise evitando posições fechadas. E numa tentativa inovadora, com forte aporte da alteridade, valorizou e imprimiu à psicanálise a intersubjetividade em todas as suas faces.
Há muitos aspectos de sua teoria que encontramos afinidade ao ler psicanalistas contemporâneos, sobretudo considerando uma psicanálise que inclui o social para pensar o inconsciente, com a intra e intersubjetividade consideradas em dialética na constituição da subjetividade, embora atuem apenas na clínica individual.
Pioneiro na psicanálise Argentina, cofundador em 1942 daquela Associação Psicanalítica (APA), afirmou sempre a importância de considerar o ser humano em seu contexto, “inaugurando uma releitura psicossocial da obra freudiana, que resultou no que denominava de teoria e técnica dos grupos operativos, ou psicologia social operativa”. ( Meireles & Velloso, 2007, p.40).
As referências psicanalíticas de Pichon foram Freud, Melanie Klein e Fairbairn 11. Em suas palavras: “Tomarei como esquema de referência aspectos da teoria de M. Klein, Freud e Fairbairn para tornar compreensível minha teoria”. ( Pichon-Rivière, 2000, p.14).
Fez sua análise com Angel Garma, que por sua vez analisou-se com Melanie Klein. E se tem notícias de que a conheceu pessoalmente quando de sua viagem à Europa em 1951, em companhia de sua primeira esposa Arminda Aberastury, ocasião em que foram supervisionados por ela. ( Meireles & Velloso, 2007).
Pichon sempre necessitou de:
“complementar a investigação psicanalítica com a investigação social, que segundo afirma, se orienta em uma tríplice direção: psicossocial, sociodinâmica e institucional. … concebe a pessoa como uma totalidade integrada por três dimensões: a mente, o corpo e o mundo exterior (áreas 1-2-3), que integra dialeticamente”. ( Taragano, 1998, p. XI)
Acredita que esses campos de investigação vão se integrando e que uma concepção a partir das relações interpessoais:
“do indivíduo com o grupo e/ou com a sociedade, nos dará dados para construir uma psiquiatria que podemos denominar Psiquiatria do Vínculo… uma psiquiatria dinâmica construída com os postulados da psicanálise”. Pichon-Rivière, 1998, p.2).
Além da teoria e técnica de grupos operativos, criou conceitos fundamentais que alicerçaram sua obra como o de vínculo, grupo interno, teoria da enfermidade única e ECRO (Esquema conceitual, referencial e operativo). Procuraremos explorar alguns deles, sendo que outros ficarão para outras oportunidades.
Pichon parece concordar em parte com Klein, discordando de Freud o qual, como vimos, considera de um lado, as pulsões como determinantes originárias da subjetividade, tendo o objeto como alvo. A esse respeito diz:
“Como se vê, no meu entender, os instintos de vida ou de morte são, de fato, uma experiência em forma de comportamento em que o social está incluído através de momentos gratificantes ou frustrantes, produzindo-se a inserção da criança no mundo social”. ( Pichon-Rivière, 2000, p.17).
Dessa forma vai enfatizar o caráter estruturante do vínculo entre as pessoas, uma vez que o considera o veículo das primeiras experiências sociais e constitutivas do ser humano. A sua teoria do vínculo nasce a partir de uma leitura atenta de Freud e uma reformulação da teoria kleiniana das relações objetais.
Pichon vai considerar o vínculo uma unidade fundamental, mais complexa do que relação de objeto, que vê como linear. O vínculo vai incluir além do sujeito e o objeto, “a interação” entre eles, na qual se inicia um processo de comunicação e pode possibilitar aprendizagem e conhecimento da realidade. Esse vínculo que é estabelecido a partir da interação pode produzir um desenvolvimento saudável ou patológico, fala então de uma teoria da patologia do vínculo (vínculo paranoide, obsessivo, etc.). Assim em vez de objeto bom ou mau, a internalização (por projeção e introjeção constitutiva de Klein) que se dá é de vínculo bom ou mau, como unidade dialética de interação ( Pichon-Rivière, 1998).
Quando Pichon inclui a interação enfatiza que a resposta do objeto também é internalizada nessa estrutura relacional como uma pessoa real, e não exclusivamente devido à fantasia inconsciente, como compreende a proposta de Klein, assim os objetos internos contêm partes introjetadas da relação real com o outro. ( Pichon-Rivière, 1998).
Com isso, basicamente substitui a ideia de relação objetal, concebendo uma internalização incluindo interações reais entre a mãe e o bebê, contendo elementos tanto de fenômenos intrapsíquicos quanto interações no mundo externo. Ou seja, o ser humano será sempre considerado em articulação com as tramas vinculares nos grupos, nas instituições e na sociedade como um todo, nunca isolado. ( Adamson, 2000).
A compreensão do adoecimento e a saúde mental para Pichon centram-se no estudo do vínculo como estrutura, com causalidade gestáltica:
“As tensões que provocaram sua doença surgem novamente no contexto do delírio, transformadas e distorcidas, mas expressando-se novamente numa tentativa de solucionar um determinado conflito. Através do delírio, não é apenas o seu mundo individual que o paciente procura reconstruir, mas também toda estrutura, a familiar em primeiro lugar, depois a social” ( Pichon-Rivière, 1998, p. 8).
Fica claro que para Pichon há ênfase na alteridade como constitutiva, e defende que a pulsão não atende inteiramente às premissas básicas relativas à motivação humana. Assim vai propor o conceito de necessidade, que provavelmente construiu a partir da filosofia marxista (conteúdo para posterior aprofundamento).
Para ele a necessidade é o que motiva o vínculo. E a condição de ser social faz com que gradativamente estruture-se uma síntese integrada entre natureza e sociedade. Assim Pichon fala de uma adaptação ativa à realidade a ser alcançada:
“O conceito de adaptação ativa que propomos é um conceito dialético, no sentido de que o sujeito, ao transformar-se, modifica o meio, e ao modificar o meio, modifica-se a si mesmo. Então configura-se uma espiral permanente, pela qual um doente que está em tratamento e apresenta melhoras opera simultaneamente em todo círculo familiar, modificando estruturas nesse meio (produzindo uma desalienação progressiva do intra e do extra grupo”. ( Pichon-Rivière, 2000, p.72)
Pichon teorizou que a necessidade primordial dos seres humanos é estabelecer uma conexão com o outro, a sobrevivência depende da resolução dos polos opostos de necessidade e satisfação para alcançar a síntese no mundo externo, através de uma ligação, um vínculo com outra pessoa. Sendo a necessidade o “fundamento motivacional de toda experiência de contato, de toda aprendizagem, de todo vínculo”. Nessa contradição, a necessidade e a satisfação são sentidas interiormente, sendo a fonte da satisfação localizada no mundo exterior. ( Quiroga, 1999, p.16).
Assim em sua teoria do vínculo, Pichon, substitui a ênfase nas pulsões de vida e de morte por uma tese: necessidade. Sendo sua antítese a satisfação e a síntese o vínculo, utilizando-se da dialética, a qual influenciou fortemente sua obra.
Para ele a promoção da saúde dentro do grupo compreende esse movimento dialético, sendo que a sua interrupção gera o que chamou estereotipia, que relacionou com a teoria das posições esquizoparanóide e depressiva de Melanie Klein: lugares mentais em que são vividas respectivamente, angústias paranoides (medo do ataque: de ser aniquilado ou devorado, a preocupação que domina é a preservação do ego) e depressivas (medo da perda, pela introjeção de ataques em fantasia, o que pode gerar consequências destrutivas internamente ao objeto tido como bom), que vão gerar mecanismos defensivos específicos sob ação das fantasias inconscientes. Para Pichon esses momentos vividos no grupo provocam um estancamento do conhecimento e da aprendizagem. Mas assim como em Klein, também Pichon qualifica esses momentos de vivência como fundamentais, pois a emergência desses obstáculos possibilita explicitar fantasias inconscientes e permitir ao grupo a retomada de seu processo e a superação das contradições pela via da dialetização, permitindo a sua continuidade com maior qualidade.
Assim para Pichon a própria experiência de contato com o outro vai modificando a configuração das necessidades e ao mesmo tempo mudando a si próprio. Cria-se pouco a pouco um núcleo e um fundamento para a objetividade, realizando o registro do mundo externo, constituindo-se assim a subjetividade, com a configuração a partir daí de um mundo interno.
Dessa forma vínculo é inicialmente uma estrutura relacional no mundo externo, que a pessoa mais tarde internaliza como uma estrutura psíquica inerente ao senso de si e de sua saúde mental (Pichon, 1998).
Este mundo interior encontra-se em permanente interação, internamente e com o mundo exterior. Investigar os mecanismos pelos quais surge esse mundo interno Pichon denominou ecologia interna 12. A partir daí Pichon conceituou Grupo interno:
“Podemos observar, de acordo com as contribuições da escola de Melanie Klein, que se trata de relações sociais externas que foram internalizadas, relações que denominamos vínculos internos, e que reproduzem no âmbito do ego relações grupais ou ecológicas. …. toda vida mental inconsciente, ou seja, o domínio da fantasia inconsciente, deve ser considerada como a interação entre objetos internos (grupo interno), em permanente inter-relação dialética com os objetos do mundo exterior”. ( Pichon-Rivière, 2000, p.44).
Dessa forma a noção de grupo interno de Pichon, considerada a partir da perspectiva vincular da psicanálise, ou das relações de objeto 13, nada mais é do que um modelo de aparelho psíquico que articula a dinâmica intrapsíquica e interpessoal, presente na clínica contemporânea.
O trabalho com grupos de Pichon e sua clínica individual foram marcadas fortemente por essas concepções criativas, as quais transitava com liberdade, transmitindo essa psicanálise viva. Por exemplo, o seu trabalho com grupos a partir da teoria de campo (Kurt Lewin), e suas construções já mencionadas foram provavelmente fontes inspiradoras ao casal Baranger 14, que desenvolveu o conceito de Campo analítico dinâmico (1961-1962/2010) 15 na clínica, imprimindo o caráter de intersubjetividade na análise. ( Mello, 2022). Assim descrevem inspirados pelos fenômenos observados nos grupos, que:
“não podemos conceber a fantasia básica da sessão – ou ponto de urgência – a não ser como fantasia do par (como na psicoterapia de grupo se fala de ‘fantasia de grupo’, e com razão). A fantasia básica de uma sessão não é o mero entendimento da fantasia do analisando pelo analista, mas algo que se constrói em uma relação de par”. ( Baranger & Baranger, 1961-1962/2010, p. 196).
Localizamos com isso as ideias e construtos de Pichon-Rivière muito atuais, lado a lado à psicanálise contemporânea.
Considerações Finais
Penso que a partir dessas reflexões pudemos contemplar nesses referenciais apresentados enfoques que se complementam, evoluem e diferem ao mesmo tempo, permanecendo em cada um a originalidade e o lugar legítimo dentro da psicanálise.
Freud como vimos apresenta já em sua obra essa oscilação aos modelos pulsional e relacional, e parece ser esta uma grande riqueza, pois sugere uma abertura para pensar que a obra freudiana porta em seu seio esse “germe das relações de objeto” ( Gurfinkel, 2017, p.93).
Dessa forma em Freud há um sujeito movido pelas pulsões que constitui objetos, mas há também nesse sujeito uma constituição a partir de objetos de identificação. ( Coelho Jr., 2001).
Para Melanie Klein é a fantasia inconsciente que primariamente funda uma psiquê. É a primeira transformação que ocorre na mente em desenvolvimento de um bebê, para possibilitar uma organização no mundo. Fundação porque trata-se de origens arcaicas e primitivas da mente humana.
É a partir dessas profundezas que Melanie Klein nos convoca e torna factível discriminar essa concretude, em figuração expressiva de tais mecanismos arcaicos, que orquestram o processo de constituição do aparelho psíquico. E esse processo de edificação se dá numa fase inicial de relações de objeto tingidas pela fantasia inconsciente, na construção de um mundo interno. Quanto mais primitivas as introjeções, mais deformados serão os objetos, pelo que foi projetado neles em fantasia. À medida que ocorre o desenvolvimento, estes se aproximam mais de pessoas reais do mundo externo.
Embora haja essa ênfase no mundo interno, Klein não desconsiderou a importância do ambiente, marcando de diversas formas a importância da mãe real. Mas para ela muitas vezes, por um estado mais adoecido, parece difícil distinguir o que está dentro e o que pertence ao exterior. Nesse caso fica difícil aproveitar as trocas com objetos externos. E o arcaico ainda persiste na vida adulta, e não é raro que se experimente vivências assim. ( Cintra, 2022)
Nesse contexto a psicanalise pode oferecer o trabalho tradicional clinico individual como mais indicado. Sabemos, porém, que hoje a psicanálise pós-kleiniana vem sendo pensada considerando em dialética o intrapsíquico e o intersubjetivo na dupla analítica.
Pichon ao considerar em sua prática, além do individual também o grupo como um dispositivo psicanalítico terapêutico ou em sua pluralidade de outros contextos e diferentes finalidades de uso, o faz inaugurando o que chamou “duplo olhar”: o da verticalidade e da horizontalidade. Em sua verticalidade o grupo vai referir-se a cada pessoa distinta, com sua historicidade constitutiva, e seu grupo interno; em sua horizontalidade concebe o grupo em sua dimensão totalizante. Considerando o conceito de campo, já citado, essa totalidade não é a soma das partes, é algo mais. É uma totalidade que se estrutura, que vai determinar as partes e as relações possíveis entre elas. ( Pichon-Rivière, 2000)
Ávila (2016) parte de Freud, para pensar que na psicanálise dos grupos, os indivíduos devem ser olhados a partir de seu plano constituinte, “aquilo que lhe veio dos outros”, e vai mais além discutindo assim a sua dimensão transubjetiva. Ou seja, o psiquismo tem uma origem que é transindivudual, parte de uma massa simbólica que é comum a todos. “Aquilo que temos psiquicamente e que nos constitui como sujeitos humanos é algo que nos vem do conjunto dos demais seres humanos, presentes e passados. (p.50)
Quando Pichon concebe o psiquismo como grupo interno enfatiza uma complexidade da concepção de sua dinâmica. O sujeito não é movido somente internamente a partir das pulsões, mas também, sem negar, como dissemos, o motor da necessidade-satisfação como fundamento interno, as forças do mundo social (externas) intervêm em sua conduta em consonância ao interjogo de solicitações, atribuições e assunções de papéis. Deste modo, articulam-se as dimensões grupal, interpessoal e intrapsíquica. . Essa maneira de considerar a dinâmica que move o homem permite distanciar-se da polarização instintivista ou culturalista. ( Quiroga, 1999).
Com isso o psiquismo para Pichon é considerado como uma estrutura aberta, na qual se parte não do intrassubjetivo, mas do intersubjetivo. No intrassubjetivo a hipótese é de uma força (pulsional) a partir do indivíduo. E no intersubjetivo o sujeito é emergente e porta voz de seus grupos e estes constituem por sua vez, expressões peculiares e de diversidade em relação à organização social como um todo, e como consequência maior patrimônio cultural.
O sujeito que em princípio se encontra amalgamado com os traços comuns de seus diversos grupos, ao evoluir tende a se discriminar e se diferenciar desses grupos, e na medida em que isso é aprimorado, sua identidade, que é expressão da capacidade cada vez maior de reunir identificações (que constitui o grupo interno), atingirá maior singularidade. Isso requer, segundo Pichon constante análise da realidade e eficácia em se mobilizar para a vida, ou operacionalidade.
Assim, de meu ponto de vista poderíamos incluir sob muitos aspectos Pichon-Rivière ao lado dos psicanalistas contemporâneos representantes da abordagem das relações de objeto, com seu toque de originalidade.
Esperamos que esses estudos apresentados, possam ter possibilitado novos recursos para alimentar novas reflexões aos que optaram por coordenar grupos sustentados pela psicanálise, bem como novas inspirações para então pensar os fenômenos grupais a partir deste recorte.
Referências
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Notas
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