Relato de Experiência
Recepção: 02 Setembro 2022
Aprovação: 30 Março 2023
DOI: https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v20n1a10
Resumo: Considerando que um grupo é um agenciamento de vínculos intersubjetivos, que permite a expressão de relações entre vários sujeitos, o objetivo deste artigo é discutir a importância dos espaços de simbolização direcionados às equipes profissionais, no que se refere ao impacto destas ações na implementação de políticas públicas. Para esta discussão utilizar-se-á de uma experiência de campo profissional objeto de discussão no processo de doutorado. Participou do campo um grupo de educadores de oficinas culturais e artísticas (oficineiros de cultura) em uma intervenção de Grupo Operativo. Essa equipe profissional (participantes do campo) era composta por doze servidores públicos da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) de uma cidade no interior de São Paulo. A duração da intervenção de Grupo Operativo foi de um ano. O trabalho permitiu compreender a importância de espaços que permitam trabalhar/simbolizar as experiências das equipes, no trabalho realizado durante a implementação das políticas: as experiências podem ser elaboradas e reconstruídas, a partir do que é depositado sobre a equipe, seja pela instituição na qual trabalham ou pelos usuários.
Palavras-chave: Alianças inconscientes, Categoria de trabalhadores, Psicanálise, Espaços de simbolização, Psicoterapia de grupo.
Abstract: Whereas a group is an agency of intersubjective links, which allows the expression of relationships between several subjects, the aim of this article is to discuss the importance of symbolization spaces directed at professional teams, regarding the impact of these actions on the implementation of public policies. For this discussion, field experience will be used the professional subject of discussion in the doctoral process. A group of educators of cultural and artistic workshops (culture “coordinators” named in Brazil “culture oficineiros”) in an Operative Group intervention. This professional team (field participants) was composed of twelve public servers of the Municipal Secretariat of Culture (SMC) of a city in the interior of São Paulo. The duration of the Operative Group intervention was one year. The work made it possible to understand the importance of spaces that allow working/symbolizing the experiences of the teams, in the work implementation of policies: experiences can be developed and developed by the reconstructed, from what is deposited on the team, either by the institution in which they work or by users.
Keywords: Unconscious alliances, Occupational Groups, Psychoanalysis, Symbolizing spaces, Group Psychotherapy.
Resumen: Considerando que un grupo es una agencia de vínculos intersubjetivos, que permite la expresión de relaciones entre varios temas, el objetivo de este artículo es discutir la importancia de simbolización dirigida a los equipos profesionales, sobre el impacto de estas acciones en la implementación de políticas públicas. Para esta discusión, se utilizará una experiencia de campo, tema profesional de discusión en el proceso de doctorado. Un grupo de educadores de talleres culturales y artísticos (coordinadores de cultura llamados “oficineiros de cultura” en Brasil) en una intervención de Grupo Operativo. Este equipo profesional (participantes de campo) estaba compuesto por doce servidores autoridades de la Secretaría Municipal de Cultura (SMC) de una ciudad del interior de São Paulo. La duración de la intervención del Grupo Operativo fue de un año. El trabajo permitió comprender la importancia de los espacios que permiten trabajar/simbolizar las experiencias de los equipos, en el trabajo de implementación de políticas: las experiencias pueden ser elaborados y reconstruidos, a partir de lo depositado en el equipo, ya sea por la institución en la que trabajan o por los usuarios.
Palabras clave: Alianzas inconscientes, Grupos profesionales, Psicoanálisis, Espacios de simbolización, Psicoterapia de grupo.
Introdução
Para dar conta de sua tarefa primária, uma organização não só irá lançar mão das atividades concretas e das relações entre fluxos de trabalho e departamentos, mas também de ações ligadas à investigação sobre o que é depositado na dimensão institucional, bem como sobre as alianças inconscientes que sustentam as equipes de trabalho e as ações com os usuários.
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo discutir a importância dos espaços de simbolização direcionados às equipes profissionais, no que se refere ao impacto destas ações na implementação de políticas públicas. Para essa discussão, utilizar-se-á de uma ilustração resgatada de uma experiência profissional - trabalho de campo - aprofundada e analisada durante o processo de doutoramento.
A ilustração aqui apresentada foi resgatada e reconstruída por meio de relatórios, memórias e novas narrativas que surgiram do processo de revisitação da experiência. Novos elementos de percepção, análise e interpretação foram sendo considerados a fim de melhor configurar o objeto de nossa reflexão. Alguns relatos e experiências dos participantes do grupo serão, portanto, ilustrativas, uma vez que os momentos vividos por eles são analisados posteriormente por meio da própria experiência das autoras deste artigo.
Sobre o cenário institucional: participou do campo um grupo de educadores de oficinas culturais e artísticas em uma intervenção de grupo operativo. A análise foi sustentada pela teoria psicanalítica que pensa o sujeito como sujeito do grupo, tal como formulada por René Kaës. As construções teóricas de Pichon-Rivière sobre a teoria da técnica de grupos operativos permitiram a discussão sobre os movimentos ocorridos na intervenção. Essa equipe profissional, composta por doze servidores públicos da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) de uma cidade no interior de São Paulo, participou dessa intervenção pelo período total de um ano.
Grupos e Vínculos Intersubjetivos
Para Kaës (1997), um grupo pode ser pensado como um agenciamento de vínculos intersubjetivos, que permite a expressão de relações entre vários sujeitos do inconsciente. É também uma forma de organização intrapsíquica, uma vez que os grupos que nos antecedem nos oferecem elementos que serão constitutivos do nosso aparelho psíquico. E são, também, dispositivos de investigação. Em termos de investimento pulsional, a situação grupal oferece-se em receber o transporte dos primeiros investimentos pulsionais (por ocasião do apoio da pulsão no investimento corporal – experiências originárias), tornando possível, por meio da linguagem, equivalências simbólicas ( Kaës, 1997).
Kaës (2005a) discute a categoria do intermediário na psicanálise, categoria esta que instala a reflexão sobre os conceitos de formações intermediárias e as funções fóricas: conceitos que nos permitem pensar a ponte entre duas ordens que possuem lógicas próprias, heterogêneas, que não podem ser reduzidas uma à outra. Nesse sentido, a categoria do intermediário permite investigar o afastamento entre diferentes ordens de realidade. São, portanto, conceitos que dão a sustentação teórica para a constituição de um dispositivo psicanalítico grupal, instrumento privilegiado através do qual podemos ter acesso às articulações entre o espaço intrapsíquico, o espaço interpsíquico (intersubjetivo) e o espaço transpsíquico.
Para Pichon-Rivière, pensador que sustenta teoricamente a teoria da técnica de grupos operativos, o dispositivo de grupo possibilita que os membros passem do pensamento formal, representado por um círculo vicioso e estereotipado, para um pensamento dialético, que inclui saltos e transformações (2007).
A proposta de psicologia social, subjacente à teoria pichoniana, é intersubjetiva, pois analisa o interjogo dos sujeitos por meio do interacionismo que não se restringe e não desdenha do acontecer intrassubjetivo ( Fernandes, 1994). Importante ressaltar, que os processos intersubjetivos também não podem ser compreendidos sem a análise da estrutura do mundo interno. Neste sentido, o grupo é um processo interacional e é objeto de estudo para a compreensão do sujeito e da articulação entre suas determinações internas e externas.
No caso da instalação de uma situação psicanalítica de grupo, a intervenção deve satisfazer os requisitos do método psicanalítico tradicional. Kaës (2005b), apoiado nas reflexões de Paul Ricoeur sobre as características da situação psicanalítica, enumera quatro critérios dessa situação específica:
O primeiro critério é a exigência da palavra. A experiência psíquica, particularmente o desejo inconsciente, é suscetível de ser dita. Esta é uma determinação metodológica que diz respeito ao objeto de análise poder ser significado, decifrado, traduzido e interpretado. O segundo critério é o fato de o desejo humano ser dirigido ao outro. Esse critério diz respeito à intersubjetividade, ao vínculo com o outro. Essa é uma dimensão central da técnica, uma vez que a transferência permite revelar a dimensão intersubjetiva e o traço constitutivo do desejo susceptível de ser dito e dirigida ao outro. O terceiro critério é a consistência da realidade psíquica. Diz respeito ao fato de que certas manifestações do inconsciente são resistentes e se repetem ao longo do tempo (sintomas, fantasmas e outras formações psíquicas de estruturas homólogas ao fantasma, como o sonho). O quarto e último critério é a historicização. A situação psicanalítica permite reter da experiência de um sujeito aquilo que está em condições de entrar numa história ou num discurso. Esta condição diz respeito aos processos de après-coup e de perlaboração, ou seja, a noção de uma reestruturação recorrente de acontecimentos anteriores ( Kaës, 2005b; Kaës,1994).
Sendo assim, para a constituição de um vínculo, os sujeitos identificam-se entre si e identificam-se com objetos comuns por meio de concordâncias que se produzem por meio da palavra ou à margem dela e através de diversas modalidades de identificação: narcísicas, projetivas, adesivas etc. Mas, para a construção de um vínculo as concordâncias por si só não são suficientes. Os sujeitos devem ainda selar alianças para manter o vínculo e para preservar os conteúdos e o empenho de cada um no mesmo. Essas alianças conscientes e inconscientes criam um acordo frente àquilo que é posto de lado para se evitar a ameaça à consolidação do vínculo ( Kaës, 2014).
O conceito de alianças inconscientes inscreve-se no conjunto das investigações sobre os processos e as formações psíquicas específicas dos conjuntos, na proposta de construção de uma metapsicologia de terceiro tipo. Elas atestam a hipótese, levada a cabo nas pesquisas sobre os grupos e o aparelho psíquico grupal, de um inconsciente politópico, inscrito e ativo nos vários espaços psíquicos. Sua função principal é a de manter e reforçar seu vínculo, de definir as questões e os termos, e de instalá-lo ao longo do tempo, torná-lo duradouro ( Fernandes, 2022).
No que se refere às suas expressões, as alianças se inscrevem em dois espaços psíquicos: o do inconsciente do sujeito singular e o do inconsciente no vínculo com o outro ou com mais de um outro, na medida em que na sua estruturação há traços do inconsciente de outrem e de até mais de um outro ( Kaës, 2014).
Qualificamos de espaço intersubjetivo aquele que vincula cada sujeito a outros sujeitos do inconsciente, de tal modo que o próprio conceito de intersubjetividade encontra aqui sua principal intenção. Devemos também especificar o espaço psíquico transubjetivo que percorre todos os sujeitos de um conjunto de sujeitos com a cultura e com as relações sociais. A articulação entre esses diferentes espaços de relação e as alianças devem ser pensadas sob o ângulo da realidade psíquica inconsciente conjunta, comum, compartilhada que os associa e os distingue ( Kaës, 2014, p. 48).
Nos espaços de simbolização devemos estar atentos à maneira como a realidade psíquica grupal se manifesta, aos conteúdos mobilizados, às transformações que ela exige e aos efeitos que são produzidos quando ela se liga às formações psíquicas dos outros sujeitos, no grupo ( Fernandes, 2012). A situação psicanalítica de grupo dá acesso aos processos de articulação entre as estruturas individuais e as estruturas intersubjetivas comuns e compartilhadas para cada sujeito do grupo. As alianças inconscientes, portanto, participam dos processos da aparelhagem psíquica grupal e emergem da/na situação grupal ( Kaës, 2014).
O Grupo de Educadores de Oficinas Culturais e Artísticas
Já nos primeiros contatos com o grupo de oficineiros de cultura, observou-se, de modo geral, uma incoerência entre o trabalho prescrito (dar aulas instrumentais de técnicas artísticas específicas, de forma gratuita, com o objetivo social de dar acesso a pessoas que não podiam acessá-las de outro modo) e o trabalho real (usuários do serviço que buscavam outras experiências nas oficinas, como socialização, apoio à depressão, apoio para o afastamento ou redução do uso de substâncias psicoativas, desenvolver a fala em público, perder a timidez); e, a princípio, oficineiros que não se sentiam capazes de organizar seu próprio trabalho frente às demandas dos usuários, ou mesmo de escutá-los em suas questões. O que os oficineiros realizavam era, portanto, uma reprodução do trabalho prescrito: dar aulas, formar. Era impossível, desta forma, articular dialeticamente o conteúdo da tarefa com o funcionamento do trabalho, gerando, assim, angústia.
Como parte do método de grupo operativo, a tarefa indicada ao grupo, no primeiro encontro pós estudo inicial da demanda, foi a seguinte: vamos refletir sobre como o trabalho nas oficinas pode ser pensado e reorganizado, por vocês mesmos, de modo que lhes faça mais sentido!
Já nos primeiros encontros do grupo operativo os emergentes trazidos questionaram políticas, leis, regras, normas, conceitos, práticas existentes em diversas áreas, o que era praticado por eles etc. É por essa razão que resolveu-se nomear este primeiro momento do dispositivo como “Atualização”. Foi um movimento interessante do grupo, no qual a proposta foi recolher todo tipo de informação existente. Quase que uma tentativa de descobrir o que seria correto fazer a partir de alguma regra ou norma escrita em algum lugar, a qual já pudesse prever isso que se passava com eles. É como se o grupo estivesse sentindo-se desatualizado em relação à sua tarefa primária e tivesse que buscar em algum papel a tarefa ali bem descrita, explícita e atualizada. Partiram do princípio de que desconheciam algo, mas que esse saber já existia e estava em algum lugar.
Houve destaque para emergentes relacionados ao Sistema Único de Saúde, ao Sistema Nacional de Cultura, à intersetorialidade enquanto uma prática, à arte e ao processo de mediação possível por meio dela, à cultura na cidade onde atuavam, e àquilo que era praticado por eles nas oficinas.
Nesse momento, a angústia do grupo se pautou, por um lado, na fantasia de que lhes faltava algo – se além dos documentos visitados, que a princípio não responderam às suas angústias, eles aprendessem sobre educação, desenvolvimento, psicologia, transtornos mentais, drogadição etc., estariam prontos para atender aos usuários. Já que o Sistema Único de Saúde, o Sistema Nacional de Cultura e outros materiais técnicos e didáticos não dizem claramente o que devem fazer, talvez, ao aprender sobre outras áreas possam, portanto, descobrir.
Esse desejo por receber algo transmitido didaticamente foi sendo desconstruído, e foram discutindo e amadurecendo, aos poucos: poderiam criar uma forma de trabalho coerente entre a cultura (arte a qual sabem produzir e ensinar) e a saúde (representada pelas demandas dos usuários que os procuravam, fosse por encaminhamento ou não). Ou seja, que não se tratava de uma busca por formação em educação ou em psicologia, mas de uma busca por uma nova organização do trabalho. Concluíram que, talvez não houvesse um número suficiente de formações que pudesse dar conta das diferentes demandas de cada usuário. Se assim se posicionassem, talvez viessem a negar ou negligenciar a própria área de trabalho. Tampouco caberia fazer de conta que as demandas de saúde e saúde mental dos usuários não existiam.
Não foi uma discussão simples, pois havia aqueles oficineiros que não encontravam satisfação em seus trabalhos, pois o desejo era de formar artistas talentosos e de ensinar tecnicamente, instrumentalmente, até à exaustão, uma especificidade artística. Achavam que essa coisa de acolhimento e escuta das demandas dos usuários os tiraria de sua vocação, que era a arte. Foi um movimento difícil, mas foram associando que talvez pudessem ter outros espaços, para além da Secretaria Municipal de Cultura, nos quais teriam a oportunidade de desenvolver atividades com pessoas que gostariam de se profissionalizar na arte (afinal de contas, a Secretaria Municipal de Cultura não era uma instituição de ensino formal, muito menos de ensino superior e de especialização). Foi um trabalho árduo para eles. Não foi tão simples se desligarem da ideia de que ali não cabia um espaço para o ensino especializado da arte. Deram-se conta de que, na realidade, aquilo era um desejo deles enquanto profissionais e, não era uma necessidade institucional ou uma vontade do público/usuário.
Por si só, as oficinas eram espaços muito curtos e pouco estruturados para o ensino estratégico de técnicas artísticas nos moldes que queriam. Dali não saíam profissionais das artes, mas sim, usuários que se beneficiavam de uma série de coisas, inclusive da companhia de colegas, durante um curto período. Acontecia algum tipo de aprendizagem de técnicas artísticas? Sim. Mas, coisas superficiais e bem iniciais.
Houve, então, um tímido movimento do grupo em uma direção transdisciplinar e intersetorial de pensar as oficinas e isso nos leva à reflexão de que apesar do suporte político, institucional e/ou instrumental que se possa ter, a implementação de um projeto próspero de intersetorialidade pode ser impedido se as funções psíquicas exigidas – dos trabalhadores – estiverem a serviço da resistência (organização defensiva) e não puderem ser elaboradas em algum dispositivo adequado que permita a restauração dos espaços de simbolização (transformação da realidade psíquica inconsciente) abalados/afetados pela vicissitudes do trabalho com o público.
Ainda na primeira metade da intervenção, mas em um segundo momento, observamos que as resistências se apresentaram coladas às histórias do grupo: “tudo o que queríamos, no passado (referindo-se à infância, à adolescência, à juventude) era ‘acesso’ à cultura, e não tínhamos. Por que os usuários do nosso serviço não querem o mesmo?” As resistências se armam contra o “disparate” de os usuários “não valorizarem” a cultura tanto quanto/assim como os oficineiros.
Analisando o movimento do grupo, no que se refere à Pichon-Rivière (1985, 2005), na pré-tarefa há um jogo de dissociações do pensar, do atuar e do sentir, formando parte dos mecanismos de defesa. Consideramos que a pré-tarefa – nas palavras de Pichon-Rivière - e que o abalo das alianças - para Kaës - concentram-se nessa parte da intervenção, a qual nomeamos por Atualização. Aqui ocorreram denúncias e o desvelamento de desconhecimentos que permitiram a organização para um novo momento do grupo.
Na segunda metade da intervenção - a tarefa propriamente dita, na conceituação de Pichon -, essas resistências vão sendo trabalhadas e observadas pelos educadores que, assim, puderam reconsiderar as demandas dos usuários e puderam construir “ferramentas” para apoiar a mudança (parte da intervenção que nomeamos por Construção de ferramentas).
A tarefa é o momento da entrada no novo conhecimento rompendo com a estereotipia ( Pichon-Rivière, 2005). Para Kaës (2014), nesse momento do grupo (após a crise) há um trabalho de reorganização das alianças e uma reestruturação do aparelho psíquico grupal. Sendo assim, na fase Construção de Ferramentas, rompeu-se com o estancamento da aprendizagem e com a deterioração da rede de comunicação.
Um outro modo de descrever a superação é dizer que ela representa uma mudança de qualidade, e não só de quantidade, no processo. […]. No caso do trabalho com grupos, o aumento da quantidade poderia dizer respeito a um aumento de intensidade e/ou variedade dos diversos elementos explicitados e vividos no grupo antes de uma mudança de qualidade ocorrer. […]. Por outro lado, a mudança de qualidade está ligada a ideia de superação dialética. Ela implicaria uma mudança de compreensão e vivência da situação que poderíamos chamar de insight. Por meio dessa superação o grupo passa a uma outra forma de se estruturar, a uma outra Gestalt. Mudam, por exemplo, as relações de interdependência estabelecidas, o clima do grupo etc. ( Castanho, 2012, p. 54).
De modo geral, o reconhecimento identitário e as enunciações de que cultura é algo que se “deve acessar”, de que é algo “acessado por poucos e frente a muita dificuldade”, “acessado somente por quem tem boas condições financeiras e sociais”, foram os avalistas metapsíquicos1 dos membros do grupo. Essa aliança foi a aliança fundante das oficinas culturais e artísticas elaboradas pelo grupo até então.
Um acordo inconsciente sobre o inconsciente é estabelecido e, em certos casos, imposto para que a relação se organize e se mantenha em termos de complementaridade convergente ou desigual de interesses dos sujeitos, para que seja assegurada a continuidade dos investimentos e dos benefícios ligados à subsistência da função dos ideais comuns, do contrato e do pacto narcísico. O preço disso é o desconhecimento daquilo que está em jogo para cada um na relação ( Kaës, 2014, p. 119).
As alianças dos educadores com o que é cultura são apoiadas em alianças geracionais, que expressam uma transmissão cultural dessa forma de pensar, presente nos discursos de uma grande parte deles e na tarefa prescrita pela instituição Secretaria de Cultura. Houve um discurso recorrente de que quando crianças não tinham “condições” de acessar o que tanto sonhavam (ter um piano, ter aulas particulares etc.). É uma forma de compreensão do que é cultura, distante da produção popular, local, criativa ou de, simplesmente, algo que se faz junto com outras pessoas, ou que se faz apenas para expressar-se. Na realidade, isso era visto por eles como não-cultura. Estas são alianças da cultura e institucionais que precedem o grupo de oficineiros e que atravessam nossa sociedade como um todo. São as alianças diacrônicas, que “são contratadas por nós e sem nós, antes de nosso nascimento; nós as herdamos e, como tal, são um processo principal da transmissão psíquica dos movimentos de vida e de morte entre as gerações” ( Kaës, 2015, p.200).
Observamos que, assim como o bebê chega ao mundo ocupando um lugar em alianças previamente constituídas, também um novo membro em uma organização, seja funcionário ou usuário do serviço, entra em um espaço vincular constituído por alianças inconscientes formadas antes de sua entrada ( Castanho, 2018, p. 74-75).
“Pode-se dizer que essas situações são armadas para isso: não pode haver vínculo grupal sem tais alianças, estruturantes, claro, mas também defensivas, desde seu período inicial (do grupo)” ( Kaës, 2014, p. 212). No entanto, essas alianças fracassam por insuficiência: insuficiência porque começa a ficar evidente e a incomodar os oficineiros o fato de as oficinas não corresponderem ao que os usuários buscavam. Nenhum ou quase nenhum usuário dizia estar ali para acessar algo a ele negado ou algo inalcançável. A cultura não era vista pelos usuários como algo que se acessa ou que se deixa de acessar.
Havia então uma crise no grupo. Segundo Kaës (1994), a crise é uma desordem na articulação dos elementos de um conjunto ou das relações entre conjuntos, pois os sistemas vivos estão em relação de interdependência entre eles.
Dessa forma, considerando uma atividade que envolva Cultura e Saúde/Saúde Mental teríamos uma relação intermediária entre campos heterogêneos, nos quais se comportam outras relações intermediárias em seus respectivos campos. As falhas nas formações intermediárias - sujeitos da Cultura sendo pressionados pela necessidade de transitar pelo universo da Saúde, como também entre sujeitos do mesmo campo que pensavam diferentemente sobre o trabalho que desenvolviam e sobre o que poderia ser transformado - afetou a capacidade singular de formar pensamentos.
Os sujeitos envolvidos (oficineiros) buscam, então, uma ancoragem para poder pensar sobre projetos comuns e coletivos com a Saúde assegurando uma proteção e uma organização que garantam um mínimo de diferenciação e singularidade. Inicialmente, o pensamento ideológico – como uma equipe de Cultura, que não se deixa seduzir pela transdisciplinaridade e pela intersetorialidade, e que não se mistura com outras questões alheias à sua área – anulou, temporariamente, uma articulação que, para o grupo de oficineiros, seria extrema.
O que apontamos como um processo de abalo do narcisismo grupal ocorrido pela ação dos usuários do serviço teria de ser recebido pelo grupo a partir da capacidade de tolerar ser atacado e impactado, “[…] sin que la amenaza de disolución haga arder una imaginaria y mortal castración donde tende entonces a alojarse un fantasma de violación asesina” ( Gaillard, 2016, p. 88) 2.
O grupo, em um primeiro momento, compreende que as demandas dos usuários colocariam em crise a dinâmica grupal há muito estabelecida. “Estes, que ensinam apenas técnicas, somos nós! Querem que sejamos outros!” No entanto, para serem outros não haveria uma destruição total do que se é hoje, mas sim, uma transformação.
Esse consentimento do feminino (tolerar ser atacado) como afirma Gaillard (2016) permite segurar a carga de destrutividade do grupo e “corrigir” o caminho rumo à uma reconfiguração dos vínculos dentro do próprio grupo, com as demandas dos usuários, com os usuários e com a tarefa primária. Mas, para isso se faz necessário uma interrupção da primazia do fálico (em contraposição ao feminino). A posição fálica no grupo manifestava-se pela condição de se perceber coerente com a didática e com o conteúdo das oficinas e que para lidar com as demandas dos usuários apenas lhes faltava alguns conhecimentos. A oficina em si não seria transformada, como também não o seria a escuta dos oficineiros. A proposta seria “saber lidar” com usuários que introduzem questões alheias à Cultura. Esse “saber lidar” foi apresentado pelo grupo como da ordem do “diagnóstico” da problemática (drogas, família, personalidade, psicopatologias…) para uma questão de se decidir se esse usuário permaneceria ou se deveria ser conduzido a outro serviço.
São oficinas que buscam “encerrar” com a “falta de cultura” ou com a “não cultura” da população atendida. Para os oficineiros e para a organização, as oficinas tinham, portanto, um papel social, no sentido de tapar um buraco, de superar o que a princípio seria uma falta para os usuários. São questões complexas estas, pois envolvem a compreensão do que é cultura, se podemos “diagnosticar” ou atribuir a alguém uma condição de “falta de cultura” e se uma oficina técnica daria conta de sanear essa suposta “falta de cultura”.
O sintoma “falta de cultura” ou “não cultura” é o que deu suporte para um compromisso identificatório do grupo de oficineiros até então. Reconhecer que este s intoma “não existia” dentre os usuários levou o grupo à uma crise.
Do outro lado, os usuários expressam uma demanda diferente do que foi esperado pelo grupo profissional. Traduzimos como uma demanda por um espaço para expressar/dividir/cuidar de experiências negativas relativas à saúde e à saúde mental. Esta demanda dos usuários repetiu-se por diversas vezes, em todos os tipos de oficinas e com todos os oficineiros, à espera de alguém que pudesse se colocar na posição de escuta, de acolhimento e de humanização. “La existencia de una institución que acoge, nombra este sintoma y se preocupa por él, conlleva de hecho su reconocimiento y entonces lo inserta en la red de um sentido potencial” ( Gaillard, 2016, p. 90) 3.
As organizações, sobretudo as de cuidado, lidam constantemente com inscrições inacabadas que retornam repetidamente, numa tentativa de serem elaboradas. Esta repetição do sintoma ocorre porque não foi resolvida em outras instâncias, como por exemplo, em demais grupos de socialização, levando os usuários à busca de uma organização que possa ajudar. Os profissionais que buscam se encarregar desse público confrontam-se com um incansável retorno de diferentes sintomas dos sujeitos que elas acolhem ( Gaillard, 2016).
Na organização sobre a qual nos debruçamos, o grupo de oficineiros – a equipe profissional – encontrou um caminho para permitir serem maltratados no vínculo. Tratava-se de uma abertura ao feminino que se caracterizou, em um primeiro momento, por um trânsito transdisciplinar. Os muros das resistências foram postos abaixo e os profissionais puderam se ver como imperfeitos e incompletos, prontos para reconstruírem a sua práxis a partir das demandas dos usuários.
Considerações Finais
A estratégia do tipo grupo operativo, e as relações intersubjetivas em seu interior, foi o foco da análise teórica e da descrição ilustrativa aqui colocada. Naquela convivência com o grupo profissional de oficineiros de cultura, pode-se destacar questões relevantes do ponto de vista dos interlocutores, compreender na medida em que estes foram se aflorando, desvendar contradições entre as normas e regras e as práticas do grupo ( Minayo, 2008) que hoje foram esmiuçadas agregando-se um novo repertório teórico e ilustrando o movimento do grupo na práxis da implementação de políticas públicas.
O dispositivo adotado foi o de grupo operativo conduzido por uma coordenadora que, centrando-se na tarefa, teve a função de garantir a possibilidade de que os membros de um grupo pudessem, entre o movimento de mudança e de resistência à mudança, ampliar a comunicação e alcançar efeitos de aprendizagem.
Dedicar-se a estas questões se torna importante para compreender que políticas públicas, programas e formas de intervir na sociedade não são simplesmente absorvidas e postas em prática por equipes profissionais, de imediato. Novas ações impactam as alianças inconscientes dos grupos e esse impacto pode ter diferentes desfechos, levando a equipe a responder de diferentes formas (desde uma resistência a um acolhimento extremamente simbiótico: situações as quais podem dificultar uma intervenção efetiva junto aos usuários).
Ter espaços que permitam simbolizar o ataque ao grupo é fundamental para que as equipes consigam encontrar formas de tolerar esse ataque. E mais, de construir algo com o que é depositado sobre eles, seja por parte das políticas públicas, seja por parte dos usuários.
Cremos que um canal pôde ser aberto no sentido de a equipe profissional poder investir na transformação e na criatividade, abrindo-se um espaço para reequilibrar o narcisismo grupal e para se revelar a demanda.
Referências
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Notas