Relato de Experiência

Desvelamentos e ressignificações: o passado e o presente do povo brasileiro; um relato de experiência

Unveilings and resignifications: the past and present of the brazilian people; an experience report

Desvelamientos y resignificaciones: el pasado y el presente del pueblo brasileño; un informe de experiencia

Cibele Carvalho Viana dos Santos
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

Desvelamentos e ressignificações: o passado e o presente do povo brasileiro; um relato de experiência

Vínculo - Revista do NESME, vol. 20, núm. 2, pp. 97-106, 2023

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares

Recepção: 20 Junho 2023

Aprovação: 18 Outubro 2023

Resumo: A partir do bicentenário da Independência do Brasil inúmeros trabalhos de revisão histórica surgiram com a comemoração da data. No entanto, de qual história estamos falando, ou melhor, qual história nos foi contada, por quem e de que forma? Diante dessas inquietações, se questiona como se poderia, através do trabalho de grupo, trazer a conhecimento fatos da história do povo brasileiro que foram sombreados, distorcidos e invisibilizados. O Desvelar, um processo grupal que está em andamento, possui até 14 participantes e tem como constituinte mais importante depoimentos dos participantes (acerca das vivências de apagamento, violência e injustiça). Os encontros tiveram início com a discussão sobre o Projeto Querino (visão afrocentrada da história do Brasil). Este pode ser entendido como objeto mediador para facilitar melhor o conhecimento da história. Conhecendo melhor a história, vamos entender por que somos o que somos hoje. Conhecer seu lugar, sua história, seus condicionantes e seu potencial, levam a um pensamento livre.

Palavras-chave: História do Brasil, processo grupal, psicanálise, apagamento, trauma.

Abstract: Since the bicentennial of Brazil's Independence, numerous historical revisions works emerged with the commemoration of the date. However, what story are we talking about, or rather, what story was told to us, by whom and in what way? Faced with these concerns, it is questioned how it could, through group work, bring to light facts of the history of the Brazilian people that were shaded, distorted and made invisible. The Desvelar, an in progress group process that has up to 14 participants and has as its most important constituent testimonials from the participants (about the experiences of erasure, violence and injustice). The meetings began with a discussion about the Querino Project (Afro-centered view of the history of Brazil). This can be understood as a mediating object, to better facilitate the knowledge of history. Knowing better the history, we will understand why we are what we are today. Knowing our place in the world, our history, our constraints, our potential, leads to a free thinking.

Key words: History of Brazil, group process, psychoanalysis, erasure, trauma.

Resumen: Desde el bicentenario de la Independencia de Brasil, numerosas obras de revisión histórica surgieron con la conmemoración de esa fecha. Sin embargo, de qué historia estamos hablando, o mejor, que historia nos contaron, ¿por quién y de qué manera? Frente a estas preocupaciones, se pregunta cómo se podría, a través del trabajo en grupo, traer al conocimiento hechos de la historia del pueblo brasileño que fueron sombreados, distorsionados e invisibilizados. El Desvelar, un proceso grupal que está en curso, tiene hasta 14 participantes y tiene como componente más importante los testimonios de los participantes (sobre las experiencias de borrado, violencia e injusticia). Las reuniones comenzaron con una discusión sobre el Proyecto Querino (Visión afrocéntrica de la historia de Brasil). Este puede entenderse como un objeto mediador, para facilitar mejor el conocimiento de la historia. Conociendo mejor la historia, entenderemos por qué somos lo que somos hoy. Conocer tu lugar, tu historia, tus limitaciones, tu potencial conduce al pensamiento libre.

Palabras clave: Historia de Brasil, proceso de Grupo, psicoanálisis, borradura, trauma.

Afetos e atravessamentos

Primeiramente, se faz necessário contar como surgiu a ideia do Desvelar e de como um processo grupal poderia viabilizar aquilo que pensávamos. Para tanto, precisamos dar um passo atrás para contextualizar e contar quais afetos nos circundavam e geraram em nós inquietações, aflições e mobilização.

Como ponto de partida para nossa elucubração, exponho um trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Os Ombros Suportam o Mundo”:

“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. (…) Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco(…) Teus ombros suportam o mundo (…) chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.” ( Andrade, 2012 p. 33)

Este poema foi publicado em 1940 no livro Sentimento do Mundo. É evidente a temática social no poema, retratando um mundo injusto e repleto de sofrimento, característicos de tempos de guerras, de grandes catástrofes e marcado por injustiças. O título do poema já nos dá uma dimensão de quão difícil está viver no nosso mundo, “ Os Ombros Suportam o Mundo”, será que nossos ombros aguentam? O panorama social da época serviu para Drummond colocar em forma de poesia as angústias e os sofrimentos humanos diante de épocas de grandes aflições. O poeta diz em outro trecho, “ O coração está seco”, apontando para tempos cruéis, carregados de violência e intolerância, nos quais, o indivíduo tem que se tornar praticamente insensível para suportar tanto sofrimento. A agonia aumenta e nem adianta mais morrer, talvez aqui o poema nos diga que boa parte de nós já não esteja mais viva, “ Chegou um tempo em que não adianta morrer”. Deste modo, sua preocupação vital se torna trabalhar e sobreviver, como se tivesse apenas uma sobrevida. Drummond nos conta de um tempo específico, “Chega um tempo” e conta-nos que é um tempo sem amor, sem sensibilidade e de muito peso. Sensações comuns aos tempos em que a realidade se impõe como extremamente dura e avassaladora para a humanidade. É possível apenas prosseguir, ou seja, viver, ou melhor, sobreviver. “ A vida é uma ordem” e deve ser vivida de forma simples, focada no momento presente, no aqui e agora, como se não existisse passado ou futuro, vida apenas, “ A vida apenas, sem mistificação”. A matéria do poeta é a realidade, o tempo é o da dor e nos conta da relação entre o Eu, a coletividade e o mundo.

Diante disso, como podemos sentir-nos a nós mesmos quando o mundo desaba? Como podemos sentir-nos pertencentes a algum lugar quando perdemos a ligação com o nosso passado, com a nossa história e, não temos perspectiva para o futuro? Assim, a vida se transforma num ato, sendo a resultante, um não encontrar o sentido de pertencimento a lugar nenhum e nem a si mesmo.

Os últimos anos expuseram-nos a tamanha agressividade, hostilidade e assim como Drummond nos alerta: os ombros estão cansados.

Cenário e contextualização

Bem, trata-se de um Brasil que descortinou toda sua violência desumanizante e passamos a nos deparar com abusos e absurdos diários. Desde 2013, sobretudo a partir das manifestações, o nosso até então “conhecido” país não seria mais o mesmo. A partir dali muita coisa mudou, olhos se abriram, olhos se fecharam, olhos nunca olharam, olhos apenas choraram, mas olhos sonharam. Sonhos bons e sonhos maus.

Bandeira do Brasil com manchas de sangue.
Figura 1
Bandeira do Brasil com manchas de sangue.
Nota.Compilação da autora. Imagem criada a partir de imagens coletadas no site Canva https://www.canva.com/

Nós brasileiros naquele momento não sabíamos, mas uma ruptura imensa se anunciava como jamais havíamos sentido. Sim, sentido, pois certamente já vivemos rupturas terríveis, porém até então não entediamos que eram traumas, uma vez que existia um desmentido, como pioneiramente definido por Ferenczi; voltaremos nesse ponto mais adiante. Ali, em 2013, se fortificavam as forças radicais da extrema-direita brasileira. Uma velha conhecida, mas que não nos assustava tanto até então, pois parecia que seu “verniz de democracia” produzia um certo efeito encantador. Essa velha conhecida foi chamada pelo sociólogo Souza (2017) de Elite do Atraso, é a herdeira abastada da nossa herança colonial, aquela que sempre usou de violência e dominação para oprimir e se locupletar às custas de muita dor, sofrimento, sangue; especialmente sangue negro.

O primeiro episódio do Projeto Querino (2022) começa abordando o incêndio acontecido no Museu Nacional no Rio de Janeiro em setembro de 2018. O episódio é narrado pela voz do jornalista Tiago Rogero, idealizador e coordenador do Projeto. Esse incêndio destruiu mais de 80% do acervo do referido museu, mais uma página lamentável de nossa história. Por não cuidarmos de maneira adequada de nossa própria história, aprendemos pouco e o que fica é esquecido ou vira cinzas. Este episódio é encerrado com uma frase do fotógrafo e ativista Januário Garcia, que faleceu em 2021 devido a complicações da Covid-19, que dizia “existe uma história do negro sem o Brasil. O que não existe é uma história do Brasil sem o negro”.

Assim, faz-se necessário fazer um breve sobrevoo a momentos históricos do Brasil para, num segundo momento, contextualizarmos o hoje.

De 1500 a 1530 situa-se o período anterior à colonização efetiva dos portugueses e é caracterizado como Pré-Colonial. O Brasil Colônia correspondeu ao período de 1530 a 1822, e era fundamentalmente uma colônia de exploração, na qual os portugueses exploradores retiravam deste território riquezas, especialmente o pau-brasil, açúcar, ouro e pedras preciosas para atender às demandas do mercado europeu. A economia nesse período se dava sobre dois alicerces: exploração de riquezas naturais e a utilização de mão-de-obra escrava. Nosso alicerce escravocrata pode ser pensado como o berço onde fomos criados, operando uma correlação entre a nossa fundação e a violência.

Devido à iminente invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, a família real portuguesa foge para o Brasil em 1808. A partir de então haverá muita transformação por aqui, pois o Brasil passa a não ser apenas uma mera colônia, visto que a corte portuguesa passou a morar aqui. Essa mudança traz “ares de nação civilizada” para este território, que até então era tido como “selvagem”. Para tanto, foram construídos novos edifícios, inaugura-se a imprensa, biblioteca real, ocorre a abertura dos portos a nações amigas, funda-se bancos e etc. O Brasil é elevado à categoria de reino unido ao de Portugal; deixa de ser colônia. Com o passar do tempo e o fim do perigo representado por Napoleão, inicia-se na elite portuguesa um sentimento de inconformidade e indignação com uma situação entendida como de rebaixamento de Portugal em relação ao Brasil e inicia-se uma pressão cada vez mais poderosa pelo retorno da família real e até pela volta do Brasil à condição de colônia. Toda essa movimentação vai pressionar pela Independência do Brasil em relação a Portugal, que acaba sacramentada em 07 de setembro de 1822. O Brasil Império tem seu período compreendido entre 1822 e 1889 e teremos o primeiro imperador. Aqui há uma aproximação significativa do imperador com a elite brasileira, basicamente agrária. Acordos, conchavos, golpes, violência, expropriação e revoltas vão tecendo a nossa história.

Fanon (2008) tece uma análise crítica e histórica sobre como, a partir da colonização, a identidade negra é complexamente construída. O autor apresenta a ideia de um mundo dominado e gerido por brancos, onde os negros tomam conhecimento do próprio corpo a partir de um processo de negação. Diante da impossibilidade de representação da cor da sua pele e sua subjetividade, o negro se insere no universo branco incorporando o branco como ideal. Fanon (2008) descreve:

“Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco.” ( Fanon, 2008, p. 94).

Voltando para o fio da nossa história, a monarquia no brasil vai se enfraquecendo à medida que vai perdendo o apoio das elites econômicas vigentes em função das seguidas restrições à escravatura impostas pela Inglaterra, a nação mais poderosa da época. Essas restrições se materializavam em leis aprovadas no parlamento brasileiro em favor dos escravizados, que embora não surtissem verdadeiramente efeitos práticos na vida desse povo, incomodava demasiadamente a elite. Isso leva a uma situação insustentável para o Imperador. Assim, em 15 de novembro de 1889 o Brasil se torna uma República, após um golpe militar que derrubou a monarquia.

Nosso período republicano tem sido de muito sobressaltos. Talvez o momento mais sombrio tenha sido o da Ditadura Militar entre 1964 e 1985, que merece especial atenção. Recentemente vimos muitos movimentos saudosistas clamando pela volta desse tempo. Ora, como é possível tamanha insensatez? Seria pedir por um retorno de violência, da censura, da retirada de direitos dos diferentes (os outros), eliminação das liberdades, descaracterização do estado de direito, etc. Essa é certamente uma passagem da nossa história que ainda não elaboramos, assim ela teima em repetir.

Mais à frente, em 2016, novamente um grande pacto compõe um novo golpe de Estado e uma presidente eleita democraticamente é retirada do poder. Esse pacto, segundo a fala do ex-senador Romero Jucá seria “ Um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.

Indo mais adiante na linha do tempo chegamos a 2018 e nesse momento já sentíamos uma grande cisão na nossa sociedade, chamada de polarização. Em outubro de 2018 Jair Bolsonaro foi eleito com 57.797.847 votos, 55,54% dos votos válidos. Nesse instante metade do Brasil vibrava e a outra metade chorava. Nem parecia que essas duas metades faziam parte da mesma realidade, do mesmo país. Aqui nossa ruptura ficou explícita e muitos passaram a questionar quem é o brasileiro? Quem somos nós enquanto nação, ou, até, somos uma nação? Como diria Freud (1921) qual a alma coletiva que nos habita? Essas perguntas acompanhavam os almoços de domingo, quando relações foram rompidas, porque se tornou quase impossível manter laços sociais, para ambas as partes.

Ocorre que vimos e experimentamos, a partir de então, uma escalada de violência, opressão e destruição. Arrisco a dizer que não tínhamos registro de tamanha brutalidade. Mas, reitero, não significa que elas nunca tivessem acontecido, pelo contrário.

Quando pensávamos que não poderia piorar, chegou a pandemia de Covid-19 e mergulhamos em isolamentos, sofrimentos e perdas. Acompanhamos uma gestão da saúde desastrosa que levou o Brasil a ser um dos países em que mais se registrou óbitos por Covid-19, em números proporcionais no mundo. De uma coisa sabíamos, compartilhávamos um momento trágico da nossa história. Foi se tornando possível constatar no outro, às vezes muito próximo, até convivendo em nossa casa, caracteres de violência, destruição, incivilidade, negação de fundamentos do viver em coletividade. Isto é um momento que ainda não terminou, estamos nesse processo.

O trauma brasileiro

Retomo aqui à questão mencionada acima, do trauma em Ferenczi. Para tratar do assunto, recorro a Gondar (2012). A autora faz uma diferenciação de trauma em Freud e Ferenczi. Segundo ela, na primeira perspectiva, o trauma diz da realidade psíquica e, na segunda, da realidade objetiva. Para Ferenczi, além disso, o traumático não se refere somente a ocorrência de um acontecimento, mas também ao que é “feito” intersubjetivamente com a vivência traumática. Em outras palavras, como isso é dito, ou melhor, (des)dito por um outro, ou para usar o termo Ferencziano, “ desmentido”. Esta operação produz cisões psíquicas, buracos na história e formas de retorno não simbolizadas destas vivências. Cito Ferenczi: “O pior é realmente a denegação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento (…) é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” ( Ferenczi, 1931/1992, p. 79).

Mapa do Brasil atravessado por uma corrente com uma fissura ao meio.
Figura 2
Mapa do Brasil atravessado por uma corrente com uma fissura ao meio.
Nota. Compilação da autora. Imagem criada a partir de imagens coletadas no site Canva https://www.canva.com/

Esse parece ser um caminho para refletirmos sobre como nós brasileiros, ficamos por tanto tempo “sob encanto”, nos contentando com a “mestiçagem” amistosa do bom brasileiro cordial da forma como nos foi contada. Penso que teria sido uma forma peculiar de resposta a um trauma em nossa cultura, como forma de processar todo sofrimento e violência suscitados pela escravidão e, assim, conviver com toda desigualdade social que nos acompanha até hoje. Temos particularidades na forma como a escravidão se deu por aqui, uma delas é a forma como a segregação entre os brancos e os negros aconteceu. No Brasil não se deu de forma explícita, mas a população branca segrega a população negra se misturando, mesclando-se como num faz de conta de que no Brasil não existe e nunca existiu racismo ( Reis; Gondar, 2022). Essa é uma forma silenciosa e perversa de racismo e, por que não dizer um racismo desmentido.

O Brasil foi o país que mais escravizou pessoas negras e o último país a abolir esse sistema “econômico” como prática. Souza joga luz sobre essa questão:

“No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão(…) Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa auto-interpretação nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de autodesconhecimento foi possível?” ( Souza, 2017, p. 40).

Diante dessa questão do trauma, é importante fazer uma reflexão entre o recalque e a clivagem, pois os dois são mecanismos de defesa, porém operam por lógicas distintas.

O recalque fala de um traço daquilo que não queremos admitir em nós mesmos, portanto expulsamos para o inconsciente e mandamos para bem longe da consciência. A clivagem diz respeito a uma dimensão da realidade, sendo ela um mecanismo mais primário que o recalque. No recalque há correntes que se conflitam, mas que num trabalho de análise, por exemplo, pode ser lembrado e elaborado, pois criou registros, teima em retornar, portanto, pode ser pensado. Freud (1919) chamou isso de “ retorno do recalcado”. A lógica do recalque implica fronteiras, limitações entre o Eu e o outro. O que aconteceu aqui foi justamente o apagamento e a negação das fronteiras de separação. Assim, no mecanismo de clivagem, oferece-se a possibilidade de duas atitudes opostas e contraditórias caminharem em paralelo, como se uma não levasse a outra em consideração ( Reis; Gondar, 2022).

Kaës (2009), traz contribuições importantes para pensarmos e articularmos essa questão. Ele estabelece que alianças inconscientes sustentam e alinham as relações, fazendo parte do laço intersubjetivo. Aqui apenas ressaltarei o tipo de aliança que ele chamou de “ pacto denegativo”, que teria a função de expulsar da memória o registro do insuportável para, assim, constituir uma memória consensuada. Dessa forma, certos acontecimentos, fatos e eventos devem ser apagados e invisibilizados 1. Um pacto para um projeto nacional quez obture parte importante e significativa da nossa própria história, que nos impede de saber e processar fragmentos de horror do que já foi operado por aqui.

Segundo Castanho (2015), para Kaës “ as alianças inconscientes são o “cimento” de todo o vínculo” ( Castanho, 2015, p. 104). Isso nos ajuda a entender melhor o funcionamento dessas alianças. No vínculo formado pelo pacto denegativo concebe-se uma dupla função: atuar como defesa estruturante do vínculo e operar como uma aliança alienante. Castanho (2015) ainda explica que de acordo com Kaës:

“as alianças inconscientes só existem em função de algo que fique fora do campo da consciência dos seus signatários, seja isso da ordem do recalcado, rejeitado, abolido, depositado, apagado, dos restos ou de outras figuras do negativo”. ( Castanho, 2015, p. 104).

Dessa forma, as alianças inconscientes permitem articular algo que é comum e partilhado por todos, porém cada um faz parte do pacto a seu modo, de um jeito diferente e por distintas razões ( Castanho, 2015).

Para a filósofa e escritora Carneiro (2005), conhecida por sua luta antirracista, o tema também é abordado quando ela desenvolve ideias importantes para se pensar o Brasil atual. Em sua tese de doutorado, ela discorre, entre outros conceitos, sobre o mito da democracia racial. Para a autora há um abafamento da discriminação racial operado justamente pela larga miscigenação. A lógica posta é que como havia muita mistura isso seria um indicativo de tolerância racial. Porém, o que ocorre é que se escamoteia o fato da miscigenação brasileira ter sido construída pelo estupro colonial contra mulheres indígenas e negras. A aposta da autora é que essa farsa está sendo corroída, e com ela a falácia de igualdade de direitos na sociedade brasileira está sendo desmascarada. Aos poucos, estamos ficando diante daquilo que sempre nos foi escondido.

“A miscigenação vem dando suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual entre brancos, indígenas e negros seria o principal indicativo de nossa tolerância racial, argumento que omite o estupro colonial praticado pelo colonizador em mulheres negras e indígenas, cuja extensão está sendo revelada pelas novas pesquisas genéticas.” ( Carneiro, 2005, p. 64)

Carneiro (2005) ainda aborda o conceito que chamou de “ epistemicídio”, operado também através da miscigenação. Trata-se de uma maneira de produzir rebaixamento e apagamento dos saberes africanos e negros, invisibilizando a posição do negro enquanto sujeito produtor de conhecimento. Isso ajuda a consolidar a ideia da supremacia intelectual branca. Cito a autora:

“A negação da identidade, da racialidade negra, no qual a miscigenação é um operador, implica no plano político em destituir o negro da condição de um grupo de interesse, a ser reconhecido, é uma estratégia de controle e anulação do sujeito político. É em relação a esses danos que a educação escolar e na família em geral se omite, silencia, nega permite sua perpetuação comprometendo a autonomia das pessoas negras.” ( Carneiro, 2005, p. 282).

Desvelar - Dispositivo grupal

Retornando a nossa linha do tempo, chegamos a outubro 2022, mês de eleições e já estávamos em clima de guerra. Algo precisava ser feito e nossos olhos sonhavam novamente. Como nos disse Pichón Rivière (1971, p. 342) “em tiempos de incertidumbre y desesperanza es imprescindible gestar proyectos colectivos desde donde planificar la esperanza junto a otros”.

Assim fizemos movimentos flutuantes, que se davam em encontros ainda não organizados, nos quais íamos experimentando falar de nós mesmos. Dizíamos: “ vamos experimentar falar daquilo que está emergindo em nós para ver se encontramos ecos disso lá fora também”, “ vamos experimentar falar daquilo que estamos lendo”. À medida que fomos nos encontrando, foram surgindo ideias e decidimos montar um coletivo. O Coletivo Plural nasceu antes do 2° turno das eleições presidenciais de 2022, no noroeste Paulista, que nos últimos tempos se mostrou um reduto bolsonarista. Sentíamos que precisávamos fazer algo e assim foi. Criamos um coletivo unido pela diversidade de gêneros, classes sociais e credos. Engajados nas questões sociais, culturais, econômicas, ambientais e políticas da nossa região. O nosso objetivo é dialogar, propor ações para e com as comunidades mais vulneráveis. O que nos move é buscar pela efetivação de um projeto comum de sociedade para todos, sem distinção e a partir da caminhada e experiências de vida de cada um. O nome “Plural” foi escolhido justamente para difundir o conceito de que somos mais do que um indivíduo, somos múltiplos compartilhando interesses e perspectivas. A ideia é apregoar a diversidade, a variedade e principalmente, o senso de comunidade. É, então, dentro desse Coletivo que nasce o Desvelar!

Arte utilizada nas divulgações do Desvelar com destaque para a imagem de uma pessoa.
Figura 3
Arte utilizada nas divulgações do Desvelar com destaque para a imagem de uma pessoa.
Nota. Compilação da autora. Imagem criada a partir de imagens coletadas no site Canva https://www.canva.com/

Pensávamos: “ a nossa história brasileira precisa ser contada”. Queríamos que aquele sentimento que surgiu em nós, quando nos demos conta do nosso apagamento e sombreamento histórico, fosse visto e sentido por outras pessoas também, sobretudo as pessoas negras e indígenas, que foram as mais violentadas na nossa história. Começamos a compartilhar nossas pesquisas e conhecemos o podcast do projeto Querino. Foi então que ouvimos os episódios e o que veio a nós, muitas vezes, foi uma reação de surpresa expressa nas frases “ não sabia disso”, “ não sabemos quem nós somos, pois desconhecemos nossa própria história”, “ somos desmemoriados”, “ nossa história é muito violenta”.

O dispositivo grupal que nomeamos “Desvelar” pode ser caracterizado como um Grupo Operativo de Aprendizagem (Pichon Rivière, 1985), que tem como tarefa explícita refletir e compartilhar as questões acerca das relações raciais no Brasil. A ideia é a utilização de objetos mediadores como disparadores para as discussões e reflexões acerca das relações raciais, para em grupo identificar luzes e sombras do caminho trilhado pela sociedade brasileira para interpretar o hoje. Para tanto, inicialmente, fizemos uso dos podcasts do Projeto Querino (visão afrocentrada da História do Brasil), como objeto mediador, para facilitar melhor o conhecimento da história.

Organizamos as ideias e divulgamos para que as pessoas interessadas participassem. Assim o grupo se formou, está em andamento desde janeiro de 2023, na modalidade online, de caráter aberto, tem frequência quinzenal, com duração de 1h30 por encontro e possui perfil heterogêneo (idade, gênero e cor), porém, todos interessados em aprender e partilhar para descontruir essa mentalidade colonial que ainda vivemos.

A dinâmica do encontro geralmente é a seguinte: fazemos apresentação de uma pessoa negra da história (preferencialmente mulher), que geralmente foi apagada ou invisibilizada. Chamamos de pessoa “desvelada”. Pensamos que é muito potente trazer a conhecimento quem foram essas pessoas. É uma forma de historicizar, de fazer registro ou um testemunho que valide essa existência. Partilhamos sobre o que ressoou ou reverberou da escuta do podcast do projeto Querino. Os participantes colocam seus comentários e depoimentos. Em alguns encontros, trazemos um convidado e o apresentamos ao grupo, ele é livre para falar sobre o assunto que desejar, desde que tenha o objetivo decolonial e/ ou antirracista.

Apresentarei algumas livres manifestações de participantes considerando meu olhar como coordenadora do grupo e pesquisadora do tema:

“Não acredito que encontrei pessoas com quem possa falar sobre isso que me machucou a vida toda”

“Descobrir quem eu sou sempre foi uma busca, mas não foi fácil, pois estava sozinho nessa empreitada, não havia amparo. Ao final me descobri um imigrante na minha própria terra, com todos os percalços que essa condição carrega.”

“Demorei pra entender que posso estar em outros lugares, outros espaços, isso também é pra mim.”

“História é poder, é o que se conta, o poder da narrativa… O Querino conta uma história que faz muito mais sentido que a história oficial, que é um monte de mentiras contadas para encobrir o que foi feito… A história contada pelo Querino tem a força e a consistência da verdade e por isso ela causa tanto impacto.”

“Transito no judiciário como advogada e é um ambiente extremamente elitista e racista… é como se as leis não fossem as mesmas dependendo da pessoa.”

“Quando pequeno, na escola, quando alguém perdia ou sumia material, eles olhavam na minha mochila primeiro. Minha cor carrega o crime.”

“A minha geração foi a primeira na família a tentar sair desse ciclo. Minha mãe, tias e avós foram todas empregadas domésticas. Não aceitaram quando quis fazer faculdade e o mesmo aconteceu com a minha prima…”

“Esse episódio do Querino eu acho um dos mais doloridos que o podcast traz, porque ele tá vivo. Todo mundo já presenciou isso, ou teve empregada doméstica. Não dá pra conversar sobre isso sem constrangimento… eu sou branco, oriundo da classe média, cresci a minha infância toda com duas empregadas dentro de casa… quando criança a gente não entende nada, depois que cresce e amadurece olha no espelho e vê que não se deu conta do que estava rolando. Tem coisas que só agora estão fazendo algum sentido.”

Considerações finais

Ilustração de mãos e braços de pessoas diferentes se apoiando.
Figura 4
Ilustração de mãos e braços de pessoas diferentes se apoiando.
Nota. Compilação da autora. Imagem criada a partir de imagens coletadas no site Canva https://www.canva.com/

Nosso esforço e exercício em nossa prática grupal tem sido a importante tarefa de tentar atravessar esse passado violento e doloroso que nos trouxe e ainda traz muito sofrimento.

Sentimos que passar coletivamente por esses escombros sombrios do nosso passado, que insiste em ser intensamente presente, nos trouxe uma forma mais acolhedora de fazer esse percurso essencial para a enunciação de um futuro que possa ser cunhado não mais com pactos desmentidos e alienantes.

Aqui destaco a hipótese do dispositivo grupal oferecer essa possibilidade de ancoragem. Kaës (2011), a partir de Freud (1914), desenvolve esse conceito. Partindo da ideia de “apoio” ser fundamental para a constituição psíquica do sujeito, Kaës amplia esse campo e pensa na ancoragem como imprescindível para a construção da intersubjetividade. Dessa forma, observamos que os participantes estão gradativamente firmando o grupo como lugar de reflexão, apoio, acolhimento e aprendizagem. Com isso, esse dispositivo permite gestar transformações intrapsíquicas e intersubjetivas.

Nota-se também a importância do grupo na (re)construção e apropriação da história, da nossa verdade histórica. Assim como nos ensina Freud em “Construções em Análise” (1937), no qual ele compara o trabalho de um psicanalista ao de um arqueólogo, para que através dos importantes achados possa se construir uma cena, uma história e dela se apropriar, não mais denegar e ficar aprisionado a ela. Refletir sobre o papel do povo brasileiro na construção do país, certamente tem levado os participantes a vislumbrar as perspectivas do amanhã. Para finalizar, evoquemos Krenak:

“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.” ( Krenak, 2018, p. 10).

Referências bibliográficas

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Carneiro, S. (2005). A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese de Doutorado em Educação, na área de Filosofia da Educação.

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Gondar, Jô. Ferenczi como pensador político Ferenczi as a political thinker. Cad. psicanal. v. 34, n.27, p.193-210, dez. 2012.http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952012000200011&lng=pt&nrm=iso

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Souza, Jessé (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Leya.

Notas

1 É importante ressaltar que há trabalhos do autor Pablo Castanho que tem se dedicado a estudar a temática, sobretudo a correlação entre as alianças inconscientes Kaesianas, o pacto denegativo, o trauma na nossa cultura e suas implicações na construção dos laços sociais no Brasil e que são importantes para a construção desse pensamento. Assim, deixo as referências a esses relevantes trabalhos: Castanho, P. (2022). Quando a massa não dá liga: sobre fragmentos e traumas no Brasil. In Papeti, G., da Silva Junior, J. P., Persicano, M. L. S., & de Mello, S. A. R. (2022). Psicologia das massas: Um século de pensamento crítico (pp. 205-220). Editora Blucher. Castanho, P. (2023). Violence et Criminalité em banlieue: réflexion sur les écueils de la Kulturarbeit au Brésil. Revue de psychothérapie psychanalytique de groupe, 81, 151-159. https://doi.org/10.3917/rppg.081.0151

Autor notes

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