Relato de Experiência
A experiência de atendimento de um grupo terapêutico durante a graduação: a obstaculização pelo pacto denegativo
La experiencia de asistir a un grupo terapéutico durante la graduación: el obstáculo causado por el pacto negativo
The experience of attending a therapeutic group during graduation: the obstacle caused by the negative pact
A experiência de atendimento de um grupo terapêutico durante a graduação: a obstaculização pelo pacto denegativo
Vínculo - Revista do NESME, vol. 20, núm. 2, pp. 107-115, 2023
Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
Recepção: 05 Outubro 2023
Aprovação: 30 Novembro 2023
Resumo: Grupos psicoterapêuticos encontram crescente receptividade nos serviços públicos e privados de saúde. Eles conjugam a expansão da capacidade de atendimento com atuação clínica crítica e propositiva frente ao individualismo da sociedade contemporânea. É importante assim pensarmos os desafios da formação dos psicólogos para este trabalho. Este artigo parte de uma dificuldade encontrada por estagiários de 4° e 5° ano do curso de psicologia, na condução de um grupo psicoterapêutico. Coloca-se como objetivo analisar a relação entre um pacto denegativo que obstaculiza o processo terapêutico com as experiências iniciais de atendimento dos estagiários. Aspectos vivenciados serão apresentados e debatidos à luz da teoria. Descreve-se a existência de um pacto denegativo neste grupo, que se opõe ao processo terapêutico dos pacientes e complexifica o desenvolvimento dos estagiários ao desafiar a confiança em suas percepções e associações, dificultando a realização de intervenções. Conclui-se que o pacto denegativo que obstaculiza o grupo se apresenta, a princípio, como um desafio aos estagiários, porém, mediante o apoio na relação entre os estagiários e supervisão é possível transformar este desafio em fonte de aprendizado.
Palavras-chave: Psicoterapia de Grupo, psicanálise, grupos, clínicas-escola.
Resumen: Grupos psicoterapéuticos son cada vez más recibidos en los servicios de salud. Combinan la expansión de la capacidad de servicio con una acción clínica crítica y decidida frente al individualismo de la sociedad contemporánea. Es importante pensar en los desafíos de formar psicólogos para este trabajo. Este artículo se basa en una dificultad que enfrentan los pasantes de 4° y 5° año de psicología al momento de conducir un grupo psicoterapéutico. El objetivo es analizar la relación entre un pacto negativo que obstruye el proceso terapéutico y las experiencias de cuidado de los internos. Se debatirán experiencias y la teoría. Se describe la existencia de un pacto negativo, que se opone al proceso terapéutico de los pacientes e intensifica el desafío de los alumnos al desafiar la confianza en sus percepciones y asociaciones, lo que dificulta la realización de intervenciones. Se concluye que el pacto negativo que obstaculiza al grupo se presenta, en un primer momento, como un reto para los aprendices, sin embargo, a través del apoyo en la relación entre los aprendices y la supervisión es posible transformar este reto en una fuente de aprendizaje.
Palabras clave: Psicoterapia de Grupo, psicanálise, grupo, escuela Clínica.
Abstract: Psychotherapeutic groups are increasingly employed in health services. They combine the expansion of the service capacity with critical and purposeful clinical action in face of the individualism of contemporary society. It is important to think about the challenges of training psychologists for this work. This article is based on a difficulty encountered by 4th and 5th year psychology students, acting as trainees, when conducting a psychotherapeutic group. The objective is to analyze the relationship between a denegative pact that obstructs the therapeutic process and the trainees’ initial clinical experience. This text debates aspects of this practice in light of theory. It describes a denegative pact in this group, which opposes the patients’ therapeutic process and intensifies the trainees’ challenge by challenging the trust in their perceptions and associations, making it more difficult for them to find spaces to intervene. It concludes that the negative pact that hinders the group presents itself, in principle, as a challenge to the trainees, however, through support in the relationship between the trainees and supervision it is possible to transform this challenge into a source of learning.
Keywords: Psychotherapy Group, psychoanalysis, groups, school-Clinics.
Introdução
O grupo terapêutico apresentado e discutido neste artigo é um serviço oferecido por uma clínica escola ligada a um curso de Psicologia. Nele, realizam seus estágios alunos do 4° e 5° ano sob supervisão semanal de um docente. É um serviço voltado para o tratamento psicoterapêutico, que se soma a outras iniciativas e serviços da clínica escola. No grupo, são atendidos pacientes que buscam a clínica de maneira independente ou pessoas encaminhadas por serviços da rede de saúde mental.
O grupo terapêutico em questão foi aberto com oito vagas e está em funcionamento desde 2015, porém não há nenhum paciente na atual configuração que tenha participado do início do grupo. O grupo é coordenado por uma equipe de até três estagiários. Cada estagiário permanece de um a quatro semestres na equipe. Busca-se sempre que haja uma combinação de estagiários mais antigos (5° ano) com os mais novos (4° ano). No caso deste grupo, houve também uma mestranda na coordenação pelo período de um ano. Durante os anos mais intensos da pandemia, 2020 e 2021, o grupo foi realizado de maneira remota e retornou ao formato presencial no início do ano de 2022. Os estagiários, autores deste artigo, atuaram no grupo de março de 2022 a março de 2023. Neste período, o grupo era formado por apenas quatro pacientes fixos. Entende-se que este número reduzido de pacientes se deu como reflexo indireto da pandemia que dentro da reorganização geral da clínica escola que foi demandada, inviabilizou a porta de entrada usual para o grupo. Todos os quatro pacientes do grupo estavam há pelo menos três anos em processo de psicoterapia neste grupo no início de 2022.
Embora possa existir certa variação, atualmente, os terapeutas se dividem da seguinte forma: um estagiário mais experiente e familiarizado com o grupo, aluno de quinto ano, age como preceptor de outros dois novos estagiários. A equipe torna-se fixa então, formando um vínculo de trabalho de coterapia entre os três terapeutas. O presente trabalho é escrito pelos dois terapeutas no primeiro ano de atendimento e o respectivo supervisor, configuração que favorece o foco no início da experiência de atendimento de grupos.
O grupo terapêutico é atendido sob a perspectiva da psicanálise de grupos, de orientação mais fortemente marcada pela tradição francesa de René Kaës (2007), mas com elementos de outras perspectivas, notadamente de Foulkes e sua grupanálise no que tange os aspectos do enquadre ( Castanho, 2018). Apesar de contar com quatro participantes, apenas três deles estavam efetivamente frequentando as sessões, visto que um paciente tinha dificuldades de comparecer aos encontros presenciais, por incompatibilidade de horário. Para manter o sigilo próprio dos atendimentos, durante esse trabalho, os três pacientes mais frequentes serão referidos a partir dos seguintes nomes fictícios: Alexia, Bruno e Liz. Esse texto se apoia na resolução ética N° 510, de 7 de abril de 2016 do Ministério da Saúde, mais especificamente no artigo 1, VII. O referido artigo versa sobre a realização de pesquisas que objetivam “aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”.
Subsidiado na experiência mais ampla de atendimento do grupo terapêutico, o objetivo geral deste trabalho acadêmico é analisar a relação entre um pacto denegativo que obstaculiza o processo terapêutico com as experiências iniciais de atendimento do estagiário. Como objetivos específicos, procura-se contribuir com referências, no campo da Psicologia Clínica, nos estudos acerca da noção de alianças inconscientes, bem como, por ser um texto a respeito do cotidiano de trabalho prático com grupos na graduação, contribuir com trabalhos sobre esse tipo de experiência, em geral deixada em segundo plano em cursos de formação de psicologia pelo país. Como opção metodológica, serão apresentadas vinhetas e reflexões gerais sobre o atendimento do grupo, embasadas nas experiências de supervisão, com sessões ocorridas dentro de um período de cerca de um ano. O percurso a ser traçado pelo trabalho se organiza da seguinte maneira: primeiro, apresentaremos o início de nossa experiência de atendimento, para então, a partir da apresentação da hipótese do tipo de aliança inconsciente estabelecida no grupo atendido - da constituição de um pacto denegativo - explorarmos as relações estabelecidas entre esse tipo de padrão defendido do grupo com o momento inicial do percurso clínico dos estagiários. Na investigação dessa situação, questionamos os tipos de desdobramentos tanto para a condução do processo clínico do grupo, quanto para o início da nossa formação enquanto psicólogos clínicos e analistas de grupo.
O início da experiência de atendimento
No início da experiência dos autores-estagiários, o grupo estava retornando para a modalidade presencial, uma vez que os encontros até então estavam ocorrendo de forma online, por conta do isolamento físico imposto pela pandemia de COVID-19. A transição de modalidade aconteceu de fato em março de 2022, quando os atendimentos voltaram a ser realizados nas dependências físicas da Clínica Escola. As primeiras supervisões centraram-se em dois grupos terapêuticos, com narração das sessões por estagiários que já estavam em processo de atendimento, os preceptores; um desses grupos narrados seria aquele no qual os novos estagiários, autores deste texto, viriam a atender depois de algum tempo.
No início da supervisão, começo do ano letivo de 2022, ambos os autores-estagiários não haviam sido designados para atender nenhum dos grupos, então escutavam os grupos de maneira imparcial. Entretanto, ambos os autores concordavam que havia uma clara diferença entre os dois grupos: o primeiro lhes parecia muito mais “travado”, as intervenções feitas pelos terapeutas pareciam gerar menos ressonância entre os participantes e o grupo, como um todo, parecia funcionar de maneira menos orgânica. O segundo grupo, por sua vez, parecia funcionar de maneira mais harmônica, os terapeutas faziam colocações que atingiam seus objetivos e o fluxo associativo, no geral, engajava melhor o grupo de supervisão; este segundo grupo poderia ser entendido como estando no “Padrão Grupoanalítico” (Cortesão, 1988).
No dia da divisão dos novos estagiários entre os grupos terapêuticos atendidos, o primeiro autor tem uma lembrança relevante do ponto de vista da contratransferência. Apesar de haver disponibilidade de horário para qualquer dos grupos, parecia haver um desejo de “intervir” na situação na qual o primeiro grupo (tema deste artigo) se encontrava, a saber, com aparente menor capacidade associativa e interações mais empobrecidas entre terapeutas e pacientes. Em retrospecto, consideramos que era como se existisse uma espécie de fantasia heroica mobilizando o desejo para atender esse grupo em específico. Uma imagem vem à tona: era como se houvesse a esperança de que um novo olhar pudesse desobstruir as “engrenagens” que pareciam estar “emperradas”. A segunda autora, porém, se lembra da situação de escolha com um outro olhar: apesar da evidente dificuldade que o grupo apresentava, havia um maior envolvimento da autora com as narrações desse grupo e, durante as primeiras supervisões, parece ter surgido um desejo de encontrar os pormenores de cada uma das histórias expostas dos pacientes e entendê-los para além das travas presentes. Ambos os autores-estagiários concordam, portanto, que parte da escolha se deu por essa tal motivação de encontrar algo, em cada paciente, que fizesse o grupo efetivamente caminhar. Vale ressaltar que ambos os estagiários não haviam feito atendimentos clínicos presenciais até então. Em ambos, havia uma esperança de que os atendimentos em grupos e presenciais representassem um ponto de virada no breve percurso clínico.
O pacto denegativo e o grupo defendido
O grupo terapêutico, desde antes da entrada dos autores como estagiários, já se revelava como um grupo bastante defendido, isto é, apresentava discursos “desafetados” em bastante desconexão com a tarefa da “cura” ou psicoterapia ( Pichon-Rivière, 1985/2007). Claro, os novos estagiários viriam a entender depois que as dimensões e tensões de uma determinada dinâmica de grupo não podem ser facilmente alteradas, na medida em que processos psíquicos levam tempo e existem, evidentemente, razões para o grupo funcionar de determinada maneira, visto que os discursos tocam e atravessam os pacientes de formas distintas, dentro da história pessoal de cada um.
O primeiro contato com o grupo foi caracterizado por uma posição de reserva, como esperado de novos terapeutas. Não demorou para que o primeiro autor se sentisse inclinado a intervir, incomodado pela posição reservada. Talvez houvesse resquícios da referida atitude heroica. Ainda, talvez se lembrasse de que seu tempo no grupo era menor: ficaria no máximo dois semestres com o grupo, à medida em que o fim de sua graduação se aproximava. Apesar disso, a pressa não se justificou: nos momentos em que foi convocado a ser mais participativo e incisivo em suas intervenções, era tomado pelo silêncio.
A segunda autora, por outro lado, se lembra de estar numa posição confortável nas primeiras sessões, enquanto buscava entender o grupo e, mais importante, confiar o suficiente em suas intervenções para verbalizá-las. Diferente do primeiro autor, a autora se encontrava no quarto ano de graduação e havia a perspectiva de se manter por quatro semestres nos atendimentos do grupo; dessa forma, a autora sabia que, em algum momento, teria de se impor e encontrar seu espaço nas sessões. O esforço, porém, não era suficiente e houve diversas vezes nas quais os encontros se encerraram com uma sensação de “eu deveria ter dito isso!”. Parecia faltar a confiança e o espaço para se expressarem.
Na supervisão, eram compartilhados o desconforto com as sessões, a impressão de que os estagiários não tinham liberdade em falar ou de que não haveria no grupo um lugar para eles. Em uma determinada sessão, já no segundo semestre do ano, três pacientes falavam de suas experiências profissionais, acadêmicas ou mesmo de uma experiência acumulada pelos anos de vida (os terapeutas, em geral, são mais jovens que os pacientes atendidos) e os estagiários se lembram de terem sentido, na contratransferência, afetos como impotência e sensação de inexperiência.
Em outro momento, a paciente Liz chegou na sessão um pouco atrasada e interrompeu a fala de Bruno para relatar que havia perdido seu anel, concluindo que ele só poderia ter caído no caminho até ali. No momento de pedir licença para sair do grupo e procurar pelo seu item, a paciente se dirigiu somente a Bruno, pois, segundo ela, “somente a opinião dele importava” naquele momento. Quando ele assentiu, ela saiu para buscar o item perdido. Após o grupo, os estagiários compreenderam este episódio ilustração do (não)lugar conferido aos terapeutas e oriunda da resistência presente ali.
Meses após a entrada dos novos terapeutas no grupo a situação parecia ter se alterado muito pouco; havia muita resistência e algumas sessões funcionavam como “roda entre amigos”, pois não se assemelhavam com um processo psicoterapêutico, visto que as falas eram superficiais e as imagens trazidas pelos terapeutas eram ora contestadas ora pouco refletidas.
Para melhor ilustrar o que era sentido pelos terapeutas como uma “roda entre amigos”, talvez valha recordar de um dos primeiros momentos em que os autores-estagiários ouviram esse termo. Na supervisão do grupo referido, quando ainda era atendido por outros dois terapeutas, ouviram a seguinte vinheta: os terapeutas estavam atendendo de maneira online, quando o grupo fez quase toda uma sessão falando a respeito de consumo de drogas ilícitas e histórias relacionadas a isso. É de se pensar que um tema desse teria a capacidade de mobilizar afetos e associações muito significativas para os participantes, mas esse não foi o caso e a conversa seguiu de maneira descontraída e superficial.
Os terapeutas relataram uma contratransferência muito forte, sentiam que não havia espaços para intervirem nas associações da sessão. A sensação de desconexão entre discurso e afeto era tamanha que em momentos parecia ser possível vislumbrar uma imagem em que, caso os terapeutas saíssem da sessão, eles não seriam notados pelos pacientes, que provavelmente continuariam como se nada tivesse acontecido. Naturalmente, uma conversa entre amigos ou adolescente pode carregar múltiplos sentidos, mesmo os terapêuticos, mas não ocorreu dessa maneira.
O tom frustrante da sessão, que continuou a se estender por muitos meses, foi hipotetizado como uma maneira do grupo de se defender do contato com determinados afetos, pois, ao se constituir como uma “roda entre amigos” sem espaço para a entrada dos terapeutas, se evitava, por exemplo, aquelas intervenções que poderiam provocar justamente o contato com sentimentos mais dolorosos ou indesejáveis, passíveis de serem trabalhados em análise. É bastante emblemático o tipo de vínculo estabelecido no grupo, marcado fortemente pela defesa e pela evitação de entrada mais direta no processo psicoterapêutico e, portanto, parece haver certa justificativa para os sentimentos de exclusão, inexperiência e falta de espaço que os autores-estagiários sentiram.
Na supervisão e nos momentos de análise de intertransferência ( Kaës, 2004), a hipótese é que se tratava de um tipo de aliança inconsciente no grupo marcada pelo pacto denegativo. Antes de abordar alguma definição de pacto denegativo, cabe apresentar o conceito de análise de intertransferência. Castanho (2015), tomando o termo de René Kaës, define a análise de intertransferência como:
… condição de possibilidade do trabalho interpretativo da dupla ou equipe de analistas, salientando-se o papel essencial de que sejam analisadas as formações narcísicas e ideais comuns surgidas na dupla, equipe e mesmo nas instituições que contêm os grupos e às quais pertencem os analistas (p.117).
Assim, a análise de intertransferência é o momento, entre as sessões e as supervisões realizadas, no qual a equipe responsável pelo atendimento elabora também suas relações para com o atendimento. A intertransferência, junto com a supervisão, foi espaço para a construção do entendimento de que estávamos frente a um pacto denegativo - parte da conceituação mais ampla sobre as alianças inconscientes ( Kaës, 2009). Neste caso, evocamos os pactos denegativos como representantes de processos inconscientes que ligam os membros do grupo com a finalidade de manter afastados da consciência dos participantes, ou ao menos das trocas do grupo, aspectos que geram desprazer. Se as defesas seguem concebidas como mecanismos dos sujeitos singulares por Kaës, os pactos denegativos são formações vinculares que incidem sobre estas defesas de cada sujeito, podendo reforçá-las, facilitá-las, ou mesmo viabilizá-las para os diferentes membros do grupo. Segundo Castanho (2015), apoiado no trabalho de René Kaës:
O pacto denegativo é uma aliança defensiva de amplo espectro. Vínculos formados pelo pacto denegativo exigem que seus signatários recalquem, recusem ( déni), desmintam ( désaveu) ou rejeitem ( rejet) algo para que o vínculo permaneça. Ao fazer essa exigência, o pacto denegativo se oferece como metadefesa, como apoio para que estes mecanismos operem no sujeito. … o conceito de pacto denegativo descreve uma lógica própria de funcionamento que ajuda a compreender e operar sobre os vínculos. Como metadefesa, os efeitos do pacto denegativo se apresentam e retornam aos vínculos que constituem (pp. 106-107).
Um “sintoma partilhado” ou mesmo “repetições” seriam justamente a utilização das sessões, repetidas vezes, como um mecanismo para se estar junto em terapia, ao mesmo tempo em que se evita quaisquer assuntos mais desprazerosos.
Na alternância, uma porta se abre
Com um número fixo de quatro pacientes e apenas três deles vindo com certa frequência, o grupo estava reduzido; com apenas duas faltas, o grupo poderia facilmente acontecer com apenas um paciente. Esse tipo de sessão com apenas um dos participantes presente se tornou relativamente comum e um padrão começou a se desenhar: era como se os pacientes realizassem uma espécie de revezamento a cada sessão, decidindo inconscientemente quem iria para o grupo para sua “sessão individual”. Evidentemente, não se tratava de sessões individuais, mas ao longo do texto esse termo foi empregado para ilustrar o fenômeno em questão, no qual um paciente foi atendido, pelos terapeutas, sozinho. Esse padrão enigmático iria se mostrar, com o tempo, uma situação com potencial para transformar a dinâmica de funcionamento do grupo.
Em “sessões individuais”, o tom do grupo parecia se alterar e se tornar mais afetado, ou seja, os pacientes tocavam em assuntos mais delicados e significativos e a tarefa da psicoterapia se tornava mais aparente; esse, talvez, fosse um indício do enfraquecimento do pacto denegativo, em razão da ausência dos outros membros do grupo nas sessões. Uma vinheta clínica pode ajudar a ilustrar o fenômeno: no fim do primeiro semestre, o paciente Bruno se ausentou das últimas sessões; quando perguntado por uma das terapeutas sobre seu bem-estar, o paciente respondeu que não iria mais comparecer às sessões, pois estava se sentindo sobrecarregado e muito mal. Na supervisão, nos perguntamos se justamente não seria esse o momento mais importante de se frequentar a terapia. Na ocasião, Bruno optou por aproveitar o recesso de julho e retornar somente no começo do outro semestre. Quando retornou, teve uma “sessão individual”, isto é, foi o único paciente presente.
Nessa sessão, ele ressaltou a importância da terapia, do trabalho dos terapeutas na vida dele e, ao fim do encontro, relatou se sentir muito mais “leve”, pois havia dividido o que o estava incomodando tanto. Hipotetiza-se que Bruno entrou mais em contato com os sentimentos, expressando, a partir daquela sessão, mais diretamente o que lhe causava sofrimento; parecia tentar aproveitar e transformar cada momento da sessão em algo mais significativo. Além disso, a partir desse momento, o paciente Bruno se tornou o mais frequente e pontual do grupo.
Existiria ali, ao nosso ver, indício de uma solução de um conflito entre o desejo de entrar em terapia e o pacto denegativo estabelecido pelo grupo. Isto é, à medida em que o pacto denegativo se enfraquece na ausência de outros, “nas sessões individuais”, os pacientes vislumbram um encontro menos atravessado por defesas tão intensas e passam a mobilizar algo dessa vivência quando voltam a estar juntos em sessão. Esse momento, talvez, seja um dos que marcou o início da superação e do atravessamento do pacto denegativo.
Alexia e Liz também tiveram encontros individuais bastante significativos. Interessante ressaltar que o atendimento de grupos com apenas um paciente, que poderia facilmente gerar fantasias de dissipação e fim do grupo, foi lido pela supervisão e terapeutas como uma oportunidade para trabalhar questões que não podiam emergir no grupo, por conta do pacto denegativo. A partir de um trabalho consistente, mesmo em circunstâncias curiosas, iniciou ali um novo funcionamento no grupo. De fato, na supervisão e análise da intertransferência, os coterapeutas e o supervisor enxergaram um certo movimento do grupo em direção ao Padrão Grupanalítico, com a mobilização de questões afetivas, mesmo que bastante devagar. Fica claro, portanto, como a dinâmica de “sessões individuais” geraram grandes benefícios para todos os participantes.
Relação entre o pacto denegativo e a experiência de atendimento
Retomando a experiência de atendimento, é importante trabalhar como a dinâmica do grupo, atravessada pela noção de pacto denegativo, mobilizou certas fantasias e sensações, desencadeadas também pela inicial inexperiência dos autores. Na graduação de Psicologia, os alunos têm, no geral, a expectativa de ter um atendimento mais significativo desde o início da graduação; entretanto, os autores tiveram poucas oportunidades e preencheram seus estágios com atividades fora da clínica. Deste modo, ao atender um grupo mais defendido, ambos autores concordam que parecia ainda mais difícil, devido à pouca experiência, encontrar um espaço para intervir e confiar nas suas percepções e associações, uma vez que o grupo não se encontrava em processo psicoterapêutico imediato.
Para o primeiro autor, houve a emergência de algumas fantasias, como “será que estou fazendo algo de errado?” e outras ligadas a uma possível dissipação do grupo, como “será que justamente no meu momento de atender o grupo seria desfeito?”. A segunda autora, da mesma forma, sentiu-se insegura com seu trabalho e com sua capacidade de fazer comentários significativos para o processo terapêutico, de forma que uma posição reservada lhe parecia mais segura. A hipótese que se constrói a partir dessas experiências pessoais é que o mesmo pacto denegativo que obstaculiza o grupo em entrar em processo psicoterapêutico, também alimenta as inseguranças dos estagiários e, até mesmo, impede o processo de sentir-se e tornar-se psicoterapeuta.
Em certo sentido, o pacto denegativo do grupo parecia frear as associações dos terapeutas e diversas vezes foi dito, em intertranferência e supervisão, como era mais simples e natural que fizessem associações e pensassem em boas intervenções depois do fim dos encontros. Havia, de fato, uma trava durante as sessões e, livres dela, os estagiários-autores associávamos com muito mais liberdade.
O enfrentamento e a possibilidade de superação do pacto denegativo talvez seja bastante desafiador para quem inicia a clínica, uma vez que o grupo apresenta um lento processo de mudança; como na vinheta clínica discutida até aqui, só foi possível algum espaço para tal mudança quando entendemos que o novo padrão que surgia, o das “sessões individuais”, poderia ser abertura para a entrada em processo psicoterapêutico.
Nesse sentido, é importante destacar também como alguns dos dispositivos do atendimento se revelaram bastante eficazes para enfrentar esse tipo de aliança inconsciente mais defendida, como a análise da intertransferência e a supervisão. Ambas foram importantes espaços de elaboração de resistências; por meio da análise de intertransferência, por exemplo, foi possível trocar muito da experiência com a equipe e compreender que as sensações de impotência e desconexão com o discurso do paciente não se tratava de um equívoco “individual”, mas sim de um funcionamento específico do grupo, que consequentemente gera implicações contratransferenciais compartilhadas entre os membros da equipe de atendimento. Além disso, é importante destacar o espaço da supervisão, tanto quanto no que diz respeito aos aprendizados adquiridos por meio da escuta da experiência de atendimento de colegas, quanto pelo papel que o supervisor pode ter em nomear os processos psíquicos presentes e tornar possível uma espécie de limite e contorno para esse tipo de vínculo tão desafiador.
Aberturas ao processo psicoterapêutico
Do ponto de vista das “aberturas” ao processo psicoterapêutico e a consequente superação do pacto denegativo, traremos alguns recortes de vinhetas clínicas extraídas dos atendimentos, que revelam como as “sessões individuais” tiveram de fato uma função positiva em relação à transformação do padrão do grupo.
Nesse sentido, Bruno é um paciente com comportamentos frequentemente entendidos como firmes, e fortes, com referências constantes à resolução de seus conflitos cotidianos por vias agressivas. Pode-se compreender, no entanto, que haveria aspectos de dificuldades para manter diálogos e lidar com seus sentimentos e vulnerabilidades na resolução de conflitos. No entanto, Bruno, em uma determinada sessão do segundo semestre, apresenta uma história inédita. Ele conta que há alguns anos uma de suas duas cachorras estava demandando muito cuidado e colocando a saúde da outra cadela em perigo, por conta de seu comportamento violento. Bruno, sempre muito cuidadoso com seus animais de estimação, acabou sem opções e foi necessário que o animal de estimação fosse sacrificado por um médico veterinário. Apesar de sentir que não havia outra saída, já que o animal tinha um longo histórico de casos de violência, Bruno ficou bastante afetado pela situação e diz ter chorado copiosamente, ficando assim marcado pelo episódio. Como destacado pelo grupo de terapeutas, esse foi um dos momentos em que Bruno se mostrou mais vulnerável, compartilhando uma história muito íntima e sofrida para ele.
Por sua vez, após as “sessões individuais”, Liz deixou de frequentar o grupo por alguns encontros e pensamos que isso poderia ter acontecido também por um sentimento de exclusão, visto que Bruno havia tomado as últimas sessões para entrar mais em contato com seus afetos. Porém, em um determinado encontro, ela entrou visivelmente “abatida” e comentou estar bastante frustrada, uma vez que alguém havia roubado um carro da família que ela estava planejando comprar há algum tempo. Essa história se conectou a uma outra que Bruno havia compartilhado, também relacionado a frustrações com seu carro. Na ocasião da história de Bruno, Liz chegou a não validar o que ele estava sentindo; dessa vez, no entanto, foi diferente, pois apesar de aparentemente banal, esse foi um momento interessante para Liz se apropriar novamente das sessões e falar de seus anseios, assim como, a partir da conexão entre suas histórias, Liz e Bruno conseguiram se engajar mais em um diálogo e associaram juntos sobre um incômodo. Essa troca, por conta do pacto denegativo, era muito difícil e rara, na medida em que esse funcionamento parecia empurrar os participantes do grupo a espécies de “monólogos”, com escassos intercâmbios de experiências e identificações significativas entre eles.
Ainda no panorama de pensar as “aberturas” ao processo psicoterapêutico e a superação do padrão de pacto denegativo, Alexia também mostrou um desenvolvimento interessante. Historicamente, essa já é uma paciente que consegue entrar mais em contato com seus sentimentos e afetos e utilizar mais as sessões de maneira a explorar o potencial terapêutico delas. Em certo momento, Alexia comentou sobre como estava se sentindo ansiosa e mencionou como também gostaria de voltar a frequentar o psiquiatra; isso gerou uma mobilização do grupo de terapeutas para se disponibilizarem para conversar individual em outro horário, caso ela achasse necessário, uma vez que ela demonstrou na sessão estar mesmo mais angustiada. Alexia, então, contatou a segunda autora e conversou sobre uma viagem futura que ela faria, utilizando o espaço para explicar como ela estava se sentindo insegura em relação a tal experiência. Depois da conversa e da referida viagem, Alexia contou de sua experiência de uma maneira bastante integrada, ressaltando também como o acontecimento afetou a relação dela com seus pais e sua irmã, por exemplo. O interessante dessa vinheta para o presente texto é justamente pensar como a sensação de ter conversado com sua terapeuta, a autora, fora da sessão trouxe desdobramentos para o grupo. Construímos a hipótese de que o ocorrido fez circular no grupo uma reafirmação de que eles podiam contar com os terapeutas, não só nas sessões regulares, mas também em situações mais difíceis do cotidiano ou mesmo quando as sessões estivessem suspensas pelas férias. O apoio constante dos terapeutas é uma forma de fazer com que os medos e as defesas em relação à psicoterapia diminuam, além de fazer com que todos reflitam a respeito do espaço de cuidado que é construído e compartilhado pelo grupo. Parecia haver ali, também, uma mudança do lugar dos terapeutas no grupo.
Conclusão
A partir da abertura do grupo para um processo psicoterapêutico e a diminuição da força do pacto denegativo, os autores-estagiários passaram a encontrar seus espaços no grupo, sendo capazes de fazer intervenções e comentários significativos. Ficou-lhes bastante evidente que existia uma certa expectativa para que se impusessem mais e marcassem seu lugar como terapeutas, principalmente o estagiário que viria a permanecer por mais alguns semestres. Portanto, principalmente no segundo semestre de atendimento, ficou muito claro como a segunda autora pôde se colocar e expressar melhor as associações que surgiram; os sentimentos eram variados: ora havia uma forte sensação de impotência e, na próxima sessão, uma sensação de satisfação com o trabalho realizado. Essa inconsistência pode também representar essa mudança de fase e transformação, que nem sempre é um processo linear. Mesmo que bastante devagar, foi possível trazer à tona afetos e sentimentos e os pacientes, da mesma forma, pareciam reconhecer melhor a presença e, mais importante, o papel dos terapeutas ali.
A imagem de uma sessão pode ajudar a ilustrar a transformação do lugar dos terapeutas no grupo. Liz, no contexto de uma sessão em que os participantes estavam todos associando sobre suas experiências com a universidade, trouxe um relato sobre sua graduação e acabou concluindo que confia nos profissionais da universidade que oferecem o grupo. Ao que nos parece, interpretando na chave da transferência, essa fala se remete ao momento de virada do grupo, no qual Liz e os outros participantes passaram a confiar e usufruir do potencial do grupo, apesar de reconhecer certas dificuldades ou mesmo limites nele. O uso que passaram a fazer do grupo se tornou menos unidimensional, como era característico na ausência do Padrão Grupanalítico, e mais complexo ou humanizado, na medida em que o grupo se torna espaço para falar de frustrações e momentos difíceis, mas também de conquistas e pertencimento. Da mesma forma, passou a existir também uma confiança nos profissionais presentes ali e no papel que poderiam desempenhar no processo psicoterapêutico de cada um deles; parece que não por acaso esse momento de virada do grupo coincide com a autopercepção dos autores-estagiários como psicoterapeutas capazes.
Permanece em debate qual relação possível estabelecida entre o grupo atendido durante o pacto denegativo e a experiência de início de atendimento, discussão que iniciou este trabalho. Em um certo sentido, a experiência de início de atendimento e estágio em grupo sem Padrão Grupanalítico, assim como o pacto denegativo que resiste, parecem se combinar e agravar muito os obstáculos que já seriam vistos em qualquer atendimento clínico, isso porque há maior dificuldade em entrar na associação dos pacientes, quando há alguma associação realmente afetiva, e manejar um grupo com um funcionamento menos fluído. Uma imagem que vem aos autores-estagiários é que, muitas vezes, cada um dos participantes parecia ter um discurso muito isolado dos outros, com muitas histórias paralelas que não se cruzavam em momento algum, de forma a tornar muito difícil encontrar nós comuns para intervir. Existem momentos em que os terapeutas são colocados na posição de meros espectadores, com o grupo agindo para preservar a dinâmica de poucas intervenções e assim, talvez, evitar a entrada em contato com temas mais íntimos ou sensíveis.
O fato de os autores-estagiários terem, no início, pouca experiência clínica indica ainda uma menor quantidade de recursos para lidar com essas situações e manejar para que os afetos sejam encontrados. Além disso, como já dito, a maneira como o grupo se defende e se afasta de qualquer experiência mais significativa coloca a prova a confiança dos terapeutas em suas intervenções, comentários e observações.
Por outro lado, enquanto estudantes de graduação atendendo a um grupo nesse padrão específico, há algo importante no processo: é uma experiência grupal que envolve uma equipe de coterapeutas e existe algo de didático em viver na pele o manejo de um grupo obstaculizado pelo pacto denegativo, na condição de que essa experiência possa ser nomeada e pensada. Da mesma maneira, foi extremamente importante estar presente num momento de virada e de transformação no grupo; o enfraquecimento do pacto denegativo gerou ótimas oportunidades para o aprendizado e formação, de modo que os autores-estagiários se tornaram (e se sentiram) psicoterapeutas num processo concomitante com o desabrochar do grupo.
Destaca-se, também, o apoio dos dispositivos da supervisão e da análise da intertransferência como espaços fundamentais para o enfrentamento dessas dificuldades, tornando-se claro para estagiários em formação como esses dispositivos serão indispensáveis na futura jornada profissional. Por fim, pontua-se a expectativa do aumento do número de estudos a respeito do papel da análise de transferência e da supervisão no contexto de um grupo atravessado pelo pacto denegativo, em especial da investigação dos sentidos e da importância desses dispositivos para terapeutas estagiários da graduação.
Referências
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Notas
Autor notes