Pesquisa
Recepção: 14 Julho 2023
Aprovação: 26 Outubro 2023
DOI: https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v20n2a6
Resumo: Este estudo teve como objetivo compreender a autolesão na adolescência e investigar sua relação com o funcionamento familiar em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil por meio de um estudo de caso. A autolesão é caracterizada como um comportamento intencional de ferir o próprio corpo, sem a intenção de morrer, podendo evidenciar o desamparo e o convite ao olhar do outro, diante de sua dor. A pesquisa adotou uma abordagem clínico-qualitativa, com análise e discussão dos conteúdos à luz da Psicanálise de Casal e Família. Os resultados revelaram que a adolescente inscreve no corpo um sofrimento não verbalizado, relacionado à crise cultural e à fragilidade dos suportes simbólicos necessários para o desenvolvimento psíquico. Na família, evidenciou-se falhas das funções continentes do Eu-pele familiar, como a dificuldade em perceber os cortes e compreender as queixas da filha. Conclui-se que a autolesão pode servir como uma defesa contra o sofrimento psíquico, comunicando falhas ambientais. Destaca-se a importância da família no desenvolvimento psíquico durante a adolescência, fornecendo apoio emocional diante das transformações e lutos exigidos ao longo da vida.
Palavras-chave: Autolesão, adolescência, família, psicanálise.
Abstract: The aim of this study was to understand self-injury in adolescence and investigate its relationship with family functioning in a Child and Adolescent Psychosocial Care Center through a case study. Self-injury is characterized as an intentional behavior of hurting one's own body, without the intention of dying, and can show helplessness and an invitation to the gaze of others in the face of their pain. The research adopted a clinical-qualitative approach, analyzing and discussing the content in the light of Couple and Family Psychoanalysis. The results revealed that the teenager inscribes non-verbalized suffering on her body, related to the cultural crisis and the fragility of the symbolic support necessary for psychic development. In the family, there were failures in the continental functions of the family Self-skin, such as the difficulty in perceiving the cuts and understanding the daughter's complaints. We conclude that self-injury can serve as a defense against psychic suffering, communicating environmental failures. The importance of the family in psychic development during adolescence is highlighted, providing emotional support in the face of the transformations and mourning required throughout life.
Keywords: Self-injury, adolescence, family, psychoanalysis.
Resumen: El objetivo de este estudio fue comprender la autolesión en la adolescencia e investigar su relación con el funcionamiento familiar en un Centro de Atención Psicosocial a Niños y Adolescentes a través de un estudio de caso. La autolesión se caracteriza por ser una conducta intencional de dañar el propio cuerpo, sin intención de morir, y puede ser una evidencia de indefensión y una invitación a la mirada de los demás ante su dolor. La investigación adoptó un abordaje clínico-cualitativo, analizando y discutiendo el contenido a la luz del Psicoanálisis de Pareja y Familia. Los resultados revelaron que la adolescente inscribía en su cuerpo un sufrimiento no verbalizado, relacionado con la crisis cultural y la fragilidad del soporte simbólico necesario para el desarrollo psíquico. En la familia, hubo fallas en las funciones continentales de la Auto-piel familiar, como la dificultad para darse cuenta de los cortes y comprender las quejas de la hija. Concluimos que la autolesión puede servir como defensa contra el sufrimiento psíquico, comunicando fallas ambientales. Se destaca la importancia de la familia en el desarrollo psíquico durante la adolescencia, proporcionando apoyo emocional frente a las transformaciones y duelos necesarios a lo largo de la vida.
Palabras clave: Autolesión, adolescência, família, psicoanálisis.
Introdução
As marcas corporais estão presentes desde os primórdios da civilização e contêm em si uma pluralidade de sentidos e significados, manifestando-se em diferentes tempos e culturas. Essas marcas são observadas nos rituais de passagem das sociedades tribais, nas escravaturas, nos rituais religiosos e nas marcas de guerra, como nos corpos das vítimas do Holocausto. Além disso, as marcas corporais se apresentam como adornos estéticos, como maquiagens e tatuagens, marcando também a contemporaneidade ( Araújo et al., 2016; Costa, 2014; Drieu et al., 2011).
As sociedades tribais utilizavam as marcas corporais nos rituais de passagem, tais como em nascimento, morte e puberdade, indicando uma transição de um estado para outro. Na Idade Média, as marcas corporais estavam presentes em rituais religiosos, como o autoflagelo, também eram usadas para designar a marginalidade, identificar estrangeiros, escravizados, prostitutas e hereges. No contexto contemporâneo, as tatuagens e piercings, amplamente difundidos entre os jovens, representam uma construção de identidade e uma forma de singularização pela diferença, ao mesmo tempo em que sinalizam o pertencimento a um grupo ( Araújo et al., 2016; Birman, 2006; Costa, 2014; Drieu et al., 2011).
Nesse contexto, observamos um aumento na demanda em saúde pública por adolescentes que cortam seus corpos. Esse assunto tem se difundido nas conversas cotidianas, nas mídias e nas redes sociais, e tem sido amplamente discutido nos espaços que constituem a adolescência, como famílias, escolas e internet ( Araújo et al., 2016; Chaves et al., 2019; Fortes & Kother Macedo, 2017). A autolesão é o termo utilizado para se referir ao ato intencional de ferir o próprio corpo sem a intenção de morrer e não aprovado socialmente pela cultura. Comportamentos autolesivos, como cortes, queimaduras, arrancar os próprios cabelos e bater em si mesmo, são complexos e estão presentes em diferentes estruturas psíquicas. Esses comportamentos são frequentes na adolescência e podem se estender até a fase adulta. A forma mais comum de autolesão é por meio de cortes superficiais no corpo, sem a intenção de morte ( Araújo et al., 2016; Arcoverde & Soares, 2012; Cedaro & Nascimento, 2013; Chaves et al., 2019; Fortes & Kother Macedo, 2017). Existem referências de práticas de autolesão ao longo da história, assim como as marcas corporais, que devem ser compreendidas e analisadas de acordo com cada momento histórico, cultural e a partir da história subjetiva de cada indivíduo ( Araújo et al., 2016; Costa, A., 2014).
Na literatura disponível que trata do tema, observaram-se diversos usos para a nomeação do fenômeno: autolesão, autolesão não suicida (ALNS), automutilação, comportamento autolesivo, comportamentos autolesivos sem intenção suicida (CAL), autoagressão, lesão autoinfligida, escarificação, escoriação, marcas corporais, dentre outros. Essa diversidade de termos na literatura científica nos mostra uma dificuldade de definição de uma nomenclatura universal e sistematização dos achados científicos ( Chaves et al., 2019), vemos tal diversidade também nas pesquisas brasileiras ( Araújo et al., 2016; Chaves et al., 2019). Optou-se, nessa pesquisa, pelo uso do termo autolesão considerando o ato de se machucar intencionalmente sem a intenção de morrer e de modo superficial ou moderado ( Arcoverde & Soares, 2012; Chaves et al., 2019; Costa et al., 2020). Tal terminologia está associada pela representatividade dos estudos atuais, como também, nos estudos internacionais há maior utilização da referida nomenclatura ( Chaves et al., 2019; Moreira et al., 2020).
A autolesão geralmente começa no início da adolescência e pode persistir por muitos anos. Sua prevalência entre indivíduos do sexo feminino e masculino é aproximadamente de 3:1 ou 4:1, sendo que a maioria dos indivíduos não busca atendimento clínico ( APA, 2014). No Brasil, os dados epidemiológicos são imprecisos e existe um consenso entre os pesquisadores sobre a escassez de dados e pesquisas acerca desse tema, incluindo a prevalência e o perfil dos casos de autolesão no Brasil ( Arcoverde & Soares, 2012; Chaves et al., 2019; Gabriel et al., 2020). Existem diversas fontes de dados e indicadores que podem variar segundo a população estudada, a metodologia utilizada e a realidade socioeconômica de cada região. No que diz respeito à prevalência da autolesão em adolescentes, observa-se uma variação considerável, de 10,1% em um estudo na Austrália a 75,9% em um estudo em Cingapura com adolescentes internados em um hospital psiquiátrico ( Barbosa et al., 2019). Essa ampla variação na prevalência pode ocorrer devido à falta de consenso na terminologia, ao tipo de amostra (comunitária ou clínica) e aos aspectos geográficos e culturais de cada região ( Barbosa et al., 2019; Gabriel et al., 2020; Moreira et al., 2020).
O estudo realizado por Tardivo et al. (2019) identificaram dificuldades severas nas relações familiares e na estrutura familiar, relacionadas a falhas, privação, negligência e ausência de um dos pais. Além disso, observaram sentimentos de desproteção, tristeza, desamparo e solidão. Outra análise, aponta para uma possível fragilização do campo simbólico, em que os cortes se apresentam como um substituto das palavras para expressar o mal-estar ( Cedaro & Nascimento, 2013; Felipe et al., 2020; Lopes & Teixeira, 2019; Santos, 2016). Os principais motivos relatados para a autolesão foram “aliviar sensações de vazio ou indiferença” e “parar sentimentos ou sensações ruins” ( Fonseca et al., 2018, p. 250).
Silva e Botti (2018) identificaram a associação dos comportamentos autolesivos com os sintomas dos transtornos alimentares, como anorexia e bulimia. Além disso, observou-se a presença de episódios graves de autolesão e a procura por informações sobre o método, os cortes e cicatrizes. Entre os significados do fenômeno de autolesão, identificou-se a “expressão de um sofrimento e manifestação psicopatológica com característica de comportamento dependente” (p. 207). Em relação à motivação, destacou-se a relação com a “fuga de problemas; psicopatologias, busca de atenção; desamparo; falta, ausência ou omissão dos pais e sensação provocada pelo próprio ato” ( Silva & Botti, 2018, p. 207).
Os fatores de risco estão relacionados à vivência de eventos traumáticos, perdas e lutos, como a morte de um dos pais, situações de violência, transtornos mentais, uso de álcool e outras drogas, negligência familiar e problemas nos contextos familiar, escolar e social ( Felipe et al., 2020; Macedo et al., 2020; Roque et al., 2021). Como resultado, há um maior risco para adolescentes que vivenciam relações familiares “inconsistentes e insensíveis” ( Macedo et al., 2020, p. 78). O bullying no ambiente escolar também contribui para episódios de autolesão durante a adolescência ( Costa et al., 2020). De maneira geral, problemas interpessoais, dificuldades emocionais e fatores biológicos, como insônia, fadiga, uso de substâncias psicoativas e estresse, estão associados a um maior risco de autolesão ( Macedo et al., 2020). Além disso, os comportamentos autolesivos estão diretamente relacionados a um aumento no risco de suicídio na adolescência ( Borschmann & Kinner, 2019).
Em relação aos fatores protetivos na adolescência, é importante destacar a existência de uma rede de cuidado que envolve a família, os pares, a escola e outros ambientes nos quais o adolescente transita. Nesse sentido, um ambiente acolhedor, que propicia trocas de afeto, amor, dedicação do tempo e atenção por parte dos familiares, educadores e relações de amizade, favorece a capacidade do adolescente lidar com sentimentos negativos sem recorrer a comportamentos de risco, tais como a autolesão (Costa et al., 2021).
Tendo em vista estes aspectos, o presente artigo visa compreender o fenômeno da autolesão na adolescência e de investigar a relação dos comportamentos autolesivos e o funcionamento familiar dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), a partir do estudo de um caso.
Metodologia
A pesquisa adotou o método de estudo clínico-qualitativo no campo da saúde, em busca de compreender as particularidades, o sentido, e interpretar os fenômenos vivenciados e sua representação pertinentes ao campo dos processos da saúde-doença ( Turato, 2013). Para isto, apresentamos um estudo de caso, de Carolina, adolescente de 16 anos e sua mãe. O caso foi indicado para a pesquisa através da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij) de um município no interior do estado do Paraná para compor uma pesquisa com adolescentes que apresentam autolesão e seus familiares, sem sinais de quadro psicótico, e segundo os critérios de inclusão: adolescentes, de 13 anos até 17 anos, matriculados e frequentando a escola regularmente; que apresentaram nos últimos dois anos episódios de autolesão (frequente ou esporádico) sem a intenção direta de morrer; inseridos em atendimento no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil pelo menos desde o ano de 2020 e que estejam em tratamento no serviço. Para a realização da pesquisa foi realizada, com cada participante, uma entrevista semiestruturada (Turato,2013), após isto, as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. No total, foram realizadas oito entrevistas, com quatro adolescentes e suas respectivas responsáveis, e aqui, apresentamos um caso dentre eles. Os dados qualitativos foram analisados a partir da análise das entrevistas, articulados aos conceitos teóricos da Psicanálise de Casal e de Família. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da [omitido], CAAE n°. Os participantes aceitaram participar da pesquisa, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e Discussão
Caso – Carolina
Carolina é uma adolescente de 16 anos. Foi encaminhada, em 2020, ao Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, com relato de tristeza, angústia, desânimo, perda de interesse em atividades antes prazerosas, ansiedade, dificuldade para dormir, pensamentos de morte e episódios de autolesão, como cortes nos braços e pernas. Ela mora com a mãe e o pai, e tem uma irmã mais velha, que é casada, primeira filha de sua mãe com um outro companheiro. Nas entrevistas, sobre a autolesão, referiu ter recorrido para “alívio de sua dor”, em suas falas mostrou-se recorrente tal explicação de “alívio”, “sentir no corpo a dor interna”, como se o corpo pudesse traduzir sua angústia e, assim, torná-la real.
Sobre a família, tanto a mãe quanto o pai não perceberam os cortes no corpo da filha. A mãe relata que passou a ter conhecimento dos cortes apenas quando Carolina e sua irmã mais velha lhe contaram, inclusive sobre o encaminhamento ao serviço. A adolescente relata constantes conflitos entre o casal. O pai costuma voltar para casa tarde da noite e faz uso de bebida alcoólica. Carolina frequenta o 2° ano do ensino médio e após o período escolar, permanece sozinha em casa, enquanto seus pais estão no trabalho. Ela teve dois namorados, e o namoro mais recente era marcado por conflitos e, segundo ela, havia provocações constantes e dúvidas dele acerca da fidelidade de Carolina, o que a fazia sentir “muita raiva”. Em relação ao pai, ela também menciona sentimentos de “raiva” e conflitos devido considerar que ele a envolve nas discussões do casal. Além dos episódios de autolesão, a adolescente aludiu condutas impulsivas e de risco, como furar o próprio corpo para colocar piercings no nariz, orelhas e sobrancelhas. Tanto nesses episódios como em relação à autolesão, referiu sensação prazerosa.
Carolina, mencionou que os episódios de autolesão estavam associados a sentimentos de “raiva” e “muita raiva”, disse:
Eu tinha muita raiva, e para mim, estava num [pausa]. Como que é palavra?[pausa] Para mim acabar não machucando outras pessoas ou falando xingando, acabava fazendo em mim. Só que no começo era ainda razoável, depois foi piorando […] Eu tipo, juntava muito, né? Tipo muita raiva, tipo, não era só eu derrubava uma coisa no chão e fiquei com raiva, eu vou me cortar. Não era! Era de tudo, sabe, de casa, de escola, de amigos, de familiar. Tudo juntava, então, não sei, tipo, explicar direito o motivo certo .
O recorte exposto corrobora com os pressupostos psicanalíticos sobre a relação entre o corpo e a expressão de sofrimento através dos cortes autoprovocados, entendendo tais atos como uma tentativa de apaziguamento do sofrimento psíquico que não foi possível colocar em palavras ( Cardoso; 2014; Fortes & Kother Macedo, 2017; Savietto; 2007). As autolesões podem ser entendidas como um dos recursos utilizados como forma defensiva frente a um excesso pulsional ( Savietto, 2007). Há um jogo simbólico na relação entre a dor física e o sofrimento psíquico, na qual o sujeito inflige ao corpo uma dor física a fim de marcar sua existência, isto é, “fazer-se um mal para obter menos mal” ( Fortes & Kother Macedo, 2017, p. 356). Ao mesmo tempo, constatou-se uma ausência de uma outra pessoa para falar sobre sua dor, revelando uma fragilidade da experiência da alteridade, visto que, o sofrimento psíquico necessita da relação com o outro para ser elaborado, alguém que possa legitimar, acolher e tornar real a experiência de dor. Diante dessa fragilidade na relação com o outro e na impossibilidade de construir um espaço de expressão pela fala, o corpo surge como um importante aparato para a expressão da dor e um lugar para direcionar seus investimentos pulsionais agonizantes, assim, “o ato contra si mesmo denuncia a rasura nos destinos dos investimentos psíquicos.” ( Fortes & Kother Macedo, 2017, p. 357).
Nesse sentido, o estado de desamparo representa o momento em que o ego vivencia intensa agonia devido às falhas ambientais e em completa dependência do outro, sem a possibilidade de simbolização. Assim, a adolescente comunica seu desamparo através dos cortes em seu corpo, convocando ser olhada e investida pelos seus pais, isto é, só é possível se sentir alguém em dependência e vinculada ao outro ( Riter, 2018). Ao encontro disso, a autolesão pode ser entendida como um registro em ato da falha de representação simbólica vivenciada pelo adolescente a partir de um desamparo familiar e falhas ambientais, onde se coloca no ato e corpo as vicissitudes de seu desamparo ( Santos, 2016). Na adolescência, ocorre uma atualização de traumas precoces vividos a partir de falhas ambientais durante o desenvolvimento do eu, isto é, o ato porta-se como uma tentativa de simbolização e um valor mensageiro ao ambiente, assim, “precisa ainda ser recolhido e contido pelo ambiente disponível e atento, metabolizado e devolvido, para que de fato assuma o estatuto de mensagem” ( Damous & Klautau, 2016, p. 110).
Observamos no relato de Carolina a motivação por trás desses comportamentos: “Para se distrair, sabe? Não ficar pensando muito em alguma coisa”. Neste sentido, podemos observar que a adolescente vivencia um sentimento de angústia, sentida como um excesso insuportável de tensão no corpo, e, na falta de uma via simbólica para elaboração desse mal-estar, o corpo possibilita saída para tal sofrimento ( Cardoso, 2014). Em outro ponto, Carolina diz sobre sua percepção de dor: “ Não sei explicar. Mas eu não sinto tipo de dor, eu não sinto. É como se eu estivesse furando um papelão”. O uso da palavra “papelão” para descrever seu próprio corpo revela o vazio desse corpo, quase como algo inanimado. Assim, podemos considerar que os cortes no corpo representam uma maneira de marcar e revelar as situações de violência vividas pela adolescente, tanto no contexto familiar como no social.
No caso de Carolina, observou-se uma falha do campo simbólico, porque o corpo “ papelão” fica destituído de subjetividade, com um esvaziamento do eu e uma dificuldade de percepção e apropriação de sua imagem corporal ( Savietto; Cardoso, 2006; Vilas Boas et al., 2019; Vilhena, 2015). Além disso, o termo “ papelão” remete a algo descartável, sem valor e de utilidade passageira, o que pode estar relacionado à percepção que Carolina tem de seu corpo e de sua imagem, tal percepção contribui para a compreensão do caráter repetitivo dos atos de autolesão ( Cardoso, 2014).
Isto porque, ao contrário das marcas corporais associadas aos rituais de passagem, as marcas corporais resultantes dos cortes são destituídas do simbólico ( Drieu et al., 2011, p. 10). “Trata-se, muitas vezes, de se despojar durante certo período das tensões que se lhes colam à pele, uma maneira de escapar à impotência a que se sentem entregues, às vezes por ataques diretos ao envoltório corporal, ou indiretos, ao se exporem a riscos.” ( Drieu et al., 2011, p. 10).
Em uma outra análise, podemos considerar o conceito de Eu-pele ( Anzieu, 1989), associamos paralelamente ao corporal, o familiar, o qual remete a um envoltório psíquico, um envelope narcísico, formado a partir das primeiras experiencias de satisfação e cuidado, que asseguram ao bebê sua sobrevivência e sua vida psíquica. Nesse sentido, o bebê, para se constituir como sujeito, precisa receber os cuidados físicos e um “banho de palavras”, pois isso faz com que ele possa diferenciar, progressivamente, um dentro e um fora, um interno e um externo e que permite a experiencia de um continente. Quando a mãe estabelece um contato significante, que interpreta as necessidades do bebê, cria-se um envelope de bem-estar, narcisicamente investido. No entanto, quando tal envelope não é estabelecido, diante da angústia não contida e das falhas da função continente do Eu-pele, o sujeito pode recorrer a dor física em uma tentativa de aliviar o sofrimento. Os cortes no corpo buscam reestabelecer uma contenção, ainda que seja um conteúdo mal contido, ele forma um invólucro de dor capaz de alimentar o sentimento de existir e garantir sua própria continuidade ( Anzieu, 1989).
Nesse sentido, Le Breton (2010) afirma: “A utilização do corpo em situação de sofrimento se impõe, para não morrer. Aquele que está em carne viva, no plano dos sentimentos […] Para recuperar o controle, ele tenta se machucar, mas para ter menos dor.” (p. 27). Assim, por este olhar, a autolesão têm função de fazer borda, um limite psíquico e dar contenção ao sofrimento que não pode ser simbolizado. As falhas nas funções continentes do Eu-pele familiar também podem ser percebidas em relação às dificuldades conjugais, ao uso de bebida alcoólica por parte do pai e, sobretudo, ao funcionamento familiar baseado no não-dito e na ausência de bordas e continência diante dos sofrimentos e angústias. Devido a isso, houve uma separação conjugal, mas os pais retomaram o casamento. A mãe culpabiliza o pai e seu afastamento, exigindo sua presença e participação na vida da filha. No entanto, ela mesma tem a mesma dificuldade, de aproximação e investimento narcísico na filha e nos vínculos estabelecidos.
No campo da família, nota-se, nos relatos, que a família não percebeu os cortes no corpo da adolescente e também outras situações em que a adolescente se coloca em risco. Tanto é assim que a jovem busca ajuda com a irmã em vez dos pais. O pai parece ser omisso em relação aos cuidados da adolescente ou está envolvido em conflitos com a mãe, conforme mencionado pela própria adolescente, dessa forma, o espaço vincular apresenta falhas na compreensão e elaboração dos conflitos familiares. Dessa maneira, a mãe encontra-se só para enfrentar os desafios e oferecer amparo aos sofrimentos da filha, e, com isso, os vínculos permanecem fragilizados diante do desamparo e da solidão dos pais para o enfrentamento das exigências impostas pela passagem da adolescência de Carolina. Além disso, a mãe disse: “ fazer tudo pela filha”; isso fica atrelado em sua fala sobretudo com relação a suprir os desejos de consumo da filha e a acompanhando ao tratamento, indicando que há pouca expressão afetiva no relacionamento familiar e dificuldade em frustrá-la.
É possível notar que o relato da mãe demonstra uma preocupação e um investimento me relação à Carolina, mas conforme apontamos anteriormente, ela encontra-se solitária na função da parentalidade, fragilizada e enfrentando conflitos conjugais e, possivelmente, devido a tais fatores, a adolescente expressa a dor do abandono e da raiva, cuja manifestação encontra apenas na forma de ações corporais, revelando a falta de uma expressão simbólica adequada para tais vivências e do apoio narcísico parental ( Drieu et al., 2011). Como sabemos, a fragilização simbólica possui efeitos na constituição psíquica. A ausência de sentido e significado resulta em uma desorganização psíquica. O psiquismo, diante de um excesso pulsional, não encontra ancoragem ou representações para a angústia, sendo lançado ao desamparo e à desorganização. Isso ocorre porque as instituições sociais, como a família, não encontram na cultura modelos identitários como referência ( Minerbo, 2013; Savietto, 2007).
Em função das narrativas produzidas pela adolescente e a mãe, podemos tomar a autolesão como expressão de uma dor interna, silenciosa, indizível e invisível: a angústia. Os significados atribuídos nas entrevistas, enfatizam a tentativa de amenizar a presença de uma dor psíquica considerada insuportável em ato, de forma que o corpo assume o lugar de descarga pulsional. Desse modo, a adolescente transforma a dor psíquica em dor física, a fim de aplacar a angústia e tornar essa dor real. Por essa questão, as marcas corporais se colocam como uma tentativa de simbolização e inscrevem no real o sofrimento, diante da dificuldade de internalização, sendo a pele o local de tal inscrição ( Le Breton, 2010; Savietto; Cardoso, 2006; Vilas Boas et al. 2019). Visto que, o corpo representa um importante mecanismo para nos relacionarmos com o mundo e com nossas pulsões, pois a partir do corpo que vivemos nossas experiências, que sentimos, que sofremos. Em especial, a passagem adolescente é marcada por um intenso trabalho psíquico, e o corpo desempenha um papel fundamental na expressão da adolescência ( Kother Macedo et al., 2009).
Nessa perspectiva, podemos compreender que a autolesão é uma ação que coloca em evidência, no real, um sofrimento psíquico, de modo que indica uma fragilização nos processos de constituição do eu e dos processos de simbolização, elegendo o corpo enquanto relevância para o que não pode ser nomeado e, por isso, passa a ser inscrito na pele, como uma tentativa de contenção do mal-estar que o invade (Cidade; Zornig; 2021; Kother Macedo et al., 2009; Savietto; Cardoso, 2006; ; Vilas Boas et al., 2019). Além disso, podemos pensar que os ataques ao corpo feitos pela adolescente revelam a presença de falhas na constituição psíquica, em especial da função continente do eu ( Anzieu, 1989) e da família ( Anzieu, 2000; Benghozi, 2010; Chaves et al., 2021; Correa, 2013; Roque et al., 2021 ; Santos, 2016; Tardivo et al., 2018). O ato de se cortar desvela o caráter excessivo e impetuoso das vicissitudes pulsionais carentes de simbolização. Logo, o adolescente necessita da função continente, fundamental à simbolização ( Anzieu, 1989; Benghozi, 2010).
Considerações finais
Diante do exposto, a autolesão é um fenômeno que contém em si a expressão do sofrimento psíquico, ocorre principalmente durante a adolescência, período marcado por intensas rupturas e processos de elaboração. Os comportamentos autolesivos podem ser um meio de enfrentamento de emoções diante de questões difíceis, como dificuldade de interação social, bullying, distanciamento do núcleo familiar ou amigos. É importante compreendê-los como um fenômeno e não como uma doença ou quadro nosológico.
Os resultados parciais indicam que a autolesão na adolescência remete a uma crise relativa à cultura, ao enfraquecimento dos rituais de passagem e a fragilização dos envoltórios psíquicos e de sustentação necessários para o desenvolvimento simbólico, associada à sociedade consumista atual. No tocante à relação pais-filhos, citamos o enfraquecimento das barreiras intergeracionais, fragilização dos limites e das interdições em paralelo a uma maior exigência de conquistas individuais em detrimento ao aumento dos investimentos narcísicos. A família funciona como matriz básica dos processos de subjetivação e se constitui no grupo que nos precede, oferecendo o espaço de transmissão geracional, estabelecendo os investimentos e o lugares de cada um no tecido grupal, cujas funções são a de compartilhar um espaço comum para a perpetuação da vida, acolhendo as mudanças, rupturas e perdas decorrentes do processo vital.
No caso de Carolina, a autolesão está relacionada a impedir o aniquilamento do Eu e comunicar as falhas ambientais vivenciadas, como sentimentos de menos valia, desamparo, medo de abandono pelas figuras parentais e sentimento de culpa. O corpo possibilita a expressão do sofrimento através dos cortes autoprovocados, entendendo esses atos como uma tentativa de apaziguamento do sofrimento psíquico que não pôde ser expresso em palavras.
Conclui-se, portanto, a necessidade de uma maior compreensão desse tema, necessidade de pesquisas futuras e a implementação de programas de cuidado e proteção para os jovens e seus familiares ( APA, 2014; Macedo et al., 2020; Tardivo et al., 2019).
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Autor notes
Nota do Autor: Endereço de correspondência: Rua Luís Lerco, 209, apartamento 1201 – Torre 3 – Terra Bonita – Londrina, Paraná. CEP Telefone: +55 4499171.9095 E-mail: maysa.reis@unesp.br.