Resenhas de Livros
A comunicação esférica de Peter Sloterdijk
Peter Sloterdijk’s spherical communication
A comunicação esférica de Peter Sloterdijk
Matrizes, vol. 12, núm. 2, pp. 311-316, 2018
Universidade de São Paulo
| . Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016. 576 p. Spheres II: globes. Los Angeles: Semiotext(e), 2014. 1019 p. Esferas III: espumas. Madrid: Ediciones Siruela, 2006. 715 p. |
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Recepção: 04 Julho 2017
Aprovação: 19 Dezembro 2017
Resumo: Em Esferas o filósofo alemão Peter Sloterdijk elege o espaço vital humano como categoria antropológica essencial. Somente nos tornamos humanos, segundo a obra, ao nos agruparmos dentro das formas esféricas – simbólicas e concretas – por nós edificadas como forma de imunização, conforto e proteção contra o exterior. A trilogia, formada pelos volumes Bolhas, Globos e Espumas, dialoga com as comunicações ao propor metáforas morfológicas para descrever os espaços comunicativos. A obra oferece ferramentas para interpretar fenômenos comunicacionais contemporâneos ao passo em que nos aproxima, de forma poética e ensaística, da complexidade da condição humana.
Palavras-chave: Metáfora, esferologia, história da linguagem, morfologia, ensaio.
Abstract: In Spheres, the German philosopher Peter Sloterdijk elects the human vital space as an essential anthropological category. As per his work, we only become humans when sheltering under self-created spherical forms – both symbolic and concrete – able to provide immunization, comfort and protection against the exterior. The trilogy, formed by the volumes Bubbles, Globes and Foams, dialogues with the communication field by proposing morphological metaphors to describe the communication spaces. The work offers tools to interpret contemporary phenomena of communication as well as a poetical and essay-like approach to the complexity of the human condition.
Keywords: Metaphor, spherology, history of language, morphology, essay.
A TRILOGIA ESFERAS, do alemão Peter Sloterdijk, é obra ousada. Procura, em suas mais de 2.500 páginas, narrar a história do Homo que constrói e se abriga em formas esféricas – metafóricas e concretas – para tornar-se sapiens. Para o filósofo, as esferas que acompanham e possibilitam a existência humana possuem propriedades topológicas, antropológicas, imunológicas e semióticas, e têm como finalidade primordial proteger, nutrir, capacitar e imunizar o sapiens ante o exterior desconhecido.
A ousadia da empreitada está, primeiramente, em sua abrangência: toda a criação humana, dos primórdios da hominização à contemporaneidade, tem origem e reflete a condição esférica. Religião, ciência, cultura, organizações sociais e políticas, modos e costumes, arquitetura, arte e mídia são esferas criadas pelos homens para abrigar a si próprios. Da mesma forma, a morfologia celular, o desenvolvimento intrauterino, o espaço entre mãe e filho durante a lactação, os pares sexuais e o cosmos são, também, esferas acolhedoras.
Ex-reitor da Escola Superior de Design de Karlsruhe, Alemanha, Sloterdijk é conhecido pela transdisciplinaridade de sua obra, que se equilibra sobre o tripé filosofia, ciência e arte. O caráter relacional de seu pensamento – para o qual o ser só existe em relação com sua técnica, seus artefatos e nas habitações que para si constrói – vai ao encontro de outros autores contemporâneos cujas reflexões vêm sendo agrupadas dentro do conceito filosófico de pós-humanismo.
Outra marca da obra do alemão é sua contundência, expressa na ousadia dos recortes temático-temporais em Esferas (que, para o bem e para o mal, revela pretensões de tratado cosmológico) e na aparente naturalidade com que o autor – pelo menos desde Regras para o parque humano (2000) – coloca-se em atrito com pensadores como Platão, Nietzsche, Heidegger e Habermas. No volume 1 de Esferas, denominado Bolhas, uma digressão intitulada “A partir de que ponto Lacan se engana” mostra a facilidade com a qual o autor diverge diretamente de seus interlocutores.
De toda forma, Esferas traz ao nosso campo uma abrangente compreensão das condições de surgimento, dos usos e das mutações da linguagem humana, entendida como dispositivo central formador de nosso habitat cognitivo. Na obra, a coevolução entre meio e sistema, natureza e cultura, revela uma disposição para aproximar-se da linguagem humana por meio de suas formas e aparências. Não à toa, fazem parte do tratado mais de uma centena de imagens que, diferente do que costumamos ver na tradição epistemológica ocidental, não apenas ilustram conceitos verbais, mas dão corpo aos próprios conceitos filosóficos apresentados.
Dividida nos volumes Bolhas, Globos e Espumas, a trilogia foi publicada originalmente em alemão, entre 1998 e 2004, e posteriormente em espanhol e inglês. A versão em português do primeiro tomo, Bolhas, saiu em 2017, com tradução de José Oscar de Almeida Marques. Na obra, as esferas são apresentadas como metáforas morfológicas da existência humana em sua história ocidental. Ao ater-se aos tempos históricos apresentados em cada tomo, aventa-se a sugestão de uma cronologia sequencial de caráter histórico-evolutivo que se inicia nas Bolhas, passa aos Globos e chega, por fim, às Espumas.
As Bolhas remetem às estruturas de proteção criadas durante o processo de hominização. Os agrupamentos originais surgem como rígidas comunidades de culto, esforço, intimidade e inspiração. Voltam-se para dentro para inventar deuses e costumes, dando as costas ao exterior, reconhecido como ameaça. A arquitetura tribal é – como a roda em torno da fogueira – centrípeta. A subjetividade e a consciência são coletivas e a noção de horda prevalece. A ideia de indivíduo inexiste de forma radical: no limite, não se sabe ao certo se o rosto que se vê à luz da fogueira é o próprio ou o do outro.
O outro é, de fato, central na trilogia. Contrário ao senso comum, Sloterdijk estabelece as Bolhas como o conjunto primário, mas que se forma aos pares. Atualiza, portanto, a mônada, substância indivisível da filosofia leibniziana, substituindo-a pela díade. A díade (dupla ou par) aparece – simbólica, mágica e fisiologicamente – em uma série de temas da vida nas Bolhas: o coração, órgão que fisiologicamente sustenta a vida de si e, conceitualmente, projeta o amor no outro; a intimidade entre os rostos dos amantes; a coexistência entre consciência e estados hipnóticos; a maternidade; a placenta como companhia fetal; os acompanhantes inseparáveis física (siameses) e conceitualmente (gêmeos e anjos da guarda); e os espaços ressonantes da vida intrauterina, criados pela voz materna ou por suas duplicações (messias, xamãs, evangelistas). A alteridade é, portanto, premissa da identidade.
Assim, ser-aí – conceito heideggeriano central na trilogia e que evoca a presença no mundo como condição necessária à existência – é transformado em ser-juntos.Essa noção de coexistência precedendo a existência permite uma abordagem multiperspectivista que, em sua visão relacional, aproxima-se do campo das comunicações.
O momento histórico das Bolhas sofre sua primeira desestabilização durante o Neolítico, com o sedentarismo advindo da agricultura. O crescimento populacional e das trocas comerciais leva à constante incorporação do exterior, à esfera de intimidade e imunização humanas. O enraizamento e a adesão ao território são o embrião da noção de propriedade, que enfraquece a consciência coletiva que os bandos outrora possuíam. Inicia-se, assim, a expansão esférica das Bolhas.
A globalização – conjunto de processos que para muitos autores se inicia no século XX – tem, para Sloterdijk, dois marcos inaugurais apartados por mais de um milênio: o pensamento grego de Euclides e Pitágoras, que mescla ontologia e geometria para dar forma ao mundo; e as expansões marítimas iniciadas no século XV. Ambos fazem parte da expansão das Bolhas para formas aglutinadoras e expansivas, imperialistas e hegemônicas, típicas da Modernidade. Nos Globos, o antagônico e o contraditório dão o passo da expansão: o nascimento da ideia de arte, mas também o cientificismo; o colonialismo e também o Iluminismo; a tradição e o exotismo; a expansão marítima, mas também a concentração urbana; o telescópio e o microscópio; a reforma católica, o agnosticismo e o anúncio da morte de Deus; a pintura Impressionista e a projeção de Mercator; a psicanálise e as mídias de massa; a subjetividade e a multidão.
A globalização, em Esferas, é o conjunto de processos que torna íntimo o distante, engloba, ao expandir seu interior, a estranheza exterior. O que antes foi imundo torna-se agora mundo. Porém, sendo uma das funções primordiais das esferas o acolhimento de seus habitantes, Globos começam, ao expandirem-se, a perder seu caráter protetor e íntimo. Destituído da tranquilizadora sensação, típica das Bolhas, de habitar o íntimo centro da esfera, o ser moderno encontra-se instável, vagando pelos incontáveis epicentros globais.
O limite dessa expansão antecede o colapso do totalitarismo global que inaugura as Espumas, o momento esférico pós-moderno. Espumas são caracterizadas por isolamentos conectados, sobreposição, pluralidade, fusão e movimento. Seguindo a disposição metafórica, Espumas surgem na contemporaneidade sob forma de microclimas (ar-condicionado, estufas, equipamentos de mergulho), arquitetura (apartamentos e sistemas de coworking), domínio dos ares (drones, satélites, estações espaciais), mídia (redes sociais, celulares, entretenimento digital personalizado) e, por fim, (des)construções sociais (efemeridades, nomadismos, hibridações) e semiológicas (o culto ao self, a pós-verdade e o fim das vanguardas artísticas). Nas Espumas, o ser-aí dá lugar ao atopismo multifocal, multiperspectivista e heterárquico.
Se, em Esferas,"o mistério da vida não pode separar-se do mistério da forma"1 (Sloterdijk, 2006: 47, tradução minha), podemos ater-nos ao formato dual das esferas para propor chaves de leitura interessantes para os estudos das comunicações. Se o ser-aí é invariavelmente ser-juntos, não há ato ou espaço possível que não seja ato ou espaço comunicacional. Essa abordagem ontológica relacional e espacial, ao prescindir dos meios como entidades intersticiais, reforça a inclinação – presente há algumas décadas nos estudos de comunicação latino-americanos – de voltar-se às mediações das subjetividades em detrimento dos meios e das análises midiáticas.
O ser-juntos fala não apenas da essência coletiva do ser humano, mas também da determinante relação deste com sua técnica: não somos humanos que possuem técnica, somos humanos exatamente ao possuí-la. Assim, o ser-juntos diz respeito não apenas aos humanos, mas também às relações destes com os mundos que produzem. Não há separação possível entre ser e objetos, artefatos e conceitos que sua cultura é capaz de criar. Essa abordagem mostra-se oportuna pois reflete a adoção de tecnologias que resultam nas formas híbridas da vida contemporânea: o híbrido corporal, junção de biologia e máquina, que potencializa a existência, mas levanta questões éticas e morais; o cognitivo, que mescla linguagens e inteligências humanas e computacionais; e o comunicativo, misto de analógico e digital, que gera atopismos e multitemporalidades.
O híbrido comunicacional produz efeitos hoje largamente discutidos não apenas na academia, mas também na mídia e na sociedade em geral. O fato de o espaço comunicacional – antes marcado por lugar e tempo único, definido e compartilhado – ter, usando uma expressão sloterdijkiana, perdido seu poder unificante (2006: 1. 3567) gera consequências latentes. Trata-se da transição entre um sistema político-comunicacional pautado por centro e periferia delimitados e estáveis, e por emissores e receptores definidos – típicos de Globos – para um novo, no qual todos emitem e recebem, ocupando momentaneamente centros e periferias conforme transitam entre contextos plurais, em movimentos líquidos e erosivos.
A implosão da antiga política comunicacional e a resultante nova arquitetura rizomática das Espumas é metáfora que ajuda a entender diversos fenômenos atuais: a pós-verdade e as fake news, a multipolarização e a radicalização nas esferas culturais e políticas, as disputas por lugares de fala e a atual epidemia de egolatria nas redes. Se o propósito fundamental das esferas é imunizar, o compartilhar coletivo de uma grande e sólida redoma global produz não apenas segurança contra o exterior, mas também solidariedade e empatia entre seus coabitantes. Por outro lado, habitar o interior das frágeis esferas das Espumas pode revelar-se experiência conflituosa: suas paredes finas expõem seus habitantes aos riscos do desconhecido tanto quanto seu tamanho reduzido induz a certeza de ocuparmos o centro do espaço vital. Aumenta-se, consequentemente, uma nociva combinação entre medos constantes e certezas absolutas.
É, por fim, na possibilidade de abordar a trilogia de forma multilinear, enfatizada pelo próprio autor (Espumas, são, afinal, um conjunto infinito de Bolhas), que reside o grande potencial da obra. À parte dos períodos históricos que são capazes de demarcar, as três formas esféricas coexistem e indicam a complexidade da condição humana, em sociedades e em indivíduos. Bolhas, Espumas . Globos estão presentes em comunidades orais isoladas e megalópoles pós-modernas tanto quanto na incessante produção diária de novos humanos e de suas identidades, em um caldeirão de filogenia, ontogenia e contexto sociocultural em constante ebulição. Não à toa, Sloterdijk abre Esferas com a imagem de um garoto que, de frente para a janela, insufla bolhas de sabão e as contempla dançando pelos ares…
REFERÊNCIAS
HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo. Tradução José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
_______. Esferas I: burbujas. Madrid: Ediciones Siruela, 2003.
_______. Esferas III: espumas. Madrid: Ediciones Siruela, 2006.
_______. Spheres II: globes. Los Angeles: Semiotext(e), 2014.
_______. Esferas I: bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
Notas
Autor notes