Entrevista

Carlos A. Scolari: ecologia dos meios de comunicação, alfabetização transmídia e redesign das interfaces

Carlos A. Scolari: Media ecology, transmedia literacy, and redesign of interfaces

Carlos A. Scolari a
Universitat Pompeu Fabra, España
Fernanda Pires de Sá b
Universitat Pompeu Fabra, España

Carlos A. Scolari: ecologia dos meios de comunicação, alfabetização transmídia e redesign das interfaces

Matrizes, vol. 12, núm. 3, pp. 129-139, 2018

Universidade de São Paulo

HÁ SETE ANOS, o professor Carlos A. Scolari, da Universidade Pompeu Fabra – Barcelona, concedeu uma entrevista para a revista MATRIZes. Naquela época, o foco da entrevista foi direcionado às narrativas transmídia (transmedia storytelling) e aos meios digitais interativos a partir de uma perspectiva semiótica. No período de tempo entre esta entrevista e a anterior, a ecologia dos meios de comunicação evoluiu de forma acelerada. Através da crescente plataformização das nossas sociedades (Van Dijck; Poell; De Waal, 2018), dados são constantemente gerados e muitas vezes podem colocar nossa privacidade em risco e criar ansiedade (Pink; Lanzeni; Horst, 2018). Com isso, surge a necessidade de promover uma educação midiática para aprender a se deslocar dentro do contexto social, político, cultural e educativo no qual estamos vivendo.

Desde a entrevista concedida em 2011, Carlos Scolari publicou uma grande variedade de artigos em revistas internacionais e mais de quinze livros nos quais analisa a ecologia dos meios de comunicação, as interfaces e a alfabetização transmídia. Além disso, Carlos A. Scolari foi pesquisador principal de projetos financiados pelo programa Horizon 2020 da União Europeia e pelo Ministério de Economia e Competitividade do governo espanhol. Ambos os projetos abordaram os processos de ensino-aprendizagem transmídia em ambientes informais, utilizando metodologias de abordagem etnográfica (virtual e presencial). O projeto Transmedia Literacy envolveu oito países, enquanto o Transalfabetismos foi realizado em cinco comunidades autônomas espanholas, o que corresponderia no Brasil a cinco estados federativos.

Nesta nova entrevista concedida para a revista MATRIZes em Barcelona, Carlos A. Scolari responde perguntas sobre os projetos de alfabetização transmídia dentro dessa nova ecologia comunicativa e sobre interfaces, tema do seu último livro.

MATRIZes: No Brasil você é muito conhecido por temas relacionados às narrativas transmídia, mas ao longo desses últimos anos você tem trabalhado com outros temas, como o alfabetismo transmídia (transmedia literacy) nos dois projetos de pesquisa que liderou: Transmedia Literacy e Transalfabetismos. Pode nos descrever como foi o processo que levou você e sua equipe das narrativas transmídia até à alfabetização transmídia?

Carlos A. Scolari: Levando em conta que transmídia é um adjetivo que pode se acoplar a diferentes processos e práticas (se fala de narrativa transmídia, jornalismo transmídia, documentário transmídia etc.), a primeira reflexão foi: como deveria ser um processo educativo transmídia? Este cruzamento entre a lógica transmídia e as práticas educativas levou-nos a desenvolver outros conceitos e a nos interessar por outros tipos de processos. Em primeiro lugar, desenvolvemos o conceito de transmedia literacy (alfabetização transmídia) para fazer referência a um conjunto de habilidades e competências desenvolvidas em um âmbito informal, nas chamadas culturas colaborativas. Entre as capacidades transmediáticas podemos mencionar a capacidade de retocar uma foto no Instagram até a de superar um nível (fase) no videogame, administrar a própria identidade nas redes sociais ou escrever e compartilhar uma fanfiction. Por outro lado, nos interessava saber como se adquirem essas competências. Evidentemente, nas escolas não se ensina a jogar videogame ou a fazer um meme… Dessas primeiras reflexões nasceram ambos os projetos. As perguntas de pesquisa que fizemos foram: o que estão fazendo os jovens com os meios de comunicação? Como aprenderam a fazer essas coisas? Depois de três anos de investigação, geramos um mapa com 44 capacidades transmediáticas de primeiro nível e 190 de segundo nível. Também identificamos as principais estratégias de aprendizagem informal que os adolescentes utilizam (learning by doing, learning by playing, learning by teaching etc.). Além dos resultados dessa pesquisa, também queríamos contribuir para uma mudança educativa. Nesse sentido, criamos um kit do professor com mais de oitenta atividades didáticas para que os docentes pudessem explorar dentro da sala de aula essas competências desenvolvidas pelos jovens em ambientes informais.

MATRIZes: No que se diferencia a alfabetização transmídia de outros tipos de aprendizagem midiática?

Scolari: A grande diferença entre transmedia literacy e as outras concepções tradicionais de media literacy é a seguinte: nós não interpelamos os sujeitos (neste caso, os jovens) nem como ignorantes (analfabetos) nem como vítimas das new media. Interpelamo-los como prossumidores, sujeitos que, em maior ou menor medida, produzem ou contribuem para os conteúdos de mídia circularem nas redes sociais. Obviamente há jovens que possuem diversas capacidades transmediáticas e outros, muito poucas. Ou seja, não existem nativos digitais, o que realmente existe é uma topografia bem variada e distribuída de forma bastante irregular na qual essas competências estão dispostas. Por meio do kit do professor, nos comprometemos a democratizar e socializar essas competências dentro da sala de aula. Em breve, tratamos de passar do âmbito informal ao formal, recuperando e aproveitando dentro das escolas esses saberes desenvolvidos de maneira quase selvagem nas redes sociais e em ambientes colaborativos digitais. Isso não significa que se deva abandonar as formas tradicionais de media literacy. A transmedia literacy complementa e expande com novas práticas e concepções.

MATRIZes: Como trabalhou com a alfabetização transmídia nos seus projetos recentes de pesquisa? Foram levados em consideração os aspectos de segurança na internet? Foi possível trabalhar com o recente fenômeno das fake news?

Scolari: Entre as capacidades transmediáticas existe um conjunto vinculado ao risco e à prevenção. Outros tipos de competências também estão distribuídas de forma irregular, ou seja, nem todos os jovens eram conscientes da sua existência. Por exemplo, pode acontecer de uma adolescente não ser muito consciente dos riscos implicados no uso das redes sociais, mas que tenha ótimas competências no nível de manipulação de imagens. Por outro lado, podemos nos deparar com um jovem muito consciente dos riscos acarretados na difusão de informação, mas que não domina bem a produção de conteúdos em formato de vídeo… Em relação ao tema das fake news, ele foi incorporado em algumas das atividades didáticas que fazem parte do kit do professor. No nosso canal do YouTube temos um vídeo (https://www.bit.ly/2rHJMjk) muito interessante, realizado em Portugal, no qual se apresenta uma atividade didática e um debate muito interessante entre os alunos sobre as fake news.

MATRIZes: Diante dessa nova ecologia dos meios de comunicação, quais são as competências que você considera mais relevantes no contexto atual?

Scolari: Como disse antes, não nos interessava conhecer o nível médio da alfabetização digital ou midiática dos adolescentes; o que queríamos era construir um mapa de competências o mais completo possível. Até agora, um dos trabalhos de referência tinha sido desenvolvido por Henry Jenkins em 2006 e nele se identificou umas dez competências. Nosso mapa ampliou e especificou muito mais essa investigação, a qual nos serviu de inspiração. É muito difícil dizer quais são as mais relevantes, tudo depende do papel que assumem os sujeitos nas redes sociais e nos novos contextos de socialização: se é um papel muito ativo – penso nos jovens que administram canais de vídeo no YouTube, escrevem fanfiction no Wattpad ou são muito ativos no Instagram. Seguramente, as competências relativas à produção ou gestão de conteúdos são muito importantes. Quanto às competências vinculadas ao risco e prevenção, deveriam ser mais difundidas, dado que afetam a todos os usuários, inclusive os que não geram conteúdos e apenas se limitam a consumi-los e reproduzi-los.

MATRIZes: No livro branco do projeto Transmedia Literacy com o título, Literacia Transmedia na Nova Ecologia Mediática (Scolari, 2018a), você afirma que nas duas últimas décadas as instituições educativas têm realizado grandes esforços para se adaptar às mudanças sócio-tecnológicas. Contudo, percebe-se que as práticas dos jovens relacionadas com tecnologia e com os meios digitais ocupam uma posição muito marginalizada dentro dos processos educativos. Com base na sua experiência, o que você acredita que poderia ser feito para reduzir a brecha entre as práticas tecnomidiáticas dos jovens em espaços formais e informais?

Scolari: É preciso deixar de estigmatizar essas práticas e parar de considerá-las uma perda de tempo. Nas novas plataformas, desde os videogames até as redes sociais, os jovens estão aprendendo a fazer muitas coisas. Em vez de proibir o seu uso, penso que os dispositivos móveis deveriam fazer parte dos processos educativos. A escola é muito resistente à tecnologia… Mas as salas de aula sempre estiveram cheias de tecnologias, desde o livro até a lousa ou os mapas! Diante da chegada das novas tecnologias, a escola sempre se fecha e demora muito tempo em adotá-las. Aconteceu o mesmo com o vídeo, com a calculadora e agora está acontecendo com as redes digitais e os aparelhos móveis. Mas uma coisa é certa, é ilusório pensar que os problemas da educação se solucionam simplesmente introduzindo novas tecnologias dentro da sala de aula. Como dizia Paulo Freire, o que é preciso mudar são as relações entre os atores envolvidos nos processos educativos, passar do monólogo ao diálogo. Acredito que algumas tecnologias digitais, bem utilizadas, podem facilitar esse diálogo. Mas também podem terminar reproduzindo a mesma educação clássica quadrada e autoritária que Freire criticava.

MATRIZes: No ano passado, no seu blog Hipermediaciones.com, você escreveu sobre a apresentação “Transmedia is dead. Long live transmedia!” feita na Transmedia Earth Conference: global convergence cultures, realizada em Medellín (Colômbia). Nessa publicação, você refletia sobre o fato de o termo transmídia estar sendo cada vez mais utilizado, muitas vezes de forma inadequada…

Scolari: Os conceitos possuem um ciclo vital. Nos anos 1990, com a revolução digital, popularizaram-se muitos conceitos como hipertexto, realidade virtual ou multimídia. Vejamos o caso de multimídia. No princípio dessa década, soava como um conceito muito moderno e cool; muito poucas empresas produziam comunicação multimídia e era um fator diferencial no mercado profissional. Já olhando para o ano 2000, quase todas as empresas ofereciam multimídia aos seus clientes e o conceito começava a soar como algo antigo… É muito provável que o conceito transmídia percorra um caminho similar no mundo profissional, embora algumas empresas pioneiras já tenham começado nesses anos a se diferenciar produzindo comunicação transmídia. Dentro de pouco tempo, temo que todas as empresas e profissionais acabem oferecendo o mesmo… E um novo conceito chegará ao mundo profissional. Nesse momento, se dará por subentendido que todas as produções serão transmídia, ou seja, contarão um relato em muitos meios e plataformas com a cumplicidade dos usuários. No âmbito acadêmico o ciclo vital é mais lento. Ainda que existam modas teóricas, o conceito de transmídia seguirá sendo utilizado e não descarto que dentro de quarenta ou cinquenta anos ainda existam teses de doutorado que investiguem as formas de comunicação transmídia.

MATRIZes: Nessa mesma publicação você também chama a atenção sobre uma problemática: grande parte dos comunicadores, tanto do âmbito acadêmico como do profissional, estão formados de maneira monomidiática, dificultando a realização de projetos de grande inovação que sejam realmente transmídia (Scolari, 2017).

Scolari: Nas faculdades de comunicação existem cursos de redação, de rádio ou vídeo, mas, em muitos casos, eles não confluem, são isolados uns dos outros. O ideal seria criar espaços de integração – que poderiam se denominar workshops de comunicação transmídia – nos quais todos esses conhecimentos e experiências confluíssem em uma única estratégia. Na Universidade Pompeu Fabra temos um workshop integrado de jornalismo em que se planeja uma redação integrada, na qual os estudantes geram conteúdos para diferentes meios e plataformas. De certa forma, funcionam como uma oficina de comunicação transmídia. Por outro lado, também é necessário aprender a mobilizar os usuários e administrar conteúdos. Não basta abrir uma página no Facebook: um comunicador deve saber desenhar uma estratégia, promover a participação, gerenciar a comunidade e avaliar os resultados. Para levar adiante todos esses processos é necessário dominar um amplo espectro de competências; obviamente, em projetos de grande envergadura todos esses aspectos são de responsabilidade de vários profissionais. Nesse caso, o comunicador deveria saber coordená-los para funcionarem da melhor maneira possível.

MATRIZes: No seu último livro, Las leyes de la interfaz, você utiliza uma analogia com as leis das ciências naturais para falar de fenômenos tecnossociais que vêm ocorrendo graças à evolução da tecnologia e dos seus usos. O livro se organiza a partir de dez leis da interface. Chamou-me a atenção a nona lei: “O design e uso de uma interface são práticas políticas”, na qual você afirma que os partidos políticos, os mercados e sindicatos são interfaces, e que suas interfaces deveriam ser redesenhadas, incluindo a escola e a universidade (Scolari, 2018b: 139). Você pode nos falar sobre essas interfaces e de como redesenhá-las, particularmente as educativas e políticas?

Scolari: Este livro é, de certa maneira, a continuação de outro que publiquei em 2004: Hacer Clic. Se nesse primeiro volume analisava as interações digitais a partir de uma perspectiva micro na qual se cruzavam a semiótica e as ciências cognitivas, no Las leyes de la interfaz proponho uma visão macro inspirada em autores como Bruno Latour, Kevin Kelly, Stuart Kauffman, Brian Arthur, Marshall McLuhan ou George Basalla. Todos eles se interessaram pela evolução tecnológica e as mutações nos processos de design, produção e uso de aparelhos tecnológicos. A minha intenção neste volume é ir muito mais além da clássica interface do usuário e levar o conceito para outro patamar. Se a interface, como defendo, é uma “rede de atores tecnológicos e humanos – individuais e institucionais – que interatuam e mantêm relações”, então podemos considerar a escola, a universidade, os sindicatos, os mercados, a gastronomia ou os partidos políticos como interfaces. Elas estão em crise em quase todas as sociedades, basta pensar na escola ou nos partidos políticos… Ambos os casos, tratam-se de interfaces criadas durante a Modernidade, tanto a escola pública como a democracia representativa provêm do século XVIII. Sob a minha perspectiva, estas interfaces estão defasadas; foram criadas para uma sociedade industrial que está em vias de extinção. Ou seja, necessitamos redesenhar as interfaces educativas e políticas. Como se redesenha uma interface? Em primeiro lugar, deveriam ser analisados os atores que as compõem e mapear quem são e as suas relações. A partir daí o processo consiste em introduzir mudanças nos atores, substituição, inclusão de novos etc., e nas relações. Assim funciona a inovação na rede sociotécnica: a partir de tentativa/erro. Trata-se de pensar novos modelos políticos ou educativos a nível micro e, se funcionarem, escalá-los e levá-los a um nível macro. Em qualquer um dos dois casos está claro não bastar a introdução de uma nova tecnologia para mudar uma interface política ou educativa. Ou seja, não basta adotar o voto eletrônico ou um laptop dentro da sala de aula para mudar a interface. A tecnologia é apenas um ator a mais! É necessário ter uma visão global da interface, incluindo todos os atores e suas respetivas relações, e trabalhar para obter um resultado.

MATRIZes: Ao falar de interfaces, o tema de transparência se torna essencial, tanto em termos de design quanto em experiência de usabilidade. Na segunda lei, “As interfaces não são transparentes”, você sustenta que os designers perseguem o ideal de fazer interfaces completamente transparentes. Por outro lado, você explica o fato de por trás dessa aparente transparência se ocultarem os processos e operações de uma máquina. Sabemos que as grandes corporações por trás do conceito de transparência escondem processos algorítmicos e de extração de dados dos usuários (Araújo; Pires de Sá, 2016; Bucher, 2012) criando uma caixa preta (black box) (Pasquale, 2015). Você pode nos dizer algo mais a respeito dessa tensão entre transparência e opacidade no desenvolvimento e uso das interfaces?

Scolari: A transparência das interfaces foi o grande tema da minha tese de doutorado e do livro Hacer Clic (2004). Jeff Han apresentou em 2006, em uma conferência TED, a revolucionária interface multitouch (que alguns anos mais tarde encontraríamos em todos os aparelhos móveis). Em um momento, explica ao público que “a interface desapareceu, é transparente”. Essa transparência não é mais que um efeito de sentido: as interfaces, como as linguagens, nunca são transparentes! Essa interação fluída e natural não é outra coisa senão o resultado de um conjunto de dispositivos, algoritmos e sensores que terminam gerando um efeito de transparência. Se levarmos esta lógica um pouco mais além, as redes sociais mais populares simplificaram muito as interações até converterem-se em quase transparentes enquanto extraem e processam milhares de dados pessoais. Ou seja, o que parece transparente em realidade não é outra coisa senão um dispositivo muito opaco, máquinas extrativas de informação pessoal e social alimentando o modelo de negócios de um punhado de corporações.

MATRIZes: A sétima lei, “Se uma interface não pode fazer algo, simulará”, nos dá exemplos de como variadas interfaces imitaram outras em determinados momentos históricos, como é o caso da televisão e o cinema, a World Wide Web e a televisão e agora a televisão imitando as lógicas das plataformas de redes sociais. No entanto, vemos interfaces imitarem as notícias de forma falsa (fake news) e influenciarem a maneira como os jovens se informam (Marchi, 2012) nos processos políticos e até em questões de saúde pública. Também vemos chatbots em redes sociais, fruto do trabalho de designers e engenheiros que trabalham com inteligência artificial, chegando a se comportar de forma a imitar o pior do ser humano, como foi o caso de um chatbot desenvolvido pela Microsoft chamado Tay (Vincent, 2016) que, ao passar de algumas horas, começou a postar tweets racistas e misóginos. Como você acha que poderíamos lutar de maneira eficaz para interfaces como estas não serem vistas como um modelo a ser seguido e para evitar sua consolidação como espaços legítimos de interação?

Scolari: Devemos aprender que, ao nos movermos neste novo ecossistema midiático, os fenômenos mencionados não são outra coisa senão uma primeira onda de um conjunto de tecnologias que já está entrando no mercado, desde a inteligência artificial até a internet das coisas ou as interfaces vocais. Neste sentido, a (trans)media literacy segue sendo central: devemos incluir em todos os níveis da educação, espaços destinados à formação em meios e com os meios. A melhor forma de operar não é proibindo o uso desses aparelhos, ao contrário, devemos aprender com seu funcionamento, os riscos e as vantagens.

MATRIZes: Atualmente, não podemos negar que as interfaces formam um ecossistema (terceira lei do seu livro) e que vemos isso todos os dias nos nossos aparelhos móveis, nos aplicativos e nas redes sociais, as quais dialogam entre si e até se reinventam pela interação com outras interfaces e com o uso feito pela sociedade. Nesse cenário, vemos alguns nomes de grandes corporações estadunidenses que fazem parte do nosso dia a dia, desde o Facebook até Google, Apple, Amazon ou Microsoft. Como você vê o papel das corporações orientais, como as chinesas Huawei, Xiaomi, ou a empresa coreana Samsung, nesse ecossistema?

Scolari: Há poucas semanas, tive a sorte de ser convidado pela empresa Huawei para visitar a cidade de Shenzhen. Há três décadas essa cidade era um pequeno povoado de pescadores. Hoje, Shenzhen tem quase 15 milhões de habitantes, é considerada o Vale do Silício da China e atrai milhares de profissionais provenientes de todas as regiões do país e do restante do mundo. Como eu escrevi no meu blog, não é necessário ser um expert em economia global ou história das civilizações para descobrir queo eixo do nosso planeta está se movendo de Oeste para Leste. A hegemonia do pensamento ocidental, sua primazia tecnológica e a expansão do capitalismo europeu desde o século XV marcaram o ritmo das mudanças mundiais.Agora isso está acabando.Na segunda metade do século XX, um processo teve início, o que está levando ao deslocamento atual do Ocidente para o Oriente; enquanto a China começava a sair do seu fechamento, o Japão lambia as suas feridas da guerra e a Índia lidava com a sua independência.

Considero que, mais que nas novas hegemonias nacionais ou corporativas, talvez se devesse prestar maior atenção nos novos núcleos urbanos (Singapura, Gurgaon, Hong Kong, Shangai, Shenzhen, Beijing, Guangzhou, etc.). É aí, nessas megalópoles que crescem a ritmos extremamente acelerados, que o turbocapitalismo encontra sua mais clara expressão. Através de suas empresas e universidades, talentos de todo o mundo são atraídos e geram infraestruturas muito sofisticadas, capazes de gerenciar fluxos de capitais, dados, bens e pessoas. Já a respeito das grandes corporações que você menciona no caso específico das empresas chinesas, existem várias vantagens comparativas. Por um lado, a distância entre a unidade de gestão e a de produção é inexistente. Por outro, essas empresas estão situadas no maior mercado interno do mundo. A indústria chinesa, até pouco tempo, era caracterizada por reproduzir produtos projetados na Califórnia, mas agora essa imagem, a de uma “copycat nation” (nação da cópia), é parte do passado. Muitas empresas souberam mudar from imitation to innovation (da imitação para a inovação) e hoje se encontram na vanguarda de tecnologias como o 5G, a inteligência artificial ou a internet das coisas. Obviamente, todas estas hegemonias nacionais, urbanas e corporativas não estão isoladas e podem cooperar ou competir entre elas.

MATRIZes: E como se situa a Europa diante desta realidade? E a América Latina?

Scolari: Ainda que eu não seja expert em geopolítica, depois de ter visitado cidades como Shenzhen ou Hong Kong, tenho a sensação de que a Europa está mais centrada em olhar em direção ao seu próprio passado, temerosa de ressuscitarem seus fantasmas mais autodestrutivos, do que em se mover em direção ao futuro. Talvez depois de 500 anos esteja se fechando o parêntese europeu com consequências que não custam muito imaginar: uma nova hegemonia global fundada em modelos econômicos, éticos, políticos e sociais gerados em outras partes do mundo e nem sempre em sintonia com os valores impostos pela modernidade ocidental. Em relação à América Latina, e em especial sobre o caso argentino, o que mais conheço, parece se estar perdendo a revolução digital da mesma maneira que foi vista passar de longe a revolução industrial. Não visualizar as mudanças e tomar decisões a partir delas não implica ficar fora desses processos. Ao contrário, significa acabar fazendo parte deles, mas sem possuir uma capacidade de decisão, ou seja, é como seguir um bonde que já está andando. A Argentina juntou-se à revolução industrial como fornecedora de matérias primas e nunca pôde desenvolver um conglomerado produtivo próprio e de acordo com as suas capacidades, algo que o Brasil conseguiu levar adiante. Estamos vivendo um momento-chave da História e deveríamos fazer um esforço para refletir e tomar decisões, pensando a longo prazo.

REFERÊNCIAS

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Autor notes

a Professor da Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona. Coordenador do Programa de Doutorado em Comunicação. Pesquisador Principal do projeto H2020 Transmedia Literacy (2015-2018).
b Pesquisadora Juan de la Cierva pelo Departamento de Comunicação e grupo de pesquisa MEDIUM da Universitat Pompeu Fabra. Doutora em Sociedade da Informação e o Conhecimento pela Universitat Oberta de Catalunya.
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