Resumo: O artigo discute como o conceito de classe social foi trabalhado na pesquisa em comunicação entre 1970 e 1980, no sentido de evidenciar uma trajetória do conceito a partir de estudos considerados pioneiros, com foco no Brasil, procurando observar sentidos teóricos e epistemológicos, com potencialidades e limites. Em geral, há pesquisas próximas à economia política da comunicação, ao marxismo e à comunicação popular e outros mais ligados aos estudos culturais e de recepção, ressaltando questões simbólicas e relações de sujeitos de diferentes classes com as mídias, além de pesquisas enfocando jornalismo e relações públicas. Ao traçar esta trajetória, mostramos a pertinência de estudar as classes e suas lutas na comunicação.
Palavras-chave:Classe socialClasse social,campo da comunicaçãocampo da comunicação,epistemologiaepistemologia,pesquisa em comunicaçãopesquisa em comunicação,luta de classesluta de classes.
Abstract: The paper discusses how the concept of social class was studied in communication research between 1970 and 1980, in order to highlight a trajectory of the concept from pioneer studies, understanding theoretical and epistemological meanings, with positive and negative points. On the one hand, there are works close to the political economy of communication, Marxism and popular communication. On the other, there is the emergence of cultural and reception studies, emphasizing symbolic issues and the relation of the subjects of different classes with the media. There is also research focusing on journalism and public relations. Thus, the paper shows the pertinence of studying classes and class struggles in communication.
Keywords: Social class, communication studies, epistemology, communication research; class struggles.
Em Pauta/Agenda
Trajetória de luta: estudos pioneiros sobre classe social no campo da comunicação1
Struggle path: precursor studies on social class in communication studies
Recepção: 04 Dezembro 2017
Aprovação: 16 Setembro 2018
Conceitos não servem para ser usados, em um sentido instrumental (assim como os autores, como lembram Martino e Marques (2017) a partir da clássica pergunta “qual autor devo usar?”). Eles respondem a perguntas de pesquisa e, portanto, devem estar vinculados a todo o movimento do processo de pesquisa, que é metodológico (Lopes, 2005). Sobretudo, os conceitos possuem trajetórias – ou historicidade – nos campos (e subcampos) de pesquisa. A história de um conceito no campo nos auxilia a compreender perspectivas e parâmetros epistemológicos, teóricos e metodológicos, de forma a observar alcances e limites, inclusive em relação ao estágio atual de pesquisa na área.
Neste artigo, discutimos um pedaço da trajetória de um conceito específico no campo da comunicação – o de classe social, parte de tese de doutoramento (Grohmann, 2016)2 que procurou compreender sentidos teóricos e epistemológicos do conceito no campo, a partir tanto de pesquisa em artigos, teses e dissertações entre 2010 e 2014 quanto em relação à própria história do conceito nas ciências sociais e nos estudos de comunicação. Mais especificamente, aqui procuramos analisar como eram os estudos que envolveram o conceito de classe social nos estudos de comunicação – tanto internacionais quanto brasileiros (com ênfase nestes) – nas décadas de 1970 e 1980, os quais chamamos de pioneiros na área3.
Nosso interesse é observar como foi tratado o conceito de classe social nessas obras e como ele se entrelaça com a comunicação4 – no sentido de buscar compreender como as perspectivas epistemológicas fundamentam – por vezes também cristalizando e estereotipando – sentidos das classes sociais no campo. Um marco que define o fim do período destes estudos pioneiros é o lançamento da obra de Jesús Martín-Barbero (1995) Dos meios às mediações que impactou teórica e metodologicamente os estudos seguintes sobre classes sociais na comunicação, como mostramos em Grohmann (2016). Assim, as obras aqui apresentadas são de uma época pré-Martín-Barbero no campo da comunicação e mostram, de alguma forma, um retrato da pesquisa em comunicação na época.
O conceito de classe social não nasce na comunicação, mas nas ciências sociais, e possui diferentes vertentes teóricas. Autores como Karl Marx, Louis Althusser, Edward P. Thompson, Adam Przeworski, Erik Olin Wright, Max Weber, Pierre Bourdieu foram alguns a trabalhar a noção, que também apresenta uma trajetória específica nas ciências sociais brasileiras (Grohmann, 2016). Cada concepção de classe leva a determinadas escolhas metodológicas. – não há como separar teoria de metodologia – e implicam em diferentes desenhos de pesquisa, sendo necessária, pois, uma reflexividade no próprio processo de pesquisa. Por exemplo, uma perspectiva weberiana está mais interessada em questões de estratificação, renda e ocupação, enquanto um olhar marxista está mais atento ao conflito, à exploração e às lutas, considerando as classes a partir dos sujeitos sociais e suas relações – principalmente de produção5. Ou seja, assim como muitos outros conceitos, a classe é estrangeira na comunicação e isso impacta, de algum modo, na forma como essa noção foi e vem sido trabalhada no campo.
A institucionalização do campo da comunicação no Brasil ocorre mais sistematicamente a partir dos anos 1960 e 1970. Os primeiros mestrados na área, por exemplo, foram criados em 1972 (USP) e 1973 (UFRJ)6. Trata-se de um contexto marcado pela Guerra Fria, em plano mundial, e pela Ditadura Militar, no Brasil e na América Latina. Os estudos dessa época que envolvem classes sociais na comunicação, então, devem ser entendidos nesse contexto.
Em uma perspectiva internacional, Armand Mattelart e Seth Siegelaub (1979) organizaram dois volumes de um livro chamado Comunicação e Lutas de Classe, com trechos de autores como Marx, Lenin, Althusser, Gramsci e Bourdieu. Entre os textos originais, os editores comentam as relações entre comunicação e classes sociais a partir de uma perspectiva ligada ao imperialismo e às relações Norte-Sul, principalmente em relação à questão ideológica. Falar de comunicação e classes sociais, para eles, portanto, era considerar as lutas de classes a partir das relações imperialistas na comunicação e a própria comunicação sendo pensada como articulação de relações sociais. Segundo Siegelaub (1979), as lutas de classes são a base fundante sobre a qual se constrói o processo de comunicação.
Em contexto de Guerra Fria, as lutas de classes deveriam ser compreendidas a partir desse xadrez político com um olhar internacional globalizado. Não se trata, portanto, somente do proletário brasileiro contra o capitalista brasileiro, mas de uma luta em relação à imposição ideológica advinda dos países chamados de centrais a partir de suas próprias visões etnocêntricas.
As classes, então, são pensadas na década de 1970 por Mattelart em termos de “cultura de massa”. Em Para Ler o Pato Donald (Dorfman; Mattelart, 1972), escrito em parceria com Ariel Dorfman, as histórias em quadrinhos da Disney, em especial as do Pato Donald, são colocadas em termos de lutas de classes e colonialismo, com o pressuposto de que “o imaginário infantil é a utopia política de uma classe”7 (Ibid.: 77). Uma das críticas refere-se ao modo como os “subdesenvolvidos” são representados nas narrativas. “Nossos países se transformam em latas de lixo que se rejuvenescem eternamente para o deleite impotente e orgiástico dos países centrais”8 (Ibid.: 70). Com essa representação midiática dos oprimidos, os autores afirmam que essa mesma imagem começa a aparecer em “nossos espelhos”, de modo a acreditarmos nesses enquadramentos.
Contudo, não são analisados somente o “subdesenvolvido” ou os “países do Sul”, mas também as representações dos proletários. Dorfman e Mattelart (1972) trazem a clássica frase marxiana acerca das classes e ideias dominantes e afirmam que a classe trabalhadora é estereotipada nas histórias da Disney, transformando seus atributos em taras e objetos de riso. Ou seja, as classes são representadas nos meios de comunicação de acordo com a visão das classes dominantes. Os trabalhadores são vistos sempre como “os outros”, “a alteridade”, ou “a massa".
Mas, segundo Siegelaub (1979), as representações de classes não se fazem somente pelas mídias, pois elas não são instituições isoladas. É preciso observar como essa representação se dá na circulação de sentidos da sociedade, e o próprio campo acadêmico não está fora disso. No ano de 1979, Siegelaub já afirmava:
o resultado é que a produção acadêmica em teoria da comunicação, muitas vezes, tende a ser desigual na medida em que quase exclusivamente enfoca a vida comunicativa das forças dominantes, o que eles estão fazendo ideologicamente, etc., sem examinar esta vida em sua relação com a vida das classes oprimidas, na comunicação e em outros lugares9 (Siegelaub, 1979: 17).
A partir disso, Mattelart (1979) reforça a importância de o pesquisador da comunicação ser um investigador compromissado com a realidade social vivida. Uma Ciência da Comunicação, para ele, deve, por exemplo, “ouvir um grupo de trabalhadores impressores lutando contra a concentração industrial e seu modelo computadorizado”10 (Mattelart, 1979: 24), isto é, dar vazão e visibilizar as lutas de classes na comunicação. Lutas de classes essas que não são bem compreendidas se não houver uma reflexão sobre as relações de hegemonia em um plano macro.
Para o autor, portanto, somente é possível construir novos meios de produção para a comunicação se houver uma modificação global dessas relações de classes. Por isso, ele enxerga a necessidade de consciência de classe dos sujeitos que compõem as chamadas audiências. Para tanto, Mattelart (1979) afirma que o público precisa produzir seus próprios sentidos.
O trabalho de Mattelart, nesse aspecto, é importante pois consegue reunir alguns elementos como: a) a predominância do tema da luta de classes na comunicação; b) a importância dos estudos de representações de classes na comunicação ou como é o discurso midiático sobre classes; c) a economia política da comunicação, não se esquecendo das questões de poder e hegemonia no que se refere às empresas de comunicação, por exemplo; d) ao afirmar que os sujeitos precisam criar seus próprios sentidos para o que veem nos meios de comunicação, flerta com o que foi e tem sido construído nos estudos de recepção.
Podemos ainda notar que, embora Mattelart parta de uma dimensão marxista relacionada à transformação social, em alguns momentos, sua perspectiva se assemelha mais à desenvolvida pela Escola de Frankfurt, principalmente no livro Para Ler o Pato Donald, onde os autores (Dorfman; Mattelart, 1972) anulam o sujeito diante de uma suposta escravidão ideológica. E a crítica aos desenhos da Disney vem acompanhada da crítica ao imperialismo norte-americano. Ortiz (1988) e Bolaño (2000) situam os trabalhos de Mattelart a partir das teorias da dependência e do imperialismo cultural e, apesar de enaltecerem o impacto político dos trabalhos de Mattelart em cenário de Guerra Fria, o criticam por uma fragilidade teórica.
A partir do exposto, podemos considerar a economia política da comunicação como uma das perspectivas a trazer o conceito de classe social para a comunicação. Da mesma maneira, os estudos culturais auxiliam a pensar questões de classes. Os pais fundadores dos estudos culturais de Birmingham colocaram a noção de classe como central para a análise do popular, das sociabilidades e da relação com a mídia, com Thompson (1987) e Hoggart (1973) entendendo o conceito a partir da cultura vivida. Não se trata de uma coisa, mas de algo que acontece na vida concreta, material e cotidiana (Thompson; 1981; 1987)11. Ao se perguntar “quem integra a ‘classe trabalhadora’?”, em Os Usos da Cultura, Hoggart (1973) faz um esboço de definição a partir da experiência de vida cotidiana dos sujeitos, de sua própria experiência de vida e de sua problemática de pesquisa, sem se preocupar em abarcar toda a classe trabalhadora. Desta forma, um olhar dos estudos culturais para comunicação e classes sociais considera os processos comunicacionais e sociais a partir do cotidiano e da realidade material e concreta dos sujeitos a partir das suas experiências de classe. No entanto, uma crítica que se pode fazer a essa obra de Hoggart (1973), contudo, se relaciona a certa romantização das resistências dos trabalhadores.
Stuart Hall et al. (1978) também dão pistas sobre as relações entre comunicação – e, aqui, especificamente mídia – e classes sociais a partir do prisma dos estudos culturais. A partir de citações de Marx e Engels (2007) (sobre classe e ideias dominantes) e do weberiano Frank Parkin (1971), Hall et al. (1978) não concebem a mídia como algo que diretamente transmite a ideologia das classes dominantes, mas reproduz relações estruturadas com fontes do poder a partir de bases de consentimento/consenso com as classes populares por meio de processos de significação (“mapas de significação”). Em outra obra, Hall et al. (2014) reafirmam o diálogo com uma perspectiva weberiana – especialmente Parkin e Goldthorpe, mas também com Marx, Althusser e Poulantzas, a ponto de afirmarem que “a luta de classes sobre a vida material e social sempre assume as formas de uma luta contínua em torno da distribuição do ‘poder cultural’”12 (Hall et al., 2014: 65). Nesse sentido, falam em “culturas de classe”.
No âmbito mais próximo à comunicação, a partir dos estudos de recepção, David Morley (1980) testou o modelo “codificação/decodificação” proposto por Hall (2003), considerando alguma centralidade da classe nos estudos de recepção. Em Nationwide Audience (Morley, 1980), propõe rupturas com abordagens advindas do funcionalismo e dos usos e gratificações, aproximando-se de uma etnografia de audiências (flertando com abordagens antropológicas) ao buscar os sujeitos-receptores reais em detrimento de leituras somente textuais. Ele procura mostrar como
membros de diferentes grupos e classes, compartilhando códigos culturais13 diferentes, também interpretarão determinada mensagem de forma diferente, não apenas em um nível pessoal, mas de uma forma sistematicamente relacionada com sua posição socioeconômica14 (Morley, 1992: 49).
O conceito de classe, então, tem um papel importante em Morley. Mas isso não significa que tudo é explicado diretamente a partir da classe social, pois, para ele não podemos encará-la de forma determinista em relação a como os indivíduos decodificam as mensagens que recebem dos meios de comunicação. Morley (1980) acusa Bernstein (1960) de aplicar o conceito de classe de forma determinista em relação à realidade. Por isso, ele concebe a noção de classe como central, mas também procura observar outras identidades.
Mas com qual conceito de classe Morley trabalha? Se a abordagem de classes de Mattelart se relaciona a uma visão marxista, Morley (1992) se baseia na concepção de classes de Frank Parkin (1979), de inspiração weberiana, que enxerga classe e status como conceitos distintos e concebe as ocupações como um indicador de classe. A partir disso, realiza o estudo com quatro grupos: gerentes, sindicalistas, aprendizes e estudantes. O autor também pensa à moda weberiana ao operacionalizar a pesquisa a partir do individualismo metodológico.
Contudo, nas décadas seguintes, os estudos culturais descentralizaram a questão da classe de suas preocupações e/ou perdendo seu potencial crítico a partir de questões como: a) romantização das resistências dos receptores, ao realçar somente aspectos como a criatividade; b) a proliferação das múltiplas identidades, pensando somente em questões de diferenças, não de desigualdades. Nesse caso, há um total descentramento de identidades, procurando descentralizar a classe social, relegada quase como uma última identidade, no fim da fila15 do quarteto raça, gênero, etnicidade e classe. Conforme Mattelart e Néveu,
tributária do marxismo, sua inspiração teórica deve encarar a desvalorização dessa abordagem, confrontar-se com a ascensão de novas ideologias e teorias, com os efeitos das mudanças sociais: revalorização do sujeito, reabilitação dos prazeres ligados ao consumo da mídia, ascensão de visões neoliberais, aceleração da circulação de bens culturais (2004: 15)
Os Estudos Culturais norte-americanos, como Grossberg (1995; 2012) por exemplo, têm parcela de responsabilidade nessa virada, ao adocicarem temas ligados ao poder e à desigualdade.
Mas, nos limites temporais estabelecidos para o presente texto, sem a pretensão de esgotar a bibliografia internacional da época sobre o tema, podemos considerar que: a) a abordagem de Mattelart (1979), muita marcada por um contexto de imperialismo e Guerra Fria, demonstra uma ênfase nas lutas e com importância para compreensão da economia política da comunicação e do discurso midiático sobre as classes; b) as pesquisas pioneiras dos estudos culturais sobre classe e vida cotidiana dão pistas para compreensão das classes sociais na comunicação, embora elas só se concretizem no campo posteriormente; c) em Stuart Hall, embora as pistas também estejam presentes, também é um dos que auxilia a descentrar a noção de classe social; d) já a visão de Morley (1980; 1992) é impregnada por uma visão weberiana de classe e pelos “códigos culturais” de Bernstein, além de certa visão estruturalista do modelo “codificação-decodificação” de Hall (2003), mas avança na medida em que trabalha o conceito de classe social a partir dos sujeitos de carne e osso em estudos de recepção.
Estes estudos pioneiros trazem a contribuição de introduzir a noção de classe social em pesquisas com foco propriamente na comunicação, mas é principalmente o trabalho de Mattelart e Siegelaub (1979) que avança em direção a conceber a luta de classes no próprio processo comunicacional, de forma dinâmica, refletindo propriamente sobre a teoria da comunicação.
Já o Brasil, no fim da década de 1970, vivia sob o lema da distensão lenta, gradual e segura proposta por Ernesto Geisel durante a ditadura militar brasileira. Época também marcada pela Guerra Fria, pelos exílios, pelas lutas nas universidades brasileiras. E, como já afirmado, o campo da Comunicação nascia no país naquele período. A partir desse contexto, podemos compreender o evento intitulado “Comunicação e classes subalternas”, organizado por José Marques de Melo em 1979, ano em que foi anistiado e reassumiu seu cargo como professor na Universidade de São Paulo (USP). Ou seja, o evento possui importante significado nas lutas travadas pelas universidades brasileiras em relação à ditadura. É também fundamental salientar o papel de Marques de Melo no campo comunicacional brasileiro, como central ator político e de organização do campo, agendando os debates centrais à comunidade acadêmica. Assim, Marques de Melo (1980) afirma haver uma “dupla cegueira” dos estudos comunicacionais em relação às classes sociais.
Primeiro, por identificarem nos mass media, enquanto instrumentos de comunicação mantidos e controlados pelas classes dominantes, os veículos exclusivos de introjeção da sua ideologia na sociedade. Segundo, por adotarem uma posição de menosprezo em relação aos meios de comunicação das classes subalternas, considerados tão somente como manifestações reacionárias e, portanto, dignas de interesse apenas daqueles pesquisadores “oficiais” (folcloristas) que buscam catalogar as expressões “pitorescas” e “inusitadas” da nossa cultura (Marques de Melo, 1980: 11).
Em relação à primeira cegueira, tratava-se de uma tentativa de complexificar o debate acerca das classes da comunicação, no sentido já apontado por Hall et al. (1978), de não fazer uma relação “causa-efeito” entre “mídia” e “burguesia”, pois, embora elas existam fortemente, não se trata de um “espelho totalizante”. Os valores dominantes circulam pelos meios de comunicação e também pela sociedade, e por isso, não poderíamos colocar os meios de comunicação como “veículos exclusivos de introjeção”. A própria terminologia “introjeção” se assemelha à metáfora da agulha hipodérmica, como se os meios de comunicação tivessem esse poder praticamente totalizante.
A partir da segunda cegueira, podemos compreender melhor que “popular” não significa algo “inferior”, nem deve ser visto apenas como o “exótico”. Trata-se, portanto, de conceber o popular a partir das atividades concretas dos sujeitos sociais, pensando dialeticamente, e não simplesmente taxando tudo como “reacionário”, por exemplo.
É de se notar, ainda, no evento de 1979, o uso da palavra subalternas para adjetivar as classes. A expressão possui um significado atrelado à dominação, a pessoas colocadas como inferiores e silenciadas pelas classes dominantes, com possibilidades de emancipação e dar voz a esses sujeitos.
No mais, o que o evento organizado por Marques de Melo (1980) traz é uma série de pequenos textos, de autores como Albino Rubim, Carlos Eduardo Lins da Silva e Ismar de Oliveira Soares. As temáticas variam muito, mostrando a elasticidade do conceito de subalterno na comunicação. Exemplos: a prática de cinema na favela, a comunicação entre chefes e subalternos, a música sertaneja e as classes subalternas, a literatura de cordel, a comunicação católica a serviço dos marginalizados e a comunicação em comunidades homossexuais.
A diversidade também se dá em termos de referenciais teóricos, como Bateson, Weber e o próprio Gramsci. No entanto, as temáticas, apesar de interessantes, não são bem desenvolvidas teoricamente. O livro, que tem um caráter mais de divulgação das palestras, acaba caindo em um descritivismo de pouca profundidade, que, de certa forma, é próprio da época do campo da comunicação no Brasil, ainda engatinhando, no fim dos anos 1970.
O que fica evidenciado nesse estudo, pois, é uma preocupação com a comunicação popular, que é a tônica de muitas pesquisas realizadas no Brasil nas décadas de 1970 e 1980, em contexto de redemocratização do país, com estudos ligados à mídia alternativa e aos movimentos de base. Outro exemplo semelhante, já na década de 1980, é um livro organizado por Regina Festa e Carlos Eduardo Lins da Silva (1986) sobre comunicação popular e alternativa no Brasil.
O contexto é semelhante ao livro anterior, envolvendo mídia e hegemonia, mas com mais clareza sobre o papel da luta de classes na sociedade e na comunicação, enquanto algo dinâmico e não estanque. “A cultura industrializada revela limpidamente a hegemonia que um conjunto de classes ou frações de classes detêm sobre o conjunto da sociedade” (Silva, 1986: 31). Isto é, há uma correlação de forças que se movem sobre a produção comunicacional, como afirma Silva (Ibid.): “o conteúdo dos meios de comunicação muda na medida em que muda o panorama da luta de classes na sociedade e no seu próprio interior”. Embora este livro também tenha traços de descritivismo no que tange às análises, é importante pensar as classes em movimento com seus conflitos e em relação com os processos comunicacionais.
Podemos observar, então, nessas décadas de 1970 e 1980, uma preocupação com os conflitos de classes e a busca de uma sociedade brasileira mais justa por meio da comunicação. Maria Nazareth Ferreira (1988) é outro exemplo, mostrando um histórico da imprensa operária no Brasil, e como se podem criar alternativas à hegemonia jornalística, a partir de meios de comunicação a serviço da classe trabalhadora. Para ela, a imprensa operária não é só aquela produzida por operários, mas as que “visam a esse público, abordam uma temática operária e expressam, de uma maneira ou outra, as reivindicações do operariado” (Ibid.: 5).
A partir disso, Ferreira (1988) classifica a imprensa operária em anarcossindicalista, sindical-partidária e sindical, a partir da História do Brasil desde o século XIX até as transformações ocorridas com a luta pela redemocratização na ditadura militar. Elabora, ainda, uma relação de jornais e revistas da imprensa operária16 desde 1847 até 1986. Como aspecto positivo, podemos ressaltar a discussão política sobre classe operária relacionada aos meios de comunicação e a importância de a classe trabalhadora criar alternativas. No entanto, podemos colocar como um dos aspectos problemáticos o foco somente na questão operária: a autora critica a substituição da palavra operário por trabalhador. Podemos perceber, então, certo menosprezo da autora em relação à organização partidária da classe operária e à organização sindical do operário como trabalhador.
Uma das questões levantadas por Ferreira (1988) é que a imprensa sindical, diferentemente das outras (anarcossindicalista e sindical-partidária, segundo sua classificação), não é produzida por um “operário ou intelectual diretamente ligado ao meio operário” (Ibid.: 54), mas um jornalista profissional, assalariado. Para a autora, com isso, “a figura do jornalista da classe operária, saído da sua própria classe, tende a desaparecer nessa fase da imprensa operária” (Ibid.). Ora, ao conceber a classe trabalhadora reduzida ao que chama de operário, Ferreira (1988) acaba por tornar invisível o fato de que o jornalista é também parte integrante da classe trabalhadora, e com possibilidades de ter uma origem e uma trajetória de vida (e família) operária. Então, podemos notar que há uma concepção reducionista em relação ao que chama de imprensa sindical.
O que esses estudos, como Marques de Melo (1980), Festa e Silva (1986) e Ferreira (1988), têm em comum é justamente essa possibilidade de pensar alternativas políticas a partir de termos como classes subalternas, comunicação popular e imprensa operária – embora com certo descritivismo em relação à construção teórico-metodológica.
Em paralelo, podemos notar outro movimento nas pesquisas brasileiras, que procura analisar os meios de comunicação hegemônicos – principalmente a partir do que chamam de aspectos simbólicos – e sua recepção, ainda pensada de maneira incipiente. Uma dessas pesquisas é A noite da madrinha, de Sérgio Miceli (1972), que pode ser considerado um estudo precursor dos estudos de comunicação no país.
O livro se propõe a fazer uma análise do programa da apresentadora Hebe Camargo, procurando unir explicação sociológica com descrição semiológica17 utilizando-se da perspectiva teórica do argentino Eliseo Verón. A obra centra sua análise na mensagem a partir tanto dos programas de TV da apresentadora entre 1970 e 1971 tanto a partir dos índices de audiência, matérias de revista, cartas de fãs e críticas, procurando observar também a relação de Hebe com o público, com os mecanismos de projeção e identificação com a apresentadora, bem como pensar os ethé18 de mãe, filha, esposa e dona-de-casa e como isso circula pela sociedade brasileira. Entretanto, esse público é sempre pensado a partir dos vestígios da mensagem, não se tratando, então, propriamente, de um estudo de recepção.
Uma das questões cruciais para Miceli (1972) é a criação e a consolidação de uma indústria cultural no país. Para pensar tal questão, compreende a sociedade capitalista a partir da estrutura de classes antagônicas, sendo Pierre Bourdieu19 o autor que perpassa toda a obra. A partir da influência bourdieusiana, Miceli (1972) enfatiza os processos simbólicos e ideológicos que transfiguram as relações de classe, com duas vias: relações de força e relações de sentido. Considera, então, que sua pesquisa se centra nas relações de sentido do programa Hebe Camargo envolvendo as classes sociais.
O autor também faz uma separação entre material e simbólico, tal qual Bourdieu: “faz-se necessário fixar uma linha de demarcação entre o sistema das relações de produção, de circulação e de consumo dos bens materiais, e o sistema das relações de produção, de circulação e de consumo dos bens simbólicos” (Ibid.: 37). Podemos, então, observar que: 1) embora teorizando de forma tímida, o autor pensa a questão da circulação dos bens, envolvendo produção e consumo; 2) o autor desconsidera, de forma análoga a Bourdieu, a materialidade dos bens simbólicos, como se os bens materiais não tivessem nada de simbólico e vice-versa.
A hipótese norteadora da pesquisa é a vinculação de Hebe Camargo com os estratos médios da população brasileira, procurando criar vínculos com uma “classe já estabelecida”, a partir de uma linguagem “nobre”, o que tornaria o programa – como diz a própria gíria – “joia”, nos termos do autor. Segundo Miceli (Id.: 77), “a intenção desta linguagem é oferecer a todos um repertório adequado à expressão dos tônus da sociabilidade que caracteriza o estilo de vida de um grupo social”. Ele, então, considera que há no programa de Hebe uma “discrição conservadora” com relação aos valores e costumes perpassados no discurso da apresentadora.
Ao mesmo tempo, a hipótese complementar de Miceli (1972) é com relação aos programas de auditório como os de Sílvio Santos e Chacrinha, para ele, dirigido “às faixas mais baixas de renda (classes ‘D’ e ‘C’)”20 (Ibid.: 44). Para o autor, esses programas
procuram compensar, no plano simbólico, a “exclusão” social total que caracterizam os contingentes que integram a faixa. Oferecem aos “excluídos” do sistema o ingresso vicário ao mercado de consumo, e chamando os telespectadores pelo refrão “minhas colegas de trabalho”, acabam por conceder-lhes recursos para uma identidade social (Ibid.: 250).
Ou seja, mais uma vez aparece a distinção entre o material – colocado somente como renda – e o simbólico – a partir do universo da chamada indústria cultural. Contudo, é interessante notar como, ao chamar o público de colegas de trabalho, se articulam no plano discursivo, as questões de trabalho e consumo envolvendo as classes sociais, embora a atenção do autor esteja centrada no plano do simbólico. Então, Miceli (1972) conclui que
o campo simbólico se organiza como um sistema misto de relações de produção, distribuição e consumo de bens simbólicos, obrigando a reproduzir nos “bolsões” a competência cultural das classes e setores de classe já integrados aos mercados de trabalho e consumo – o operariado industrial, os setores médios ocupados no terciário etc. – e, ao mesmo tempo, obrigado a responder às demandas simbólicas exercidas pelas camadas ‘excluídas’. São estas as razões que explicam a existência de inúmeros produtos heterogêneos, passíveis de leituras distintas, veiculados pela indústria cultural (Ibid.: 179).
Há, portanto, em Miceli (1972) uma teorização a partir da reprodução e das distinções entre as classes a partir de mecanismos estruturados pela própria indústria cultural com relação às classes, como jogos de inclusão e exclusão. Nesse sentido, podemos pensar o livro A noite da madrinha como: a) um percursor não só dos estudos entre comunicação e classes (ainda que visto de um departamento de sociologia), mas também introdutório da perspectiva de Pierre Bourdieu, que norteará alguns trabalhos posteriores na área; b) uma pesquisa que procura sair do descritivismo presente, por exemplo, em Marques de Melo (1980); c) um trabalho que também procura se afastar da hegemonia frankfurtiana que dominou os estudos sobre indústria cultural nos anos 1970 no Brasil, não colocando o programa de Hebe Camargo somente como manipulação do sistema. É, assim, um passo inicial para os estudos de recepção no Brasil.
Já com relação propriamente a investigações consideradas pioneiras nos estudos de recepção, podemos ressaltar Bosi (1978), Leal (1985), Silva (1985) e Lopes (1988) – já analisadas em Grohmann e Fígaro (2014) – além de Chucid da Viá (1977) e van Tilburg (1990), que agora apresentamos, apesar de eles não se intitularem como pesquisas propriamente de recepção.
O livro de Chucid da Viá (1977) apresenta a questão do sindicalismo no Brasil e pretende mostrar como os conceitos de classe social e consciência de classe se diluem a partir de estudo entre trabalhadores têxteis em 1959 e 1972, buscando compreender em que medida os meios de comunicação podem ser considerados como responsáveis por essa diluição.
Sua visão se aproxima do funcionalismo, mesmo falando em classes sociais. Fala em “luta de classes”, em “sindicalismo”, mas aplicando autores como Paul Lazarsfeld, o que não chega a ser surpresa, pois a autora ressignifica os “elementos de classe” a partir de uma leitura positivista do mundo, para não dizer elitista. Primeiramente, a classe social não é estudada realmente no sentido de suas lutas e das práticas concretas dos sujeitos sociais, mas do ponto-de-vista de sua “diluição”, assemelhando-se ao Durkheim (2004) preocupado com as mudanças na sociedade, na passagem da “solidariedade mecânica” para a “solidariedade orgânica” e as perdas dos laços sociais.
Depois, os sujeitos não são vistos como tais, mas como mera massa de manobra da televisão e dos outros meios de comunicação, como seres passivos e à deriva dos efeitos das mídias. Um exemplo do que diz Chucid da Viá (1977: 124): “a influência do rádio é grande e se deve, em parte, à falta de escolaridade dos trabalhadores. Em face dessa situação, torna-se mais fácil ouvir do que ler”. Isto é, trata o receptor como sujeito inferior por não ser escolarizado, e com isso a autora acaba por falar em “classes sociais” a partir do ponto-de-vista do dominante. Quando pesquisa o consumo cultural dos operários, por exemplo, utiliza os resultados de que eles não leem jornais e assistem a programas de auditórios para reforçar o estigma que ela própria criou sobre os trabalhadores, tratando sujeitos sociais de forma inferior e não dialética.
Já o livro de van Tilburg (1990), sobre televisão e mundo do trabalho, foi publicado em 1990, mas sua pesquisa foi desenvolvida desde 1974. O objetivo central de van Tilburg (1990) é saber o que levariam milhões de brasileiros a se tornarem telespectadores assíduos, especialmente da Rede Globo, após um dia inteiro de trabalho. Então, mostra que o caráter cíclico da programação – ou a própria ideia de grade de programação – fortalece a ideia de uma rotina. Essa ideia, pois, de programação se encaixaria no cotidiano das “camadas de baixa renda”, nas palavras do autor, tanto horizontalmente (de segunda à sexta) quanto verticalmente (de manhã à noite).
Apesar de não utilizar essa terminologia, o que se tem aqui é um exame, ainda que superficial, da rotina das classes trabalhadoras na década de 1980 e sua relação com a televisão. O autor separa o tempo em “tempo trabalhado” e “tempo não trabalhado” e coloca a importância do “cartão de ponto” para demarcação dessa rotina. Um outro ponto importante e que converge com a pesquisa de Silva (1985), por exemplo, é o que Tilburg (1990) chama de “poder de barganha do telespectador”, uma maneira de dizer que o ponto de vista do sujeito-receptor deve ser considerado, não como alvo a ser atingido. “Participação, pois, não é sinônimo de pesquisa de mercado [...]. O poder de barganha que a audiência detém merece estudo mais aprofundado” (Ibid.: 25).
Porém, as fraquezas metodológicas de Tilburg (1990) também ficam evidentes no “descritivismo”, que é a tônica de uma parcela de trabalhos desse período. Não há explicitação ou explicação metodológica: há tabelas, dados, mas não há uma visibilização de como o autor realizou a pesquisa. Não há sistematização do modo como se analisou a narrativa da telenovela bem como colheu os depoimentos dos receptores (há somente observações como “um trabalhador de baixa renda comentou comigo”). Do mesmo modo, não se discute o conceito de classe e naturaliza o termo “baixa renda”, essencializando as classes.
Nas pesquisas de recepção deste período, como já afirmamos em Grohmann e Fígaro (2014), o trabalho de Leal (1985) – com influências de Pierre Bourdieu e da Antropologia – é o mais refinado teórica e conceitualmente, além de trazer pistas para pesquisas posteriores, como Lopes, Borelli e Resende (2002). Para além do descritivismo próprio da época, podemos destacar nesses trabalhos um enfoque nas questões simbólicas, sem, no entanto, relacioná-las de forma mais fecunda aos processos comunicacionais. Há, ainda, uma variedade de olhares para a realidade das diferentes classes – cujo conceito não é discutido teórica e epistemologicamente – desde o elitismo de Chucid da Viá (1977) até certa romantização das classes populares e do Outro, presente, por exemplo, em Leal (1985) e van Tilburg (1990) – crítica também feita por Lopes, Borelli e Resende (2002) – passando pela contribuição teórica de Miceli (1972).
Nos anos 1980, a questão das classes sociais, no âmbito da comunicação, aparece não somente nos estudos de recepção e pesquisas sobre comunicação popular, mas incide também nas áreas de jornalismo e relações públicas, com Relações Públicas no modo de produção capitalista, de Cicília Peruzzo (1986) e O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, de Adelmo Genro Filho (1987). Ambos tomam o marxismo como referencial teórico, algo, por vezes, invisibilizado em suas obras, como mostra Pontes (2015) em relação a Genro Filho. Além disso, assim como os estudos analisados anteriormente, são pioneiros, impactando não somente as pesquisas na área, mas a formação profissional.
Peruzzo (1986) parte da concepção de classe em Lenin como lugar na produção para teorizar sobre as relações públicas e as classes sociais, abordando também questões de mais-valia e alienação. Segundo a autora, a profissão surge “em circunstâncias em que os conflitos de classes se tornam mais fortes nas democracias burguesas” (Ibid.: 33), e procura, com uma aparência de “harmonia social” ou “conciliação de classes”, “fazer convergir os interesses de toda a sociedade aos interesses do capital” (Ibid.).
Apesar da aparência de estar acima dos interesses de classe, não há neutralidade nas relações públicas, conformando-se, principalmente, como um mecanismo de controle dos trabalhadores, sendo, pois, “um dos instrumentos que se utiliza para envolver os trabalhadores e suas famílias a fim de garantir a produção e reprodução da força de trabalho” (Ibid.: 89). Ou seja, as relações públicas atuam na luta de classes21. Peruzzo (1986), então, contrapõe a atividade de relações públicas quando a serviço das classes dominantes – como ato não crítico, e quando a serviço das classes dominadas, a partir de uma concepção libertadora da educação – com base nos preceitos de Paulo Freire (1970). Desta forma, a luta de classes está no cerne da perspectiva da autora a partir da atividade de relações públicas, inclusive na busca de alternativas a essa atividade, como relações públicas comunitárias, por exemplo, em diálogo com perspectivas enunciadas acima em relação à comunicação popular.
Já Adelmo Genro Filho (1987), na busca por teorizar acerca do jornalismo como forma de conhecimento, a partir de bases eminentemente lukácsianas, parte do marxismo como “maneira de considerar a realidade histórico-social que compreende as determinações subjetivas como algo real e ativo” (Genro Filho, 1987: 25), tomando a práxis como algo central, pensando o jornalismo não somente como manipulação ou controle.
Embora não haja uma teorização – assim como outros trabalhos pioneiros – acerca da noção de classe, Genro Filho (1987) também trata de colocar a luta de classes como algo central para o jornalismo, assim como quaisquer outras atividades em uma “sociedade de classes”, segundo ele próprio. Contudo, não concorda que o jornalismo seja redutível aos interesses/à ideologia da classe dominante, como uma relação direta, sem mediações22.
Assim como no exemplo acima, Genro Filho (1987) tece outras críticas a autores ou correntes teóricas por, em sua visão, não compreenderem as lutas de classes no jornalismo (ou na mídia em geral). Podemos resumir suas críticas nos seguintes aspectos: a) ao funcionalismo, por apartar a luta de classes da visão em relação aos meios de comunicação, tendo as “funções da comunicação”, elas próprias, um caráter de classe; b) ao jornalista Clóvis Rossi, por achar ser possível “um jornalismo ‘imparcial’ em relação às questões fundamentais da luta de classes, desde que a subjetividade (individual) ficasse confinada a certos parâmetros” (Ibid.: 48); c) à Cremilda Medina, por sua teorização eclética (entre premissas frankfurtianas e classificações funcionalistas) e um não enfrentamento teórico da luta de classes em relação ao fenômeno jornalístico; d) a Marshall McLuhan, por, em sua visão, partilhar “da decisão de suprimir todos os problemas da base econômica, e do intuito idealista de minimizar a luta de classe no azul celeste de um vago humanismo” (Ibid.: 64). O que Genro Filho (1987) nos mostra, pois, é a insuficiência teórica da pesquisa e da prática do jornalismo para compreender a luta de classes no âmbito da atividade jornalística.
Para o autor lukácsiano, pois, considerar o jornalismo a partir da práxis – e, pois, também dos conflitos e embates – é conceber que a angulação no jornalismo, por exemplo, não está separada da luta de classes. Desta maneira, no jornalismo, “a participação mais ou menos consciente na luta de classes possibilita identificar os interesses em jogo, bem como a origem dos discursos e das diversas abordagens da realidade” (Ibid.: 215).
Como podemos ver, as abordagens pioneiras (e marxistas) de jornalismo e relações públicas no Brasil compreendem as classes sociais menos como um estrato ou alvo do que algo em movimento na história e também nas atividades profissionais de comunicação, complementando, pois outras abordagens analisadas anteriormente, como a comunicação popular e a imprensa sindical.
Compreender a trajetória das classes sociais como objeto/sujeito na pesquisa em comunicação a partir dos estudos pioneiros é não somente uma tarefa de resgate da história do campo, mas também uma atividade epistemológica: o que deixamos de estudar a partir de determinadas perspectivas e quais sentidos foram tomando as classes sociais na pesquisa em comunicação, ressiginificando-as ou invisibilizando-as, como mostramos em Grohmann (2016). Atualmente, expressões como classes sociais, ideologia e marxismo são consideradas ultrapassadas, com cheiro de naftalina, como se fossem confinadas somente a determinada época histórica (Eagleton, 2012; Murdock, 2009).
Nos estudos aqui apresentados, podemos notar, principalmente, duas perspectivas teóricas. Uma está mais relacionada à economia política da comunicação, ao marxismo e à comunicação popular, recuperando uma noção mais política das lutas de classes, ora com uma maior imbricação aos processos comunicacionais, como Mattelart e Siegelaub (1979), ora apenas como um olhar a partir de um Zeitgeist próprio das décadas de 1970 e 1980, sem uma discussão propriamente conceitual, como nos estudos brasileiros do período. Esta perspectiva das classes a partir da comunicação popular e da imprensa operária some da pesquisa em comunicação no Brasil, como pudemos mostrar em Grohmann (2016) a partir da análise de 48 artigos e 42 teses e dissertações entre 2010 e 2014. Essa perspectiva, que concebe a luta de classes em movimento nos diferentes processos comunicacionais, também abarca estudos marxistas de jornalismo e relações públicas, como os de Peruzzo (1986) e Genro Filho (1987).
Outra perspectiva relaciona-se aos estudos culturais e de recepção, ressaltando as questões simbólicas e os sujeitos pertencentes às diferentes classes em contato com as mídias. A partir dos trabalhos pioneiros dos estudos culturais de Birmingham, que consideram a classe a partir da vida concreta e cotidiana, Stuart Hall e colaboradores abordam culturas de classe, colocando em diálogo autores weberianos e Louis Althusser, além de teorizar o modelo “codificação/decodificação” (Hall, 2003), marco para a aplicação de David Morley, com centralidade da noção de classe. A recepção do trabalho de Morley no Brasil se dá em um contexto posterior, relacionada à própria recepção de Stuart Hall no país, principalmente entre as décadas de 1990 e 2000 (cf. Jacks; Wottrich, 2016). Os estudos brasileiros, pois, carecem de fundamentação teórica e epistemológica em uma perspectiva comunicacional – além de, em alguns casos, possuírem traços funcionalistas – e podem ser pensados como um embrião de estudos de recepção, que se fortalecem teoricamente, mais tarde, com a perspectiva das mediações de Jesús Martín-Barbero. Há também o pioneirismo na obra de Miceli (1972) em relação à introdução de Pierre Bourdieu no campo.
Entre as duas perspectivas, perpassam algumas pesquisas envolvendo análise do discurso midiático, como Dorfman e Mattelart (1972) e Miceli (1972), além da falta de discussão em relação ao conceito de classe social. Para além disso, este mapeamento nos mostra que, apesar de dimensões diferentes, trata-se de uma falsa disputa o que se colocou entre economia política da comunicação e estudos culturais (Garham; 1995; Grossberg, 1995)23. Encaramos – assim como Williams (1979; 2016) – essas abordagens como olhares complementares para a pesquisa em comunicação envolvendo as classes sociais, pois a comunicação engloba tanto economia quanto cultura (bem como suas interrelações).
A despeito das críticas apresentadas, registramos o pioneirismo das obras aqui elencadas no sentido de pavimentar a importância da classe social para a pesquisa em comunicação, compreendendo-a como lugar de embates e lutas. Desta forma, podemos entre-ver a comunicação de uma perspectiva crítica, considerando suas interfaces com a vida concreta e material. Mostram um compromisso da pesquisa e do sujeito-pesquisador com a persistente realidade desigual do país.
Essa trajetória de luta (de classes), de alguma maneira, se perdeu na pesquisa em comunicação a partir dos anos 1990. Como mostram Jacks, Menezes e Piedras (2008) a partir dos estudos de recepção, as pesquisas se voltam a estudar mais as identidades culturais em relação com os processos comunicacionais. São celebradas as identidades plurais e contraditórias, como a identidade regional e o conceito de classe social é relegado a segundo plano. É como se as classes sociais tivessem caído junto com o Muro de Berlim (Murdock, 2009), mesmo havendo evidências empíricas na vida concreta e material dos sujeitos sociais e comunicacionais.
De alguma forma, analisar a trajetória específica de um conceito em um campo nos auxilia a compreender os caminhos e sentidos da própria pesquisa em comunicação em plano macroestrutural ao longo dos tempos. Podemos compreender, portanto, que a classe social possui uma trajetória de lutas – internas e externas ao campo – de legitimação, enquadramento e classificação (Bourdieu, 1990), assim como a própria noção expressa conflitos e embates. As classes sociais e suas lutas não deixaram de existir, mas há modos de ver para não realmente enxergar, como regimes de visibilidade (ou uma visibilidade difícil, engolida a contragosto) que concebem as classes como algo démodé ou, então, somente como um estrato, como se não estivessem inscritas nos processos comunicacionais. Tomada como objeto/sujeito estrangeiro ao campo comunicacional, deixa-se de entre-ver o papel da comunicação nas lutas de classes ontem e hoje.
Uma agenda renovada para as classes sociais e para as lutas de classes nos processos e relações de comunicação passa por apreendê-las em suas distintas dimensões: consumo, recepção, linguagens, discursos, mediação, midiatização (e as desigualdades de classe), circulação (e também a circulação das lutas – Dyer-Witheford, 2015), financeirização (Sodré, 2014), mundo do trabalho (Huws, 2014; Fuchs, 2017), trabalho digital (e suas materialidades) ou trabalho e tecnologia (com as implicações, por exemplo, dos algoritmos para a desigualdade de classes – Eubanks, 2018), entre outros, sem esquecer, por um lado, o entrelaçamento com os temas clássicos aqui analisados e, por outro, a perspectiva da pesquisa em comunicação no Sul Global e sua persistente desigualdade. Parafraseando Bourdieu (A sociologia. . ., 2002), a comunicação é um esporte de combate e luta.