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Títulos originais e licenciados com exclusividade no catálogo brasileiro da Netflix: um mapeamento dos países produtores
Netflix originals and exclusively licensed titles in brazilian catalog: mapping producing countries
Títulos originais e licenciados com exclusividade no catálogo brasileiro da Netflix: um mapeamento dos países produtores
Matrizes, vol. 14, núm. 1, pp. 125-149, 2020
Universidade de São Paulo
Recepção: 13 Agosto 2019
Aprovação: 25 Março 2020
Resumo: O objetivo do trabalho é mapear os países produtores de títulos originais e exclusivos do catálogo brasileiro da Netflix e verificar qual a participação da América Latina nesta constituição. Os resultados apontam para o investimento da Netflix na diversificação dos países produtores, apesar de ainda não ser suficiente para conter uma tendência à manutenção da dependência cultural da América Latina em relação ao avanço de conteúdos dos Estados Unidos. O caráter transnacional adotado pela Netflix levanta discussões sobre um desenvolvimento dependente-associado, em que produções da América Latina ganham espaço no fluxo global de televisão, mas submetidas a um mecanismo que beneficia também grandes companhias de mídia estadunidenses.
Palavras-chave: Netflix, streaming, dependência cultural, América Latina.
Abstract: The main goal of this study is to map the countries that produce the original and exclusive titles for the Netflix Brazilian catalog and to evaluate Latin America’s participation in this archive. The results indicate that Netflix is investing in the diversification of the producing countries, although this is not enough to contain the trend of the maintenance of Latin America’s cultural dependence in relation to the advance of the United States’ cultural productions. The transnational standard adopted by Netflix brings debates regarding the associated-dependent development, in which Latin American productions have grown, but associated with a mechanism that also benefits big American media companies.
Keywords: Netflix, streaming, cultural dependence, Latin America.
INTRODUÇÃO
Apesar do reconhecimento das mídias tradicionais e especialmente da televisão como um fenômeno cultural brasileiro e latino-americano (Martín-Barbero, 2001) relevante para compreender as mediações locais, é importante levar em consideração que ela vigora como “um modelo de produção, distribuição e recepção – um modelo que muda ao longo do tempo para uma versão mais móvel em relação à norma dominante” (Miller, 2014, p. 93). Com a intenção de apreender como se configuram as transformações que incidem sobre produtos audiovisuais na atualidade, é proposta uma análise da Netflix (http://netflix.com) enquanto representante dos sistemas de produção e distribuição por streaming de conteúdos sob demanda, que vêm se estabelecendo como tendência mundial na realização e consumo audiovisuais. No modelo de produção, distribuição e consumo de conteúdos por streaming adotado pela Netflix, produtos nacionais são ofertados em outros países, como a série brasileira original Netflix 3%, que foi sucesso nos Estados Unidos (Ferraz, 2019). Apesar desse potencial de circulação, o nacional tem que concorrer com uma nova onda de importações dos Estados Unidos, Ásia e também Europa, o que complexifica os sistemas de produção, distribuição e consumo possíveis a partir de tecnologias streaming. É possível entender, portanto, que “a depender da democratização do acesso à internet, a Netflix poderá, em pouco tempo, ser a responsável por uma completa mudança de paradigma na forma como a audiência consome TV” (Lima, Moreira, & Calazans, 2015, p. 255).
Esse cenário desloca parte significativa das audiências para formatos individualizados de recepção (Machado & Vélez, 2014), possíveis principalmente a partir dos dispositivos digitais online, guiados por inteligência artificial e big data, cujos produtores vêm despontando de maneira distinta frente à concentração midiática do tradicional modelo televisivo brasileiro e latino-americano.
Diante da necessidade de compreender essas mudanças que vêm ocorrendo rapidamente não apenas no Brasil, mas também em escala global, é proposta neste artigo uma análise das produções originais e licenciadas com exclusividade pela Netflix disponíveis na versão brasileira da plataforma até o dia 11 de maio de 2018, a fim de mapear as origens dos títulos que conformam esta parte do catálogo e verificar qual a participação da América Latina nesta constituição. Os resultados apontam para certo investimento da Netflix na diversificação dos países produtores, apesar de ele ainda não ser suficientemente sólido para conter uma tendência à manutenção da dependência cultural (Fox, 1992; Straubhaar, 1991) da América Latina em relação ao avanço de conteúdos dos Estados Unidos e países anglófonos. Apesar disso, o caráter transnacional que vem sendo adotado pela Netflix, tanto em relação à distribuição e consumo dos conteúdos, quanto à sua produção, levanta também discussões sobre um desenvolvimento dependente-associado – ou associated-dependent development (Straubhaar, 2007), em que produtores latino-americanos ganham espaço no fluxo global de televisão, mas submetidos a um mecanismo que beneficia também grandes companhias de mídia estadunidenses.
A NETFLIX
Para alcançar a dimensão que o fenômeno de distribuição sob demanda tomou na atualidade, é válido mencionar que, recentemente, a Netflix divulgou um relatório apontando que no último trimestre de 2019 o número de assinantes chegou a mais de 67 milhões nos Estados Unidos e Canadá, 47,4 milhões na Europa, Oriente Médio e Ásia e 29,4 milhões na América Latina (Solsman, 2019). Dados coletados já na etapa de revisão para a publicação deste artigo apontam que o total de assinantes da Netflix no mundo em março de 2020 chegou a mais de 167 milhões (Lee, 2020). No Brasil, estima-se que os assinantes estivessem entre 8 e 10 milhões no fim de 2018, apesar de a Netflix não divulgar os números oficiais (Carvalho, 2018). Desse modo, a corporação se tornou em pouco tempo uma das operadoras de vídeos sob demanda mais populares e, investindo na programação original, a maior produtora de séries do mundo - conforme será mostrado na Tabela 2. Fundada em 1997 pelos norte-americanos Reed Hastings e Marc Randolph, a Netflix começou como um serviço online de locação de filmes, com entrega e devolução pelo sistema postal dos Estados Unidos, via solicitação pela internet. Depois disso, em 1999, foi lançado pela empresa um serviço de assinatura mensal, que dava aos clientes locação ilimitada de DVDs.
O modelo inovador e precursor do sistema que conhecemos hoje foi um sucesso, o que levou à tentativa de venda da Netflix para a sua então maior concorrente, a rede Blockbuster, nos anos 2000. Sem acreditar no modelo de negócio proposto pela jovem empresa, a Blockbuster não aceitou o acordo e ironicamente a então gigante de serviços de locação de vídeos decretou falência nos Estados Unidos dez anos depois (Kleina, 2017).
Em 2002, a Netflix já possuía 600 mil assinantes em seu sistema de entrega de DVDs em domicílio, e contava com mais de 11.500 títulos (Netflix, 2018). Nessa época, as ações da empresa começaram a ser negociadas na Nasdaq. O eventual boom dos negócios, no entanto, veio em 2007, quando foi lançado o serviço de streaming. Sobre essa mudança, contamos com as considerações de Ladeira (2018):
O streaming concede à plataforma uma habilidade em nada desprezível: a de observar os atos de seus usuários, nada menos que as ações de seus corpos. A pretensão pelo monitoramento inscrita na natureza do digital faz com que este acompanhamento do corpo se torne essencial. O streaming torna disponível materiais manuseados das formas mais distintas. Este tipo de transmissão instaura uma experiência instantânea para o acesso irrestrito a arquivos que, sem qualquer dificuldade, assiste-se ou descarta-se. O aluguel de conteúdo pressupunha um extenso conjunto de limitações. Havia uma distância física a vencer, assim como um limite de produtos que se podia usufruir num certo espaço de tempo. (p. 8).
Com o passar do tempo, a Netflix também se dedicou cada vez mais a firmar parcerias com fabricantes de produtos eletrônicos, o que possibilitou que os vídeos fossem distribuídos por vários dispositivos, como videogames, smartphones, tablets e televisões digitais.
Mesmo utilizando estratégias inovadoras, até 2010 a Netflix atuava exclusivamente nos Estados Unidos. A partir desse ano, começa um processo de expansão, que teve início no Canadá. A seguir, entraram no alcance da empresa países da América Latina, Europa, Oceania e Ásia. A companhia começou a oferecer conteúdos para o público brasileiro em 2011. Abaixo está um mapa do alcance da empresa até o terceiro trimestre de 2019.
De acordo com dados da própria Netflix (2020), o alcance atual da empresa é de mais de 190 países, cujas ofertas de conteúdos variam de local para local e podem ser diferentes (Lobato, 2018). De acordo com Ladeira (2018), é “certo que a Netflix se constitui como uma plataforma de difusão cujo principal objetivo reside em construir um território audiovisual efetivamente global”. Especificidades sobre o catálogo serão tratadas adiante. Por ora, é importante ressaltar que a Netflix não tem atividades na China, Coreia do Norte, Crimeia e Síria, devido a questões legislativas e políticas internas, uma vez que os governos dos respectivos territórios limitam a prestação de serviços por empresas estadunidenses.
Apesar da quase onipresença da Netflix no mundo, a oferta de títulos varia bastante de região para região. Segundo informações do Unofficial Netflix Online Global Search (http://unogs.com), que tem um banco de dados segmentados sobre a distribuição de conteúdos da Netflix, o catálogo global da empresa em maio de 2018 (período referente à coleta de dados para esta pesquisa) tinha o total de 14.996 obras entre filmes, séries, documentários, reality shows, programas de variedades, musicais e outros formatos. No entanto, a quantidade de oferta direcionada aos países especificamente é bem menor que esse número. No Brasil, por exemplo, estavam disponíveis para consumo 3.953 títulos neste período, colocando o país na décima posição entre os lugares com maior oferta de conteúdos, conforme pode ser visto abaixo:
O primeiro lugar da lista foi alterado no primeiro semestre de 2018, quando o Japão ultrapassou o historicamente líder Estados Unidos. Desde o início do processo de internacionalização na Netflix, os EUA sempre lideraram a quantidade de oferta de conteúdos (Nembhard, 2018), sendo a mudança de posições um marco importante e indício do grande valor que o mercado asiático assume para a empresa. É possível notar que logo abaixo dos EUA seguem três países de língua inglesa (Canadá, Reino Unido e Austrália), demonstrando a centralidade do mercado anglófono para a corporação.
Recentemente, tem sido notícia que Disney, Warner e outros grandes produtores estão retirando várias de seus títulos do catálogo Netflix para impulsionar novos serviços de streaming próprios que já foram lançados ou constam em planos futuros (McBride, 2019). Em vários casos, no entanto, essa política só é estabelecida no mercado dos Estados Unidos, e ainda se permite que a Netflix licencie e disponibilize os títulos em outros países para que as próprias companhias produtoras se beneficiem do aparato de distribuição global da gigante do streaming (Dixon, 2019).
Outro ponto interessante para análise na tabela se relaciona com as duas últimas colunas, Novos e Expirando, que registram, respectivamente, produções incluídas nos catálogos de cada país nos últimos sete dias e títulos que estão em processo de retirada de oferta. Esses dados revelam a grande volatilidade do conteúdo, com inserção e expiração constantes de títulos e consequentes mudanças recorrentes na oferta de vídeos. Esse fenômeno ocorre não somente pelas adaptações estratégicas da Netflix em cada um de seus mercados, mas também pelo vencimento e rescisão de contratos de licenciamento, que têm prazos de validade determinados. E grande parte da dificuldade em firmar novos acordos de exibição ou renovar os já existentes consiste exatamente no sucesso da empresa. Para compreender essa dinâmica, basta verificar que a corporação, com seu expressivo crescimento recente, está se tornando uma ameaça para grandes grupos de mídia e distribuição de conteúdos. Frente à potencial hegemonia da Netflix no mercado de streaming, grandes produtoras têm recuado nas negociações, gerando a retirada de filmes e séries do catálogo e certa dificuldade para a renovação do conteúdo.
Esse fenômeno tem direcionado a Netflix ao crescimento massivo de investimentos em conteúdos originais. Em 2018, a empresa investiu cerca de oito bilhões de dólares na realização de títulos, produzindo 800 filmes e 700 episódios de séries (Jankavski, 2018). Em 2019, os investimentos em originais da empresa chegaram a 15,3 bilhões de dólares (Scarpa, 2020).
Todo esse investimento serve para virar uma curva que vem incomodando a direção da Netflix, apontando a preferência do público por conteúdos comprados pela empresa, e não produzidos por ela. Esse cenário é pertinentemente definido por um estudo recente da 7Park Data, uma consultora estadunidense de negócios, divulgado pela revista Variety (Spangler, 2018). Os dados apontam para a preferência do público norte-americano pelos conteúdos licenciados disponibilizados pela Netflix. Segundo informações da pesquisa, cerca de 80% dos acessos da Netflix nos Estados Unidos são direcionados para vídeos comprados no mercado de mídia. Além disso, em torno de 42% dos assinantes assistem quase integralmente a conteúdos não-originais, gastando algo como 95% do tempo no site com esta categoria do catálogo. Ainda de acordo com o estudo, somente 18% dos usuários passam mais da metade do tempo na plataforma com conteúdos originais.
Como foi mencionado anteriormente, a permanência e renovação de produtos licenciados no catálogo dependem de negociações com outras corporações de mídia, que muitas vezes podem dificultar a oferta para a Netflix. Já os conteúdos originais são garantia de posse vitalícia e exclusividade de exibição, sendo atualmente o principal foco da empresa. Em entrevista, Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix, afirma que:
Por fim, queremos produzir conteúdo original, porque é hora de termos mais controle sobre os programas que mais importam para nossos clientes. Nós realmente apreciamos o valor que os programas serializados oferecem. Muitas pessoas assistem a eles e os amam. Nossos dados suportam a tendência, e é por isso que você vê um investimento tão explícito na televisão na Netflix. Conseguimos aumentar a audiência do conteúdo serializado, reconhecendo o comportamento do público e fornecendo cada vez mais dramas de uma hora, bem produzidos e altamente serializados1. (Curtin, Holt, & Sanson 2014, p. 141)
O objetivo da empresa com os investimentos realizados em 2018 e 2019 foi ambicioso, visando direcionar pelo menos metade dos assinantes para os conteúdos originais a longo prazo. Fazendo isso, a companhia dos Estados Unidos consegue resolver dois pontos importantes: 1) tornar os catálogos de diferentes países mais parecidos. Com acordos de licenciamento distintos em cada região do mundo, a oferta de conteúdos tende a não ser unificada. Os títulos disponibilizados em cada país são diversos. Com ampliação dos originais, esse problema diminui. 2) Com mais conteúdos originais, a plataforma fica menos suscetível a flutuações nos preços dos conteúdos licenciados e mesmo a estratégias de mercado que a prejudiquem, como a recente ameaça da Disney de retirar as suas produções da Netflix diante da possibilidade de criação de sua própria plataforma de distribuição por streaming (Marafon, 2018). Por enquanto, no entanto, o que se percebe é que os pontos altos de audiência da Netflix se concentram em séries consagradas realizadas por emissoras de TV tradicional e com direitos de distribuição comprados pela empresa, principalmente de drama e comédia. Breaking Bad (AMC), Grey’s Anatomy (ABC), How I met Your Mother (CBS) e The Office (NBC) foram as mais assistidas segundo o estudo da 7Park Data (de setembro de 2016 a setembro de 2017). Produtos originais, no entanto, também vêm ganhando cada vez mais visibilidade, sendo as líderes de acessos as séries Stranger Things, Orange is The New Black . House of Cards. O sucesso recente desses títulos produzidos pela Netflix alavanca o direcionamento de fundos para dar continuidade a este tipo de realização.
Em 2016, a Netflix fechou o ano com 43 séries, o que a colocou em primeiro lugar mundial na produção do formato. Desse modo, em apenas três anos de produção de ficção seriada original (a primeira foi House of Cards, em 2013), a empresa se tornou líder no mercado. Abaixo, é possível ver uma tabela com dados do The Hollywood Reporter (Goldberg, 2017), apontando os 15 maiores produtores mundiais de séries em 2016.
# | Produtora | Séries |
1 | Netflix | 43 |
2 | CBS | 32 |
3 | ABC | 32 |
4 | FOX | 25 |
5 | NBC | 23 |
6 | The CW | 16 |
7 | HBO | 15 |
8 | Amazon | 14 |
9 | Syfy | 14 |
10 | Adult Swim | 13 |
11 | PBS | 13 |
12 | Hulu | 12 |
13 | FX | 11 |
14 | BBC America | 10 |
15 | Comedy Central | 10 |
Como mencionado anteriormente, a produção de conteúdo original de ficção seriada da Netflix teve início em 2013, com a estreia de House of Cards. No mesmo ano a empresa lançou outras duas séries: Hemlock Grove e Orange is the New Black. Já no ano de lançamento, House of Cards venceu o Emmy de Melhor Direção em Série Dramática, tornando-se um marco na produção de conteúdos para a internet. Pela primeira vez, uma série que não foi exibida na televisão linear levou o prêmio mais importante da realização televisiva dos Estados Unidos, abrindo importantes precedentes para os novos sistemas de produção, distribuição e consumo de audiovisual.
De 2013 para cá, a Netflix traça uma trajetória de sucesso levando em conta as premiações da indústria de mídia e entretenimento. No Emmy Awards 2017, a empresa de streaming liderou as indicações a melhor série dramática, com House Of Cards, The Crown e Stranger Things. Além disso um documentário original Netflix foi premiado no Oscar do mesmo ano, o documentário de curta-metragem Capacetes Brancos, que concorreu ao lado de outras duas produções originais Netflix: Extremis, na mesma categoria, e o documentário de longa-metragem A 13ª Emenda.
Depois de apresentar um panorama da trajetória da Netflix e do dimensionamento de seus negócios ao redor do mundo, podemos seguir adiante nos detendo melhor sobre o que mais interessa para esta pesquisa: o catálogo brasileiro do site de distribuição por streaming.
É importante pontuar que a experiência de sucesso da Netflix nos últimos vinte anos só foi possível devido a uma série de parcerias estabelecidas e acabou gerando também o surgimento de vários concorrentes. O pioneirismo da empresa americana, que foi a primeira a oferecer um catálogo audiovisual consolidado de séries, filmes, documentários e shows em troca do pagamento mensal por uma assinatura, não garante liderança permanente no mercado. O negócio lucrativo estabelecido a partir de distribuição e consumo de produtos audiovisuais em streaming abriu as portas para outros agentes oferecerem serviços similares (Lobato, 2019).
LOCAL VERSUS GLOBAL: ONDE ESTÁ A PRODUÇÃO DA NETFLIX?
No atual mercado de distribuição e consumo por streaming, um dos aspectos mais poderosos é a exclusividade. As realizações próprias da Netflix ajudam a empresa a depender menos de estúdios de cinema e produtoras, que muitas vezes a encaram como concorrente e dificultam, impedem ou cessam os acordos de licenciamento. No caso de conteúdos originais, eles podem ficar indefinidamente no catálogo e também é possível lançá-los simultaneamente em todos os mercados alcançados pela Netflix. Em entrevista ao The New York Times (Steel, 2015), o cofundador e CEO da companhia, Reed Hastings, afirmou que a meta para 2018 foi encerrar o ano com metade do acervo constituído por conteúdos próprios. E grande parte da produção está sendo direcionada para fora dos Estados Unidos.
Da Europa, por exemplo, vem um dos maiores sucessos originais da Netflix, a série britânica The Crown. Mas a empresa vem tentando diversificar sua produção para além do universo anglófono, como se vê com o lançamento de Dark, série de ficção científica alemã. Em 2017, foi gravado o segundo título de ficção seriada no país, o criminal Dogs of Berlin, que estreou em 2018. Também começou a circular em 2018 a série The Rain, primeira produção da Netflix na Dinamarca, que aborda a trama de um futuro pós-apocalíptico. No universo ibérico, há a espanhola As Telefonistas, que conta com o “apoio” da conterrânea Élite, já bastante popular. Na França, a Netflix já realizou Marseille, primeira original de lá, e estreou Osmosis em 2019, série sobre relacionamentos amorosos intermediados por aplicativos.
No ambiente latino-americano, foi lançada em 2018 a primeira série do serviço de streaming realizada na Argentina, Edha, de Daniel Burma, mesmo diretor do premiado Abraços Partidos (2009). Em 2018, estreou Diablero, terceira série mexicana nativa Netflix, depois de Ingovernable e Club de Cuervos. No Brasil, a primeira série original da distribuidora de streaming foi 3%, que conquistou a crítica internacional, sendo a ficção seriada de língua não-inglesa mais vista nos Estados Unidos até 20182 – tendo sido amplamente vista fora do Brasil (Padiglione, 2017). Ainda em 2018, estrearam duas novas séries nacionais: O Mecanismo, de José Padilha e Samantha!, dirigida por Felipe Braga. Em 2019, houve o lançamento de Coisa Mais Linda, que é tematizada pelo universo da Bossa Nova durante as décadas de 1950 e 1960. A expectativa também é de crescimento para a produção original colombiana, que em 2018 estreou a série Distrito Selvagem, seguida pelo lançamento de várias outras obras (em diversos formatos) realizadas no país (de la Fuente, 2018) para o catálogo Netflix.
Japão, Coreia do Sul e Austrália também entram no mapa de produções originais Netflix, além de vários outros países. O grande gap está na África, seguindo a “cartilha tradicional” de divisão geográfica da indústria cultural no mundo. Grande parte desses investimentos para realização fora dos Estados Unidos se deve a um fato recente: no terceiro trimestre de 2017, pela primeira vez, o número de assinantes da Netflix fora dos Estados Unidos ultrapassou os usuários estadunidenses - 52,03 milhões fora dos EUA contra 51,92 milhões no país, então (Szalai, 2017). Esse cenário aponta para uma tendência à descentralização e se uma das bandeiras da empresa é seu alcance em mais de 190 países, parece coerente operar também para que mais territórios sejam elevados à categoria de produtores e não apenas consumidores de conteúdos.
Desse modo, ficam evidentes os esforços da Netflix no sentido de investir em produções regionais, muitas vezes tratando de temas globais (como a ficção científica em 3%, Dark e The Rain, - esta última que constitui o ascendente subgênero de séries criminais escandinavas), de fácil assimilação em praticamente qualquer país do mundo. No entanto, também surge a intenção de produzir com temas locais, concentrados nas particularidades de determinado lugar, como é o caso de O Mecanismo, série inspirada na Operação Lava Jato3 e Samantha!, que retrata um tipo muito peculiar brasileiro, a subcelebridade dos anos 1980 que caiu no ostracismo e busca se reposicionar midiaticamente. Nota-se, assim, uma tendência da Netflix de produzir séries, filmes e demais formatos que façam sucesso com o público local, mas também tenham potencial de aderência junto a audiências estrangeiras.
Este ponto é interessante tanto em termos de estratégia da Netflix como empresa global quanto em termos teóricos do fluxo global de televisão. Sarandos e outros executivos têm anunciado que a empresa ambiciona convencer a audiência norte-americana a ver séries de outros países nos gêneros que lhes interessam (Bylykbashi, 2019). Como exemplo da seriedade desta intenção, eles estão investindo cada vez mais na qualidade de dublagem e também nas legendas em inglês para séries de potencial sucesso como a espanhola La Casa de Papel - com temporadas em exibição desde 2017 (Goldsmith, 2019). Em termos teóricos, o potencial de sucesso desta estratégia é enorme. Discussões da UNESCO realizadas nos anos 1970 já identificavam um grande problema para os fluxos de cultura e informação globais, que se equilibravam em uma balança unidirecional, na qual os Estados Unidos exportam muito e importam pouco. Esta falta de equidade nos fluxos é uma das origens empíricas do conceito media imperialism (imperialismo de mídia) (Boyd-Barrett, 1977). Se a Netflix conseguir criar uma audiência notável para cultura importada dentro dos Estados Unidos, tem potencial para fazer parte do complexo processo de mudança e diversificação de países produtores em curso para alterar este paradigma, ao lado de outros integrantes da grande indústria de mídia.
Apesar de todas as diferenças entre obras licenciadas, licenciadas com exclusividade e produções originais, o catálogo Netflix apresenta na mesma aba4 todos os títulos cujos direitos de exibição sejam exclusivos da empresa e os que ela mesma tenha produzido. Dito de outra forma, isso significa que não há diferenciação, na navegação do site, entre séries, filmes, documentários, reality shows, programas de variedades e stand up comedy que tenham sido produzidos pela Netflix e aqueles licenciados para exibição exclusiva pela plataforma. Também entram nessa categoria do menu do site continuações de séries previamente realizadas por canais de televisão e que agora passam a ser feitas pela Netflix (por exemplo, a série Black Mirror, cujas duas primeiras temporadas são da emissora britânica Channel 4, e as duas últimas – do total de 4 temporadas existentes até maio de 2018 – foram produzidas pela distribuidora de conteúdos via streaming).
Desse modo, é bastante difícil diferenciar e, portanto, contabilizar quantos títulos disponíveis na aba “Originais” do menu Netflix são efetivamente produções originais, e não obras com contratos de exclusividade de exibição. Essa estratégia da empresa pode ser compreendida como uma medida para “inflar” a quantidade de títulos, temporadas, episódios, enfim, de horas de conteúdos referentes ao que se entende como “produção original”, já que a Netflix tem se consolidado nos últimos anos como a maior produtora audiovisual do mundo, conforme mencionado anteriormente. Parece, portanto, uma estratégia mercadológica para dar a impressão de que todas as obras ali presentes são produzidas pela companhia estadunidense. Na realidade, grande parte delas poderia constar em uma aba como “produções exclusivas”, visto que não foram realizadas pela Netflix, mas tiveram seus direitos de exibição comprados pela corporação de entretenimento para distribuí-las de maneira restrita. Para esta pesquisa, consideramos ambas as categorias: tanto os títulos originais quanto os com direitos exclusivos de exibição.
O CATÁLOGO BRASILEIRO DA NETFLIX
O catálogo oferecido pela Netflix ao público brasileiro, como apontado anteriormente, conta com quase quatro mil títulos em variados formatos. Entre eles, foram mapeadas 627 produções originais ou licenciadas com exclusividade para distribuição nacional. O levantamento foi realizado até o dia 11 de maio de 2018. Na tabela abaixo, é possível verificar as origens da programação, de acordo com o país.
País | Títulos | Participação Percentual | ||
1. Estados Unidos | 412 | 57,94% | ||
2. Inglaterra | 59 | 8,29% | ||
3. Canadá | 45 | 6,32% | ||
4. Japão | 40 | 5,62% | ||
5. França | 20 | 2,81% | ||
6. Coreia do Sul | 16 | 2,25% | ||
7. Austrália | 13 | 1,82% | ||
8. Espanha | 13 | 1,82% | ||
9. Alemanha | 9 | 1,26% | ||
10. Brasil | 9 | 1,26% | ||
11. Dinamarca | 8 | 1,12% | ||
12. Colômbia | 6 | 0,84% | ||
13. México | 6 | 0,84% | ||
14. Argentina | 5 | 0,70% | ||
15. Índia | 5 | 0,70% | ||
16. Itália | 5 | 0,70% | ||
17. Irlanda | 4 | 0,56% | ||
18. Bélgica | 3 | 0,42% | ||
19. China | 3 | 0,42% | ||
20. Noruega | 3 | 0,42% | ||
21. Geórgia | 2 | 0,28% | ||
22. Holanda | 2 | 0,28% | ||
23. Nova Zelândia | 2 | 0,28% | ||
24. Suécia | 2 | 0,28% | ||
25. Suíça | 2 | 0,28% | ||
26. África do Sul | 1 | 0,14% | ||
27. Albânia | 1 | 0,14% | ||
28. Áustria | 1 | 0,14% | ||
29. Bermudas | 1 | 0,14% | ||
30. Camboja | 1 | 0,14% | ||
31. Catar | 1 | 0,14% | ||
32. Chile | 1 | 0,14% | ||
33. Congo | 1 | 0,14% | ||
34. Emirados Árabes Unidos | 1 | 0,14% | ||
35. Equador | 1 | 0,14% | ||
36. Israel | 1 | 0,14% | ||
37. Jordânia | 1 | 0,14% | ||
38. Polônia | 1 | 0,14% | ||
39. Portugal | 1 | 0,14% | ||
40. República Tcheca | 1 | 0,14% | ||
41. Singapura | 1 | 0,14% | ||
42. Ucrânia | 1 | 0,14% | ||
Total | 7115 | 100% | ||
Entre os títulos originais ou licenciados com exclusividade pela Netflix disponíveis no catálogo brasileiro, há realizações de 42 países, o que aponta a diversidade das produções oferecidas. São obras da América Latina, da América do Norte, da África, da Ásia, da Europa e da Oceania. Apesar dessa amplitude de origens, um olhar mais atento percebe a distribuição desigual dos títulos entre os países. Somente os Estados Unidos são responsáveis por quase 58% dos conteúdos exclusivos disponíveis. Se forem somadas produções dos outros países anglófonos (Inglaterra, Irlanda, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), o total chega a mais de 75% de tudo que é original ou licenciado com exclusividade oferecido no catálogo brasileiro.
Países africanos, por outro lado, além de terem poucas produções (apenas África do Sul e Congo entram na lista), representam apenas 0,28% dos títulos originais ou licenciados com exclusividade no catálogo brasileiro da Netflix. São apenas duas obras oriundas deste continente, ambas coproduções: o filme Jadotville (África do Sul e Irlanda) e o documentário Virunga (Congo e Inglaterra).
Entre os latino-americanos, o cenário é um pouco diferente, apesar da ampla desvantagem em relação à quantidade de títulos norte-americanos, europeus e asiáticos. Há produções do Brasil, da Colômbia, do México, da Argentina, do Chile e do Equador (28 títulos ao total). O país mais bem posicionado em relação à quantidade de obras disponíveis é o Brasil, com nove produções. Em seguida, vêm Colômbia e México, com seis cada e Argentina, com cinco. Chile e Equador aparecem em último, com um título. No total, os seis países da América Latina compreendem 3,92% do total de títulos originais ou licenciados com exclusividade disponíveis no catálogo brasileiro da Netflix.
Se levarmos em conta a produção de países de língua espanhola para o catálogo de originais e licenciados com exclusividade da Netflix, temos o total de 32 títulos, ou 4,48% do total. Em Português, somando as realizações de Brasil e Portugal, o montante é de 10 títulos, ou 1,4%. Dado este panorama, é possível chegar à produção ibero-americana (que compreende os dois países da Península Ibérica, Portugal e Espanha, mais o conjunto de países colonizados por essas nações - ou seja, a América Latina quase em sua integralidade), que compreende 42 títulos, ou 5,88% do total de títulos originais ou licenciados com exclusividade no catálogo brasileiro da Netflix.
PARTICIPAÇÃO DA AMÉRICA LATINA E O PARADIGMA DA DEPENDÊNCIA CULTURAL
A indústria de mídia na América Latina, especialmente relacionada às produções audiovisuais, é marcada historicamente pela hegemonia norte-americana. As distribuidoras de filmes sempre concentraram muito poder na circulação desse tipo de conteúdo, principalmente as estadunidenses, desde o cinema mudo. Mesmo após a chegada do som nos filmes, os EUA continuaram dominando o mercado. Em 1935, 76,6% dos filmes exibidos na Argentina e 80% dos filmes exibidos no México eram dos Estados Unidos (Schnitman, 1984).
No cenário pós-Guerra Fria, a corrida ideológica e cultural fez com que países ditos então de 3º Mundo (e mesmo países ligados à União Soviética, o então denominado 2º Mundo, no leste europeu, que passou a ser mercado para produtos culturais americanos, ao invés de uma alternativa a eles) se tornassem um alvo deliberado para exportações americanas. Houve então uma reestruturação do sistema informacional mundial, que Fox (1992) denomina Nova Ordem Informacional Internacional.
Nesta nova ordem, as cultural commodities americanas (especialmente programas de TV) ganharam força e passaram a ocupar grande parte das grades de programação locais de televisão no mercado internacional. Na América Latina, com o apoio dos Estados Unidos às ditaduras militares espalhadas pelo continente, os governos estimularam a circulação de conteúdos norte-americanos, em um processo fundamental na arena de dominação cultural. Neste contexto, a TV assume papel crucial, que é reforçado nos anos 1990, com a popularização dos sistemas de satélites. O apelo é para a construção de um mundo com fronteiras abertas, comércio livre e, mais importante, mentes receptivas às produções culturais norte-americanas (Fox, 1992). É um percurso natural traçado pelo capitalismo nos sistemas mundiais (Fox, 1992), em que é preciso dominar mais e mais nações para ampliar a sua reprodução em escala global.
Após os processos de redemocratização nacionais, grupos midiáticos fortes na América Latina (como Televisa e Globo) tiveram seus negócios ampliados com a desregulamentação e abertura de mercados, tornando-se grandes exportadoras. Hoje, esses grupos travam batalhas para sobreviver na era streaming, com uma nova onda de conteúdos estrangeiros se popularizando na região. A TV, que já não é mais um modelo nacional, mas explicitamente transnacional, luta para a conservação das indústrias locais.
Apesar desses cenários de mídia redesenhados no México e Brasil, elevando os países à posição de exportadores de conteúdos, Schiller (1991) afirmou que o imperialismo ainda era uma realidade nos processos midiáticos transnacionais nos anos 1990. Há países africanos, latino-americanos e asiáticos que continuam vivendo sob dominação econômica, financeira e mesmo militar dos Estados Unidos e de países da Europa. Trazendo o debate para dias atuais, ocorre uma dominação cultural de supercompanhias de mídia. Com base em poucos países, elas são direcionadas pelo lucro e concentram muito poder na produção e distribuição de conteúdos pela internet, como o Google, o Facebook e a Netflix. A arena midiática-cultural, portanto, é um campo no qual a dominação dos Estados Unidos (e países anglófonos de maneira geral) resiste, senão intacta, pelo menos muito consideravelmente. Abaixo, um gráfico que reflete essa situação na distribuição de conteúdos originais ou licenciados com exclusividade na Netflix Brasil.
Todo esse desenvolvimento muito particular da indústria midiática da América Latina gerou uma “divisão do trabalho” na produção local. México e Brasil são exportadores tradicionais, Argentina e Venezuela são novos exportadores e Colômbia, Chile, Peru e demais nações são tradicionalmente importadoras de conteúdos audiovisuais (Sinclair & Straubhaar, 2013). Não por acaso, Brasil e México são os países da América Latina com mais títulos originais ou licenciados com exclusividade no catálogo da Netflix Brasil. Em seguida, vêm Colômbia e Argentina, apontando que a realização para plataformas em streaming por enquanto não inaugura novas “divisões de trabalho” em escala cultural no continente, mas obedece a regras que se estabeleceram historicamente (a exceção é a Colômbia, que vem ganhando espaço no mercado de realização televisiva). A estrutura preexistente para a produção audiovisual é, portanto, muito importante. Países com essa estrutura consolidada têm mais potencial para incluir conteúdos em novos sistemas de distribuição e consumo. Sistemas de comunicação nacionais podem se desenvolver além do previsto pela Teoria da Dependência (Fox, 1992), mas estão sempre presos ao atraso econômico de seus países, que os limita (caso de Brasil e México, por exemplo). É preciso de capital e riqueza para produzir conteúdos de mídia, especialmente audiovisuais. Países em desenvolvimento e mesmo pequenos países desenvolvidos (como Holanda e Bélgica, apenas a título de exemplo) acabam em desvantagem nessa dinâmica.
Na tabela abaixo, é possível observar as realizações originais e licenciadas com exclusividade da América Latina disponíveis no catálogo brasileiro da Netflix. Para enriquecer as análises, foram incluídos, além dos títulos, origens e anos de lançamento, gêneros e formatos das produções.
Título | Formato | Gênero | Países Produtores | Ano |
1. 3% | Série | Ficção Científica | Brasil | 2016 e 2018 |
2. A 4ª Companhia | Filme | Ação | México e Espanha | 2016 |
3. A Menina | Série | Criminal | Colômbia | 2016 |
4. As lendas | Série de Animação | Infanto-juvenil | México | 2017 |
5. Agustín Aristarán: soy rada | Stand up comedy | Comédia | Argentina | 2018 |
6. Club de Cuervos | Série | Comédia | México | 2015 e 2017 |
7. Edha | Série | Drama | Argentina | 2018 |
8. Edmilson Filho: notas, uma comédia de relacionamento | Stand up comedy | Comédia | Brasil | 2017 |
9. El Chapo | Série | Criminal | Colômbia, EUA e México | 2017 |
10. El Marginal: o cara de fora | Série | Criminal | Argentina | 2016 |
11. Especial de Ano Todo com Clarice Falcão | Stand up comedy | Comédia | Brasil | 2017 |
12. Estocolmo | Série | Criminal | Argentina | 2016 |
13. Fabrizio Copano: solo pienso en mi | Stand up comedy | Comédia | Chile | 2017 |
14. Farol das orcas | Filme | Drama | Argentina e Espanha | 2016 |
15. Fearless: oito segundos para a glória | Série Documental | Factual | Brasil e EUA | 2016 |
16. Felipe Neto: minha vida não faz sentido | Stand up comedy | Comédia | Brasil | 2017 |
17. Ingobernable | Série | Criminal | México | 2017 |
18. Juana Inés | Série | Drama | México | 2016 |
19. Laerte-se | Documentário | Factual | Brasil | 2017 |
20. Marco Luque: tamo junto | Stand up comedy | Comédia | Brasil | 2017 |
21. Mission Blue | Documentário | Factual | Bermudas, Equador e EUA | 2014 |
22. Narcos | Série | Criminal | Colômbia e EUA | 2015, 2016 e 2017 |
23. O Matador | Filme | Ação | Brasil | 2017 |
24. O Mecanismo | Série | Criminal | Brasil | 2018 |
25. Orbita 9 | Filme | Ficção Científica | Colômbia e Espanha | 2017 |
26. Pickpockets: maestros del robô | Filme | Drama | Colômbia | 2017 |
27. Sobrevivendo a Scobar, Alias JJ | Série | Criminal | Colômbia | 2017 |
28. Ultimate Beastmaster Brazil | Reality show | Game TV | Brasil e EUA | 2017 |
A pequena quantidade de produções da América Latina no catálogo de originais ou licenciados com exclusividade da Netflix no Brasil indica a existência de um cenário de perpetuação do que Straubhaar (1991) chama de one-way flow of television, ou o fluxo unilateral de conteúdos de televisão dos Estados Unidos e outros poucos países desenvolvidos para o resto do mundo. O sucesso dos Estados Unidos na produção e distribuição cultural se deve a fatores como grande mercado interno, capital para investimento, ambiente multicultural e frequente inovação de gêneros e formatos. Além disso, historicamente o país se apoiou na constituição de monopólios de distribuição e poder político, usando instituições como a Motion Picture Export Association of America, que tem sedes em todos os países da América Latina, por exemplo.
Apesar disso, percebe-se a partir dos dados da tabela acima não apenas uma consistência na quantidade de títulos originais ou licenciados com exclusividade produzidos na América Latina no catálogo brasileiro da Netflix, mas também um crescimento dessa (ainda tímida) oferta. O mapeamento, como mencionado anteriormente, foi delimitado até 11 de maio de 2018. No entanto, durante os anos seguintes foram lançadas novas produções oriundas da região, como La Casa de Las Flores (México), Distrito Selvagem (Colômbia), A Lei Secreta (Colômbia) e La Reina del Flow (Colômbia), entre outras.
Também se percebe uma tendência da América Latina à produção seriada, sendo mais da metade dos títulos listados enquadrados no formato série (a maioria deles é de séries ficcionais, mas há também uma série de animação infanto-juvenil e uma série documental). Além disso, também ficam evidentes algumas inclinações de gênero da mesorregião, cujos títulos são em sua maioria comédias ou narrativas criminais. Também é notável a popularização das narcosséries, criações genuinamente latino-americanas que retratam particularidades deste lugar.
Após esta breve explanação sobre a produção audiovisual da América Latina para a Netflix, é necessário atualizar o paradigma da dependência cultural, compreendendo que não existe hegemonia sem circulação cultural (Martín-Barbero, 2001). Não há imposição que venha “de cima” que não incorpore em certa medida o que vem “de baixo”. Straubhaar (1991) lança o conceito Asymmentrical Interdependence (ou Interdependência Assimétrica), definindo diversas relações nas quais países se encontram em posições desiguais de poder e iniciativa política, econômica e cultural.
É um olhar sobre o paradigma da dependência cultural que não deixa de levar em conta a resistência de culturas e subculturas. É preciso compreender que audiências ativamente fazem escolhas entre assistir a programas internacionais, nacionais ou regionais. Quando há conteúdos disponíveis, tendem aos nacionais e regionais, devido à proximidade cultural (Straubhaar, 1991). Isso estimula a produção local e também a importação de programas de regiões semelhantes quanto à cultura e à língua. Talvez mirando no mercado latino-americano, essa seja a razão de haver ao menos alguns títulos da região disponíveis na Netflix, além de um visível investimento na expansão dessa produção – apesar de ela ainda ser tímida se comparada à de outros países do norte econômico global. Percebe-se também o crescimento de investimento em produções asiáticas, apontando que Japão e Coreia do Sul, por exemplo, são focos mais evidentes de expansão.
A importância desse fenômeno é tremenda quando se leva em consideração que vivemos em um cenário marcado historicamente pela homogeneização cultural, apesar de todos os movimentos locais de resistência. Desde os anos 1940, há a preocupação com os licenciamentos da programação americana, seguida por inquietações relacionadas ao crescimento da TV a cabo e por satélite mais recentemente, que resultou em uma grande expansão da TV estadunidense nos anos 1980 e 1990. Hoje, no entanto, os maiores fluxos globais de mídia ocorrem pela internet, com a popularização de plataformas como o YouTube, o Facebook e a Netflix. Títulos produzidos por plataformas de distribuição por streaming, inclusive, compõem o que vem sendo chamado de Nova Era de Ouro da TVAmericana (Straubhaar, Castro, Duarte, & Spence, 2019) - séries não apenas produzidas e distribuídas pelos canais tradicionais de televisão, mas também pela Netflix, Amazon Prime Video e Hulu.
Lotz (2007) aponta três eras da TV: 1) network era, com poucos canais alcançando muitas pessoas. Esse período se perpetua em certa media na América Latina, onde a TV aberta ainda é a mais popular; 2) multi-channel era, na qual a TV a cabo se populariza, com expansão de canais e maior controle da audiência sobre qual programação consumir. Chegou mais tarde e com menos impacto na América Latina – até 2010, somente para classe média e elites; e 3) post-network era, marcada pela inovação de roteiros para distribuição não-linear; espalhamento de conteúdos televisivos, internet. Vem se popularizando rapidamente na América Latina a partir de investimentos em distribuição por streaming, como faz a Netflix.
É importante pontuar que todas as eras na América Latina são divididas por classe social e possibilidade de acesso à infraestrutura, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos e no norte econômico global, onde esse acesso é mais ou menos democratizado. No Brasil especialmente, tecnologias que dependem não apenas de internet, mas também de banda-larga para se espalharem tendem a ter uma entrada mais lenta. Vale mencionar que mais de 60 milhões de pessoas no país não têm acesso nenhum à internet e grande parte da população conectada à rede mundial de computadores usa exclusivamente dispositivos móveis, muitas vezes com planos de dados limitados e baixa velocidade (Gomes, 2018). Essa formatação tecnológica e social peculiar determina como a Netflix se estabelece na América Latina.
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