Dossiê
Uma economia política da comunicação internacional: a contribuição de Armand Mattelart para a análise do sistema-mundo das mídias
A political economy of international communications: Armand Mattelart’s contribution to the world-system analysis of the media
Uma economia política da comunicação internacional: a contribuição de Armand Mattelart para a análise do sistema-mundo das mídias
Matrizes, vol. 14, núm. 3, pp. 157-174, 2020
Universidade de São Paulo
Recepción: 01 Septiembre 2020
Aprobación: 07 Diciembre 2020
Resumo: Este ensaio parte da obra de Armand Mattelart para vislumbrar um programa de pesquisa orientado para a abordagem crítica e estrutural da comunicação internacional nas suas desigualdades, assimetrias e relações de dependência. Com uma revisão das reflexões do pensador belga nos seus pontos de contato com a proposição teórico-metodológica da análise dos sistemas-mundo, de Immanuel Wallerstein, e buscando articular as duas perspectivas, especialmente na concepção de comunicação-mundo como sistema-mundo da comunicação, o trabalho delineia uma área de interseção entre três vertentes teóricas: a comunicação internacional, a economia política da comunicação e a economia política internacional.
Palavras-chave: Armand Mattelar, Immanuel Wallerstein, economia política da comunicação, economia política internacional, comunicação internacional.
Abstract: This essay stems from the works of Armand Mattelart to envision a research program drawn to the critical and structural approach of international communication, in all its inequalities, asymmetries and relations of dependency. By reviewing the reflections of the Belgian thinker in his entry points to the theoretical-methodological proposition of Immanuel Wallerstein, the world-systems analysis, and by seeking to articulate both perspectives, especially in the former’s notion of “world-communication” as the world-system of communication, the paper delineates an area of intersection between three theoretical schools: International Communication, International Political Economy and the Political Economy of Communication.
Keywords: Armand Mattelart, Immanuel Wallerstein, political economy of communication, international political economy, international communication.
EM 2015, NA conferência de abertura do IX Congresso da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (Ulepicc), em Havana, Armand Mattelart contou um episódio que vivenciou com sua família. Estava com o filho Tristan indo levar os netos à escolinha primária, quando avistou uma imagem que o fez paralisar-se. Ali, na Paris do século XXI, depois de ter sofrido golpe e exílio, e de ter testemunhado as mutações do contexto geopolítico e tecnológico das décadas anteriores, o professor belga se deparou com o muro da escola pintado com figuras da Disney, incluindo Mickey Mouse e o Pato Donald. Diante da imobilidade do pai, Tristan perguntou:
“O que foi, pai?”.
“Você não vê?”, replicou o autor de Para Ler o Pato Donald, “Eles venceram!”.
A anedota ajuda a sintetizar tanto o sentido geral da obra de Mattelart – grande parte dela produzida junto à esposa, Michèle –, nunca distanciadamente analítica, mas engajada e comprometida com mudança social, quanto o contexto em que nos inserimos hoje, no qual podemos relê-la. De fato, a onipresença das transnacionais da cultura de massa – como a Disney (Mattelart & Dorfman, 1971/1977) – é atualmente de tal intensidade que dificilmente seria imaginável nos anos 1970. A digitalização de quase todos os processos produtivos e comunicacionais permitiu uma ubiquidade e um controle insidioso sobre o cotidiano. A ideia de redes como estrutura de fluxos de informação horizontais e descentralizados escamoteou uma distopia em que menos organizações do capital privado acessam mais diretamente a subjetividade e o potencial de consumo dos indivíduos. E a globalização (ou mundialização) do capital encetou uma ocidentalização da produção cultural, de forma ainda mais pervasiva nas sociedades do Sul Global.
Todos esses processos históricos, que conferiram centralidade à comunicação na sociedade atual, foram tratados na produção intelectual de Armand Mattelart, que se estende por mais de 50 anos. Embora seja um corpo bibliográfico abrangente e diverso, algumas linhas-mestras perpassam suas reflexões: a busca por uma análise sistêmica da história da comunicação; a constante interpretação política da adoção de certos padrões tecnológicos em detrimento de outros; e, finalmente, uma aprofundada história das ideias, enriquecida pela miríade de referências que ele elenca – o que, longe de ser pernóstica, fornece uma clara genealogia de noções, conceitos e teorias, cada um em seu contexto geográfico e histórico e associado a interesses específicos. Em conjunto, erige um programa de pesquisa de uma vida inteira que, em diversos pontos, dá continuidade, na comunicação, a formulações teórico-metodológicas totalizantes, examinadas a seguir.
Este ensaio, desenvolvido a partir de reflexões esboçadas em minha tese de doutorado (Aguiar, 2018), busca salientar as interseções entre a obra de Mattelart e a análise dos sistemas-mundo, proposta por Immanuel Wallerstein (1974). Para isso, começa com um breve exame das influências dos conceitos de economia-mundo e sistema-mundo nos escritos do pensador belga. Em seguida, discute como as diferentes disciplinas que ele mobilizou para estudar a comunicação internacional ao longo de sua trajetória se articulam com a perspectiva wallersteiniana. Conclui, finalmente, tentando delinear um programa de pesquisa em Economia Política da Comunicação Internacional, demarcando as contribuições de Armand Mattelart para tal empreitada.
BRAUDEL E WALLERSTEIN NA OBRA DE MATTELART
Em vários pontos de seus livros e ensaios, Mattelart evoca nominalmente o arcabouço conceitual do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), que o precedeu em duas gerações nas ciências sociais francófonas, e de outro expoente do pensamento crítico, mais recente e seu coetâneo: o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein (1930-2019), marxista heterodoxo.
No início do século XX, como expoente da escola dos Annales1, Braudel liderou o desenvolvimento de uma nova metodologia historiográfica baseada na concepção da história de longa duração (em francês, longue durée), que revolucionou o método até então dominante. Contra uma historiografia apoiada em episódios de ruptura e transformação, os historiadores dos Annales privilegiavam o olhar sobre as permanências, as continuidades e o cotidiano, enxergando ali, paradoxalmente, as concretudes em que se materializam os processos macro-históricos de transformação das sociedades. Argumentavam que somente com exames pormenorizados em prazos dilatados seria possível alcançar o distanciamento necessário para reconhecer as grandes estruturas determinantes das organizações sociais.
Ao analisar tal história dos elementos cotidianos que conformaram o projeto de civilização da classe burguesa europeia – a Modernidade –, especialmente por meio das relações comerciais na transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, a pesquisa de Braudel confere protagonismo à dimensão das trocas desiguais, um termo que ele toma emprestado do economista grego Arghiri Emmanuel (1911-2001). O historiador francês desenvolveu métodos objetivos para quantificar as transferências de riquezas das zonas em torno da Europa (Ásia, Oriente Médio, norte da África) para as capitais mercantis da Renascença (especialmente Veneza, Gênova, Florença e Amsterdã). Mais tarde, os mesmos métodos seriam aplicáveis para a espoliação dos países colonizados por parte dos países colonizadores (Martins, 2011, p. 30), materializada em “deslocamentos espaciais de recursos, mercadorias e pessoas” (Aguiar, 2018, p. 150). É desse método que derivam os conceitos de sistema-mundo e de economia-mundo, que Immanuel Wallerstein emprega para descrever “o conjunto articulado das relações econômicas e políticas construídas pela burguesia na Modernidade”, desde seu centro original na Europa Ocidental para espalhar-se, em direção centrífuga, até países colonizados (Aguiar, 2018, p. 150).
O que queremos dizer por economia-mundo (économie-monde de Braudel) é uma ampla zona geográfica dentro a qual há uma divisão de trabalho e daí significativo intercâmbio interno de bens básicos ou essenciais, bem como fluxos de capital e de trabalho. Uma característica definidora de uma economia-mundo é não ser encerrada por uma estrutura política unitária. Em vez disso, há várias unidades políticas dentro de um sistema interestatal. E uma economia-mundo contém várias culturas e grupos – praticando várias religiões, falando várias línguas, diferindo em seus padrões cotidianos. Isto não significa que não evolvam em alguns padrões culturais comuns, o que chamaremos de geocultura. Significa que não se deve esperar encontrar homogeneidade nem política nem cultural numa economia-mundo. O que mais unifica a estrutura é a divisão de trabalho constituída em seu interior2. (Wallerstein, 2006, p. 23)
O autor estadunidense procurou expandir a construção conceitual de Braudel para além do aspecto econômico: a economia-mundo seria um dos dois tipos de sistemas-mundo, sendo o outro tipo um império. Para Wallerstein, o que ambos teriam em comum seria uma “configuração articulada em territórios dispersos, mas integrados em dinâmicas de intercâmbio mutuamente necessárias e historicamente delimitadas, tendo início, apogeu e fim” (Aguiar, 2018, p. 162). O aspecto da delimitação temporal é crucial para o argumento de Wallerstein, pois tanto rejeita a suposta eternidade propugnada para alguns sistemas, como ao mesmo tempo exige causas históricas para o surgimento de cada um deles. Por isso, o capitalismo – que Wallerstein específica como capitalismo histórico – construiu a civilização capitalista, que ele designa como o moderno sistema-mundo.
De início, cabe enfatizar uma distinção crucial que não é mera filigrana terminológica: assim como o conceito braudeliano de economia-mundo não designa o conjunto da economia mundial, mas sim uma economia que seja um mundo em si, também a noção de sistema-mundo não é um sistema que engloba obrigatoriamente todo o mundo, mas sim um sistema que seja em si mesmo um mundo (Wallerstein, 1991, p. 192). Essa definição embasa as traduções do termo em línguas latinas, que, seguindo a estrutura lançada por Braudel com sua economia-mundo (économie-monde), verte o segundo termo não na forma adjetiva (mundial), mas sim substantiva (mundo). Também, para reduzir expectativa, é bom ter claro que a análise dos sistemas-mundo que Wallerstein não é um método de pesquisa, mas um enquadramento conceitual.
Este conceito de economia-mundo é definido por Fernand Braudel com base numa tripla realidade: um espaço geográfico dado; a existência de um polo, centro do mundo; zonas intermediárias em torno deste nó fulcral e margens muito amplas que, na divisão do trabalho, estão subordinadas e dependentes das necessidades do centro que dita a sua lei. Este esquema de relações tem um nome: troca desigual. Esta troca cria disparidades crescentes entre o centro e a periferia do sistema capitalista, o que faz com que Immanuel Wallerstein, ao dialogar com o historiador dos Annales, afirme que é uma “criação de desigualdade do mundo”, só concebível num espaço desmesurado, universalista. (Mattelart, 1994/1996, pp. 206-207)
De fato, como observa Mattelart, a longa duração é um dos pontos de partida para Wallerstein desenvolver o que ficou consolidado como a análise dos sistemas-mundo, proposição metodológica para as ciências sociais que o estadunidense propôs ao longo de quase 50 anos (de 1971 até sua morte, em 2019). Nessa formulação, a perspectiva da totalidade – um pressuposto do pensamento marxiano – exige referenciais espaço-temporais que extrapolam os países como unidade de análise. Portanto, defende tal proposta, relações entre países, de preferência entre amplas regiões do planeta, como continentes, ao longo de séculos e não de poucos anos, são mais capazes de oferecer respostas a indagações de pesquisas nas ciências sociais.
Desse modo, estes economistas passam a defender que no capitalismo moderno, a unidade de análise deixa de ser a sociedade nacional e passa a ser o sistema-mundo, do qual as nações são apenas componentes. Esse pensamento dá forma a primeira perspectiva teórica em que atua a economia política da comunicação, a dependência cultural, pautada na integração mundial versus a troca desigual de informações e produtos culturais entre as nações. (Rêgo & Dourado, 2013, p. 8)
Sociólogo de formação original, mas dedicado à história econômica durante boa parte de sua trajetória, Wallerstein dedicará seu esforço intelectual justamente a defender que a compartimentação das disciplinas sociais e humanas não faz sentido3. Nesse propósito, reúne aportes anteriores de fontes distintas para construir um método mais amplo e realista de estudar os processos históricos. Desde 1974, com o primeiro volume de sua trilogia sobre o sistema-mundo capitalista, Wallerstein propôs as bases da análise dos sistemas-mundo (ASM)4, tributária tanto da longue durée braudeliana quanto da Teoria Marxista da Dependência (TMD)5 – com as quais Armand Mattelart teve contato tanto na Europa quanto no Chile, no período do governo de Salvador Allende (1970-1973).
Tal método abrangente no tempo e no espaço transparece em Mattelart como uma visão em muito convergente com as histórias de longa duração que ele mesmo constrói sobre a comunicação internacional em escala global (em Comunicação-Mundo, 1991/1994), o campo da comunicação (A Invenção da Comunicação, 1994/1996), o projeto burguês de construir um sistema global de comunicação para exponenciar a acumulação de capital (A Globalização da Comunicação, 1996/2000), as concepções do mundo como uma comunidade global (História da Utopia Planetária, 1999/2002), a gestão da sociedade como uma máquina (História da Sociedade da Informação, 2001/2006) e a geopolítica da cultura pela perspectiva do Sul Global (Diversidade Cultural e Mundialização, 2005).
Como já pude comentar antes (Aguiar, 2018, p. 37), talvez o maior mérito de Mattelart seja sua assombrosa capacidade de mapear a genealogia de determinados tópicos, elencando e encadeando autores e estudos prévios em mosaicos de referências e diálogos conceituais, facilitando enormemente a revisão bibliográfica. Nessa perspectiva de longa duração, Mattelart repassa as histórias das ideias, ideologias e experiências que embasaram políticas públicas, práticas econômicas e ações políticas, desde a aurora da Modernidade até os nossos dias, em relação à comunicação internacional em escala global.
Nesse esforço, Mattelart recorre a Braudel e Wallerstein em diversas ocasiões, como para enfatizar a coexistência do capitalismo com outros modos de produção (Mattelart, 1996, p. 221) e para aderir à crítica de Wallerstein à história segmentada (Mattelart, 1996, p. 207), que certas correntes de teóricos da comunicação adotavam para defender etapas padronizadas no desenvolvimento de mídia (detalhado adiante).
Essa referência é mais patente no livro Comunicação-Mundo: História das Ideias e das Estratégias (no original, La Communication-Monde: Histoire des Idées et des Stratégies), de 1991, cujo próprio título adapta o conceito braudeliano de economia-mundo. Nele, pela primeira vez, Mattelart aceita o objetivo ambicioso de fazer uma história de longa duração das tecnologias de comunicação modernas e de suas instrumentalizações políticas e ideológicas. Seguindo precisamente um modelo braudeliano de história, o autor belga não se retém num período curto nem num espaço limitado, mas abarca o mundo em pelo menos 200 anos de transformações, desde a invenção do telégrafo óptico, em 1792, por Claude Chappe.
Já no preâmbulo de Comunicação-Mundo, Mattelart (1991/1994) parafraseia o geógrafo francês Yves Lacoste ao afirmar que “a comunicação serve, antes de tudo, para fazer a guerra” 6 (p. 9). De fato, o tema da guerra na mídia (e pela mídia) permeia o livro e estava em plena evidência quando o livro estava sendo escrito. Em 1991, as transmissões ao vivo da Guerra do Golfo pela CNN tinham posto às claras a estratégia de vender o conflito ao público de uma forma sanitizada, esterilizada, gamificada, em contraste com a crueza das fotos de mutilados, minados e desfigurados por napalm na Guerra do Vietnã (1963-1975).
O ano de 1991, quando Mattelart publicou Comunicação-Mundo, foi de preparação para as celebrações e contracelebrações, no ano seguinte, dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América, quando os sentidos históricos da colonização foram debatidos e, pela primeira vez de forma ampla, questionados. Desde o ano anterior, o pensamento de Wallerstein estava muito em voga – nos debates, nos eventos acadêmicos, na imprensa – em função da crítica estrutural e do ativismo do autor estadunidense à interpretação protocapitalista da função histórica da colonização7. Naquele mesmo ano, Wallerstein travou uma polêmica pública com André Gunder Frank em periódicos acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos em torno da natureza singular do capitalismo como sistema histórico (o que o primeiro defendia e o segundo contestava) e da formatação mais adequada da própria noção de sistema-mundo. Gunder Frank afirmava que havia historicamente um único sistema mundial (em inglês, world system, sem hífen) e, em linha com Giovanni Arrighi e Samir Amin, propugnava que a atual configuração apresenta continuidade com as relações de poder político (impérios) e comércio construídas na ecumene geográfica tricontinental (Europa, Ásia e África) ao longo dos últimos 5 mil anos. Wallerstein (1991, p. 190), em contraposição, apontava que a lógica estruturante do capitalismo, por se fundamentar na acumulação incessante de capital, justifica sua singularidade como um sistema-mundo à parte, e nisso o autor se fia para embasar sua preferência pelo uso do termo no plural, sistemas-mundo. Para Wallerstein, “o moderno sistema-mundo (ou a economia-mundo capitalista) é meramente um sistema entre vários”8 (p. 192). A peculiaridade desse sistema-mundo, argumentava, “é ter-se mostrado forte o bastante para destruir todos os demais contemporâneos a ele”9 (p. 192).
Desse modo, o termo comunicação-mundo é admitidamente inspirado no conceito de economia-mundo de Braudel, e “serve para continuar a análise desse novo espaço transnacional hierarquizado: a lógica pesada das redes imprime sua dinâmica integradora, ao mesmo tempo em que produz novas segregações, novas exclusões, novas disparidades” (Mattelart & Mattelart, 1995/2011, p. 170). Nessa concepção, as unidades de análise são expandidas globalmente, para além de contextos nacionais, e a dimensão temporal é alargada para histórias de longa duração. Ali, embora não discuta em momento algum o que seria comunicação-mundo como conceito (isso será feito somente mais adiante, em 1995, no Histoire des Théories de la Communication, novamente em coautoria com Michèle Mattelart), fica claro o diálogo com a concepção totalizante da ASM. Em um dos raros momentos em que Mattelart (1991/1994) se detém para delimitar o alcance conceitual do termo comunicação-mundo, este é finalmente descrito como “um espaço trabalhado pelas lógicas desterritorializantes da desregulamentação e globalização da economia-mundo e, ao mesmo tempo, pelo processo de reterritorialização dos espaços singulares”10 (p. 12). Assim, para tratar da comunicação internacional, a noção de comunicação-mundo toma como unidade de análise não os sistemas nacionais como conjuntos autônomos, mas sim a totalidade global sistêmica em que estão inseridos.
EPI, EPC E GLOBAL MEDIA STUDIES
Três vertentes ou tradições teóricas são desenvolvidas a partir das reflexões dos autores mencionados até aqui. Em primeiro lugar, tanto cronologicamente quanto em grau de amplitude temática, constrói-se a Economia Política Internacional (EPI). Esse subcampo transdisciplinar deve muito às referências da economia, da geografia, da geopolítica e da história, decerto, inclusive às elaborações de autores de matriz liberal e opostos à tradição crítica marxista – como Rostow e Schumpeter. Em segundo, como escola teórica dentro da comunicação, e nascida em heterogenia intelectual, a Economia Política da Comunicação (EPC) se ocupa do exercício do poder por meio do setor da comunicação. E a comunicação internacional, que nasce diretamente influenciada pela geopolítica, como disciplina aplicada, se concentra sobre as dinâmicas e as relações comunicacionais entre países e sociedades distintas.
A perspectiva braudeliana da longa duração teve impacto especial sobre os estudos de economia política, que, desde Smith e os fisiocratas, se apoiavam em comparações de larga escala para demonstrar processos estruturantes das economias nacionais. Entretanto, a inovação principal do método dos Annales foi expandir a escala de análise para o nível global: assim como para o eixo temporal eram contados não anos e décadas, mas séculos e milênios, para o eixo espacial já não bastavam regiões e países, mas continentes e o planeta. O Estado-nação como unidade de análise não poderia bastar, dada sua inserção sistêmica dentro de um conjunto articulado de relações econômicas globais. Empregando a perspectiva braudeliana, a economia política desdobrou-se na EPI, cujos objetos de investigação extrapolavam o núcleo inicial do capitalismo, concentrado no eixo Atlântico Norte, e passavam a entender todas as áreas do mundo tocadas pela atividade econômica burguesa (mercantil, industrial e capitalista) como partes integrantes de um mesmo sistema. Braudel, Wallerstein e os já citados teóricos da dependência estão entre os principais referenciais da EPI, junto a autores de matrizes epistemológicas tão distintas quanto Nikolai Kondratiev, Joseph Schumpeter, Walt Rostow, Paul Sweezy, Paul Baran e os cepalinos Celso Furtado e Raúl Prebisch – de quem Wallerstein tomou o conceito de estrutura centro-periferia adotado na ASM.
Outro ponto em comum nas abordagens de Wallerstein e Mattelart é a crítica ao paradigma da modernização. Para os desenvolvimentistas, modernizar uma sociedade seria “não apenas industrializar e promover um crescimento de produtividade, mas adequá-la toda ao modelo atlântico-setentrional implantado pela classe burguesa e concebido por seus intelectuais orgânicos” (Aguiar, 2018, p. 171). E, nesse esforço, os meios de comunicação de massa e a circulação da informação ganhavam papel central.
Derivada dessa noção, no início dos anos 1960 nasceu a perspectiva do difusionismo entre teóricos da Comunicação Internacional, especialmente norte-americanos, pela qual o processo de inovação tecnológica seria difundido dos países mais ricos para os mais pobres, onde acarretaria transformações estruturais “espontâneas” nas sociedades, reproduzindo as consequências da Revolução Industrial europeia e norte-americana nas demais regiões do planeta (Aguiar, 2018, p. 171). Tal proposição carecia de consideração pelas condições históricas objetivas locais e, convenientemente, anulava de suas variáveis o componente concreto do colonialismo e do imperialismo, que subjazeram à industrialização da Europa e da América do Norte. Afinal, como sintetiza Mattelart (1994/1996, p. 213), “as relações de sujeição perante o domínio irão inscrever-se nos próprios traçados das redes de comunicação nacionais das zonas periféricas”.
A extraversão será a regra. O caso dos territórios coloniais onde os caminhos-de-ferro e o telégrafo se implantam fundamentalmente segundo o modelo da “via de penetração” representa sem dúvida um esquema extremo. A razão militar do transporte de tropas esteve na origem de muitas redes ferroviárias. . . . A necessidade de estabelecer ligações entre os portos e as minas e outros jazigos de matérias-primas fez o resto, privando geralmente essas regiões de comunicações transversais e isolando-as, muitas vezes, dos seus vizinhos próximos, quando estes estavam enfeudados aos impérios rivais. (Mattelart, 1994/1996, p. 213)
Recorrendo a Wallerstein diretamente, Mattelart observa que a estrutura centrípeta (concorrendo em direção ao centro) do moderno sistema-mundo é precisamente a mesma que orienta o desenho das infraestruturas de comunicação, tanto as de telecomunicações (dos cabos telegráficos do século XIX às redes digitais) quanto as de circulação da informação, especialmente os sistemas de fluxos das agências de notícias transnacionais.
Quando voltamos a traçar as redes comerciais sobre o mapa, apercebemo-nos de que elas têm uma configuração centrípeta bastante nítida. Seus pontos de partida são diferentes, mas todos os pontos de chegada estão orientados para um pequeno número de regiões. Diríamos, hoje, que têm tendência para se deslocarem da periferia para o centro, ou “coração”, da economia-mundo. . . . Sob o termo de “redes comerciais” ou “ramos”, designamos uma forma extensa de divisão social do trabalho que, a partir do desenvolvimento do capitalismo histórico, tornou-se cada vez mais extensiva do duplo ponto de vista geográfico e funcional, ao mesmo tempo que se consolidava seu conteúdo hierárquico. Essa hierarquização do espaço decalcada sobre a estrutura dos processos produtivos conduziu a uma polarização cada vez maior entre zonas centrais e zonas periféricas da economia-mundo, não só ao nível da repartição das riquezas (níveis de remuneração real, qualidade de vida, etc.), mas também e sobretudo ao nível da própria dinâmica da acumulação do capital. (Wallerstein, citado em Mattelart, 1994/1996, p. 207)
A corrente difusionista, de matriz liberal clássica, defendia claramente que o processo de desenvolvimento seria difundido dos centros do sistema-mundo para a periferia, exigindo nesta a importação não apenas de infraestrutura, mas também de superestrutura: valores, ideologias, relações de produção e de poder. Nas palavras de seu principal representante, Everett Rogers (citado em Mattelart, 1991/1994), o desenvolvimento é
um tipo de mudança social no qual novas ideias são introduzidas em um sistema social com o objetivo de produzir o aumento da produção per capita e a elevação dos níveis de vida através de métodos mais modernos de produção e de uma organização social aperfeiçoada. (p. 185)
É por isso que, como anotado anteriormente (Aguiar, 2018, p. 171), a comunicação – como disciplina e como setor econômico – foi situada pelos difusionistas no centro das dinâmicas de transformação de uma sociedade, conforme ressalta Mattelart (1991/1994, pp. 170-177; 2002, pp. 336-337; Mattelart & Mattelart, 1986/2004, pp. 230-231). Esse paradigma acrítico enxergava como natural a reprodução de técnicas, processos e valores dos centros nas nações periféricas, sem levar em conta as particularidades e prioridades destas últimas, como critica Mattelart (1991/1994):
Futuros receptáculos de um progresso proveniente do exterior, as sociedades ditas tradicionais estavam reduzidas a esperar a revelação dos dei ex-machina encarregados de difundir a boa palavra cosmopolita. Espelho e anteparo: o desenvolvimento-modernização incitava essas sociedades, por um lado, a ver a imagem de seu futuro através do modelo ideal encarnado nas sociedades modernas do Norte urbano e industrial e, por outro, a considerar sua própria herança cultural como uma desvantagem no sentido da evolução social e econômica. (pp. 201-202)
O difusionismo parecia, em um primeiro exame, ser confirmado pelas trajetórias geo-históricas de expansão das tecnologias de telecomunicações e dos suportes de mídia, todos iniciados no centro do sistema-mundo capitalista e, de lá, disseminado para as periferias em ondas concêntricas e centrífugas, nas mesmas linhas descritas por Prebisch e Wallerstein. Entretanto, a difusão trazia inerente em si o aprofundamento da dependência, uma vez que o controle sobre a tecnologia – em produção, reprodução, manutenção e capacitação inicial para uso – continuava nas mãos do capital sediado no centro. Sem transferência de tecnologia, a pura instalação de equipamentos em territórios periféricos não os dotava de autonomia para incorporação tecnológica em suas estruturas econômicas, inclusive de comunicação. Pelo contrário: tornava-os ainda mais dependentes dos fornecedores de equipamentos, peças de reposição, suprimentos, consertos e manutenção, bem como dos profissionais capacitados para operá-los. E é perfeitamente lícito questionar se essa dinâmica se alterou substancialmente com o processo de digitalização da comunicação e da economia (Aguiar, 2018, p. 174).
As críticas contra o modelo de difusão recusam, globalmente, sua pretensa neutralidade e os três pressupostos que a legitimam: [que] a comunicação engendra, por si só, o desenvolvimento; [que] o crescimento da produção e consumo de bens e serviços constitui a essência do desenvolvimento e desemboca em uma justa repartição das remunerações e das chances; [que] a chave para do aumento da produtividade é a inovação tecnológica, sem procurar saber quem tira proveito ou fica prejudicado com isso11. (Mattelart, 1991/1994, pp. 185-186)
Resenhando o livro Comunicação-Mundo alguns anos depois do lançamento, Beaud e Kaufmann (1998) observam que é justamente pela perspectiva de análise global e de longa duração que Mattelart é capaz de reconstituir a descendência direta entre os estudos de informação no contexto bélico e as doutrinas teóricas da comunicação adotadas pelo multilateralismo em tempos de paz.
Como uma alusão ao conceito de economia-mundo que Immanuel Wallerstein desenvolveu na tradição das ideias de Fernand Braudel, o título do livro de Mattelart claramente define sua intenção: recontar a história da globalização das redes e dos fluxos de informação, e suas implicações políticas, econômicas e culturais. Nessa história, a guerra ocupou uma posição chave, particularmente a Segunda Guerra Mundial. De acordo com Mattelart, ela serviu de laboratório para propaganda e ação psicológica em uma escala global, cujos teóricos, e primordialmente acadêmicos norte-americanos, exerceram enorme influência, notavelmente em organizações internacionais como a Unesco12. (p. 9)
Entre 1962 e 1974, segundo o próprio Mattelart (2002, pp. 334-335), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) abraçou alegremente a ideologia do desenvolvimentismo, que se converteu em parâmetro dos projetos apoiados ou financiados pela organização. De fato, nomes consagrados na pesquisa em comunicação internacional, como Wilbur Schramm, Ithiel de Sola Pool e Jacques Kayser foram consultores da Unesco nas décadas de 1950 e 1960, depois de terem trabalhado para seus governos na época da guerra. A ideologia da comunicação para o desenvolvimento, sustentada pelos Estados Unidos, ganha fôlego dentro da Unesco e serve de orientação para a gestação de ambientes econômicos de mídia favoráveis aos negócios e aos conteúdos produzidos pelas agências e grandes corporações dos EUA e da Europa Ocidental.
Se, com a análise dos sistemas-mundo, Wallerstein já se alinhava com os teóricos da dependência, críticos da mitologia do take-off13, do catching-up14 e do desenvolvimento nunca alcançado, Mattelart faz o mesmo ao demonstrar que as previsões de Schramm e seus colegas eram mais normativas e idealizantes .wishful thinking) do que propriamente empíricas. O difusionismo, portanto, estava em linha com o catching-up do desenvolvimentismo. Na prática, era uma aplicação do desenvolvimentismo ao campo da comunicação. Assim como a perspectiva etapista de Rostow, sua escala de análise era linear e exclusivamente temporal. O receituário administrado para os países periféricos era repetir o caminho dos países centrais: fortalecer a iniciativa privada, adotar em larga escala sempre a última tecnologia disponível (fornecida pelas transnacionais) e minimizar as restrições regulatórias. Da mesma maneira, a explicação difusionista tomava como teleológica a consecução da democracia liberal, em que um alto grau de desenvolvimento da mídia seria inevitavelmente um componente de uma estruturação política representativa e de uma economia de livre mercado. Não é à toa que o autor belga confere uma importância reveladora para o quarto ponto do discurso de posse do presidente estadunidense reeleito Harry Truman, em 1949, quando elencou quatro pontos que deveriam orientar seu segundo mandato. O Ponto IV, como Mattelart chama em várias ocasiões, era precisamente o que propugnava o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos (a primeira vez em que o termo é utilizado nesse sentido) da Ásia, África e América Latina, justamente os que tinham sido submetidos à colonização europeia na Idade Moderna e ao imperialismo na era industrial. Portanto, em um mesmo movimento, emplacam-se os conceitos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento, que, comenta Mattelart, foi um ato “político, no sentido estrito do termo” (Mattelart & Mattelart, 1986/2004, p. 230). A ideologia do desenvolvimento, a partir do Ponto IV, substitui a noção positivista de progresso e é incorporada ao paradigma da modernização (Mattelart, 2002, p. 336).
A crítica de Mattelart à ideia de modernização também toma emprestada de Braudel a crítica à concepção periodizada do tempo, jocosamente tratada como “história em fatias” (Mattelart, 2002, p. 87). O autor belga (1994/1996, p. 221) concorda com o entendimento de Braudel e Wallerstein de que diferentes modos de produção coexistem. Em contraste, na mesma tradição da teoria matemática da informação (de Claude Shannon e Warren Weaver), a ideia da sociedade pós-industrial de Daniel Bell é interpelada como uma fase a mais nos degraus do desenvolvimento da comunicação elaborados pelos difusionistas e inspirada no etapismo do economista liberal (e anticomunista) Walt Rostow. “O progresso chegaria aos países atrasados mediante a difusão dos valores dos chamados países adultos”, explica, ironizando (Mattelart, 2002, p. 88). Esse esquema interpretativo é o que a sociologia da modernização, segundo Mattelart, chamará não de globalização (nem mundialização), mas de ocidentalização15.
Num momento posterior, nos anos 1970, uma nova geração de pesquisadores publicou um corpus primordial de pesquisas descritivas, detalhadas e críticas sobre a atuação das grandes empresas de comunicação e dos Estados centrais na estruturação do sistema internacional de comunicação, ou sistema-mundo da comunicação – ou comunicação-mundo, como Mattelart propôs chamar. Denunciando esse sistema-mundo moldado pela ordem colonial-imperialista, pesquisadores e estadistas dessa época lançaram a campanha por reformar tal ordem, pedindo que fosse construída uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic). Organizados nessa campanha, tal geração acabou por articular uma outra vertente teórica: a da Economia Política da Comunicação (EPC). Entre seus pioneiros, estavam o finlandês Kaarle Nordenstreng, os canadenses Herbert Schiller e Dallas Smythe, o estadunidense Jeremy Tunstall e o próprio Armand Mattelart.
Passada a euforia da Nomic, enterrada de vez com o Relatório MacBride (1980), os estudos sobre as dinâmicas de mídia e de informação entre países prosseguem não mais como comunicação internacional, mas com o nome anglicizado de Global Media Studies. A perspectiva crítica, sistêmica, era abandonada em favor de estudos pontuais – e supostamente pragmáticos – sobre o funcionamento da mídia em países fora do eixo central (isto é, EUA, Europa Ocidental e Japão). A mudança de tom apontava na direção que Mattelart (1991/1994, p. 217-218) e Thussu (2006, p. 37) observaram como um resgate da doutrina do livre fluxo, agora conveniente ao pensamento neoliberal que se alastrava. “A liberalização dos fluxos de informação está na própria base do novo modo de organização da empresa rede” (Mattelart, 1991/1994, pp. 217-218). Com a crescente digitalização das atividades econômicas, grande parte dos procedimentos se tornou conversível em informação, especialmente nos setores financeiro e de serviços, e assim os debates sobre fluxos de informação foram incorporados às negociações comerciais sob a égide da Organização Mundial do Comércio (OMC), responsável por promover a liberalização do comércio e a consequente mercantilização de tudo, nos termos de Wallerstein.
CONCLUSÃO: O QUE SERIA UMA ECONOMIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO INTERNACIONAL?
O momento tecno-político-socioeconômico que se vive é um aprofundamento das dinâmicas descritas pela análise dos sistemas-mundo. A recente convergência digital mesclou os setores de telecomunicações, informática (atual tecnologia da informação) e comunicação de massa num amplo e diverso setor de mídia. Que disciplina sozinha é capaz de dar conta das contradições expressas nesse amálgama? Quais áreas teóricas, por exemplo, se ocupam das agências de notícias transnacionais? Constituídas como atores globais do sistema-mundo da comunicação, elas escapam a todas as abordagens que dependam de referenciais eminentemente nacionais, como a regulação e as políticas públicas de comunicação. Que linhas de estudos sobre as estruturas atuais de mídia podem ser ao mesmo tempo precisas na empiria e críticas, amplas na escala de análise e engajadas com a transformação da realidade?
O pensamento de uma vida inteira de Armand Mattelart aponta para a necessidade de uma Economia Política da Comunicação Internacional (EPCI), que, pelo menos até agora, inexiste como um orgânico e articulado subcampo de estudos. É verdade que McChesney e Schiller (2003) já tinham usado o termo, mas talvez não lhe tenham conferido a mesma amplitude e o mesmo propósito teórico-metodológico. Decerto, suas preocupações estavam concentradas nos fatores da propriedade e da regulação de mídia, o que é um traço permanente nos interesses de pesquisa da EPC até hoje.
Mas o que aqui se propõe vai mais além. Trata-se de somar às contribuições de Mattelart uma linhagem teórico-metodológica que já existe em outras disciplinas, conscientemente lhes borrando as fronteiras. História, geografia, geopolítica e outras ciências sociais e humanas têm diversos recursos conceituais a oferecer para o estudo da mídia transnacional, das agências de notícias e da regulação internacional de comunicação, entre outros tópicos que uma EPCI pode abordar.
Wallerstein se recusou a enquadrar a realidade de países periféricos em metaesquemas pretensamente universais e buscou sempre tomar por referência o quadro holístico espaçotemporal. Da mesma forma, Mattelart também se desprendeu das limitações da sistemática comparativa, herdeira de uma linhagem positivista nas ciências sociais, e pôde construir uma perspectiva crítica e holística para o exame da história de longa duração da comunicação internacional. Importa, seguindo os passos de Braudel no estudo do comércio mediterrâneo do século XVI, resgatar “essa economia dos fluxos imateriais” – isto é, de informação e cultura – “na memória de suas origens materiais” – das mercadorias e bens tangíveis (Mattelart & Mattelart, 1995/2011, p. 170). O colonialismo é indissociável da comunicação-mundo. Grosso modo, o que a análise dos sistemas-mundo sempre defendeu foi que a economia da América colonial não precedeu o capitalismo como surgido exclusivamente na Europa, mas constituiu a gênese do próprio capitalismo por meio da espoliação do continente que sustentou a ideia marxiana de acumulação primitiva do capital.
Por isso, uma EPCI deve receber aportes da EPC e da EPI, por um lado, e rejeitar o legado acrítico dos global media studies, que regrediram ao estágio da pesquisa administrativa do início do século XX.
De mais evidente, o que a ASM oferece à comunicação é a articulação entre as esferas de centro(s) de periferia(s). Não por acaso, os centros do sistema-mundo capitalista são os mesmos centros da comunicação-mundo, nominalmente os países que abrigam as mais poderosas e valiosas empresas de mídia, de tecnologia da informação e de telecomunicações. Dadas a quantidade e a diversidade de ramificações, subsidiárias, participações, investimentos e interesses que essas empresas mantêm nos países periféricos e semiperiféricos, torna-se vã qualquer análise socioeconômica que se limite ao recorte de estados-nações em que atuam. Os laços de investimentos, participação acionária e parcerias intercorporativas entre essas empresas, e delas com o Estado, evidenciam que o recorte nacional raramente dará conta da realidade complexa.
É precisamente para designar esse tipo de sistema que a noção de comunicação-mundo é uma contribuição fundamental. Trata-se, ao final, de circunscrever nessa zona comum – uma EPCI – os objetos e os problemas de pesquisa potenciais para examinar a totalidade da comunicação global em sua dimensão histórica, que tanto deve ao esforço de uma vida inteira de Armand Mattelart.
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas de autor