DOSSIÊ

Cinema Novo e música de vanguarda do século XX

Cinema Novo and 20thcentury avant-garde music

LUIZA ALVIM a
Universidade de São Paulo, Brasil

Cinema Novo e música de vanguarda do século XX

Matrizes, vol. 17, no. 1, pp. 77-99, 2023

Universidade de São Paulo

Received: 16 May 2021

Accepted: 27 June 2022

Resumo: Embora não tenha sido predominante no Cinema Novo, a música de vanguarda do século XX não deixou de estar presente em filmes de Glauber Rocha, Walter Lima Júnior e Joaquim Pedro de Andrade, englobando obras preexistentes de Edgar Varèse, Pierre Schaeffer, Pierre Henry, Michel Philippot, Marlos Nobre, Ernst Widmer, Jaceguay Lins, Walter Smetak, Jon Appleton e Al Kooper. Fazemos um mapeamento dessa produção e analisamos como as músicas desses compositores se associam às imagens, seja de modo mais convencional, seja com proposições criativas. Observamos o papel da produção fonográfica da época para essas escolhas e a relação dos diretores com um repertório em geral contemporâneo aos filmes.

Palavras-chave: Música de vanguarda, Cinema Novo, produção fonográfica, análise fílmica.

Abstract: Although 20th century avant-garde music was not prevalent in Cinema Novo’s soundtracks, it was still quite present in films by Glauber Rocha, Walter Lima Júnior and Joaquim Pedro de Andrade, consisting of pre-existing music by Edgar Varèse, Pierre Schaeffer, Pierre Henry, Michel Philippot, MarlosNobre, Ernst Widmer, Jaceguay Lins, Walter Smetak, Jon Appleton and Al Kooper. After mapping these musical works in the films, I analyze to which extent they were associated to the images either in a more conventional way or with creative propositions. I also consider the role of the phonographic production of the time for the choices of this repertoire and the relationships of those directors with contemporary avant-garde music.

Keywords: Avant-garde music, Cinema Novo, phonographic production, film analysis.

O CINEMA NOVO BRASILEIRO não se caracterizou particularmente pelo emprego de música contemporânea em suas trilhas musicais1. Dentro do cinema brasileiro como um todo até então, a música contemporânea esteve mais representada pelas composições de Rogério Duprat para filmes de Walter Hugo Khouri. Por outro lado, o que estamos chamando de “música de vanguarda do século XX” engloba desde as vanguardas dos anos 1920-1930 até a música eletroacústica (contemporânea às décadas de 1960-1970 do Cinema Novo)2 e está presente em filmes de três cineastas: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Walter Lima Júnior3. São músicas preexistentes aos filmes, mesmo quando contemporâneas a eles na data de composição.

O objetivo deste trabalho é analisar essa produção pouco estudada dentro do contexto da música no Cinema Novo. Partimos de um mapeamento inicial de 75 filmes de oito diretores (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Carlos Diegues, Walter Lima Júnior, David Neves, Leon Hirszman e Ruy Guerra) a partir de 1959 até 1980, fazendo a identificação das músicas neles utilizadas (consideramos uma definição mais alargada de Cinema Novo, chegando até o último filme de Glauber, o que foi relevante por causa da continuidade do uso musical, como o do repertório de Villa-Lobos no caso de Glauber)4. A partir desse mapeamento, separamos como objetos para uma análise estética mais detida aqueles que continham extratos de música de vanguarda contemporânea.

Constatamos que, desses diretores, apenas os três citados anteriormente fizeram uso de música preexistente contemporânea nos seguintes filmes, entre ficções, documentários e filmes experimentais: O pátio (Glauber Rocha, 1959)5, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969), Na boca da noite (Walter Lima Júnior, 1971), Arquitetura: a transformação do espaço (Walter Lima Júnior, 1972)6, Os inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972), Conversa com Cascudo (Walter Lima Júnior, 1977), A Lira do delírio (Walter Lima Júnior, 1978). Em O pátio há somente obras musicais de vanguarda, mas, nos outros filmes, há bastante variedade de gêneros musicais.

Entre os compositores nessas trilhas musicais, temos desde as vanguardas dos anos 1920-1930, representada por Edgar Varèse, passando por expoentes da música concreta, como Pierre Schaeffer e Pierre Henry, por colaboradores deles, como Michel Philippot, pelos suíços-brasileiros Ernst Widmer e Walter Smetak, pelo brasileiro Jaceguay Lins, pelo norte-americano Jon Appleton, até contemporâneos ainda vivos, como o pernambucano Marlos Nobre e o americano Al Kooper.

Dentro de nossa metodologia, fazendo a análise da utilização das músicas desses compositores nos trechos dos referidos filmes, consideramos suas relações com as imagens a que se associam e com o filme como um todo, além de significados que as obras musicais possam trazer de seus contextos extrafílmicos. Como dividimos as partes do artigo por diretor, elas estarão desiguais em tamanho, sendo maiores as referentes a Glauber Rocha e Walter Lima Júnior e bem menor a de Joaquim Pedro de Andrade. Para chegar à totalidade da identificação das obras musicais, foi feita a busca e pesquisa dos long-plays em que se encontrava parte das músicas preexistentes dos filmes, ou elas foram identificadas pelo Youtube (no caso de filmes na plataforma) ou por programas como Shazam e Soundhound.

Pesquisar a música num conjunto relativamente grande de filmes de uma época em que caracteristicamente não eram fornecidos os créditos completos, ou, por vezes, nem eram mencionados os compositores, é tratar esses filmes como objetos históricos, cujos achados – por exemplo, os discos da Funarte ou a grande presença de compositores que tenham passado pela Universidade Federal da Bahia, como veremos no artigo – ocorrem a partir do contato com o material empírico. Além disso, a análise estética imanente dos trechos dos filmes pode nos indicar como esses diretores e filmes se relacionavam com modos de utilização da música na época e suas convenções.

MÚSICA DE VANGUARDA ERUDITA E CINEMA: PEQUENO PAINEL ATÉ OS ANOS 19607

Nos anos 1920, quando Schoenberg fazia suas primeiras composições dodecafônicas, o cinema já contava com mais de duas décadas. O acompanhamento musical dos filmes era feito ao vivo, mas tais peças de vanguarda não foram nele incluídas (ao menos, de forma constante), como podemos perceber em coletâneas musicais publicadas na época, tal qual Motion Picture Moods de Erno Rapée (1924).

Com o cinema sonoro no final dos anos 1920, poder-se-ia ajustar o compasso entre as novidades na composição musical e o cinema, visto que todo o componente sonoro viria já pronto do eixo produtivo da cadeia do cinema, não sendo mais tão dependente do polo da exibição. Nessa época, o compositor franco-americano Edgar Varèse começou a incluir ondas Martenot em suas músicas e destacamos sua obra Ionisation, de 1929-1931, composta apenas para instrumentos de percussão e incluindo uma sirene (composição utilizada por Glauber Rocha em O pátio). Porém, o estilo musical adotado pelo cinema clássico narrativo dos anos 1930 a 1960 foi um padrão sinfônico de características pós-românticas e impressionistas, matrizes de muitos compositores da época, como os austríacos Max Steiner e Erich Korngold, atuantes em Hollywood, ou de Georges Auric, no cinema francês.

É bem verdade que elementos atonais não foram estranhos a essas composições, mas sua base era tonal. Como observa Oliveira (2018, p. 194), até meados dos anos 1940, “havia poucas trilhas musicais que faziam uso de atonalidades, instrumentação inusual ou quaisquer experiências da vanguarda musical”. Os poucos casos estavam geralmente restritos a passagens sugestivas de suspense ou para indicar momentos de “consciência alterada” dos personagens, como em Quando fala o coração .Spellbound, Alfred Hitchcock, 1945) ou Farrapo humano .The lost weekend, Billy Wilder, 1945).

Já a partir dos anos 1950, de modo geral no cinema dominante, o “uso de instrumentos eletrônicos, música eletroacústica, texturas, minimalismo e toda sorte de experimentações modernas” se tornaram características da “representação do elemento ‘estranho’”, fundamental no gênero ficção científica (Oliveira, 2018, p. 192). Ou seja, as vanguardas musicais ganharam o cinema, mas ficaram ainda restritas a um gênero.

No campo da música, o final dos anos 1940 e início dos anos 1950 veem o nascimento do que ficou conhecido como “música concreta”. Concebida inicialmente por Pierre Schaeffer dentro da Radiodiffusion-Télévision Française (RTF), era feita a partir da manipulação de sons gravados em suporte físico. Enquanto isso, em Colônia, na Alemanha, firmava-se o grupo da Elektronische Musik (música eletrônica), que se caracterizava pela busca de sons sintéticos no computador.

Com o surgimento dos “novos cinemas” nos anos 1960, poder-se-ia esperar que o descompasso entre vanguardas musicais e cinematográficas finalmente se ajustaria. Porém, não foi a regra, embora tenha havido casos dignos de nota: dentro da Nouvelle Vague francesa, Jacques Rivette e sua parceria com compositores de vanguarda, como Pierre Arthuys, Ivo Malec, Jean-Claude Eloy; ou ainda, o trabalho de Pierre Barbaud em filmes de Alain Resnais, Agnès Varda e Chris Marker (os três considerados como a “Margem Esquerda” da Nouvelle Vague)8.

No caso do Cinema Novo brasileiro, também houve emprego de música de vanguarda, mas constituída de obras preexistentes aos filmes, como veremos a seguir.

GLAUBER ROCHA E A MÚSICA DE VANGUARDA

A primeira obra cinematográfica de Glauber Rocha, o curta-metragem experimental O pátio, foi filmado em 1957, mas a montagem de som foi realizada apenas no início de 1959. Antes disso, o filme chegou a ser exibido sem som algumas vezes (Cunha, 2019). As imagens mostram um casal sobre o piso de um pátio, cuja disposição dos ladrilhos se assemelha a um tabuleiro de xadrez ou de damas (com quadrados pretos e brancos), num ambiente aberto em que vemos também a vegetação e o mar. Tais elementos apontam para as relações de Glauber com o concretismo e com o neoconcretismo, cujos conflitos se referiam principalmente a questões do “purismo da forma”9, algo que as imagens de Glauber explicitam.

Como observa Cunha (2019), em 1959, os poetas neoconcretos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil publicaram seu Manifesto Neoconcreto, mas, já desde 1957, houvera uma ruptura deles com o grupo paulista concretista, que acusava os cariocas de empíricos e intuitivos. Enquanto o grupo paulista valorizava a racionalidade e objetividade da arte, os neoconcretos do Suplemento reivindicavam “uma reinterpretação da arte construtiva”, indo além da “noção purista da forma”, abrindo-se para uma subjetividade e expressividade da arte, para o sensorial além da “dimensão plástica e geometrizada” (Cunha, 2019, p. 105).

Glauber conhecia o movimento concretista de São Paulo, mas acabou se aproximando dos neoconcretos cariocas, tendo apresentado O pátio em 1959 na casa da artista Lygia Pape, no Rio de Janeiro, onde estiveram presentes críticos e artistas importantes, como Mário Pedrosa, Décio Vieira, Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Hélio Oiticica e Reynaldo Jardim (Cunha, 2019).

Observamos que esse conflito da forma pura versus incursões de conteúdo, que estavam na base dos conflitos entre concretos e neoconcretos, está também presente no filme, tanto nas imagens quanto nas músicas. Em relação às imagens, Xavier (2016) chama a atenção para a moldura do quadro do casal no pátio, com toda a sua dimensão geométrica, incluindo a vegetação e o mar, que, por sua vez, apontam para o contexto brasileiro. De certa forma, entendemos que o mar e os coqueiros evocam o “nacional” brasileiro, ao passo que o “tabuleiro de xadrez” do pátio é um elemento mais “universal”.

As músicas escolhidas para a trilha musical do filme são10: Ionisation, de Varèse, Tam-Tam IV, de Pierre Henry (composta em 1951), três movimentos da Sinfonia para um homem só .Apostrophe, Erótica e Scherzo), de Pierre Schaeffer e Pierre Henry (composta em 1950), e Étude n.1, de Michel Phillipot (composto em 1951)11. Mostram, assim, uma confluência das vanguardas musicais de 1920-1930, por meio de Varèse, com as dos anos 1950, da música concreta concebida por Pierre Schaeffer a partir de 1948.

Cunha (2019) infere – a partir da entrevista realizada por ela com a atriz do filme, Helena Ignez – que essas músicas foram apresentadas a Glauber e conseguidas por ele por meio de Hans-Joachim Koellreutter, músico alemão que chegou ao Brasil em 1937, no Rio de Janeiro, e se estabeleceu, na década de 1950, na Bahia a convite do reitor da Universidade Federal da Bahia, onde dava cursos de que participaram o próprio Glauber e Helena Ignez.

Uma primeira observação que podemos fazer a partir do repertório escolhido é a presença de um cosmopolitismo em O pátio, que se dá por meio da escolha das vanguardas europeias em oposição ao nacionalismo12 representado pela música de Villa-Lobos, compositor muito presente na obra de Glauber a partir de Deus e o diabo na terra do sol (1964) – e que, segundo entrevista de Walter Lima Júnior (Guerrini Júnior, 2009; também contido em Mattos, 2002), não era conhecido do diretor e lhe teria sido apresentado por ele, assistente de direção do filme.

No campo da música, o universalismo era preconizado por Koellreutter. Chegado ao Brasil fugindo de um regime nacionalista (o nazismo de Hitler), Koellreutter fundou inicialmente o grupo Música Viva, que incluía também correntes nacionalistas (Egg, 2005), até que, em 1946, o grupo lançou um manifesto em que defendia “uma linguagem universal” e “afastamento das tendências nacionalistas” (Guerrini Júnior, 2009, p. 59).

Em segundo lugar, retomando a oposição forma versus conteúdo, é interessante observar que, depois das primeiras experiências de música concreta com ruídos em 1948-1949, Pierre Schaeffer foi se posicionando cada vez mais contra o anedotismo, ou seja, contra a referencialidade dos sons. Schaeffer (1966) privilegia a escuta reduzida, que se baseia na materialidade dos sons, sem buscar suas causas.

No entanto, apesar das manipulações próprias da música concreta, os trechos da Sinfonia para um homem só presentes em O pátio, especialmente Erótica, são extremamente referenciais e podem ser relacionados diretamente com as imagens. Erotica utiliza sons vocálicos de mulher ligados ao prazer sexual feminino. Justamente nesse trecho do filme, vai ser enfatizada a gestualidade da personagem feminina, que se torna, então, mais lânguida e sensual, algo que não estava no filme até então, como observa Cunha (2019).

Também nos trechos de Ionisation, mesmo não havendo referências nas imagens das sirenes que ouvimos na música, tais sons nos remetem às suas fontes, aos referentes. Na verdade, para qualquer som percebido, há um trabalho imaginativo (gerador de imagens) do ouvinte, tal como entendido a partir do conceito de “imagem sonora” (Caesar, 2012). Além disso, com exceção dos créditos iniciais (lidos na imagem do tabuleiro do pátio), há sempre um plano de galhos de árvore ou folhas na entrada de cada trecho de Varèse (tabela 1), num reforço do referente, só que, nesse caso, um referente trazido pela imagem do filme e não pela música. No caso dos trechos 2, 3 e 7, a repetição do mesmo plano (Figura 1), dá um sentido musical ao filme, como se este fosse um plano-refrão (Chion, 2003).

Tabela 1
Músicas em O pátio
Músicas em O pátio
Nota. Elaborada pela autora.

Plano repetido de O pátio
Figura 1
Plano repetido de O pátio
Nota. Frame de O pátio

Após o trecho 2 de Varèse, vemos os corpos do homem e da mulher se atraindo e se repelindo (ora aparecem de mãos dadas, como em 1min5s de filme, ora deitados separados no pátio como em 1min40s), de modo semelhante aos blocos de timbres de diferentes instrumentos percussivos em Ionisation, o que lembra a explicação do próprio Varèse para sua música de que a ionização é o processo pelo qual o átomo libera um elétron, sendo este capturado por outro átomo (Distler,1997). Os trechos 2, 3 e 4 de Varèse são curtíssimos, servindo como uma pontuação para os trechos mais longos das performances dos corpos. No trecho 7, um pouco maior, mas ainda apenas relacionado a imagens de galhos, folhas e do tabuleiro, a sirene anuncia que algo diferente vai acontecer, talvez numa preparação para Erótica.

Antes de Erótica, no trecho 5, com Apostrophe, a atração-repulsão dos corpos torna-se mais evidente e eles aparecem como que “colados” ao chão do pátio. Na música, há vocalizações com manipulações comuns à música concreta e, no final, enquanto o homem tenta erguer seu braço e sua cabeça se volta para o céu, ouvimos os sons em loop da vocalização da palavra absolument (“absolutamente”, uma negativa em francês; é uma ancoragem semântica da música, para além da pura “escuta reduzida” preconizada posteriormente por Schaeffer13), “revelando toda uma movimentação gestual dos personagens que parecem querer liberar o seu próprio corpo de algo denso, como se existisse certo tipo de magnetismo que os puxa para o chão” (Cunha, 2019, p. 114).

Já os sons percussivos e ritmados de Tam-Tam IV são como que ouvidos pelo homem, que se levanta e tampa os ouvidos. Seguem vários planos já mostrados (como o da figura 1) em montagem acelerada, num ritmo próximo ao da música, como se o homem estivesse tendo uma alucinação visual e auditiva.

Erótica e Scherzo se sucedem, com uma pequena pausa entre os trechos. Se em Erótica, o êxtase de cada um dos corpos é solitário, em Scherzo, enquanto ouvimos vozes extremamente manipuladas, vemos as mãos do homem e da mulher se aproximando aos poucos até se encontrarem. A seguir, num plano em plongée, vemos os dois de mãos dadas, com os braços esticados e deitados no pátio. Scherzo, na teoria musical, é um movimento de andamento rápido, podendo ter caráter jocoso ou enérgico, numa forma tripartite ABA, em que B é contrastante com A. No filme, há uma parte mais enérgica, dada pelas intrusões do piano – e o seu começo corresponde ao girar da câmera, com imagens do mar e da linha do horizonte –, às quais respondem as vozes manipuladas, como se fossem a parte B.

De modo geral, no filme, a montagem dos trechos iniciais de música se alterna com silêncios da banda sonora, sem pontos de sincronização evidentes, numa concepção bastante eisensteiniana da montagem métrica, como observou Cunha (2019). Já o Estudo n. 1 de Philippot14 é constituído, por si só, de momentos de quase silêncio e ressonância dos sons. No filme, a música de Philippot não é interrompida por cortes na montagem, durando os seus três minutos finais.

Se no trecho de Scherzo o casal estava de mãos dadas, o gongo do Estudo n. 1 anuncia a separação, pontuada por uma série (a obra foi comparada, no encarte do LP da Ducretet-Thomson, a músicas seriais de Webern) de diferentes sons percussivos manipulados, alguns com ataque rápido, outros de manutenção e decaimento mais demorados. O homem se levanta, vai urinar junto a uma samambaia. Finalmente, sai do local do pátio, sendo seguido, mas à distância, pela mulher.

Depois de O Pátio, a partir de Deus e o diabo na terra do sol (1964), há música de Villa-Lobos em quase todos os filmes de Glauber Rocha. Em Deus e o diabo…, ela é predominante, porém, a partir de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), há uma maior variedade de gêneros musicais.

Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), embora haja um predomínio de pontos de umbanda15, chamam a atenção as peças do compositor pernambucano Marlos Nobre, especialmente Ukrinmakrinkrin. Marlos Nobre não as compôs especialmente para o filme, mas atuou diretamente na montagem junto a Glauber Rocha com suas peças já prontas, como podemos perceber na entrevista concedida a Irineu Franco Perpétuo. Nela, o compositor fala apenas de Ukrinmakrinkrin, embora outra música sua, Rythmetron, esteja também no filme:

Conheci Glauber casualmente. Na época (por volta de 1966), eu tocava para ganhar dinheiro, com um conjunto e uma cantora, em uma casa noturna no Rio de Janeiro. Era um “show” muito curioso e inapropriado para uma casa noturna, inclusive nós tocávamos a música de um jovem compositor baiano totalmente desconhecido na época, Gilberto Gil, que começava assim: “Poetas, seresteiros, namorados, correi…”. Imagine, em uma casa noturna, poesia de Marcos Konder Reis… Ali conheci Glauber, que me chamou para fazer música para O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Trabalhei com ele direto na moviola, em um estúdio no Rio, foi incrível. Glauber não planejava muito, tinha o filme na cabeça, mas, ao ouvir minha peça Ukrinmakrinkrin, ele enlouqueceu, era aquilo que queria. E colocou na parte central, só música e imagem, naquela cena fortíssima de amor entre a protagonista, o padre e um pistoleiro. (Perpétuo, 2019, não paginado)

Rythmetron é ouvida logo no início do filme (a cerca de 3 minutos e meio), quando, logo após um corte da sequência anterior em que víamos os sertanejos andando pelas ruas da cidade e cantando um ponto de Cosme e Damião (“Bahia é terra de dois, é terra de dois irmãos, governador da Bahia é Cosme e São Damião”), passamos a ver o cangaceiro Coirana (interpretado por Lourival Pariz), o Negro Antão (Mário Gusmão), pertencente ao grupo de cangaceiros, e o professor (Othon Bastos) na praça da cidadezinha, rodeado pelos populares. O delegado Matos (Hugo Carvana) passa rapidamente por eles. A Coirana e Antão vem se juntar Santa (Rosa Maria Penna), uma representação de Iansã segundo Siqueira (2014), como registra a Figura 2.

Coirana no centro da praça. À esquerda e ao fundo, Santa e Antão
Figura 2
Coirana no centro da praça. À esquerda e ao fundo, Santa e Antão
Nota. Frame de O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro

Há nesse momento, como em outros do filme, uma encenação praticamente teatral em que a praça é o palco e os personagens alegóricos importantes da peça a ser desenvolvida – cujo ápice será, posteriormente, a luta entre Coirana e o “matador de cangaceiro”, Antônio das Mortes – são ali apresentados, ao som da música de Marlos Nobre.

A mudança de músicas (do ponto de Cosme e Damião para Rythmetron) se faz no corte do plano e o tipo de movimentação dentro da imagem também é diverso: a descida rápida de muitas pessoas numa ladeira ao som de “Cosme e Damião” e os passos lentos de Coirana, Antão e Santa, “colocando-se em cena” na praça (e, aí, a lentidão está nesses personagens e não nos do professor e do delegado Matos, que atravessam rapidamente o “palco”). Por outro lado, a música de Marlos Nobre não se destaca tanto da música popular ritmada pelas palmas – talvez porque Rythmetron contenha elementos rítmicos do maracatu, dança e música da cultura popular de Pernambuco16. Com efeito, em todo esse início de filme há músicas bastante percussivas, seja pelas palmas ou por instrumentos de percussão em Rythmetron e na marcha do desfile dos colegiais na sequência seguinte ao discurso de Coirana em plano frontal.

Rhythmetron é uma peça em 3 movimentos – “A preparação”, “Os escolhidos” e “O ritual” (o que ouvimos no filme é o primeiro movimento, “A preparação”) –, composta em 1968 para 38 percussionistas por encomenda da Companhia Brasileira de Balé para um espetáculo no Teatro Novo do Rio de Janeiro com coreografia de Arthur Mitchell. Percebe-se seu caráter de música para dança, captado por Glauber Rocha em seu filme.

Ukrinmakrinkrin é ouvida num momento de clímax do filme, na sequência evocada por Marlos Nobre na entrevista, quando o corpo assassinado do delegado Matos é levado pelo professor e seguido pela ex-amante Laura (Odete Lara), numa procissão fúnebre. Siqueira (2014) destaca elementos kitsch, tais quais as flores de plástico e o vestido esvoaçante roxo de Laura, além do caráter de falsidade (ainda mais evidente se pensarmos que foi a própria Laura quem matou o delegado). Mais do que isso, sentimos nessa sequência a utilização de um contraste deliberado, reforçado tanto pelo uso de uma música de características bem distintas em relação ao restante do filme, quanto pelo uso da montagem paralela deste espaço-tempo de Laura e do professor com o dos sertanejos cantando em homenagem ao moribundo Coirana.

São dois rituais fúnebres por dois mortos e há mesmo uma imagem de Antonio das Mortes carregando o corpo de Coirana, o que promove uma rima fílmica com os planos já mostrados do professor carregando o corpo de Matos. Se levarmos em consideração que o canto de soprano de Ukrinmakrinkrin é um lamento pelo extermínio da comunidade indígena dos Xucurus (como define o compositor em seu canal do Youtube17), escrito na língua deles, é acrescido mais esse elemento em torno do tema da morte nessa parte do filme.

Com efeito, Ukrinmakrinkrin se destaca pela voz de soprano e pela sua estética com técnica serial, possivelmente fonte de estranheza para um espectador comum18 (embora Rhythmetron seja da mesma fase de composição na obra geral de Nobre e tenha também atonalidade, seu elemento rítmico e percussivo é o que chama mais a atenção no trecho curto que ouvimos no início do filme), ainda mais por ser uma sequência longa – incluindo-se as alternâncias com o ambiente e a música dos sertanejos –, em que a música é o grande elemento sonoro de destaque.

O canto de soprano na língua dos Xucurus revela o desejo de Marlos Nobre de incluir elementos locais, fugindo de um universalismo estrito, num “nacionalismo subjetivo” como na concepção do compositor argentino Alberto Ginastera, a quem a peça é dedicada, ou ainda, num “nacionalismo inconsciente”, ecoando Mário de Andrade (Silva, 2007), uma das influências do compositor em seus anos de formação19.

Apesar da montagem paralela das imagens, Ukrinmakrinkrin “vaza” para o espaço dos sertanejos, sobrepondo-se ao ponto de Ogum (na letra, ouvimos “Quem matou Ogum”, numa associação de Coirana ao orixá) cantado por eles. Além disso, há um lado carnavalesco, no sentido bakhtiniano, da manifestação dos sertanejos, pois a alegria não deixa de estar presente no canto rítmico acompanhado por palmas, embora a manifestação da alegria em primeiro plano imagético seja a dos matadores contratados pelo coronel Horácio para perpetrar o massacre dos sertanejos.

Tal massacre é alertado pelo padre ao professor e a Laura, mas, ao invés de dar-lhe atenção, o professor luta corporalmente com ele e, após o corte feito para o ambiente dos sertanejos, beija Laura, agarrado com ela no chão, ao lado e, depois, sobre o corpo de Matos, enquanto o padre tenta em vão tirá-lo de cima de Laura. Quando o plano alternado do ambiente dos sertanejos mostra finalmente o início do massacre, o ponto de umbanda se cala e ouvimos apenas tiros e Ukrinmakrinkrin. O lamento da música de Marlos Nobre continua sobre a imagem de Antônio das Mortes junto ao corpo de Coirana numa clareira. É ele, agora, quem procede ao velório do cangaceiro.

O lamento da música continua sobre a imagem dos corpos mortos dos sertanejos; no fundo do plano, Santa e Antão amarrados e sendo hostilizados pelo chefe dos matadores (Mata-Vaca). No entanto, numa parte da música distinta, de canto mais falado, vemos Santa andando altivamente, fazendo com que Mata-Vaca se assuste e fuja. Essa sinergia entre música e imagem nos indica que Glauber Rocha trabalhou com essa intenção na montagem, como já fizera em Deus e o diabo na terra do sol (Guerrini Júnior, 2009).

A atuação em toda essa parte, especialmente dos personagens de Laura e do professor, é excessiva em sua movimentação e intensidade, algo que está também na música, que lembra peças do assim chamado Expressionismo musical20 de Schoenberg, como a ópera Erwartung, que, segundo o próprio Schoenberg (citado por Simms, 1997, p. 104, tradução nossa), trataria das “emoções num alto estado de intensidade”. Ao mesmo tempo, faz parte de um tipo de atuação brechtiana, aplicada por Glauber Rocha em seus filmes a partir de Deus e o diabo na terra do sol (1964).

A VOLTA DE MARLOS NOBRE EM OS INCONFIDENTES, DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE (1972)

Na filmografia de Joaquim Pedro de Andrade encontramos a primeira vez em que se usou Villa-Lobos em obras de diretores do Cinema Novo, nos seus curtas-metragens O mestre de Apipucos . O poeta do Castelo, ambos de 1959 (e originalmente partes de um único filme), com uma seleção musical variada feita por Zito Batista e Carlos Sussekind. Diversas peças musicais do repertório erudito estão também presentes, em meio a outros gêneros musicais, em Garrincha, de 1963, e em Brasília, contradições de uma cidade nova, de 1967. Também estão em Macunaíma (1969), embora, neste, predomine um repertório de canção popular brasileiro e internacional, principalmente de décadas anteriores e com textura musical de gravações antigas.

Portanto, embora inesperada por não ser a música contemporânea comum na obra do diretor, a presença da obra orquestral Mosaico, de Marlos Nobre, em Os inconfidentes não chega a ser totalmente surpresa, dada a diversidade de gêneros musicais nesse filme histórico de encenação com elementos brechtianos e a característica do variado emprego musical nos outros filmes de Joaquim Pedro. Jogos, a parte 3 de Mosaico, é ouvida num momento crucial do filme, quando os inconfidentes mineiros, todos presos no pátio do Paço Imperial no Rio de Janeiro, atribuem a culpa de sua delação a um dos seus, o militar Francisco Freire de Andrade; a seguir, vituperam todos contra seu companheiro Tiradentes e, então, o padre que os acompanha segue com admoestações quanto à culpa de cada um. Os acordes de som brusco de Jogos têm também a violência das acusações lançadas pelos personagens e os sons de sinos e vibrafones nos remetem às imagens das correntes que prendem os inconfidentes.

Assim, mesmo mantendo o tom brechtiano do filme, som e imagem têm, aqui, uma ação mais combinatória e não simplesmente contrastante ou mesmo redundante, termos utilizados comumente para elogiar ou repudiar o uso da música em filmes e cuja oposição simplória é considerada inadequada por Gorbman (1987).

É ainda relevante mencionar que, desde 1971, o compositor Marlos Nobre era diretor musical da Radiodifusão Educativa do MEC (Ministério da Educação e Cultura), cuja orquestra fez várias gravações de músicas brasileiras de vanguarda da época. Em 1976, Nobre foi para o Instituto Nacional de Música, um órgão importante para a existência dessas gravações, como consideraremos no próximo item.

WALTER LIMA JR E A MÚSICA DE SEU TEMPO

Walter Lima Jr fez sua estreia como diretor com o longa-metragem Menino de engenho (1965), em que, como já aconselhara anteriormente a Glauber em Deus e o diabo…, utilizou predominantemente obras preexistentes de Villa-Lobos. Já em Brasil, ano 2000 (1969), tentou uma colaboração com Gilberto Gil, que efetivamente participou do filme com algumas canções, mas a música ficou a cargo de Rogério Duprat. Brasil ano 2000 acabou se tornando uma “ficção científica distópica tropicalista”, mas não fez sucesso na época (Mattos, 2002). A seguir, contatado pelo diretor de teatro José Vicente de Paula para adaptar sua peça O assalto para o cinema, Lima Júnior a transformou no filme Na boca da noite (1971).

Nele, um bancário (Rubens Corrêa) resolve roubar dinheiro da agência de banco após o expediente, mas, antes, conversa com o faxineiro (Ivan de Albuquerque), tentando humilhá-lo e revelando que há tempos o seguia. No filme – em preto e branco e, em sua maior parte, rodado na agência bancária à noite, mas com alguns poucos planos diurnos –, a maior parte da música corresponde a incursões do jazzista argentino Gato Barbieri, amigo de Lima Júnior (o que explica, em parte, sua presença no filme), incluindo a peça preexistente In Search Of The Mystery / Michelle (de 1967). É bastante curiosa, no entanto, a presença de trechos das peças eletroacústicas de Jon Appleton Georganna’s Fancy, Times Square Times Ten . The visitation, do disco Appleton Syntonic Menagerie, de 1969.

Os sons sintéticos e as manipulações de Appleton, embora contribuam com o clima de mal-estar geral do filme (seguindo aí as convenções vigentes quanto à música contemporânea em filmes), por outro lado, nem sempre estão nas sequências sombrias do interior do banco, estando dois trechos do compositor nos planos rodados em exteriores diurnos, que interrompem por vezes bruscamente a conversa, sem relação causal aparente. É o que acontece, por exemplo, aos 28 minutos de filme, quando sons vocálicos contínuos, sons de sintetizadores e um ruído granuloso semelhante a um rolamento de trem, todos oriundos de Times Square Times Ten, são ouvidos em imagens de pessoas, em sua maioria mulheres, paradas numa calçada. É curioso que o rolamento de trem é ouvido depois, junto a uma imagem de um trem passando.

De fato, em algumas de suas composições, Appleton incluiu o “anedotismo” (com referências de sons do mundo, como buzinas, sirenes, portas se fechando, falas identificáveis, trechos de música) que Schaeffer repudiava. Mas, no filme de Lima Júnior, há uma preferência para trechos que tenham mais sons sintéticos e mais manipulação. Destacamos também o plano diurno de mãos segurando o que parece ser uma grade de janela de prisão, intercalado na conversa dos personagens (uma visão do futuro próximo do bancário?), com os sons de Georganna’s Fancy.

Georganna’s Fancy também entra na trilha musical do documentário Arquitetura: a transformação do espaço, do ano seguinte. Além desta obra, Lima Júnior utilizou em quatro momentos do filme a peça Quasars, de 1970, do suíço-brasileiro Ernst Widmer21. Construído em blocos, o documentário tem uma primeira parte mais histórica, uma segunda em que arquitetos especialistas, como Lina Bo Bardi, falam sobre a crise da profissão do arquiteto e as ambições da arquitetura moderna, e uma terceira, em que o diretor entrevista pessoas do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belém para opinarem sobre a arquitetura de suas moradias e de suas cidades.

De modo geral, a música do documentário acompanha as imagens, numa busca por ilustrá-las a partir das convenções vigentes ou relacionando-se diretamente a algum elemento delas, como período histórico ou local: é assim que o compositor barroco Albinoni se relaciona à arquitetura colonial, Beethoven, à do Império, Ernesto Nazareth à do início da República, Widmer e Appleton à arquitetura modernista; a música de Luiz Gonzaga se conecta ao Nordeste simbolizado pelas redes, música percussiva com berimbau nas imagens de Olinda; O canto do Pajé de Villa-Lobos entra na menção do jesuíta Anchieta e da fundação de São Paulo; o jazz Road Song, nas imagens de um carro percorrendo viadutos de São Paulo (remetendo tanto ao título da música quanto à convenção da associação do jazz à cidade grande); a música de Tom Jobim Stone Flower, nas imagens do Rio de Janeiro; 17 Léguas e meia (cantada por Gilberto Gil), quando as imagens se deslocam de Belém para Salvador. A exceção é para os sons de berimbau de Bahia, de Gato Barbieri, que ficam nas imagens da catedral de Brasília e dos créditos iniciais.

Chama também a atenção no filme como as músicas contemporâneas, estejam elas no espectro mais erudito ou mais popular, são de lançamento muito próximo ao filme (que é de 1972), entre 1968 e 1971: pensemos não só em Quasars, mas também em Bahia (1971), Stone Flower (1970), Road Song (1968), 17 Léguas e meia (1969), assim como na Ouverture (1968) de Al Kooper. Tal aspecto mostra que Lima Júnior estava bastante sintonizado com a música de seu tempo.

Tabela 2
Músicas em Arquitetura: a transformação do espaço
Músicas em Arquitetura: a transformação do espaço
Nota. Elaborada pela autora.

As obras de Widmer e Appleton trazem um aspecto futurista ao filme: a música contemporânea se liga à arquitetura moderna e, ao mesmo tempo, reproduz os clichês de “estranhamento” evocados por Oliveira (2018). O título Quasars evoca um elemento do espaço que emite energia eletromagnética, algo que a música orquestral de Widmer tenta simular23. Aqui é feita, já na música composta por Widmer, a associação com o espaço sideral, o que não foi incomum com outras músicas de vanguarda da época (pensemos nas Cartas Celestes de Almeida Prado, cuja composição começou também nos anos 1970). Colocada no filme de Lima Júnior, Quasars remete à já evocada associação com filmes de ficção científica. Por outro lado, embora sua sonoridade possa lembrar a de música eletrônica, é importante destacar que Quasars op. 69 é uma obra para orquestra sinfônica.

O primeiro trecho de Quasars começa com um travelling para frente e zoom out ao longo de um corredor aberto delimitado por estacas (Figura 3), algo que nos faz lembrar a relação entre travelling e memória evocada por Deleuze (1990) no filme O ano passado em Marienbad (Alain Resnais, 1961), filme que, por sua vez, provoca uma sensação de estranheza. Quando vemos a curiosa escada da casa de Santos Dumont (projetada por ele para que se coloque um pé em cada degrau) em Petrópolis, a música de Widmer tem um crescendo e resolução da tensão anterior das cordas. Elementos melódicos dissonantes na música e nova resolução conduzem para as construções em Brasília, símbolo da arquitetura moderna a que alude a voz over, terminando com o plano do arquiteto Oscar Niemeyer (um dos responsáveis por Brasília) desenhando.

Imagens do corredor no início de Arquitetura: a transformação do espaço
Figura 3
Imagens do corredor no início de Arquitetura: a transformação do espaço
Nota. Frame do filme Arquitetura: a transformação do espaço

O trecho seguinte de Quasars no filme vem também no plano de Niemeyer desenhando e segue com vários travellings mostrando construções arquitetônicas de Brasília. A música apresenta um motivo repetido várias vezes pelas cordas, em harmonia dissonante, interrompido por percussão e retomado, aspecto que confere uma sensação tensa de algo interminável. Então, é subitamente mixada aos sons de berimbau da música Bahia de Gato Barbieri no plano do anjo da catedral de Brasília.

A quase 24 minutos de filme, ouvimos Quasars novamente – agora é o início da partitura de Widmer – na imagem de outro personagem importante para a arquitetura moderna brasileira, o francês Le Corbusier. Quando a imagem muda para planos do Palácio Gustavo Capanema (baseado em traçado original de Le Corbusier, como informa a narração), voltamos a ouvir o motivo repetido diversas vezes, presente no segundo trecho da música.

O mesmo motivo com tensão constante volta em imagens dos prédios altos da orla do Rio de Janeiro e planos aéreos, ao passo em que a voz do paisagista Burle Marx evoca o problema da falta de planejamento e excesso populacional na cidade. Em oposição a isso, o documentário mostra, então, imagens da “cidade planejada” de Brasília, porém, a tensão da música permanece, corroborando a ideia geral, presente no documentário, de que esse planejamento não foi em prol dos seus habitantes e dos empregados da construção civil entrevistados no início.

Já a obra Georganna’s Fancy de Appleton, com seus sons de sintetizadores, está em imagens da Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional popular de arquitetura modernista no Rio de Janeiro, e, depois, em imagens do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, enquanto o entrevistado alerta para o problema do excesso de uso de concreto armado pela arquitetura moderna.

A música final do filme, Ouverture de Al Kooper (do LP I stand alone), sobre imagens de ruas e da orla de Salvador, é feita com técnicas de colagem e manipulação de materiais sonoros, incluindo vozes, risadas, efeitos sonoros e trechos de gravações preexistentes, fugindo de uma aderência maior ao referente da cidade de Salvador e a elementos de “baianidade”.

Em Conversa com Cascudo (Walter Lima Júnior, 1977), um documentário de 28 minutos, o uso das músicas, todas preexistentes, é semelhante ao de Arquitetura, predominando peças do Movimento Armorial24 (Aralume, de A. J. Madureira, e Sem lei nem rei I e II, de Capiba) para acompanhar o início e o final da conversa com o folclorista potiguar Câmara Cascudo, em que ele fala de seu interesse pela cultura popular. A voz de Cascudo é predominante, seja como voz over sobre imagens ilustrativas, seja como voz on-screen na entrevista. Quando o intelectual menciona o mar, ouvimos também, em volume mais baixo, a voz de Dorival Caymmi em sua música O mar, e vemos imagens de mar e jangadas no Nordeste brasileiro.

No entanto, na sequência em que Cascudo discorre sobre o carro de boi, há uma estranheza conferida pela música de Jaceguay Lins, Policromia25, que, nesse caso, não obedece à convenção das relações com o “Modernismo”, como no filme anterior, já que se associa a um elemento tradicional do Nordeste. A música de Lins tem características semelhantes às de Widmer, com massas sonoras de cordas dissonantes, salpicadas de percussão e instrumentos de sopro e metais.

O compositor, nascido em Pernambuco, estudara com Widmer na Bahia, o que pode explicar a semelhança das obras. Policromia também faz parte do LP MEC 70, volume 1, no mesmo lado do disco de vinil, em seguida a Quasars. No volume 2 da mesma coleção do MEC está Mosaico, de Marlos Nobre, sendo possivelmente a fonte para Os inconfidentes (Figura 4).26

Discos MEC 70, volume 1 lado B (à esquerda) e volume 2, lado A (à direita)
Figura 4
Discos MEC 70, volume 1 lado B (à esquerda) e volume 2, lado A (à direita)
Nota. Imagens contidas em discogs.com

Vetromilla (2012) considera essencial o papel do Estado para a documentação e divulgação da música de vanguarda brasileira a partir dos anos 196027, com o Instituto Nacional de Música (INM) e, posteriormente, com a Fundação Nacional de Arte (Funarte). Foi o INM que atuou na indústria fonográfica por meio de um acordo com a gravadora EMI-Odeon, em cooperação com a Radiodifusão Educativa do MEC, resultando em diversas coleções, como essa. Como constata Vetromilla (2012), sem tais iniciativas, diversas tendências musicais jamais encontrariam espaço para registro e difusão. Consequentemente, dificilmente estariam nesses filmes brasileiros dos anos 1970.

Voltando à análise do trecho com Policromia de Jaceguay Lins em Conversa com Cascudo, observamos que a música não colore a sequência sozinha: está mixada a sons da natureza, como os de passarinhos, assim como ao som do carro de boi. Levando-se em conta a importância deste elemento sonoro no filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e a centralidade desse filme no cinema brasileiro, podemos dizer que o som do carro de boi perfaz quase que uma “tópica”28 específica brasileira, à qual a sonoridade da música de Lins se adapta bem, de modo a ser, por vezes, difícil de separar na escuta uma da outra.

Em A lira do delírio (1978), predominam as incursões musicais extradiegéticas do saxofonista Paulo Moura, além de música diegética em Carnaval de rua ou na gafieira em que trabalha a protagonista. O filme tem também algumas incursões musicais preexistentes extradiegéticas, como de Francis Poulenc e de Walter Smetak.29 De Smetak, há pouco mais de 30 segundos da obra Dansom30, quando o personagem interpretado por Cláudio Marzo olha para o mar ao nascer do sol. Como Dansom tem um caráter gingado e instrumentos (inventados e construídos por Smetak) que geram sons semelhantes ao de reco-reco, cuíca e outros instrumentos percussivos, acaba parecendo com outras incursões musicais do filme, caso semelhante ao que já acontecera com Rythmetrom de Marlos Nobre em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Mas Dansom não deixa de ter um destaque em A lira do delírio por não haver diálogos e pelo aspecto contemplativo da sequência em que está.

A presença, nesses três filmes de Walter Lima Júnior, de músicas dos compositores Ernst Widmer, Walter Smetak e Jaceguay Lins, aponta, além do acesso promovido por meio dos discos MEC, para o papel fundamental na cultura musical brasileira do núcleo de vanguarda musical que se construiu na Universidade Federal da Bahia, primeiro com Hans-Joachim Koellreutter, e que teve continuidade com Widmer, Smetak31 e seus alunos, como Jaceguay Lins.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora não tenha sido predominante no Cinema Novo brasileiro, o que consideramos aqui como música de vanguarda erudita e seu emprego nos filmes dos anos 1960 e 1970 de diretores do movimento mostra relevantes aspectos históricos e estéticos tanto do campo da Música quanto do Cinema e de sua junção interdisciplinar no estudo da música no cinema.

Em primeiro lugar, reitera, pelo caminho do Cinema, a importância do núcleo de vanguarda musical que se construiu na Universidade Federal da Bahia a partir da chegada de Hans-Joachim Koellreutter. Se peças de Schaeffer, Pierre Henry, Michel Phillipot e Edgar Varèse talvez tenham se tornado conhecidas de Glauber Rocha por meio dos cursos de Koellreutter,32 a continuidade desse núcleo foi também fundamental para compositores brasileiros como Jaceguay Lins, cuja música Policromia, além de Quasars de Widmer e da peça de Smetak, estão presentes em filmes dos anos 1970 de Walter Lima Júnior. Na análise da junção dessas músicas às imagens dos filmes, retomamos discussões a respeito de “universalismo”, “nacionalismo” e “anedotismo”, comuns nos ambientes musicais da época.

Destacamos também o papel da produção fonográfica na época, não só internacional mas também nacional. Coleções nacionais como a MEC 1970 permitiram a difusão das obras de Widmer, Lins e de Marlos Nobre – por mais que a entrada deste último em filmes brasileiros tenha sido em O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro, em 1969, por outras vias, a considerarmos o que contou o compositor em entrevista. De todo modo, revela a curiosidade que esses diretores, ao menos Glauber Rocha e Walter Lima Júnior, tinham pela música do presente feita em diversas esferas e não apenas de artistas de música popular brasileira.33

Quanto à utilização estética dessas músicas nos filmes, embora em alguns casos ela acabe reiterando convenções aceitas de música de vanguarda associada a “ficção científica”, “futurismo” e estranhamento (como no uso das músicas de Widmer e Appleton no documentário Arquitetura, a transformação do espaço), há usos que vão para além disso, como, por exemplo, o emprego das peças Ukrinmakrinkrin e sua relação com o ritual fúnebre, alternada (e, por vezes, sobreposta) ao ponto de Ogum em O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro; de Policromia e sua a mixagem aos sons de carro de boi em Conversa com Cascudo; ou das músicas de Appleton, cujo uso vai para além do simples estranhamento, com ênfase em sua materialidade sonora em Na boca da noite. Música e imagem atuam em sinergia combinatória, como no uso de Mosaico em Os inconfidentes, ou, de modo geral, na montagem em O pátio. Em outros casos, os sons da música de vanguarda são aparentados ao das músicas populares, como Rythmetron e Dansom, em O dragão da maldade… . A lira do delírio, respectivamente, conferindo uma sensação de unidade a músicas de tradições tão distintas.

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Notas

1 Para saber sobre a música no Cinema Novo em geral, ver a fundamental pesquisa de Guerrini Júnior (2009), que destaca, entre outras características, a onipresença de músicas preexistentes de Heitor Villa-Lobos nas trilhas musicais dos filmes do Cinema Novo dos anos 1960.
2 Alertamos que a música objeto desse artigo não é a música experimental no geral, mas sim a que continua a tradição da assim chamada “música erudita ocidental” (ou “música de concerto”, num termo menos hierarquizante, porém menos utilizado no campo da Comunicação), por mais que se possa discutir suas fronteiras, o que não cabe nesse artigo. Preferimos o termo “vanguarda” a “contemporânea” – tal como Neves (2008) designa a música da segunda metade do século XX – porque nos referimos também a obras das primeiras décadas do século XX, algo que tem sido identificado como “música moderna”, e gostaríamos de uma designação só, ainda que não totalmente satisfatória.
3 Apesar da trilha sonora inventiva feita pelo compositor de vanguarda Guilherme Vaz para o filme Fome de amor (Nelson Pereira dos Santos, 1968), o diretor Nelson Pereira dos Santos não foi incluído em nosso corpus do Cinema Novo por ser de uma geração anterior e com experiências cinematográficas bastante distintas dos que iniciavam seus longas-metragens nos anos 1960. Quanto a Walter Lima Júnior, embora considerado de uma “segunda geração” do Cinema Novo (Carvalho, 2009), foi incluído por causa da importância de obras musicais do repertório erudito preexistente em seus filmes.
4 Projeto de pós-doutorado desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com bolsa PNPD-CAPES.
5 Embora não seja exatamente um filme “do Cinema Novo”, começamos nosso mapeamento por ele e é interessante que Glauber Rocha volte a um repertório eletroacústico dez anos depois, em O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro.
6 Ainda que o média-metragem tenha sido produzido dentro da série Globo Shell, Walter Lima Júnior teve liberdade de criação e controle sobre ele.
7 Este painel, devido às suas dimensões extremamente reduzidas, contém só compositores e movimentos que se relacionem mais diretamente ao que vai ser tratado no artigo.
8 Para saber mais, ver McMahon (2014).
9 O próprio Glauber se refere a uma “noção purista da forma” (Rocha, 1985, p. 250).
10 Com exceção do Estudo n.1 de Philippot (descoberto por nós, por meio da busca do LP), a identificação das outras músicas foi feita por Labaki (2015) no artigo da revista Linda, reiterada depois por Cunha (2019). Nos créditos do filme, consta apenas “montagem sonora em música concreta”, sem identificação das peças. Em entrevista a Cunha (2019), Helena Ignez mencionou apenas a Sinfonia para um homem só.
11 Tam-Tam IV, Sinfonia para um homem só e Étude n.1 estão no LP 2e Panorama de Music Concrète, lançado em 1956 pela Ducretet-Thomson.Acreditamos que este LP seja a fonte dessas músicas do filme.
12 Aqui designamos como “cosmopolitismo”, embora “universalismo” tenha sido uma palavra constantemente empregada na discussão de várias correntes das artes em geral (Naves, 2003) e como veremos a seguir.
13 Schaeffer justificava a presença desta palavra inteligível, dizendo que isso seria “um último delito de juventude” (Schaeffer, 1952, como citado por Fenerich, 2012, p. 268). Além disso, Sinfonia é uma obra conjunta com Pierre Henry (não tão radical quanto ao “anedotismo” como Schaeffer se tornou) e tem um caráter de peça radiofônica.
14 Philippot estudou música dodecafônica com René Leibowitz, mas especialmente o seu Estudo n. 1, é associado à música concreta, sendo que o compositor trabalhava nessa época com Pierre Schaffer. Porém, como Philippot avalia, diferentemente do que seria a música concreta por definição, seus estudos tinham “a partitura (ou, se preferem, o plano de arquitetura) era primeiramente escrita, composta, antes de começar a realização do trabalho em estúdio. Trata-se, portanto, de músicas que foram pensadas de início, executadas em seguida” (Philippot, 1994, não paginado, tradução nossa do francês). Philippot deu aulas em diversas universidades brasileiras nos anos 1970 e se casou com a pianista brasileira Anna Stella Schic, umas das grandes intérpretes de Villa-Lobos.
15 Siqueira (2014) identificou os pontos de Cosme e Damião e de Ogum e transcreveu os textos, o que muito nos auxiliou na apreciação do filme e para esse artigo.
16 Marlos Nobre conta que, quando criança, morava na rua São João em Recife, por onde passavam todas as sociedades de Carnaval e que, assim, teve desde a infância “contato direto, vivo, vital, com os Frevos das mais diversas e tradicionais sociedades de frevo de Pernambuco, os Caboclinhos, os Maracatus. Foi importante e formidável impressão e uma formação musical que me alimentou o subconsciente musical para sempre.” (Mariz, 1983, p. 82, como citado por Silva, 2007, p. 9).
17 Nobre, M. (2010, 23 de maio). MARLOS NOBRE, Ukrinmakrinkrin, Amalia Bazan,Musica Nova Ensemble, Nobre [Vídeo]. YouTube.https://bit.ly/436Szf3
18 Ukrinmakrinkrin foi composta em 1964 e representou a “música moderna” do Brasil em 1966 na IV Bienal dos Jovens em Paris (Mariz, 2005).
19 Marlos Nobre fez um curso com Koellreutter (Silva, 2007), que, como vimos, era contrário ao nacionalismo, defendendo o dodecafonismo e o universalismo.
20 O Expressionismo foi um período anterior ao desenvolvimento da escrita dodecafônica, num atonalismo livre.
21 Widmer nasceu na Suíça, em 1927, e veio a Salvador, a convite de Koellreutter, para lecionar na Universidade Federal da Bahia em 1956. Naturalizou-se brasileiro em 1967. Informações em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12231/ernst-widmer Acesso em 1 jul. 2022.
22 O arquivo a que tivemos acesso tem um prólogo explicativo de Amir Labaki. O filme começa só a 2min36s e os tempos da tabela levam isso em conta.
23 Na página-título da partitura, está escrito: “Quasars = quase estrela (corpo celeste – não completamente conhecido – de tamanho reduzido a grande densidade girando com alta velocidade em torno de si próprio).” (Nogueira, 2009).
24 Surgido também na década de 1970 e idealizado por Ariano Suassuna, envolvendo diversas artes, com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos populares, especialmente do Nordeste do Brasil.
25 Agradeço a Wellington Bujokas pelo acesso à música de Lins.
26 A relação da disponibilidade de discos de música contemporânea e o emprego dessas músicas no cinema foi estudada no contexto americano por Hubbert (2014).
27 Em outro artigo, Vetromilla (2011) examina a instituição do Conselho Federal de Cultura em 1966 e a esperança demonstrada pelo setor cultural de que o órgão fizesse frente ao controle da Ditadura Militar. Dentro desse contexto, Vetromilla (2011, p. 17) considera que o INM foi um “mecanismo institucional encarregado de consolidar ou consagrar o lugar da música erudita brasileira no panorama nacional”. Ao mesmo tempo, Salles (2001) aponta diversas ações da Ditatura Militar especialmente deletérias para a música erudita, como o fim do ensino de música obrigatório e do subsídio a orquestras.
28 A teoria das tópicas é de Leonard Rattner: “tipos e estilos correlacionados a contextos e significados extramusicais” (Oliveira, 2018, p. 11). Alertamos que não estamos querendo dizer que Nelson Pereira dos Santos tenha sido o primeiro a usar o som do carro de boi num filme brasileiro, mas, como a teoria das tópicas lida com convenções aceitas, a importância desse som no filme de Nelson, amplamente citado em trabalhos acadêmicos e por cineastas, pareceu-nos adequada para destacá-lo.
29 Diferentemente de Widmer, Smetak já estava no Brasil desde 1937 e só em 1956 foi para a Bahia a convite de Koellreutter (Scarassatti, 2001).
30 Dansom faz parte do LP Smetak, produzido por Caetano Veloso e Gilberto Gil, em função do apreço desses artistas pelo compositor. Foi lançado em 1975.
31 Tais compositores fizeram parte do que ficou conhecido como grupos de “Compositores da Bahia”, para cuja formação foi essencial Koellreutter (Neves, 2008).
32 Rodolfo Caesar (comunicação pessoal, dezembro, 2020) sugere uma influência de Ligia Pape, pois a artista apresentara uma performance em 1958 com trechos de Schaeffer e Henry.
33 Artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Chico Buarque participaram como compositores ou intérpretes de filmes do Cinema Novo. Outro ponto de contato dos diretores cinemanovistas com o ambiente musical da época é, como já mencionado no artigo, Rogério Duprat, um músico que atravessava as fronteiros do popular e do erudito, tendo sido um dos signatários do Manifesto Música Nova – que defendia a música presente no cinema, no rádio e na TV (Cozella et al, 1979 , citado por Guerrini Júnior, 2009). Pelas dimensões do artigo, não temos como explorar esse aspecto.

Author notes

a Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, doutora em Música pela UNIRIO e pós-doutora em Música pela UFRJ. Pós-doutoranda na USP com bolsa CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4816-6790. E-mail: luizabeatriz@yahoo.com
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