EDITORIAL
A comunicação e as múltiplas lentes interpretativas
A comunicação e as múltiplas lentes interpretativas
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 5-9, 2023
Universidade de São Paulo

Como de costume, a presente edição de MATRIZes aglutina um conjunto de temas instigantes, argumentações originais, relatos de pesquisa empírica e teórica, entrevista com personalidades da área e resenha de livro que nos oferece alternativas e horizontes para cercar a vastidão das problemáticas comunicacionais. Isso faz parte de sua missão como periódico científico da Comunicação, desde 2007. Nessa trajetória, vem publicando contribuições amparadas em diversas tradições teóricas, bem como em diferentes metodologias, o que condiz com as características do campo ao qual pretende contribuir. Por sua vez, seus leitores reconhecem a importância desta publicação e seu papel na consolidação e institucionalização dessa área no contexto nacional: uma evidência disso é a revista ter alcançado a pontuação h17 no Google Scholar, a mais alta entre as revistas científicas nacionais da área. Portanto, a cada edição, persistimos no árduo trabalho de disponibilizar estudos com aderência a distintos parâmetros de cientificidade, o que obrigatoriamente inclui a crítica de conceitos e de procedimentos de investigação empírica e teórica, sustentada por saberes específicos que dão conta de objetos-problema pertinentes à Comunicação.
Encabeça o presente Dossiê um artigo provocativo, por seus argumentos, e desafiador, pela exigência de uma leitura informada. Por um lado, os questionamentos lançados sobre a “improbabilidade da comunicação”, pensada por Niklas Luhmann, nos obrigam a exercitar a atenção máxima aos argumentos entrelaçados; por outro, o passeio por uma diversidade de referências clássicas da filosofia, de Thomas Hobbes à Jacques Derrida, nos revela a potência teórica da escrita de Winfried Nöth em “O paradoxo semiótico da improbabilidade da comunicação”. Sem exigir um endosso à tese defendida, o artigo revela sobretudo a diversidade teórico-metodológica vigente no campo comunicacional.
A seguir, Felipe Trotta nos instiga a pensar sobre experiências musicais cotidianas em “Gosto musical, moral e incômodos”, pela via de uma abordagem de articulação entre empiria e teoria. A partir da análise de um conjunto de entrevistas, realizadas ao longo de seis anos com pessoas de distintas classes sociais, faixas etárias e localizações geográficas, o autor discute questões de gosto musical e seus atravessamentos por julgamentos morais. Trotta nos diz que gostar ou não gostar de uma música é interagir com um emaranhado de ideias, pensamentos e moralidades que transitam do real vivido aos efeitos de sentidos inscritos em tais peças, elaborando ora um julgamento positivo, ora um parecer negativo sobre elas. Contudo, alerta também para compreender que esses dois polos não são excludentes nem definitivos e podem sofrer alterações ao longo do tempo.
Retomando a reflexão teórica, o terceiro artigo, “Pensar lo popular desde un lugar otro: La propuesta de Jesús Martín-Barbero y su aporte al debate teórico sobre la cultura popular”, de autoria de Amparo Marroquín Parducci, resgata as contribuições de Jesús Martín-Barbero sobre o popular e seu deslocamento do âmbito do ancestral e do originário para suas relações com o massivo. Trata-se de tema de relevância incontestável, não só no âmbito da pesquisa latino-americana da comunicação, mas também para além dessas fronteiras geográficas e disciplinares. Além disso, nota-se um recente movimento de renovação e ampliação dessas reflexões, motivadas pela incorporação das discussões sobre “o popular” articulada à problemática dos algoritmos e da cultura digital.
Na sequência, Eliza Bachega Casadei nos oferece uma análise de perfis do Instagram que se dedicam, pela via do humor, às finanças. Em “A mobilização de afetos nas finanças: humor, fracasso e discurso neoliberal nas páginas Faria Lima Elevator e Investidor da Depressão”, esses dois casos são vistos como pertencentes à lógica do espetáculo e do entretenimento, concomitantemente ao compartilhamento de discursos de autoajuda e educação financeira reiterativos do pensamento neoliberal.
Por fim, encerrando o Dossiê, Eduardo Duarte toma um conjunto de filmes de ficção científica, entre eles o icônico Blade Runner – O caçador de androides, de Ridley Scott, para tratar de imaginários urbanos futuristas, utilizando a ideia de flânerie, de Walter Benjamin, como uma ferramenta metodológica. O artigo “Flânerie pelas cidades do futuro” é um dos resultados da pesquisa “Futuros Humanos: A percepção imaginária dos ambientes urbanos e paisagens do futuro no cinema contemporâneo”.
Já a Entrevista desta edição foi cedida a Germana Fernandes Barata por Carlos Vogt. O linguista, um dos pioneiros da Divulgação Científica no Brasil, atuou no âmbito da gestão de inúmeras instituições nacionais, entre outras, a Fapesp. O foco da entrevista, realizada no início de 2023, está concentrado em seu modelo de comunicação da ciência, denominado Espiral da Cultura Científica. Embora Vogt tenha retomado o conceito desse modelo para pensar as novas conexões estabelecidas entre ciência e sociedade com a pandemia de covid-19, caberá ao leitor agora aproximá-lo ao debate acalorado que o livro Que bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não devem ser levados a sério, de Natália Pasternak e do jornalista Carlos Orsi, vem provocando.
Na seção Em Pauta, reunimos mais uma série de artigos de autorias e nacionalidades diversas, que tratam de diferentes objetos de estudos, abordados por uma gama de vieses teóricos, fazendo jus à ideia de vigência de distintas abordagens teóricas e metodológicas na Comunicação. De início, contamos com quatro artigos de forte cunho político contemporâneo, ainda que muito diferentes nos objetos e nas perspectivas escolhidas. No primeiro, “Estados recusados: o efeito do culturalismo em nações com histórico de colonização”, Ricardo Zocca e Moisés Martins discutem duas falas em particular – uma do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e outra de Alberto Fernandez, presidente da Argentina –, nas quais eles se manifestam mais próximos de uma elite europeizada do que das respectivas populações locais, consideradas por aquela como ignorantes e impuras. Esse sentimento de recusa, afirmam os autores, está entranhado nas elites locais que, por sua vez, se enxergam distantes das populações de seu próprio país, configurando um movimento que se espiraliza e se retroalimenta.
Já no segundo artigo, “A comunidade de jornalistas LGBTQIA+ e o esforço das ações afirmativas num Brasil conservador”, Francisco de Assis destaca três iniciativas, datadas entre 2017 e 2018, destinadas a resguardar o trabalho de jornalistas em relação às pautas de gênero, em tempos de uma cruzada moral contra o reconhecimento da diversidade de gênero e sexualidade. Embora tais ações tenham sido importantes, a conclusão é de que se movem de modo muito vagaroso, principalmente porque existem múltiplos obstáculos impostos pela grande ofensiva de forças conservadoras – aliás, a nosso ver, muito bem estabelecidas, sobretudo nas instituições de ensino.
O terceiro artigo, “Resistência aos media e desconexão digital na literatura ocidental”, consiste em uma meta-análise de literatura publicada em revistas científicas sobre dois temas: desconexão digital e resistência. Como resultado, Rita Figueiras, Maria José Brites e Kim Schrøder identificam duas tendências: uma abordagem centrada nos media e outra centrada no contexto. Vale ainda reforçar uma nota final da autoria, na qual sugerem que a agenda futura de investigação sobre os mesmos temas dê maior atenção às práticas em contextos vulneráveis tanto do Norte quanto do Sul Global já que, no momento, nota-se uma concentração nos indivíduos privilegiados do Norte.
E o quarto artigo, de apelo político, “Ouvir para além do Antropoceno: Poetry as an echological survival”, de João Pedro Amorim e Luís Teixeira, toma a instalação imersiva de som e luz de Nuno da Luz que traz para o espaço de uma galeria de arte o ambiente da Foz do Douro como provocação para pensar como estamos impactando unilateralmente os ecossistemas. Portanto, a arte sonora é abordada por seu potencial político e de elemento de ruptura e reconexão com o planeta, salientando um aspecto comunicacional original.
Completam a seção Em Pauta ainda três artigos. Um deles é “As ‘Inimagens’ de Eduardo Kac e a Fotografia Experimental no Brasil”, de Victa de Carvalho e Nina Velasco e Cruz, sobre a história da fotografia experimental brasileira. Mais especificamente, trata da análise de uma série fotográfica, datada em 1983, de Eduardo Kac, artista visual, poeta e ensaísta, nascido no Rio de Janeiro, em 1962. Para tal, recupera a prolífica trajetória de Kac e sua vinculação com outros artistas da época, propondo pensar a série de imagens indicada a partir de reflexões de Georges Bataille, Michel Foucault e Georges Didi-Huberman.
Logo após, está “Mapeando as relações comunicativas em premiações jornalísticas”, de Ricardo Uhry e Kati Caetano. Esse artigo toma como ponto de partida a utilização de um mapa, construído por Uhry a partir de articulações entre as mediações de Jesús Martín-Barbero e dos regimes semióticos proposto por Eric Landowski, e sua aplicação na análise de 41 premiações internacionais jornalísticas. De modo geral, constatou-se que os projetos vencedores têm características experimentais e sinalizam uma tendência de reconfiguração noticiosa devido aos impactos dos meios digitais no jornalismo.
A seção encerra com o artigo “A narrativa termográfica em Incoming e There Will Be No More Night”, de Rafael Tassi Teixeira. Por um lado, o autor se debruça sobre a videoinstalação de Richard Mosse, composta exclusivamente por imagens, sem acompanhamento narrativo ou diálogos, de duas das mais usuais rotas das populações migratórias – a rota turca que termina no campo de refugiados, instalado no antigo aeroporto de Tempelhof, em Berlim; e a rota africana percorrida por migrantes vindos da África negra em direção à Líbia que geralmente utilizam botes infláveis, precários e superlotados, para atravessar o Mediterrâneo e chegar sobretudo na Itália. Por outro lado, o autor se apropria do filme There Will Be no More Night (2020), da cineasta francesa Éléonore Weber, que utiliza vídeos gravados por pilotos de helicópteros e aviões de caça em regiões de ações militares da OTAN. Para o autor, as duas obras são experiências estéticas imersivas, viabilizadas pelas multitelas, que possibilitam observar a gameficação da guerra contemporânea.
Encerra a edição, a seção Resenha, com a oportuno texto de Magaly Prado sobre o livro A superindústria do imaginário – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível, de Eugenio Bucci, professor da casa (isto é, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e do programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação). Valendo-se de saberes específicos e diversos, por exemplo, da psicanálise à economia-política, as quase 500 páginas do livro tratam da datificação da sociedade atual, tema ineludível do presente: o poder das big techs e dos algoritmos. Leitura obrigatória em tempo de discussões necessárias, no cenário nacional, sobre a regulamentação das big techs e as implicações originadas de sua incorporação na vida cotidiana.
Enfim, uma das motivações de MATRIZes é interrogar e questionar criticamente nossa caixa de ferramentas conceituais se quisermos compreender a multiplicidade e a complexidade de objetos-problemas de pesquisa da Comunicação, sempre contextualizados a realidades particulares. Ademais, faz parte de nossa missão propiciar espaço e colaborar para a visibilidade de distintas e variadas lentes de interpretação e, assim, oferecer amplo panorama da produção científica em Comunicação. Daí o conjunto de textos que se tem em mãos: multifacetado conceitualmente, bem como diverso em termos de objetos de estudo. Boa leitura!