DÔSSIE
O paradoxo semiótico da improbabilidade da comunicação
The semiotic paradox of the improbability of communication
O paradoxo semiótico da improbabilidade da comunicação
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 11-23, 2023
Universidade de São Paulo

Recepción: 03 Marzo 2023
Aprobación: 18 Mayo 2023
Resumo: O artigo interpreta o teorema da “improbabilidade da comunicação” de Niklas Luhmann como um argumento contra o ideal de uma congruência perfeita entre as mentes comunicantes, cujos precursores mais moderados são: (1) a teoria de Thomas Hobbes da comunicação enganosa, (2) as implicações da exclusão na etimologia da palavra comunicação, (3) as objeções da teoria do código de J. Lotman contra a ideia de comunicação com base em um código comum, (4) teorias cognitivas sobre os impedimentos à comunicação baseadas na suposição de que as mentes são caixas-pretas, (5) a teoria da comunicação de C. S. Peirce e (6) as visões pós-estruturalistas e desconstrutivistas sobre a impossibilidade de congruência na comunicação (Foucault, Derrida).
Palavras-chave: comunicação (impossibilidade de), congruência comunicativa, Niklas Luhmann, teoria do código, pós-estruturalismo, Charles S. Peirce.
Abstract: The paper interprets Niklas Luhmann’s theorem of the “improbability of communication” as an argument against the ideal of a perfect congruence between communicating minds, whose more moderate precursors are: (1) Thomas Hobbes theory of deceitful communication, (2) implications of exclusion in the etymology of the word communication, (3) J. Lotman’s code theoretical objections against the idea of communication on the basis of a common code, (4) cognitive theories concerning impediments in communication based on the assumption that minds are black boxes, (5) Charles S. Peirce’s communication theory, and (6) poststructuralist and deconstructivist views concerning the impossibility of congruence in communication (Foucault, Derrida).
Keywords: communication (impossibility of), congruence in communication, Niklas Luhmann, code theory, poststructuralism, Charles S. Peirce.
A QUESTÃO SE a comunicação é uma realidade da vida social ou uma mera ficção não era um tema com o qual a teoria clássica da comunicação, desde Shannon e Weaver (1949), se preocupava. A comunicação era o seu objeto de estudo e os teóricos da área da comunicação não tinham dúvidas sobre a ubiquidade da comunicação na vida real. Quem não se comunicava, o autista, por exemplo, era um caso para os estudos psiquiátricos da comunicação, como o de Watzlawick, Beavin e Jackson (1973). O filósofo da comunicação Augusto Ponzio até mesmo postula que “comunicar é ser” (1999, p. 7) e, junto a Susan Petrilli (Petrilli & Ponzio, 2005, p. 522), ele responde a pergunta “podemos nós sermos sem comunicar?” de forma negativa: “A comunicação é o ser. Comunicar é persistir no próprio ser. É a autopreservação. [...] A comunicação coincide com o ser”. A partir de uma perspectiva biossemiótica, os autores até estendem tal premissa ontológica para a vida animal em geral: “Um organismo é uma comunicação [...], um ser comunicante, em si mesmo, por conta própria, como um organismo. Um organismo é um dispositivo para a autocomunicação ou a autopreservação e, portanto, capaz de persistir em seu próprio ser” (2005, p. 522).
Apesar da ubiquidade aparentemente óbvia da comunicação, o teórico dos sistemas sociais Niklas Luhmann (1927-1998), em um artigo de 1981, muito citado e traduzido para o português em 1992, sob o título “A improbabilidade da comunicação”, questionou se a comunicação realmente acontece, visando, com este argumento, “dissipar as expectativas comuns e as seguranças na vida cotidiana” (1992, p. 40) sobre como os processos de comunicação acontecem. O autor retomou o mesmo tema no §7 do capítulo 4, “Comunicação e ação”, da sua obra Sistemas Sociais. esboço de uma teoria geral (2016, pp. 182-188). O paradoxo luhmanniano de comunicar a improbabilidade da comunicação e algumas variantes de tais dúvidas são o objeto desse artigo, mas o teorema de Luhmann é somente o ponto de partida desse estudo, visto que lidamos também com as premissas teóricas relativas à comunicação que foram propostas antes de Luhmann e novamente no despertar do pós-estruturalismo.
Paradoxalmente, o artigo em que Luhmann lançou primeiramente as suas dúvidas fundamentais sobre a probabilidade de acontecer a comunicação começa com uma premissa bastante similar à de Ponzio: “Sem comunicação não existem relações humanas nem vida propriamente dita” (1992, p. 39). Na sua radicalidade, a tese da improbabilidade da comunicação não encontrou muito apoio entre os pesquisadores da área da comunicação. É até provável que o próprio Luhmann tenha formulado o seu teorema radical principalmente por motivos retóricos, a fim de discutir a tese mais moderada de que o ideal da comunicação perfeita é raramente alcançado, pois, se tivesse levado a sério a sua premissa, ele teria reconhecido que ela implica na conclusão de que as suas próprias ideias não poderiam ser comunicadas a ninguém.
Porém, se a tese luhmanniana da improbabilidade da comunicação é interpretada de forma menos radical, no sentido de que existem obstáculos fundamentais à comunicação perfeitamente bem-sucedida, um número bem maior de teóricos da comunicação a adotariam. Vale lembrar que a aporia da impossibilidade de comunicar o incomunicável tem sido uma figura retórica conhecida desde Homero. Ernst Robert Curtius (1979) a definiu como o Unsagbarkeitstopos (tópos do indizível), a aporia de querer expressar o inexprimível, dizer o indizível.
AS TRÊS DÚVIDAS DE LUHMANN SOBRE A PROBABILIDADE DA COMUNICAÇÃO
As premissas do teorema luhmanniano podem ser encontradas na sua perspectiva teórica dos sistemas aplicada à comunicação (Schneider, 1994, pp. 149-190). Uma troca mútua de ideias não é provável, conforme esta teoria, porque mentes são sistemas fechados e autorreferenciais, e isso torna impossível o acesso mútuo entre duas ou mais delas. Mais detalhadamente, Luhmann distingue três obstáculos que se reforçam mutuamente e tornam a comunicação improvável:
Tendo em conta essa concepção de comunicação como um entendimento ideal mútuo, as expectativas de Luhmann a respeito da improbabilidade da comunicação são pessimistas. Fadada à falha, comunicadores tornam-se desencorajados e eventualmente abstêm-se da comunicação, porque “estas improbabilidades não são somente obstáculos para que uma comunicação chegue ao destinatário, mas atuam ao mesmo tempo como ‘fatores de dissuasão’, que induzem a abster-se de uma comunicação que se considera utópica” (ibid.).
HOBBES COMO PRECURSOR FILOSÓFICO DO TEOREMA DE LUHMANN
Apesar da sua radicalidade, Luhmann não reivindicou nenhuma novidade para o seu teorema da improbabilidade da comunicação. Como um dos antecedentes dela, ele invocou Thomas Hobbes (1588-1679) (1992, p. 122), mas somente em seu livro Sistemas sociais ele fornece uma pista do porquê o autor do Leviatã deve ter argumentado que a comunicação é um problema entre os humanos. Hobbes, assim como Luhmann (2016, p. 138) o lê, “havia afirmado que todo homem teme o outro e, por isso, é levado a uma preventiva hostilidade, o que força o outro, que já leva em conta essa prevenção, a se prevenir ainda mais antes de seu outro”. No entanto, a teoria da comunicação de Hobbes não pode ser reconstruída a partir de passagens da sua obra nas quais ele lida com a comunicação literalmente, porque este conceito de comunicação não fazia parte do seu vocabulário. O que ele entendia por comunicação deve ser reconstruído a partir de passagens nas quais ele lidava com o entendimento e a significação. O último conceito tinha um significado diferente do de hoje, pois apenas por “significar algo para alguém”, Hobbes entendia “comunicar algo para alguém” (Hungerland & Vick, 1973).
Hobbes distinguia duas fases da evolução humana. A primeira era um período arcaico no qual os humanos viviam num estado primitivo, que Hobbes definia como o estado de natureza. Nesse tempo, os humanos ainda não tinham leis para distinguir valores morais. Ao invés disso, decisões sobre o bom ou o mau foram feitas pelos indivíduos por conta própria. Por outro lado, a segunda fase é um período avançado da cultura humana. Nela, o bem-estar de todos baseia-se em um contrato social estabelecido e executado por um soberano, que estabeleceu e determinou as leis, a justiça, a ordem social e as distinções de valores morais necessárias para o bem-estar de todos. Assim, a referência de Luhmann a Hobbes não pode relacionar-se com essa segunda fase da evolução humana, pois nessa fase avançada da evolução somente aqueles cidadãos que retrocederam para a fase arcaica do estado da natureza poderiam ser a causa dos problemas de comunicação.
As falhas da comunicação humana que Luhmann atribuiu à filosofia política de Hobbes só podiam ser falhas características da fase arcaica da evolução humana e falhas causadas por seres humanos em sociedades civilizadas que retrocederam para o estado da natureza. Como exemplo do último tipo, Hobbes enumerou quatro abusos da linguagem verbal, que resultam em quatro obstáculos à comunicação:
Primeiro, quando os homens registram erradamente seus pensamentos pela inconstância da significação de suas palavras, com as quais registram por suas concepções aquilo que nunca conceberam, e deste modo se enganam. Em segundo lugar, quando usam palavras de maneira metafórica, ou seja, com um sentido diferente daquele que lhes foi atribuído, e deste modo enganam os outros. Em terceiro lugar, quando por palavras declaram ser sua vontade aquilo que não é. Em quarto lugar, quando as usam para se ofenderem uns aos outros, pois dado que a natureza armou os seres vivos, uns com dentes, outros com chifres, e outros com mãos para atacarem o inimigo. (Hobbes, 1997, p. 17).
De acordo com Hobbes, quando falta um consenso sobre os valores morais ou quando tal consenso, uma vez estabelecido, é negligenciado, a comunicação deve falhar. Sem um código de valores éticos, válidos e aceitos por todos, a comunicação deve falhar. Ela pode até mesmo acabar em guerra, pois
o bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos homens. E homens diversos não divergem apenas, em seu julgamento, quanto às sensações do que é agradável ou desagradável ao gosto, ao olfato, ao ouvido, ao tato e à vista, divergem também quanto ao que é conforme ou desagradável à razão, nas ações da vida cotidiana. Mais, o mesmo homem, em momentos diferentes, diverge de si mesmo, às vezes louvando, isto é, chamando bom, àquilo mesmo que outras vezes despreza e a que chama mau. Daqui procedem disputas, controvérsias, e finalmente a guerra. (Ibid., p. 57)
Esse é o cenário hobbesiano de uma sociedade sem leis morais, para o qual Luhmann reivindica a ancestralidade do seu teorema da improbabilidade da comunicação. No entanto, o argumento luhmanniano sobre a improbabilidade da comunicação aplicar-se aos humanos no estado de natureza hobbesiano, sem regras éticas, negligencia o fato de que esses humanos precisavam, ao menos, comunicarem-se entre si para poderem entrar em desacordo. Desacordo e desentendimento não são possíveis sem comunicação. Como pode haver desentendimento sem comunicação e sem interpretação dos signos que transmitem o valor em jogo?
AMBIGUIDADES ETIMOLÓGICAS: INCLUSÃO E EXCLUSÃO
Dúvidas gerais sobre a natureza da comunicação também se apresentam na raiz etimológica da palavra comunicação. Como observou Casalegno (2006, p. 21), a raiz dessa palavra levanta dúvidas se a comunicação pertence à lógica da inclusão, pressuposta para os processos comunicativos, ou à da exclusão, que significaria um problema fundamental de comunicação. O dicionário etimológico do protoindo-europeu de Pokorny (1959, p. 709-10) informa que o substantivo comunicação, o adjetivo comum e o verbo comunicar derivam da raiz protoindo-europeia mei-. Essa raiz tem seis formas homônimas com diferentes significados, entre as quais duas sugerem uma antinomia etimológica fundamental na palavra comunicação. O principal significado é o de mei-2, que significa ‘trocar’ ou ‘intercambiar’. Esse significado é, de fato, compatível com os conceitos modernos de comunalidade e comunicação. Uma outra raiz é mei-1, ‘fortificar’. Essa raiz é o precursor etimológico da palavra latina moenia, ‘muros defensivos’, ‘reparos’, ‘baluartes’ ou ‘muralhas da cidade’. Descendentes dessa raiz podem ser encontrados em palavras modernas como munição ou município.
Portanto, a raiz -mei abrange dois significados que andam em direções opostas. Uma implica a lógica da inclusão e a outra a lógica da exclusão. A lógica da inclusão é expressa no étimo mei-2, que pertence ao campo semântico do intercâmbio e da reciprocidade, e pode ser também encontrada nas raízes da palavra moderna mútuo. A lógica da exclusão apresenta-se na raiz mei-1, cujo descendente mais próximo é o verbo latino communire, que significa ‘fortificar por todos os lados’. Certamente, a estranha incompatibilidade semântica entre as raízes mei-1 e mei-2 possui sua explicação no fato de as comunidades arcaicas precisarem de fortificações. A lógica das muralhas municipais não somente implica a inclusão, a ideia de um espaço de troca mútua, mas também a exclusão, que significa a impossibilidade da comunicação com aqueles do lado de fora desse espaço. A ambiguidade entre inclusão e exclusão continua a ser uma realidade no encontro com estrangeiros falantes de uma língua desconhecida. A comunicação na sua própria língua significa a inclusão daqueles que falam a mesma língua, mas a exclusão daqueles que falam o idioma desconhecido.
O paradoxo das raízes opostas possui outras contrapartes no campo semântico das palavras relacionadas à comunicação, como, por exemplo, no conceito de informação. Informar alguém também implica tanto ‘ter’ como ‘não ter conhecimento’, ou seja, aquele antes e aquele depois do ato comunicativo. Isso implica tanto um ‘ter’ e um ‘não ter conhecimento em comum’. O estado da informação que ainda não é comum é o estado da exclusão, enquanto a informação compartilhada significa o estado da inclusão.
Assim, a comunicação, como um ‘tornar comum’, também implica a transição do estado do privado para o compartilhado. Note que a raiz etimológica da palavra privado, que caracteriza o estado no qual as ideias ainda não foram comunicadas, também implica um sentido de pertencimento à lógica da exclusão, visto que o verbo privare, do qual privado é uma derivação, significa ‘espoliar’, ‘tornar único ou separado’. Portanto, manter o conhecimento privado sem comunicá-lo, etimologicamente conota privar outros do conhecimento. Por outro lado, a comunicação como tornar o conhecimento comum, como compartilhar ideias ou informações, conota a lógica da inclusão.
Aqui reside a diferença fundamental entre troca comunicativa e troca econômica. A comunicação não pode ser concebida de acordo com um “modelo de pacote postal”, tal como aponta Ponzio (1990, pp. 146-147). O cenário postal do remetente/destinatário implica nos remetentes tendo que renunciar as suas mensagens, que significa o estado de exclusão. Ao invés disso, a comunicação segue a lógica da conjunção e, portanto, da inclusão, visto que os remetentes mantêm o objeto de troca quando eles “compartilham” suas ideias com os destinatários. A troca econômica, por outro lado, segue a lógica da disjunção, visto que os vendedores têm que renunciar aos seus bens e os compradores têm que desistir daquilo que eles estão dando em troca. O que a troca de bens e a troca de ideias têm em comum é que nenhuma delas significa “troca igual”, como ensina Ponzio (1990, pp. 185-196).
TRÊS OUTRAS DÚVIDAS SOBRE A PROBABILIDADE DA COMUNICAÇÃO BEM-SUCEDIDA
Variantes do argumento da improbabilidade da comunicação podem ser encontradas também na teoria da comunicação do século XX. Três delas, que serão discutidas na sequência, são o argumento do código teórico, o argumento de que mentes são caixas-pretas, em que nenhuma troca é possível, e o argumento dos pós-estruturalistas e dos desconstrutivistas.
Dúvidas fundadas nas teorias do código
Os modelos dos códigos teóricos da comunicação dos anos 1960 conceberam os códigos como repertórios de signos e horizontes de conhecimento que diferem cada participante na comunicação. Essas diferenças eram interpretadas como a fonte de desentendimentos entre os emissores e receptores das mensagens (cf. Nöth, 2023). O modelo de Shannon e Weaver (1949) ainda postulava um único código comum, com o qual o emissor codifica e o receptor decodifica a mensagem. Ponzio criticou esse modelo,
segundo o qual as mensagens são formuladas e trocadas com base em um código (que foi definido e fixado antecipadamente em relação ao uso efetivo dos signos, de modo que, ao exigir somente a decodificação, não apresenta o risco envolvido na interpretação), de uma correspondência de mão-dupla entre significante (signifiant) e significado (signifié). (Ponzio, 1990, pp. 275-277).
Uma teoria baseada no pressuposto de que a comunicação sempre envolve, ao menos, dois códigos que nunca coincidem, de modo que a comunicação nunca poderá ser totalmente bem-sucedida, foi proposta por Iuri Lotman (cf. Nöth, 2022). O seu modelo de comunicação representa os códigos do emissor e do receptor de uma mensagem na forma de um diagrama de Venn, mostrado na Figura 1. Os dois repertórios de signos são representados por letras maiúsculas e minúsculas, respectivamente.

Somente os signos Aa, Bb, Cc e Dd, na área de intersecção entre A e B, representam o repertório de signos compartilhados por ambos emissor e receptor. Somente eles tornam a comunicação possível, enquanto a comunicação está fadada à falha quando os signos excluídos da área de intersecção (E, F, G, h, i, j) são utilizados. Baseado nesse diagrama, Lotman descreve um argumento duplo da impossibilidade da comunicação: “A comunicação parece ser impossível” nas duas áreas A e B, que não se sobrepõem, “ao passo que uma interseção completa (onde A e B são consideradas idênticas) cria uma comunicação insípida” (e, portanto, impossível em um outro sentido) (2013, p. 17).
A solução de Lotman a esse aparente paradoxo da impossibilidade da comunicação é que a comunicação só pode ser concebida como um processo de tradução do intraduzível:
Quanto mais difícil e inadequada for a tradução de uma parte não-interseccionada do espaço para a língua do outro, mais valiosa [...] essa comunicação paradoxal se torna. Você poderia dizer que a tradução do intraduzível pode, por outro lado, tornar-se a portadora da informação do mais alto nível. (Ibid.).
O argumento da mente como caixa-preta
O argumento da caixa-preta não declara literalmente que a comunicação seja impossível, mas ele afirma que é impossível saber se a comunicação é possível e se realmente acontece, porque o destinador não possui acesso à mente do destinatário (vulgo caixa-preta). Décadas antes dos behavioristas criarem o mito da caixa-preta, Peirce formula este dilema epistemológico da seguinte forma:
O enunciador não possui ideias exceto as suas próprias ideias, ele não vive a vida exceto a sua própria vida. Deixe-o tentar especificar um lugar no panorama do intérprete e ele poderá somente ver o seu próprio panorama, onde ele poderá encontrar nada além das suas próprias ideias. (MS 318, p. 194 [Prag. 25], 1907).
A solução de Peirce para esse dilema da impossibilidade em saber o que o receptor de uma mensagem entende pode ser encontrada na sua teoria do interpretante, o efeito dos signos em seus intérpretes. Diferentemente de Luhmann, Peirce argumenta que tais efeitos não ficam inacessíveis por duas razões. Primeiramente, os efeitos dos signos do emissor sobre o receptor são acessíveis a um emissor por meio de signos verbais e não verbais aos quais os receptores reagem, como, por exemplo, quando os últimos exprimem o seu entendimento ou desentendimento, acordo ou desacordo, verbalmente ou não verbalmente. Em segundo lugar, os emissores têm conhecimento de como os signos operam nas suas próprias mentes, de maneira que eles “não têm dificuldade em encontrar a vida do intérprete” nas “suas ideias sobre ela” (ibid., p. 194). Em outras palavras, apesar dos emissores da mensagem não poderem ler os pensamentos dos receptores, eles podem ler os signos que dão evidências desses pensamentos e sabem da sua própria experiência semiótica, se ou como uma mente entende mensagens ou não. Sem poder entrar nas mentes dos receptores, os emissores podem, no entanto, criar hipóteses bastante adequadas sobre como aqueles entendem a sua mensagem.
O argumento da caixa-preta está associado com o paradoxo cognitivo geral, reconhecido por Wittgenstein, segundo o qual ninguém pode jamais saber o que está acontecendo em seus próprios cérebros. O argumento de Wittgenstein é: “Mas quando se diz: ‘Como vou saber o que alguém tem em mente, pois vejo somente os seus signos’, então digo: ‘Como ele pode saber o que tem em mente, ele também só tem os próprios signos.” (2009, § 504, p. 188).
Argumentos pós-estruturalistas e desconstrutivistas
Outras variantes do argumento da impossibilidade de uma comunicação bem-sucedida podem ser encontradas nas teorias discursivas dos pós-estruturalistas e dos desconstrutivistas. A partir de uma perspectiva das Ciências Sociais, o teor geral da teoria comunicacional pós-estruturalista é, provavelmente, melhor sintetizado na tese de Michel Foucault, em que o ideal da “comunicação universal do conhecimento, a troca indefinida e livre dos discursos” é “um dos grandes mitos da cultura europeia” (Foucault, 1996, p. 38). O livre intercâmbio das ideias torna-se impossível porque as mensagens que circulam em público estão sujeitas ao controle, à proibição e à exclusão. A razão disso é porque: “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório” (Foucault, 1996 p. 8-9). Assim, a impossibilidade da comunicação é a impossibilidade da comunicação livre.
Em diversas versões, o tópos da impossibilidade da comunicação tornou-se um leitmotif dos escritos pós-estruturalistas. Roland Barthes estigmatizou o pressuposto da “pureza da comunicação” para mostrar que a comunicação é “corrompida” pela pluralidade das conotações discursivas que criam uma multiplicidade de significados. Assim, a comunicação anda sempre acompanhada da “contracomunicação” (1999, p. 15) e a mensagem, em última instância, revela-se como um ruído shannon-weaveriano, como Nelson (1985, p. 9) aponta: “O ruído não está fora da mensagem, nem é um suplemento interno à verdade da mensagem. O ruído é um processo semiótico que constitui as mensagens; ele é a sua substância; ele é irredutível.” Como Barthes concluiu: “A semiologia seria, desde então, aquele trabalho que recolhe o impuro da língua, o refugo da linguística, a corrupção imediata da mensagem” (2010, p. 32).
Julia Kristeva fornece uma perspectiva pós-estruturalista lacaniana sobre a impossibilidade da comunicação. Ao invés da comunicação, ela discerne somente uma autocomunicação: “Ora cada sujeito falante é simultaneamente o destinador e o destinatário da sua própria mensagem [...]. A mensagem destinada ao outro é, num certo sentido, destinada em primeiro lugar ao mesmo que fala: donde se conclui que falar é falar-se.” (2020, p. 19).
Talvez o clímax das teorias anticomunicacionais pós-estruturalistas seja a teoria de Baudrillard sobre a impossibilidade da troca em geral: a comunicação é impossível porque as palavras tornaram-se vazias “e o signo não tem mais força de sentido” (2002, p. 11). O que Baudrillard não diz é qual foi o significado desses signos outrora, quando eles ainda não estavam vazios (cf. Nöth, 2003).
Os motivos pelos quais as alegações de Derrida de que a comunicação é impossível são bem esclarecidos em Deconstructing Communication (1996) de Chang. É impossível chegar a qualquer consenso sobre o que quer que signifique uma mensagem, porque os seus significados são sempre diferidos no decurso da sua leitura, de modo que eles necessariamente escapam a qualquer “definição” possível. A “implosão” da ideia de comunicabilidade ocorreu porque “Derrida descreve novamente a comunicação como um jogo desenfreado de diferenças, substituições e deslocamentos que ocorrem no limite da significação”. Ele nos ensina que “nosso senso de incerteza vem naturalmente e inevitavelmente da própria natureza do nosso ser linguístico, que nós sempre e já estamos à mercê dos signos peripatéticos” (Chang, 1996, p. 187).
O PARADOXO PERFORMATIVO E A SUA SOLUÇÃO
Céticos do teorema da improbabilidade da comunicação podem certamente ser desculpados por nunca terem se perguntado a questão se a comunicação é provável ou não, pois perguntar se alguém pode comunicar significa criar um paradoxo performativo. Levantar a questão se a comunicação é possível é performar um ato discursivo, mas atos discursivos pressupõem falantes que comunicam. Isso assim acontece mesmo quando o destinador e o destinatário são a única e mesma pessoa, visto que a comunicação inclui a “autocomunicação”, assim como podemos aprender com Peirce, Lotman e Ponzio (1999, p. 8). Agora, se fazer uma pergunta é comunicar, então ainda perguntar se nós comunicamos ou não constitui um paradoxo. No entanto, por que essa pergunta foi levantada de tantos modos? A questão se a comunicação é provável pode ser somente uma pergunta retórica, formulada para expressar o argumento de que nós não podemos comunicar no sentido no qual o termo comunicação é concebido de acordo com algumas teorias da comunicação.
Tendo isso em mente, nós ainda podemos encontrar argumentos nos escritos de Augusto Ponzio a favor da tese provocativa de que a comunicação é improvável. Por exemplo, Ponzio argumenta que nós não podemos comunicar no sentido segundo o qual a teoria da informação e a teoria de código clássico da comunicação definiram a comunicação. Ele também argumentou contra a acepção de que a comunicação significa troca igual (1990, pp. 185-188). Em relação à crença generalizada de que os falantes comunicam uma mensagem A para ouvintes que também a interpretam como A, Ponzio argumenta que a comunicação é um processo de troca desigual, no qual a mensagem A é transformada em uma mensagem B e B em C, em uma cadeia interminável de crescimento semiótico.
A impossibilidade da leitura dos pensamentos da mente alheia é, na verdade, a própria origem da comunicação, porque se o destinador pudesse ler os pensamentos do destinatário a comunicação seria desnecessária.
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Notas
Notas de autor