Resumo: A música é uma forma de ação e pensamento no mundo. Participar de uma experiência musical é interagir com ideias, valores e pertencimentos que por vezes se afastam de nossas predileções, outras vezes se aproximam. O gosto musical é um eixo importante de debates sobre as experiências musicais cotidianas. A partir de uma pesquisa sobre incômodos musicais, proponho aqui uma reflexão sobre o gosto não a partir de movimentos de adesão, mas de rechaço. Foram realizadas mais de 70 entrevistas com indivíduos de distintas faixas etárias, classes sociais e regiões do planeta, nas quais indagamos sobre situações em que a música agiu como elemento de incômodo. Ao classificar uma música como incômoda ou desagradável, as pessoas elaboram códigos morais, aprofundando interpretações sobre ética e comportamentos que partem do julgamento sonoro e se ampliam em um julgamento mais amplo sobre os indivíduos e os valores reconhecidos nas músicas.
Palavras-chave: Música, gosto musical, moral, incômodo.
Keywords: Music, musical taste, moral, annoyance
DÔSSIE
Gosto musical, moral e incômodosa
Musical taste, morals, and discomforts

Recepción: 26 Junio 2023
Aprobación: 06 Julio 2023
OS DEBATES SOBRE gosto musical nos estudos de Comunicação têm funcionado como uma espécie de pano de fundo para discussões sobre a circulação de música por meios massivos e “pós-massivos” (Lemos, 2007). Seja com ênfase nos processos e estratégias de classificação do universo musical (Janotti Jr., 2020; Pereira de Sá, 2021), nos sistemas de recomendação (Pereira de Sá, 2009; DeMarchi, 2016; Rabelo Luccas, 2022), nos agrupamentos de fãs e antifãs (Amaral, 2014; Pereira de Sá & Cunha, 2017) ou nas hierarquias sociais atravessadas pelo consumo musical (Trotta & Roxo, 2014; Herschmann, 2005; Soares, 2021), os movimentos de adesão afetiva a determinados gêneros, estilos e cenas musicais são constantemente acionados como eixos constitutivos da experiência musical.
Proponho aqui pensar o gosto musical no sentido inverso. Não apenas como um elemento que agrega sensibilidades convergentes ou divergentes (como os “haters”), mas como um contexto norteador de movimentos de rechaço a determinadas experiências musicais que funciona como potencializador de incômodos. Essa reflexão sobre gosto deriva de uma pesquisa de seis anos sobre incômodos musicais, na qual cerca de 70 pessoas foram entrevistadas e convidadas e descrever situações nas quais a música funcionou em suas vidas como elemento de distúrbio, angústia, raiva ou incômodo. As entrevistas foram realizadas no Rio de Janeiro e em Edimburgo (Escócia), no período de um estágio como pesquisador visitante. Os resultados dessa pesquisa foram publicados no livro Annoying Music in Everyday Life (Trotta, 2020) e despertaram nuances instigantes sobre a função do gosto musical nas experiências musicais classificadas como incômodas.
Quando convidadas a falar sobre incômodos musicais, diversas vezes as pessoas entrevistadas elaboram descrições sobre seus gostos pessoais e, não raro, revisitam lembranças desagradáveis de tempos e lugares passados. Por essa razão, as entrevistas realizadas em apenas duas cidades estão recheadas de narrativas experimentadas em diversos lugares do mundo, do interior de Minas à movimentada e populosa Pequim, das montanhas do Peru ao ambiente cosmopolita de Londres. O gosto é o ponto de partida para a maioria das conversas sobre ser afetado ou irritado pela música na vida cotidiana. Como afirma Simon Frith, “parte do prazer da cultura popular é falar sobre isso; parte de seu significado é essa conversa; conversa que é feita através de julgamento de valor” (Frith, 1996, p. 8). Assim, as entrevistas começavam com perguntas gerais sobre preferências musicais, respondidas com referências abstratas a gêneros musicais. Frases como “eu gosto de jazz” ou “eu não gosto de pop” foram as entradas mais frequentes no domínio do juízo de valor. Isso não foi uma surpresa. Em nosso cotidiano, as discussões sobre música são sempre enquadradas por classificações genéricas de gêneros guarda-chuva, que funcionam como organização chave do universo musical. Nayha tem 32 anos, é indiana, trabalha como produtora de uma ONG ambiental e reside em Edimburgo, na Escócia. Ela nos fornece uma descrição muito detalhada desse processo, destacando o uso de cada música em sua vida:
Nayha – Acho que tenho um gosto musical bastante eclético. Na maioria das vezes, quando estou trabalhando, preciso ouvir música para me concentrar, mas não consigo ouvir música com letra. Então, muitas vezes eu ouço música Techno, como Chicago, música eletrônica. Algo sobre a batida realmente me ajuda a focar. Quando ando em alguns lugares, dependendo do meu humor, às vezes ouço música folclórica. Quando estou me sentindo um pouco pra baixo, e quero me animar, então vou ouvir funk e soul, mas se estou me sentindo tensa, infeliz, então será Joan Baez.
P – Tem alguma música de que você não gosta?
Nayha – Eu acho... música realmente pop! Geralmente essas boybands e girlbands pop me irritam um pouco, especialmente quando as letras não fazem muito sentido. E jazz! Acho que o problema é, por exemplo, você vai a algum lugar como um bar de jazz e está tentando dançar junto com uma música e, de repente, o ritmo muda completamente. Não sei, às vezes eu me sinto uma estranha no jazz.
O relato de Nayha ressoa vários exemplos apresentados por Tia DeNora em seu livro Music in Everyday Life (2000). A música funciona para ela como uma ferramenta que é ativada para modular seu humor. O interessante é como ela tem consciência de todo um sistema íntimo que liga sentimentos e sons. Para ela, a música é algo que funciona como uma espécie de remédio, tomado de acordo com alguns sintomas percebidos para melhorar sua saúde. Isso, claro, caso ela controle o som. Caso contrário, adjetivos negativos são atribuídos a gêneros musicais sentidos por ela como experiências musicais desconfortáveis, como “música pop nonsense” ou “jazz indançável”, de alguma forma desvinculadas de suas expectativas e desejos. Washburne e Derko, organizadores de uma instigante coletânea intitulada Bad Music, definem como música “ruim” aquela que é “de alguma forma indesejada”, “imposta a nós em todos os tipos de situações possíveis e impossíveis” (Washburne & Derko, 2004, p. 1). “Ruim” é um juízo de valor que resulta de interpretações de gosto e adequação muito complexas, e que ajudam o ouvinte a definir um “gesto de posicionamento” sobre a música que ouve (Washburne & Derko, 2004, p. 2). Em outras palavras, “o gosto não é uma experiência estável e interior do sujeito”, mas é resultado de “relações afetivas, seja com outros que compartilham das mesmas preferências, seja com obras ou artistas que nos afetam” (Janotti Jr. & Pereira de Sá, 2018, p. 10).
O que importa destacar é que os juízos de valor desempenham um papel fundamental na definição do prazer e do desprazer associados à experiência musical. Dificilmente alguém falará sobre música incômoda sem levar em consideração os gostos pessoais. Gostaria de argumentar aqui que esse julgamento lida com pensamentos complexos sobre a vida em sociedade, identidades, emoções e valores individuais, bem como com códigos sociais compartilhados considerados “bons” ou “positivos”. Portanto, os julgamentos estéticos são inseparáveis dos julgamentos morais, definidos como um conjunto de regras aceitas que alguém está inclinado a seguir como resultado de algumas restrições sociais e desejos individuais vinculados a uma interpretação geralmente contraditória de definições de “certo e errado”.
Afirmar que o gosto musical está atravessado por julgamentos morais não significa supor uma relação direta entre eles. Em vez disso, esse atravessamento é experimentado de múltiplas maneiras, de acordo com condições e contextos nos quais a música é ouvida e vivida. Como aponta a obra de Pierre Bourdieu (2007), o gosto não está desvinculado de pertencimento social, educação e origem familiar. Mesmo considerando que nosso gosto é muito mais instável do que sugere a interpretação bourdieusiana e costuma incorporar elementos que parecem “dissonantes” com o gosto esperado de nosso pertencimento grupal (Lahire, 2007), sua construção está intimamente ligada a nossas experiências de vida, valores compartilhados e imersões culturais.
Assim, o gosto musical tem a ver com conhecimentos e memórias, ativando um papel importante nos atos de reconhecimento e interpretação. Além disso, o gosto é dinâmico. Como tal, precisa ser performatizado, reforçado, falado e exibido socialmente por meio da escuta de gravações, frequência a shows e concertos, compra de produtos de seus artistas preferidos, debates sobre o valor de músicas, álbuns, shows e assim por diante (Hennion, 2001). A formação e remodelação de nosso gosto são elaboradas diariamente não apenas em relação a repertórios musicais de que gostamos, mas também em fricção com canções, artistas e sons que rejeitamos.
Definir uma experiência musical como incômoda é o movimento final de uma atividade corporal e intelectual de interpretação de ideias sobre a música ouvida, que é, por sua vez, socializada em performances de gosto que se estabelecem para expressar e elaborar essas interpretações. A definição de incômodo em música faz parte de um processo contínuo de interpretações e julgamentos sobre a música, desenvolvidos individual e socialmente, corporal e mentalmente. Obviamente, essa interpretação não é apenas estética ou socialmente construída, mas é emoldurada por crenças morais e éticas e, consequentemente, é fortemente afetada por elas. O reino da moral é o reino das regras e convenções sociais, um conjunto de pensamentos sobre o qual nossa vida diária é vivenciada. É um terreno em movimento, constantemente desafiado e remodelado de acordo com várias condições e contextos que se transformam ao longo de nossas vidas.
A música tem um papel importante em compartilhar pensamentos morais e desafiá-los. Por exemplo, uma música que diz “vamos matar o policial” ou algo parecido é julgada de acordo com ideias sobre vida e morte, assassinato, violência e poder. Esse julgamento também está misturado com ideias compartilhadas sobre o poder coercitivo da polícia, sua atitude opressora e seu papel como força repressiva do Estado. A princípio, a maioria das pessoas concordaria que matar alguém é errado, mas essa avaliação pode mudar de acordo com as condições sociais; que é a atividade contraditória do julgamento moral. Além disso, a música pode ter uma função dramatizadora, encenando um ato reconhecido como obviamente errado como forma de expô-lo, criticá-lo e impedi-lo. “Vamos matar o policial” é uma frase que pode se referir a uma posição de resistência, ou mesmo a um ato que deveria ser posto de lado. Esse efeito dramatizador depende de outros elementos da experiência musical – que, como todos sabemos, não podem se restringir à letra –, envolvendo o arranjo, o gênero musical, a sonoridade, a posição e o comportamento mais amplo do artista, o lugar social e físico onde é tocada e vários outros aspectos que fazem parte da semiose da experiência musical e podem orientá-la para uma ou outra direção. Dependendo de todos esses elementos variáveis, cantar um refrão que estimule a morte de um policial também pode ser entendido como uma piada, um texto humorístico cuja interpretação pode levar ao extremo oposto, resultando em uma frase que destaca que é errado matar qualquer pessoa. Todas essas ideias possíveis são, então, a matéria-prima a ser interpretada e julgada eticamente à medida que as pessoas vivenciam a música que toca, fazendo parte do sentimento resultante de prazer ou rejeição dessa semiose.
Em suma, a interpretação sobre o significado de uma música resulta de uma avaliação da correspondência ou incompatibilidade entre as expectativas morais do ouvinte e o que ele interpreta como a mensagem moral da música. Esse processo é cognitivo e racional, mas também apresenta um forte componente emocional e corporal e, normalmente, não é verbalizado. Assim, embora a maior parte dos entrevistados demonstrasse bastante segurança em apontar gêneros musicais e artistas de que gostam muito ou desgostam fortemente, a maioria deles não soube elaborar verbalmente por que gosta ou não de determinado tipo de música. Quando o fazem, apontam para questões morais que justificam sua antipatia, normalmente de forma fragmentária, breve e pouco desenvolvida. A entrevista de Mike foi uma exceção. Com 52 anos de idade, o escocês Mike trabalha como amolador de facas e é músico amador. Em sua entrevista, desenvolveu uma interpretação detalhada sobre os motivos pelos quais não gosta de música pop.
A primeira coisa [de que eu não gosto] é a música pop que as crianças ouvem. Eles podem ou não estar conscientes do contexto da música, mas geralmente é sobre sexo. E essas crianças de 7, 8, 9 anos, estão ouvindo alguma coisa pela batida, talvez. Eles não pensam [na letra]: menina quer o cara, cara quer a garota, mas é uma coisa muito básica, e não é apropriado. Eu posso estar sendo muito conservador, mas simplesmente não parece necessário. A questão é o groove, mas quando eles percebem a letra, eventualmente, uma mensagem está sendo enviada. As meninas cantando esse tipo de coisa, sabe? Isso é frustrante. Acho que enviar essa mensagem para crianças dessa idade é inadequado. E quanto mais música eles ouvem, à medida que envelhecem, como adolescentes, eles vão para esse rap, hip hop, R&B, é tudo muito sensual. Ele envia a mensagem errada sobre relacionamento. Quando você tem um filho em casa, quer que ele cresça respeitando-se e não se vendo como um objeto sexual. E é repetido, tocado indefinidamente.
Sua descrição é esclarecedora. A desaprovação estética da música pop se deve a seu julgamento moral. Embora tenha mencionado a repetição como um elemento (estético) de sua rejeição ao pop, o principal problema para ele é a forma como a música lida com a sexualidade. Sua preocupação com a “mensagem” enviada às crianças por meio da música é apontada para as letras. Claro, é importante estar ciente de que a mensagem sexual não está apenas nas letras. O sexo nas canções pop é um elemento constitutivo do gênero, destacado nos versos e no refrão, mas enfaticamente reforçado nos movimentos corporais de cantores e cantoras, na entonação do canto, nas coreografias, nas vestimentas (ou em sua ausência) e na própria experiência dos concertos de música pop, onde as relações interpessoais são altamente mediadas pelo apelo sexual, pela dança, pelo olhar e pela sedução. No entanto, é inegável que o componente verbal das canções funciona como uma espécie de guia para narrativas, histórias e aspectos morais da experiência musical. As canções populares são geralmente canções sobre amor, sedução e sexo. A vontade de estar perto da pessoa amada e também as dores e frustrações das separações amorosas são os temas mais comuns encontrados nas letras de música. Claro, isso não é exclusivo do mercado de música popular. Todo o mundo comercial é informado e processado de acordo com metáforas e sugestões sobre amor e sexo. Sexo vende. De carros a cosméticos, de sabonetes a músicas, o apelo sexual nas propagandas parece inevitável. Preocupações morais e restrições à sexualidade são, portanto, uma parte importante do debate público, pois representam um aspecto fundamental da vida social, variando de desejos pessoais a regras socialmente aceitas, amplamente difundidas em narrativas culturais sobre amor, casamento e família. A música é um artefato acionado por grupos sociais e indivíduos para atuar, pensar e elaborar ideias, incluindo ideias sobre sexo e amor. Ideias sobre o que é certo e errado relacionado ao sexo e ao amor.
Se isto é verdade para quase todas as músicas comerciais, é sem dúvida mais intenso em alguns estilos e gêneros musicais, como o universo pop mainstream, no qual por vezes a temática sexual eventualmente pode moldar a interpretação moral da experiência estética. É precisamente esse papel orientador que perturba Mike ao associar o par ouvir/cantar como inadequado para crianças. No entanto, ainda que ele reconheça que as crianças podem não entender o que exatamente significam as letras, ele manifesta preocupação com a maneira como as ideias continuam circulando em suas mentes, estruturando seu comportamento e até mesmo suas relações futuras. Pode ser exagero de uma perspectiva conservadora, mas não é uma preocupação irrelevante.
O problema das letras também é apontado por Luane, estudante carioca de 17 anos. Apesar de adolescente – que, por isso, supostamente tenderia a gostar de gêneros musicais pop e dançantes –, Luane se preocupa com o conteúdo e com a mensagem transmitida pelas letras. Em suas palavras:
Mas também fico preocupada com as letras. Não dá pra ouvir a batida e deixar a letra de lado. E certas letras são impossíveis, você simplesmente não consegue cantar. As letras do funk são muito repetitivas. Hoje em dia, os adolescentes são atraídos por fazedores de sucesso. Como um MC que pega todas as garotas e assim por diante. As crianças também, porque está na moda. Cultura de massa ouve funk, pagode. Antigamente, as pessoas ouviam muito MPB. Gosto muito de MPB. Legião Urbana. As letras do Legião são muito atuais; naquela época, a homossexualidade estava sendo discutida pela primeira vez. Antes tinha muita repressão de tudo e as pessoas queriam falar, se expor, e as pessoas se sentiam reprimidas.
É muito interessante a forma como ela define a música ligada às estruturas morais da sociedade ao longo do tempo. Ela identifica nas letras de alguns artistas e canções do passado elementos do desejado debate social, o que é comparado com letras de hoje que ela não consegue ouvir. Seu exemplo da Legião Urbana é sintomático. As canções de Renato Russo que abordam o amor entre pessoas do mesmo sexo funcionam para Luane como elementos que, à época, ajudavam as pessoas a aceitar a homossexualidade. Luane nasceu após a morte de Renato Russo (1960-1996), mas ouvir suas canções permite que ela interprete aspectos morais da sociedade de décadas anteriores e até mesmo observe a relevância dessas ideias na sociedade atual. Tudo isso é direcionado por ela para as letras. Ela reforça isso ao descrever suas preferências musicais por gêneros que supostamente possuem letras mais complexas (critérios estéticos), com mensagens que ajudam a desafiar preconceitos morais. Ao fazer isso, ela organiza o universo musical comparando os gêneros de acordo com seu gosto.
A sua menção à “MPB” é um exemplo disso. Consagrada como uma categoria no mercado fonográfico brasileiro, as obras de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Tom Jobim desenvolvem um conjunto complexo de procedimentos composicionais (letras, melodias, harmonias, arranjos) e, por isso, são reconhecidos pela crítica cultural como de boa qualidade. “MPB” e rock clássico brasileiro são gêneros que Luane associa a um passado mítico da história da música popular brasileira, quando, segundo ela, as pessoas ouviam música “melhor”. Em suas interpretações, as letras de “hoje em dia” são pautadas pela moda, pela repetição de mensagens sexuais diretas que circulam em torno de “meninos pegando meninas”. Em seu pensamento, a cultura de massa é responsável por essas mensagens repetidas a adolescentes e crianças, mas ela não desenvolveu, como Mike, uma interpretação que associe algum tipo de deseducação moral relacionada ao gosto compartilhado das músicas da “moda”. O que vale a pena notar é que ambos direcionam suas críticas para as letras, descartando outros elementos da experiência musical. Isso não é incomum. As pessoas geralmente prestam muita atenção às letras em suas conversas sobre música e seu julgamento de valor. As letras funcionam como uma espécie de guia. Uma ênfase ainda mais radical nas letras é dada por Messias, que faz uma distinção entre música gospel e batida eletrônica.
Eu gosto de música gospel, só ouço música gospel. Minha esposa não gosta tanto de gospel. Ela diz que os pregadores gritam. O que eu realmente amo é a Palavra. Também adoro músicas românticas. As letras dizem muito. Fazem você voltar ao passado e se tornar um homem mais romântico, algo que não existe hoje. O romance torna o homem melhor. As mulheres acreditam no amor. Gosto de brega antigo, gosto de Fábio Jr., Roberto, Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo. Eu toco violão por causa do romantismo. A música eletrônica é mais barulhenta que as melodias. Eu não aguento. Só aqui, quando tocam na praça. Fim de semana sempre fazem isso, não aguento mais. É um barulho muito insuportável, não tem letra nenhuma. É como o funk e a música baiana, mas essas são mais fáceis de entender. Ao contrário, a música eletrônica é mais ruído do que a própria música. No meu ponto de vista, isso não é música. É música, mas acho que não é. Me irrita nesse sentido.
Messias tem 43 anos e trabalha como porteiro e motorista no Rio de Janeiro. Suas interpretações sobre música derivam em grande parte de experiências na igreja e em sua casa numa favela da zona norte, onde relatou ser atormentado constantemente pelo som do baile funk e de vizinhos barulhentos. O gosto de Messias é totalmente condicionado pela letra, pois ele, como evangélico, preocupa-se com a “mensagem”, a “palavra” de Deus. Curiosamente, em seu modo de pensar, a letra é o próprio elemento que define a “música”, em oposição ao “ruído” (ver Trotta, 2020). Conseguir “entender” é o caminho que admite utilizar para sua definição altamente pessoal do que é ou não “música”. Ao se referir à música eletrônica, Messias mistura a letra com o som, rejeitando-a como “não música”. Mesmo admitindo sua classificação como não consensual, ele busca na definição de “música” uma estratégia para elaborar estética e moralmente o valor de sua experiência desagradável. A distinção sobre o que é ou não é “música” faz parte de um processo mais amplo de julgamento do valor da experiência sonora, que, no caso dele, é fortemente dependente da mensagem transmitida pelas letras. O poder das letras românticas é, portanto, um poder moral, que torna as pessoas melhores em sua existência.
Tanto Mike quanto Luane e Messias destacam o papel da música na difusão e no compartilhamento de ideias sobre a vida. Nossa experiência subjetiva com a música é enquadrada em regras e restrições sociais que moldam nossa maneira de pensar e nosso comportamento. É ativada por memórias e pensamentos que dividem o que é considerado certo ou errado, aceitável ou inaceitável, bom ou ruim. Sendo a música uma forma de pensamento e ação no mundo (Blacking, 1995), a experiência com a música não é passiva, mas é uma atividade por meio da qual as pessoas elaboram estilos de vida e comportamentos. A experiência musical pode desafiar ideias construídas ao longo de nossa vida, que podem ser perturbadoras e desconfortáveis. As preocupações de Mike com a educação sexual de crianças são resultado de um descompasso entre comportamentos morais e discursos que ele considera adequados para crianças e o conjunto de ideias que encontra na música pop. Da mesma forma, a interpretação de Luane de que algumas letras dos anos 1980 eram “melhores” do que as canções atuais decorre de sua percepção particular de que a MPB e as canções clássicas do rock foram capazes de elaborar preconceitos sociais para a construção de um mundo igualitário. Messias também enquadra seu gosto e valores ao aspecto religioso, buscando nas letras a mensagem adequada de acordo com os escritos da Bíblia. Valores sexuais, humanísticos ou religiosos são colocados por eles como elementos do julgamento estético e ético das canções, moldando a forma como ouvem a música. Os comportamentos inadequados descritos nas letras são, então, considerados ofensivos, num movimento que acaba classificando a música indesejada como irritante.
Além disso, independentemente da ideia abertamente aceita de que a experiência musical deve ser tomada como um todo, englobando o som, a dança, o contexto, a ressonância, a sociabilidade e assim por diante, suas queixas morais sobre a música são direcionadas às letras. O problema das letras pode ser tomado em duas dimensões sobrepostas. Em primeiro lugar, dirige-se a canções específicas que podem ser consideradas ofensivas. Nesses casos, é a experiência que propicia a situação para que as pessoas julguem a música por meio da interpretação da mensagem verbal. Claro, isso só pode acontecer quando o ouvinte é capaz de entender a linguagem usada na música. Caso contrário, o aspecto perturbador da experiência pode estar oculto ou apenas sugerido em fragmentos visuais e sonoros. A segunda dimensão que gostaria de abordar em profundidade é que os problemas morais que surgem principalmente através das letras são considerados uma característica definidora de certos gêneros musicais. Nesse caso, não é a experiência em si que produz a repulsa a letras julgadas como incômodas ou inadequadas, mas um conhecimento acumulado sobre um conjunto de canções e artistas. Este processo é muito mais complexo porque ativa um conjunto de ideias preconcebidas sobre certo ou errado juntamente com a homogeneização de um vasto repertório em uma classificação pejorativa. Nesse sentido, os gêneros musicais são tomados como uma espécie de reservatório de “letras ruins”, sendo alvo de rejeições e preconceitos.
O universo da música é separado em unidades de classificação que ajudam ouvintes e fãs a identificar e selecionar seus gostos e preferências. O termo mais eficaz para designar essas separações é a ideia de “gênero”, metáfora biológica emprestada ao âmbito cultural por outras linguagens artísticas como a literatura, as artes visuais e o cinema, e transportada para a classificação musical tanto como estratégia de participação no mercado quanto como divisão social (Negus, 1999). Não é meu objetivo aqui desenvolver uma teoria ampla dos gêneros musicais (o que já foi feito por vários trabalhos brilhantes), mas destacar que essa separação funciona como um atalho para verbalizar rejeições musicais e segregações de pessoas. Como argumenta Fabian Holt, “o gênero é uma força estruturante fundamental na vida musical” (Holt, 2007, p. 2), e “o discurso desempenha um papel importante na construção do gênero” (Holt, 2007, p. 3). Em sua abordagem, o autor sugere não estar em busca de definições de gêneros, mas de uma compreensão deles (Holt, 2007, p. 8), o que é feito em seu livro por meio do trabalho etnográfico. Da mesma forma, meu ponto aqui não é definir o que as pessoas querem dizer quando mencionam um gênero musical como incômodo, mas o próprio fato de que as pessoas usam a classificação de gênero para falar sobre gostos e desgostos. Os gêneros fornecem conjuntos de ideias, expectativas e humores que são reconhecidos como desejáveis e prazerosos para algumas pessoas e como chatos ou desagradáveis para outras. Assim, o incômodo musical está associado aos gêneros musicais. Apesar do consenso amplamente aceito nos estudos culturais de que as classificações de gênero costumam ser confusas, as narrativas da maioria dos entrevistados apontaram para uma divisão do universo musical em blocos de práticas musicais bastante definidas. Além disso, algumas narrativas sobre esses blocos sugerem que as pessoas usam a classificação de gênero para entender, mapear e incomodar outras pessoas. O caso relatado por Isabel é interessante.
Odeio música sertaneja. Isso tem a ver com quando eu era adolescente e meu pai gostava de sertanejo enquanto eu queria ser totalmente diferente. E ficava provocando meu pai, toda aquela coisa de adolescente, e meu pai dizia que não a gente não sabia escolher uma boa música. Porque, para o meu pai, o rock “é o ó”, ainda mais quando é estrangeiro. Eu e meus amigos ouvíamos rock como uma forma de protesto. Eu zoava a música que ele gostava. Acho que foi por isso, e também porque nossos amigos achavam sertanejo uma merda e a gente queria pertencer à tribo. Isso ficou gravado em mim. Certo, não estou aberta. Não posso gostar de sertanejo porque, onde eu cresci, gente legal não gosta.
A oposição entre rock e sertanejo é descrita como uma distinção geracional, além de uma ferramenta para fazer parte do grupo de amigos. Para Isabel, rotular sertanejo como o tipo de música que seu pai gostava produzia um duplo processo de vincular um conjunto de ideias e comportamentos a ele e seu estilo de vida e afastá-la dele. Julgamentos de valor na música são atos que ajudam as pessoas a estabelecer um lugar no mundo e uma fonte de autorreconhecimento (Frith, 1996, p. 72). Sua identidade de jovem tanto como indivíduo quanto como integrante de um grupo seria preenchida em parte por sua proximidade com o rock e distanciamento do sertanejo. Curiosamente, depois de mais de duas décadas, Isabel, de 42 anos, ainda sente um bloqueio ao sertanejo e associa essa antipatia a sua adolescência. Claro, não podemos negar que os gêneros musicais carregam ideias e estereótipos que podem explicar em parte sua rejeição ao estilo. Tendo nascido em Brasília e vivido em várias cidades do país, Isabel mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 2010 e relatou estar bem adaptada na antiga capital federal. Nesse sentido, seu conjunto de códigos e valores compartilhados estão hoje distantes da ideia de um universo rural endinheirado e pop ambientado nas descrições das letras sertanejas. Assim, sua recusa ao gênero se deve a um processo mais complexo do que simplesmente a lembranças de uma adolescente tentando irritar o pai. A classificação de gênero é também uma classificação cultural, que funciona como um atalho para sons, ideias e códigos (não) compartilhados.
Mas há outra camada na divisão de gêneros dentro do mercado musical. Classificar significa produzir hierarquia. A avaliação negativa que Isabel atribui ao sertanejo não é uma decisão pessoal construída exclusivamente a partir de sua experiência de formação e afiliações culturais atuais. No Brasil, apesar de seu protagonismo no mercado fonográfico, o sertanejo é reconhecido por poderosos estratos sociais intelectuais da população urbana como música de baixa qualidade. Isso se deve principalmente a seu elemento comercial, sendo mesclado com a música pop global de diversas formas. Para parte da crítica, o sertanejo é uma versão piorada da autêntica música sertaneja – rotulada como “caipira” – que abandonou sua herança rural para abraçar o mercado pop global (Alonso, 2015, p. 23). Com isso, os artistas classificados como sertanejos perderam sua autenticidade e, portanto, seu valor estético e moral. Não surpreendentemente, o sertanejo, assim como o pop e o funk, foram os gêneros mais associados a incômodos musicais.
Ampliando o caso do sertanejo para um universo musical mais amplo, é possível afirmar que as hierarquias no campo cultural não se constroem no deserto. Em vez disso, as lutas para afirmar o valor cultural (portanto, social, estético e moral) dos gêneros musicais operam dentro dos limites da estratificação social e do poder relativo que os grupos sociais têm sobre ela. Intelectuais, jornalistas, críticos, conservatórios, escolas de música, músicos qualificados e artistas reconhecidos são mais propensos a ter seus gostos e critérios de valor aceitos e compartilhados do que artistas menores, público de baixa escolaridade ou músicos amadores não qualificados (Araújo, 2002). Portanto, o critério aplicado para julgar uma obra musical como “boa”, embora possa ser contestado, tem algumas regras gerais abertamente aceitas. Sem negar o imenso universo de conflitos que envolve o julgamento estético de cada gênero musical, a força da narrativa que posiciona a música clássica, o jazz, a bossa nova e o rock clássico – só para citar alguns – em alta na hierarquia de valores dentro dos gêneros musicais é altamente consensual. Da mesma forma, a desqualificação de gêneros como rap, hip hop, funk, pagode e “pop” é amplamente compartilhada. Esse processo é incorporado de modo particularmente rígido na formação do gosto musical de músicos. Alec, instrumentista argentino de 32 anos, é um ótimo exemplo. Sua descrição vai exatamente nessa direção:
Pop. Há muitas coisas que eu não gosto no pop. Está relacionado ao consumismo. Eu sinto que a música pop é para adolescentes ou pessoas extremamente consumistas e eu não sou nada disso. Eu entendo que os adolescentes gostem de pop, mas quando é um adulto gostando de pop, acho um pouco estranho. Eu definitivamente acho que é condicionado para uma certa idade. Parece ser feito exclusivamente para ganhar dinheiro.
A artificialidade que Alec encontra na música pop é uma questão-chave no julgamento cultural sobre incômodos musicais. Para além do contexto, o elemento perturbador na música costuma estar associado a um baixo valor atribuído ao comportamento consumista ou à moda adolescente. “Pop” é um termo guarda-chuva que reúne várias dessas desqualificações. Segundo Thiago Soares, os debates sobre a música pop costumam ser organizados por meio de dois eixos: a ideia de “cultura pop” e o que ele chama de “estética do entretenimento” (Soares, 2015, p. 22). Ideias de superficialidade, lazer e alegria constituem a semântica compartilhada do pop, juntamente com a agência da indústria cultural na formatação, produção e distribuição de seus produtos. Na música pop, o elemento artístico circula como mercadoria e, para alguns, ao fazê-lo, perde seu valor, trazendo para primeiro plano a dimensão econômica.
Fabian Holt relata ter relutância em definir a música pop como um gênero “no sentido estrito”, mas assume que ela funciona como uma categoria que se refere à produção mainstream de vários gêneros e, às vezes, pode funcionar como um gênero na complexa atividade de rotulação (Holt, 2007, pp. 17-18). Para o propósito de nossa discussão, a vinculação da categoria em uma classificação de gênero não é muito importante, uma vez que concordamos que funciona como um termo que define uma distinção de valor geral e está associado a ideias e comportamentos que podem ser julgados como positivos ou negativos. Jason Lee Oakes argumenta que “os limites da música pop são absurdamente abrangentes, estendendo-se para incluir desde Cole Porter até os Carpenters e Christina Aguilera” (Oakes, 2004, p. 54). O que estou tentando desenvolver aqui é que esse conjunto de ideias que sustenta a classificação do pop como algo ruim é um julgamento moral que resulta de uma compreensão mais ampla sobre a vida em sociedade, que, por sua vez, é interpretada pelo ouvinte como parte da avaliação estética da experiência musical. Esse enquadramento moral descarta tanto a falta de autenticidade quanto a mercantilização ouvida na música pop.
Ao interpretar a luta entre jazz e rock em revistas especializadas, Matt Brennan observa que, apesar de suas supostas diferenças, ambos os gêneros compartilhavam uma “ideologia subjacente comum” de serem “culturas musicais autênticas contrastadas com o ‘pop’ comercial fabricado em massa, ativamente fechando os olhos para sua própria participação óbvia na música como uma forma de produção comercial” (Brennan, 2017, p.14). A questão é que as pessoas julgam a música às vezes considerando uma espécie de continuum que liga dois reinos opostos: o autêntico e o comercial. Embora seja um critério polêmico para avaliar a música, o sistema de dois polos aparece com frequência em discursos que tentam elaborar valor. A autenticidade costuma ser associada à ética positiva no cotidiano, sendo a expressão artística de pessoas ou indivíduos genuínos, portanto, altamente valorizada. Inversamente, a comercialidade é reconhecida como um gosto frio, materialista e artisticamente irrelevante de indivíduos individualistas, associada ao capitalismo perverso e ao egoísmo. Toda prática musical hoje em dia está localizada em um espaço intermediário entre os dois pólos e parte do julgamento é avaliar até que ponto a autenticidade desempenha um papel importante na experiência estética. É claro que nem todos compartilham dessa oposição dessa forma e, além disso, mesmo que concordemos com a lógica da classificação bipolar da qualidade (da qual pessoalmente não tenho certeza), não é possível verificar com precisão onde um artista ou gênero musical está situado. O que gostaria de destacar é que a “acusação” de mercantilismo é um argumento frequente para desqualificar um gênero musical, envolto em clara depreciação moral de quem gosta e ouve.
Quando Alec descarta o “pop” por seu consumismo e objetivo exclusivo de ganhar dinheiro, ele está usando seu gosto para interpretar como as pessoas se relacionam umas com as outras e como elas se comportam no mundo. Esse processo fica mais claro quando ele admite que o gosto pelo pop é compreensível para os mais jovens, mas não para os mais velhos. Para ele, gostar de pop faz parte da sociabilidade adolescente e ajuda os jovens a se identificarem no mundo e serem aceitos em seus grupos sociais, num movimento muito parecido com o que Isabel relatou sobre a construção do gosto adolescente pelo rock. Como afirma Thiago Soares em seu fascinante livro sobre os usos da música pop em Cuba, “a ideia de fazer parte de um mundo global, cosmopolita e hegemônico alimenta fortemente a construção do imaginário pop. Assim, a geração aparece como uma chave para entender as formas particulares de valores que emergem em contextos específicos” (Soares, 2017, p. 122). O autor discute o caso de “Martí”, um jovem travesti cubano que adotou a música pop anglófona como forma de construir sua identidade sexual e de pertencimento geracional. Através da prática performativa de ser fã de Lady Gaga e Madonna, Martí desafiou o estereótipo militar masculino da Revolução Cubana, enfatizando seu apego às novas gerações, aspirando por mudanças na ilha sem necessariamente ser politicamente contra os objetivos da revolução (Soares, 2017, pp. 120-124). O caso relatado por Soares reforça a importância da música pop como dispositivo na construção da identidade dos adolescentes por meio do consumo. No entanto, é justamente essa forte ligação dos jovens com a cultura pop que alimenta sua desqualificação. Como Alec apontou, é aceito que os jovens usem o pop como tal, mas espera-se que, à medida que envelhecem, seu gosto mude para práticas musicais possivelmente mais elaboradas ou complexas. No mesmo movimento, adolescente e pop são subvalorizados no sistema hierárquico de classificação social e estética, o que significa que crescer deveria ser um caminho para distanciar o pop.
A questão da idade relacionada à música aparece novamente na entrevista concedida por Nelson, de 36 anos. Ele trabalha na área administrativa de uma fundação pública de saúde no Rio de Janeiro e relata ouvir música todos os dias. Em sua entrevista, ele descreve um intenso desentendimento com sua esposa sobre música. Depois de mencionar várias vezes durante a entrevista que odeia funk, especialmente o pop-funk de Anitta, ele explica seu gosto musical. Em suas palavras:
Não gosto nada de funk, principalmente do proibidão . No meu tempo o funk tinha rap, uma montagem de rap. Hoje você não tem isso. É sempre a mesma coisa da pornografia, que é muito acentuada no funk. Acho extremamente desagradável, não posso, não gosto, não gosto. Obviamente, é jogado em festas e você fica um pouco alegre, feliz e às vezes até dança. O ritmo é muito legal, acho até a batida legal. Mas é impossível. Você vê essa nova geração contaminada pelo funk, Anitta. Ela é horrível, mas é um sucesso. Isso é triste! Para quem está acostumado a ouvir Elton John, Beatles, Bee Gees, sem falar em Guns And Roses, Aerosmith, Bon Jovi (...) Minha esposa ama Anitta. Sinto como se tivesse casado com uma adolescente. Hoje estou acostumado, não ligo mais tanto. Mas demorei um pouco, porque é uma merda. E é ruim porque ela é meio funk, e todo mundo fica dançando, empinando a bunda, eu acho estranho. Na verdade, é democrático. Ela ouve funk, Anitta no canal Multishow, quando está assistindo aquele show horrível dela. E ela não gosta de rock. Então ela só ouve quando eu ouço rock com fone de ouvido. Ela não usa fone de ouvido. Sério. Tolerância, certo? Casado. Ela não aguenta, diz que é muito ruim. Eu não aguento.
Nelson mistura vários argumentos que apareceram em outras entrevistas. Primeiro, a questão moral. A principal razão para sua forte rejeição ao funk é a grande sexualidade dele. Embora declare ambiguamente que ele próprio pode dançar numa festa se for tocado, assumindo que “o ritmo é legal”, recusa as letras “pornográficas” e “empinar a bunda” na pista de dança. A leve contradição entre ele mesmo dançar o ritmo legal e sentir estranheza com a dança dos outros pode ser superada em seu discurso, uma vez que se preocupa com a letra. Novamente, a interpretação verbal da música é o elemento mais importante para diminuir o valor de todo um gênero.
Em segundo lugar, a classificação do gênero é feita por Nelson via artistas representativos que são definidos como “bons”, em comparação com Anitta, que concentra os piores adjetivos. Declara gostar de “rock”, e na lista que fornece de supostos “bons” artistas, estão representados vários estilos de pop e rock, indo dos Beatles a Aerosmith e Bee Gees. Nelson sugere operar uma hierarquia de valores muito comum em alguns grupos identitários no Brasil em que alguns gêneros musicais brasileiros se opõem ao rock anglófono. A sua preferência pelo rock e pop anglo-americanos evidencia uma filiação a um conjunto de ideias relacionadas com o cosmopolitismo, a modernidade e a tecnologia. Como aponta Motti Regev, a música pop-rock desenvolveu um conjunto de técnicas sonoras derivadas da manipulação elétrica de timbres fornecidos por instrumentos e dispositivos elétricos e eletrônicos (Regev, 2013, pp. 166-168). Assim, após um longo processo de “pop-rockficação”, a atmosfera da música pop-rock tornou-se o som da modernidade, um “cosmopolitismo estético” (Regev, 2013, p. 30). Embora Regev não classifique o pop-rock como um gênero, mas como uma “convenção cultural”, Nelson parece aplicar ao termo “rock” uma ideia mais ampla que pode abarcar artistas e grupos de pop-rock anglófonos, usando essa classificação para afastá-los da música executada por Anitta. Essa forma de pensar permite que ele divida a música “boa” (pop-rock anglófono) e “ruim” (funk-pop brasileiro).
O terceiro aspecto da narrativa de Nelson é a questão da idade. Nelson acha inaceitável que sua esposa (presumivelmente na casa dos trinta como ele) goste de Anitta. Anitta e o pop-funk que ela representa deveriam ser direcionados apenas para adolescentes e seu gosto por isso seria um sinal de imaturidade ou subdesenvolvimento em termos musicais e, talvez, em outros âmbitos. É possível especular – embora seja importante destacar que se trata de especulação – que parte de seu desgosto por artistas pop-funk como Anitta tenha a ver com essa desavença doméstica, e possivelmente esse conflito musical esteja cercado por outros em sua parceria. A música é um elemento de conflitos domésticos, eventualmente bastante intensos (Trotta, 2020). A dimensão pessoal do gosto musical é tomada como um traço significativo na avaliação da própria relação, que em seu caso parece ser bastante tensa para ele. Como argumenta Frith, “o ponto não é que queremos amigos e amantes como nós; mas precisamos saber que a conversa, o argumento, é possível” (Frith, 1996, p. 5). Não está claro se Nelson se sente incapaz de ter essa conversa com a esposa, uma vez que desqualifica seu gosto de adolescente e nega qualquer respeito à artista que ela admira. A questão das relações pessoais se confunde com negociações de gosto, o que nos leva a outra camada nessas classificações, deslizando dos gêneros para as pessoas que os produzem e deles gostam.
Se os gêneros fornecem uma categorização do universo musical que ajuda as pessoas a definir gostos e desgostos, alguns deles são mais propensos a serem mencionados como “incômodos”. Nas entrevistas feitas no Brasil, o funk foi frequentemente citado como deflagador de irritação. Não posso dizer que tenha sido uma surpresa, pois é sabido que o funk costuma ser referenciado na música popular brasileira como um exemplo de “música ruim”. Segundo o musicólogo Carlos Palombini, um dos mais importantes pesquisadores do funk no Brasil, o gênero está entre “os mais citados nas listas de abominações musicais” (2009, p. 320).
O funk brasileiro foi criado em festas subalternas nos subúrbios e favelas do Rio de Janeiro no final dos anos 1970, onde a soul music norte-americana era tocada (Oliveira, 2017). No entanto, desde a década de 1990, o gênero tem sido retratado pela mídia como uma prática musical associada a “gangues ou organizações criminosas, imputações de relações sexuais anônimas em festas, alienação, mau gosto e danças, gírias e letras machistas” (Freire Filho & Herschmann, 2003, p. 225). Ao mesmo tempo, essa cobertura negativa da mídia despertou a curiosidade em outros grupos sociais, em um movimento paradoxal de demonização do funk, que se conjugou com uma glamourização involuntária do gênero (Herschmann, 2005). O interessante nesse processo é que, apesar de ser reconhecido como música criativa e dançante pelos frequentadores dos bailes, o funk vem enfrentando um forte preconceito, emaranhado com ideias sobre pobreza, negritude, violência e sexualidade explícita. Semelhante à definição de hierarquias sociais sobre a cumbia villera na Argentina discutida por Pablo Vila e Pablo Semán, o funk é amplamente reconhecido como “música feita por pessoas pobres e esteticamente pobre” (Vila & Semán, 2011, p. 13). O embaralhamento entre um preconceito social com a desqualificação estética é motivo de diversas denúncias e desavenças que cercam o funk e os bailes. Além disso, atrelado ao forte preconceito racial que faz parte do cotidiano brasileiro, poderíamos acrescentar que o funk é reconhecido como “música negra, feita por negros”. A racialização das segregações sociais (Alabarces & Silba, 2018) misturando preconceitos de classe e raciais é o ponto de partida para a maior depreciação do funk como música e como movimento social. O significante “negro” tomado como pano de fundo da (baixa) avaliação do funk reforça a depreciação de longa data da negritude como uma herança que vem desde o tempo da escravidão e infelizmente ainda está muito presente no Brasil de hoje.
O grande número de entrevistados que citam o funk como exemplo ao falar em “música ruim” é um sintoma dessa posição desfavorável do gênero no imaginário popular da música brasileira. No entanto, os preconceitos de fundo que alimentam esse imaginário não são abordados no primeiro plano dessas falas. Em vez disso, o argumento é geralmente direcionado para a ética retratada pelas letras, ou para a dança, ou para a sonoridade (alta) que o funk costuma tocar. Ernani, psicólogo carioca de 68 anos, mistura o funk com outros gêneros brasileiros para descrever seu desconforto com a música "de hoje".
Ia ser a festa de São João na praça. Mas, quando chegamos lá, tocava forró eletrônico, pagode e funk. Eu queria ouvir uma coisa e havia outra, um contexto ofensivo, ultrajante. O funk, por exemplo, e o pagode, considero escandaloso. Ambos disseminam valores humanos desprezíveis na minha opinião. Antigamente, a grande mídia (há 40 anos) tentava levar produções musicais e culturais de qualidade para as grandes massas. Valores humanísticos. Hoje em dia a grande mídia aproveita coisas de baixíssima qualidade que já fazem sucesso, como pagode, funk, etc. e promove isso. Isso me irrita profundamente.
A forma como associa a música a várias ideias sobre valores humanos, mídia e violência é bastante complexa. A expectativa de encontrar uma música específica em uma festa popular tradicional em um espaço público foi frustrada por gêneros que ele associa à música de “baixo nível”. Embora não tenha desenvolvido o que seriam esses “horríveis valores humanos”, o julgamento é claramente construído sobre suas referências éticas pessoais. Nesse sentido, o funk é um exemplo dessa música agressiva e de baixa qualidade que “a mídia promove”. Usar o funk como exemplo de música que de alguma forma fere os difusos “valores humanísticos” é um desdobramento comum da conversa sobre música incômoda. Às vezes, é descrito mais diretamente como um gênero musical que possui um sexismo forte e indesejável. Messias, o evangélico citado anteriormente, é bem explícito ao descrever esse desconforto:
Funk é 99% ofensivo para as mulheres. Isso faz com que você não goste mais do funk porque não respeita as mulheres. O funk das favelas é 90% muito degradante para as mulheres. E elas vão aos bailes e até gostam. Para mim, as mulheres que frequentam esses bailes não têm valor algum. Seguem o ritmo e a bebida. Gostar de algo que te degrada. Isso é complicado!
A forma como ele se irrita com a “desmoralização” das mulheres é um pouco contraditória com seu próprio julgamento sobre as mulheres que vão aos bailes e gostam de funk. Ele não vê valor nelas, mas lamenta que as letras as estejam rebaixando. A questão aqui não é apenas a baixa qualidade do funk em si, mas um julgamento moral sobre o estilo de vida que é reconhecido nas letras. A estigmatização opera em um duplo processo que homogeneíza todo o gênero e seu público e incorpora o preconceito que associa o funk a comportamentos inadequados, criminosos e violentos.
Convém observar, porém, que existem vários estilos de funk, definidos não apenas pelas diferenças sonoras, mas também pelas letras. O chamado “proibidão”, por exemplo, apresenta as letras mais agressivas e machistas. Não raro, as narrativas realizadas em suas letras são descrições da violência praticada por traficantes em seus confrontos com a polícia, falando abertamente sobre mortes e brigas. Palombini e Facina definem o proibidão como “aquela parte do funk em que a temática trata da vida nas camadas inferiores do comércio de substâncias ilícitas, ou da vida no crime” (Palombini & Facina, 2017, p. 349). Assim, todo um vocabulário explícito de violência é aplicado de forma direta, enfatizando o estilo de vida violento daquelas pessoas pobres cercadas e envolvidas com o tráfico de drogas e as “operações” policiais assassinas. Os limites morais são intencionalmente ultrapassados nestas letras, que, em grande medida, colaboram para alimentar a estigmatização do funk como música de criminoso, música inferior, conflituosa, perigosa. Ainda que essas letras não correspondam à totalidade do funk, o proibidão é sempre citado como exemplo de má qualidade e experiência musical insuportável. Algumas pessoas unificam todos os estilos de funk como simples variações do proibidão, numa simplificação da diversidade do gênero. No entanto, há quem mencione o funk de forma mais matizada, tentando equilibrar o desgosto e identificando diferenças de artistas e músicas através do tempo. Marise, bibliotecária de 46 anos, é uma dessas entrevistadas que tenta separar o funk em momentos históricos, classificando as músicas antigas como mais agradáveis do que os exemplos da atualidade.
Gosto e até curto o funk do início dos anos 90, como o Claudinho e o Buchecha . Se estiver tocando em uma festa eu vou dançar porque eu gosto. Mas hoje em dia o funk é muito ofensivo, principalmente tratando a mulher como objetos para serem usados de forma prazerosa... Quando não tem palavrão, todas as músicas soam implicitamente ofensivas, sobre usar mulher, mulher rebolou, já foi usada. É muito primitivo no sentido negativo da palavra “primitivo”, que é um retrocesso. É um retrocesso cultural porque o funk não começou assim. Hoje tem tendência pejorativa principalmente na questão do sexo e da posição feminina na relação.
Três coisas merecem ser mencionadas em sua fala. Primeiro, a questão da violência. Embora ela pareça estar ciente de que diferentes estilos de funk têm diferentes abordagens e formas, ela só reconhece as músicas do passado como aquelas que ela podia dançar e com as quais se divertir. É como se o funk antigo não fosse agressivo e o passar do tempo tornasse violentos todos os artistas e músicas. O tempo muda nossos gostos e avaliações sobre músicas, artistas e gêneros. Ao mesmo tempo, os repertórios passados podem funcionar como uma espécie de arquivo de memórias que preencheram nossa história de vida, nossos sentimentos e momentos compartilhados. É mais fácil achar interessante ou agradável uma música que faz parte de um tempo distante, mesmo que possa ter sido bastante perturbadora naquela época. Possivelmente, a narrativa seletiva que Marise desenvolve sobre o funk antigo é um exemplo dessa distância que o tempo proporciona.
A segunda questão está relacionada ao gênero. Na verdade, a maioria das letras de funk é construída sobre uma espécie de separação de papeis entre os gêneros que coloca meninas e mulheres como objetos a serem capturados e seduzidos. Essa é uma narrativa masculina bastante comum sobre sexo, que é concebida como uma espécie de caçada, na qual a relação sexual com mulheres é mais uma conquista do que uma experiência prazerosa. Portanto, as letras do funk (como muitas canções pop mainstream) descrevem as mulheres frequentemente como um objeto inanimado, pronto para ser levado por um homem viril. Marise, obviamente, recusa esse imaginário e rejeita o funk atual. O sexismo na música é uma questão complexa, que costuma ser interpretada de forma superficial. A superfície do significado imediato das letras é muitas vezes o material que as pessoas obtêm para condenar canções que, portanto, ultrapassaram um limite ético. Embora seja óbvio que algumas letras realmente aplicam ideias e descrições inaceitavelmente ofensivas e violentas contra as mulheres, é necessário aprofundar a análise incorporando o som, a dança e a experiência musical como um todo para obter uma imagem mais complexa da maneira como as pessoas lidam com letras machistas. Isso está além dos limites deste artigo. O que eu gostaria de destacar aqui é que as pessoas se sentem ofendidas com as letras e quando o fazem, rejeitam a música, o artista e eventualmente o gênero como um todo, muitas vezes reforçando preconceitos e segregações.
A última coisa que gostaria de apontar em sua fala é a questão do primitivismo. O sexismo e a violência são entendidos por ela como elementos de um código de comportamento não civilizado, definido negativamente como primitivo e retrógrado. A questão da civilização como um estilo de vida adequado em oposição a atos animalescos que devem ser controlados individual e socialmente é uma preocupação permanente no cotidiano, surgindo frequentemente nas experiências musicais. Pode-se dizer aqui que Marise está fazendo uma associação direta entre todo o pacote que o funk traz à tona – enredando questões raciais, sociais, geracionais e morais – e o primitivismo, em mais uma camada de preconceito contra o funk e seus fãs. Pode-se interpretar seus sentimentos em relação ao funk como uma elaboração que mescla preocupações morais e éticas com movimentos de atração e repulsa corporificadas pelo aspecto dançante e sexualizado do gênero. O funk tornou-se um símbolo de baixa avaliação estética, funcionando como uma espécie de convergência de diversos preconceitos. Ao acionar o “primitivismo”, muitos desses preconceitos emergem. Em uma análise muito interessante sobre comentários do Facebook sobre o gênero, Pereira de Sá e Cunha (2017, p. 162) constataram que os argumentos contra o funk podem ser agrupados em quatro eixos temáticos: “(1) preconceito racial; (2) preconceito socioterritorial; (3) crítica estética e desprezo pelo funk como manifestação cultural; e (4) popularização do funk como ‘ameaça’ ao progresso do país”. Em suas pesquisas, elas destacam que as pessoas atacam o funk como forma de desqualificar o grupo social que ele representa, misturando preconceito social e racial com desqualificação estética.
O que é importante para nosso debate sobre gosto musical e incômodos é como as pessoas usam o gosto para construir fronteiras sociais e rebaixar outras pessoas. As reclamações de Nelson sobre Anitta, de certo modo, somam tanto o conjunto de estereótipos comerciais sobre a artificialidade da música pop quanto a pobreza do funk como música de má qualidade produzida por “pessoas inferiores”. Como afirma Julio Mendívil (2016, p. 37), “se a música veicula efetivamente valores grupais ou culturais, criticar um tipo de música, ridicularizá-la ou desautorizá-la esteticamente é uma forma muito produtiva de menosprezar quem a produz e quem a ouve”. Em outras palavras, as lutas de gosto musical entre indivíduos ou grupos sociais são formas de lidar com divergências, conflitos e desengajamentos mais amplos. Quando a música incomoda, algo não funciona bem na interação inter-humana.
A partir de questões que partem de conversas sobre “incômodos musicais”, ficou transparente que a dimensão do gosto se configura como um eixo norteador de experiência musical. Os gostos e desgostos são formas de performar socialmente a própria individualidade, de avaliar a pertinência da música que se escuta, de julgar moralmente as letras e os ouvintes de determinadas músicas, de reconhecer-se parte integrante ou dissonante de certas ideias e grupos sociais. As pessoas usam a música para compartilhar pensamentos e valores, ideias e ações. Mas também para elaborar tais pensamentos e códigos de conduta. Gostar de uma música é muito mais do que se identificar afetivamente com aquele conjunto de sons e palavras entoadas, é interagir com um emaranhado complexo de ideias, pensamentos e moralidades inscritas em tais códigos, elaborando criticamente um julgamento positivo sobre eles. E não gostar é também tudo isso com sinal invertido.
É importante destacar também que gostar ou não gostar não são polos excludentes e rígidos que resultam de uma avaliação consistente, coerente e finalizada. São elementos de um processo que muitas vezes tomam posições surpreendentes, que se dissolvem, são relativizados e mudam no decorrer do tempo. Esse “tempo” pode ser medido em anos e décadas de vida, mas também na curta duração de uma gravação executada em certo contexto. Recuperando a descrição curiosa de Nelson, que parece a um passo de se separar de sua esposa por não conseguir aceitar seu gosto pela cantora Anitta mas que ao mesmo tempo considera o ritmo do funk “legal para dançar”, as elaborações de gosto musical podem assumir contornos contraditórios e serem passíveis de muitas relativizações. Nesses embates, processamos ideias e transformamos nossas existências. Falar de gosto musical é falar sobre modos de pensar, reforçar, tensionar, problematizar e modificar ideias sobre a vida.