DÔSSIE

Recepción: 09 Agosto 2022
Aprobación: 15 Diciembre 2022
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v17i2p81-99
Resumo: Posto que os imperativos da financeirização demandam engajamento afetivo dos indivíduos aos produtos, o objetivo deste artigo é analisar as convocações midiáticas ao consumo operacionalizadas por perfis de Instagram de finanças que apelam ao humor. Recorremos ao método da Análise de Discurso de linha francesa para estudar alguns cruzamentos entre discursos nessas convocações midiáticas. Embora seus conteúdos pareçam caçoar de alguns lugares comuns da literatura de autoajuda financeira, há um aparato discursivo que legitima a norma ao contradizê-la. Trata-se de produções que, a partir do humor, validam certos tipos de comportamento em relação às finanças e constroem, através do discurso, um tipo de consumidor específico, ao naturalizar práticas e legitimar comportamentos vinculados à financeirização das relações econômicas a partir da comunicação.
Palavras-chave: Comunicação, consumo, humor, financeirização, discurso.
Abstract: Since financialization imperatives demand that individuals affectively engage with financial products, this study aims to analyze media calls for consumption operated by finance Instagram profiles that appeal to humor. As our analysis method, we use French Discourse Analysis to study intersections between discourses in these media calls. Although its contents seem to mock commonplaces in the financial self-help literature, they mobilize a discursive apparatus that legitimizes the norm by contradicting it. These humor-based productions validate certain types of behavior toward finance and build, by discourse, a specific consumer type by naturalizing practices and legitimizing behaviors linked to the financialization of economic relations based on communication.
Keywords: Communication, consumption, humor, financialization, discourse.
INTRODUÇÃO
O ATUAL ESTÁGIO do capitalismo, para Maman e Rosenhek (2022), exige que os indivíduos se engajem cada vez mais com os produtos financeiros – em um discurso que os correlaciona a garantias de segurança e bem-estar. É sintomático disso o surgimento de uma série de produtos comunicacionais de educação financeira que mobilizam afetos que são urdidos a discursos sobre o que significa ser um sujeito autônomo responsável. Dessa forma, tais ações comunicacionais valorizam indivíduos que adotam certas práticas na gestão de suas finanças pessoais (e de seu relacionamento com o dinheiro e com os produtos financeiros) e apelam a uma série de conteúdos emocionais de engajamento. A mobilização dos afetos, nesse sentido, não é apenas uma estratégia comunicacional, mas sim um trabalho com a cultura para legitimar certos tipos de consumo e produzir modelos de consumidores. Para os autores, “essa dimensão emocional representa um componente significativo na economia política cultural da constituição das subjetividades financeiras e na cultura da financeirização”, que “naturaliza as exigências comportamentais e disposicionais que as finanças cotidianas impõem ao público em geral” (Maman & Rosenhek, 2022).
Entre os diversos perfis de redes sociais que se dedicam à educação financeira, existe um nicho específico que apela para o humor como estratégia principal de comunicação e forma de convocação afetiva ao consumo (simbólico) de produtos financeiros. O objetivo do presente artigo é analisar os discursos mediados por perfis de Instagram ligados à temática da educação financeira que apelam ao humor como forma de engajamento afetivo a produtos financeiros, especialmente a partir das estratégias discursivas de convocação ao consumo que são acionadas por esses perfis.
Como corpus de pesquisa, foram escolhidos os perfis Faria Lima Elevator1 (que possui, em junho de 2022, em torno de 485 mil seguidores) e Investidor da Depressão2 (que, no mesmo período, tem 531 mil seguidores). Esses perfis foram escolhidos tendo em vista que compartilham o gênero humorístico para tratar do conteúdo financeiro e em virtude do grande número de seguidores. Foram analisadas, nesses perfis, as postagens realizadas ao longo do mês de maio de 2022.
Como método de análise, recorremos à Análise de Discurso de linha francesa para estudar as convocações midiáticas ao consumo, com ênfase no processo interdiscursivo que estrutura tais produções e legitima discursivamente certos tipos de consumo. Sobre esse aspecto, lembramos que, para Maingueneau (2005), a interdiscursividade é anterior à discursividade, o que significa que os sujeitos enunciadores nunca têm pleno domínio sobre seu discurso, pois este é gerado e adquire especificidade a partir da relação com outros discursos no interior de um campo discursivo. É nesse sentido que os discursos não existem previamente, mas sim, estão postos em relação (que pode ser de aliança ou polêmica) com outros discursos. Todo discurso é, assim, atravessado por outros discursos, dado que o primado do interdiscurso constrói “um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro” (Maingueneau, 2005, p. 35). A partir dessa perspectiva, iremos mapear alguns dos cruzamentos entre discursos nas convocações midiáticas que têm o humor como principal estratégia convocatória de consumo de produtos financeiros.
A PRODUÇÃO DISCURSIVA DE UM CONSUMIDOR PARA OS PRODUTOS FINANCEIROS
Um estudo realizado pela Anbima Associação Brasileira das Entidades de Mercado Financeiro e de Capitais (Anbima) estimou que existem em torno de 255 influenciadores digitais relevantes sobre educação financeira no país, no segundo semestre de 2022, que têm, em conjunto, cerca de 37,4 milhões de seguidores3. Trata-se, portanto, de um fenômeno cultural relevante e atual. As páginas escolhidas para o presente estudo não se enquadram propriamente no gênero de educação financeira clássica – posto que seus conteúdos não estão voltados para esclarecer o funcionamento dos produtos financeiros ou as formas de gestão de patrimônio. Não obstante isso, podemos afirmar que eles atuam como educadores para o financeiro, uma vez que são atores importantes na propagação e naturalização dos produtos financeiros no cotidiano, atuando nos aspectos simbólicos que concernem à aceitabilidade desses ativos em uma instância cultural. Há um importante aspecto de engajamento afetivo acionado por esses perfis de humor que, em suas interpelações discursivas, ainda que seja a partir de um viés humorístico, medeiam imaginários sobre como uma vida de sucesso está engendrada a uma gestão de ativos financeiros bem-sucedida.
Faria Lima Elevator descreve-se, em seu perfil de Instagram, como “Mercado Financeiro Raiz”. Ele foi inspirado no Goldman Elevator, uma página famosa em Wall Street, só que a partir de um contexto brasileiro. Em entrevista para o jornal Valor Investe, o autor da página, que mantém anonimato, relata que “muito do que é falado aqui não é novidade para quem já está no mercado. Mas dar publicidade a esse mundo ajuda a divulgar como é a vida no ‘condado’ (Faria Lima)”4. O perfil é repleto de conteúdos de humor sobre a vida dos frequentadores da Faria Lima, sobre movimentos de mercado e ativos financeiros.

Já Investidor da Depressão tem, em sua descrição de perfil, as seguintes frases: “Memes de Investimento” e “Aprenda a perder dinheiro antes de ganhar”. A página é conduzida por Rodrigo Castro e usa como estratégia de humor a inversão de alguns lugares comuns do mercado financeiro – como, por exemplo, o projeto “Do milhão ao mil” (que faz referência ao best seller Do Mil ao Milhão, de Thiago Nigro) – e as histórias de fracasso nas finanças pela má escolha de ativos financeiros.

Assim, esses perfis não são voltados para uma educação financeira técnica, uma vez que não são ensinados como funcionam CDBs, LCIs e LCAs, entre outros produtos financeiros. Eles também não se enquadram no gênero popular da autoajuda financeira –”publicações que oferecem soluções ou procedimentos individualizados para as questões financeiras com o propósito de alcançar a transformação pessoal” (Haro, 2013, p. 118). Eles tampouco vendem cursos ou produtos financeiros. Não obstante isso, esses perfis compartilham, com essas outras produções comunicacionais, alguns de seus pressupostos discursivos comuns, relacionados a uma demarcação discursiva da partilha entre práticas de consumo consideradas legítimas ou não culturalmente.
Como nos lembra Britto et al. (2015, p. 181), “o capitalismo de consumo possui dentre suas características, a produção de consumidores e o consumo de produtos, antes mesmo dos produtos terem suas necessidades ou utilidades estabelecidas”. Isso significa que a demanda pelos produtos, serviços e bens não pode ser entendida apenas a partir de uma ótica utilitarista (consumo porque preciso), mas sim, a partir de necessidades que são construídas antes na cultura, a partir do compartilhamento de valores e normas que hierarquizam certos bens como mais legitimados socialmente do que outros.
Partimos aqui, portanto, de uma afiliação teórica em que se afirma que a construção de uma subjetividade capitalística é anterior e necessária ao funcionamento do capitalismo e que sustenta que o capitalismo não é apenas um modo de produção, mas uma forma de vida que depende da interiorização de valores morais prévios que tornam racional a ação econômica com relação a fins. Trata-se de uma tradição de estudos que, a partir de diferentes referenciais e enquadramentos teóricos, que pode vir desde a vertente do espírito do capitalismo em Weber, entende o capitalismo como composto por circuitos de desejo e por processo de subjetivação específicos, como em Dardot e Laval (2016), entre outros autores.
A partir da ótica de que a produção do consumidor precede a produção dos bens e serviços (Santos, 2001), posto que as necessidades por eles são mediadas preliminarmente pela cultura como modo de vida, Investidor da Depressão . Faria Lima Elevator, a partir do uso do humor, atuam como convocadores ao consumo simbólico dos produtos financeiros (ainda que os seus espectadores possam efetivamente não investir). Por consumo simbólico, referimo-nos à ideia de que consumir uma determinada mercadoria não atende somente a um aspecto prático do cotidiano, mas responde a questões simbólicas e culturais de amplo espectro. O conceito de consumo simbólico demarca um campo de estudos que recorta os mecanismos a partir dos quais são dadas significações às coisas, bem como à transmissão, comunicação e hierarquização dos valores socioculturais materializados em mercadorias e serviços.
A partir de tais pressupostos teóricos, é possível afirmar que os perfis investigados medeiam a constituição discursiva de indivíduos-consumidores desses produtos. Eles, ainda, compartilham com a autoajuda financeira uma série de seus imperativos discursivos (ainda que sob o viés do cinismo), conforme discutiremos a seguir.
As páginas estudadas, em um primeiro aspecto, estão engendradas em um contexto mais amplo da financeirização – que designa “o aumento constante e continuado dos mercados, atores, instituições e motivos financeiros como protagonistas da economia mundial” (Haro, 2013, p. 111) – e seus discursos legitimadores correlatos. O capitalismo financeirizado não remete apenas a um modo de ação do campo econômico, mas sim, demanda a produção de um tipo de sujeito específico, que “requer e alimenta uma maneira de ver e agir, um modo de perceber e interpretar o mundo e uma forma de autoperceção individual”, bem como “um tipo específico de gestão comportamental e emocional, que simultaneamente produz e é produzido pelo próprio capitalismo financeiro” (Haro, 2013, p. 112). O espaço financeiro, nesse sentido, “é dependente de disputas culturais ‘metapolíticas’ que circunscrevem o espaço das discussões e soluções dos problemas” (Grün, 2013, p. 179) e abarca a necessidade de criação de um ambiente social e cultural propício à aceitação dos produtos financeiros que dialoguem com sensibilidades sociais dadas.
Se, culturalmente, a poupança foi considerada como um meio eficaz e seguro de gestão de patrimônio no Brasil, demandas mais recentes de financeirização exigem a legitimação de outro tipo de consumidor de produtos financeiros – mais disposto a correr riscos e lidar com volatilidade e possíveis perdas a partir da promessa por ganhos maiores. É nesse ambiente, respaldado por discursos de “investimento para todos”, que uma série de atores midiáticos ganha relevância, com poder de moralizar as decisões dos indivíduos. Celebridades midiáticas das finanças convidam os seus interlocutores a pensar sobre a legitimidade das suas escolhas de investimento e propõem um novo modelo de relação emocional com produtos financeiros.
Os conteúdos de Faria Lima Elevator . Investidor da Depressão dialogam interdiscursivamente com o contexto mais amplo da financeirização e da validação cultural dos produtos financeiros como práticas legitimadas de consumo. Embora eles não atuem diretamente na venda de ativos, essas páginas contribuem com o engajamento afetivo com produtos financeiros – e na produção de um consumo simbólico. Em síntese, no nível discursivo, eles estão urdidos aos processos “de legitimação da educação financeira que a despeito do discurso, tem a intenção de promover, fundamentalmente, a constituição de indivíduos-consumidores de produtos financeiros” (Britto et al., 2015, p. 177).
Dessa forma, o consumo de produtos de educação financeira não diz respeito somente a aspectos utilitaristas (entendido como o consumo de técnicas e produtos para investir melhor), mas, sim, também estão urdidos a aspectos simbólicos (ou seja, quais são os elementos culturais e valorativos que, nas deliberações públicas, definem o que é, afinal, um bom investimento). É por isso que “conhecendo e usando os códigos de consumo de minha cultura, reproduzo e demonstro minha participação numa determinada ordem social” (Baccega, 2010, p. 59). Em relação ao consumo de produtos de educação financeira, o mesmo mecanismo pode ser estabelecido uma vez que o engajamento afetivo dos indivíduos a esses produtos se correlaciona aos sentidos coletivos que são dados a eles e comunica a participação em um certo arranjo econômico.
Assim, se a educação financeira se torna uma necessidade no mundo atual, seu consumo simbólico (a partir de produtos comunicacionais) pode ser visto “como processo do qual o sujeito participa … por meio do qual ele busca estabelecer seu sentido de identidade sempre em construção” (Baccega, 2010, p. 59). É nesse sentido que, diante do contexto de financeirização do mundo, um tipo específico de consumidor é produzido por essas instâncias midiáticas, que apelam a afetos para convocá-los (simbolicamente) ao consumo (Maman & Rosenhek, 2022).
Em Faria Lima Elevator . Investidor da Depressão, podemos notar que essa convocação afetiva ao consumo é feita, discursivamente, a partir do humor. Por mecanismos discursivos de convocação midiática ao consumo, entendermos, tal como Prado (2013) as estratégias utilizadas pelos veículos midiáticos para fornecer aos espectadores pacotes de discursos modalizadores relacionados ao bem viver. As convocações midiáticas dizem respeito ao modo como os dispositivos midiáticos mobilizam estratégias discursivas que buscam capturar a atenção e a resposta ativa do espectador a partir de valores de consumo que prometem um conhecimento sobre como se movimentar melhor no mundo cotidiano e, com isso, obter mais sucesso na vida pessoal. A convocação ao consumo, portanto, abarca estratégias comunicacionais a partir das quais um tipo de consumidor específico é produzido pelas instâncias midiáticas a partir da mobilização de discursos legitimadores sobre o que significa “viver bem” – e como isso pode se materializar em objetos e serviços para o consumo a partir de valores morais relacionados a esses bens.
A partir do pressuposto de que os afetos garantem a aquiescência às normas (Safatle, 2016) – inclusive, as relacionadas aos consumos que são socialmente validados – o recurso ao humor é um instrumento discursivo poderoso de convocação ao consumo simbólico de bens e serviços financeiros, em um contexto de financeirização e sua aceitabilidade cultural.
As convocações midiáticas são performativas. Isso porque, na convocação, há sempre uma palavra de ordem “que busca totalizar uma comunicação que se assemelha a um contrato, mas dele é apenas um simulacro” (Prado, 2013, p. 58). É justamente esse aspecto da convocação que, para Prado (2013), explicita o modo como os meios de comunicação agem a partir da força performativa da linguagem. Disso advém o fato de que a necessidade que emerge na convocação apenas se manifesta no momento de sua enunciação. “A fantasia traz um objeto que se perde e deve ser recuperado, mas o paradoxo é que o objeto emerge no exato momento de sua perda” (Prado, 2013, p. 62). Os media atuam, portanto, a partir de uma pedagogia do desejo. O consumidor – produzido no . pelo discurso a partir desse mecanismo – é constituído na interpelação do discurso midiático.
Investidor da Depressão . Faria Lima Elevator invocam e performatizam discursos ligados à financeirização. E “a marca que a interpelação imprime não é descritiva, mas inaugural” (Butler, 2021, p. 20), uma vez que a interpelação é um ato de fala cujo “objetivo é designar e estabelecer um sujeito na sujeição” de um discurso que o antecede – produzindo seus contornos sociais, de forma que “sua operação reiterativa tem o efeito de sedimentar seu ‘posicionamento’ ao longo do tempo” (Butler, 2021, p. 20). Investidor da Depressão . Faria Lima Elevator apelam aos discursos ligados à financeirização e, ao fazê-lo, interpelam um tipo de sujeito e constroem um tipo de consumidor no e pelo discurso.
Além dos discursos vinculados à financeirização da sociedade, essas páginas compartilham, com a literatura de autoajuda e de educação financeira, algumas linhas discursivas comuns, conforme iremos detalhar na sequência. Nos próximos tópicos, estudaremos quais são os discursos urdidos nessa cena midiática.
ENGAJAMENTO AFETIVO PELO HUMOR E PELO CINISMO
Em relação aos processos discursivos correlacionados à produção de afetos positivos para os produtos financeiros (e a consequente produção de um tipo específico de consumidor), Leite (2017, p. 114) mostra como algumas práticas econômicas condenadas em certas épocas foram ressignificadas e ganharam legitimidade social em outras. Um exemplo é a figura do “investidor ganancioso” que, em práticas comunicacionais mais recentes é transformada na imagem do “investidor racional” – personagem “que proclama as benesses do mundo das finanças e fortalece os programas e projetos de educação financeira”. Assim, “elementos do imaginário sobre o mercado financeiro” como a bolsa de valores, com seus personagens e ações específicas, “são construções sociais que foram elaboradas em diferentes momentos e que estão relacionadas a distintos eventos da história do capitalismo, apresentando-os ora como importantes protagonistas, ora como vilões e causadores de escândalos e das principais crises econômicas” (Leite, 2017, p. 115).
No caso de produções midiáticas voltadas à educação ou à autoajuda financeira, poupar e investir com sabedoria operam como palavras de ordem, de forma que “a tradicional imagem de operadores ‘enlouquecidos’ vêm perdendo lentamente sua capacidade de atrair a atenção e produzir emoções” (Leite, 2017, p. 121). Por sua vez, “ela tem sido substituída por representações que destacam a ‘racionalidade’ nos mercados de capitais, ancoradas nos estudos científicos, nos métodos e softwares que dão ares de segurança e legitimam as práticas de investimento, corroborando, assim, mudanças cognitivas na sociedade” (Leite, 2017, p. 121). As ideias de segurança e de controle ganham primazia no discurso, respaldadas por métodos que prometem controlar e prever o caos do mercado. Investidor da Depressão e Faria Lima Elevator se apropriam humoristicamente desses discursos e transformam o investidor ganancioso e/ou pouco hábil em seus investimentos em figura central das postagens e memes realizados.
Encontramos uma série de exemplos no período analisado. Em Investidor da Depressão, frequentemente são postados memes que ironizam os cursos de educação financeira, especialmente aqueles que prometem ganhos rápidos e fáceis, muito comumente comercializados no Instagram. Em 19/05/2022, por exemplo, a página posta uma entrevista do cantor Gustavo Lima com a legenda “O vendedor de curso sincero”, dizendo: “90% das coisas que eu conto é inventado, viu gente, e 10% é mentira”. Em 04/05/2022, o meme dizia “Lançando meu novo curso ‘Trader de Poupança’ estratégias com retorno de 1% ao mês garantido”, com uma notícia que anunciava a elevação da taxa de juros pelo Copom. Em 17/05/2022, é colocada uma tirinha de Hagar, O Terrível editada da seguinte forma:
Vendedor de Curso: – Esta espada mágica traz riqueza.
Otário: – Te dou um saco de ouro por ela.
Otário: – Quando a espada vai me trazer riqueza?
Vendedor de Curso: – Quando você vendê-la!
Em Faria Lima Elevator é possível encontrar conteúdos similares que ironizam esse tipo de curso. Em 18/05/2022, por exemplo, o enunciador da página posta que “Tecnologia é o novo daytrader, um monte de gente vendendo curso prometendo trabalhar da praia na Europa ganhando dólar”. Além disso, a abordagem que satiriza o sonho dos ganhos financeiros hiperbolizados também se materializa em conteúdos que zombam de certas decisões de investimento: “O brasileiro não olha a taxa de juros do financiamento, mas sim, se a parcela cabe no bolso” (30/06/2022); “E fora das redes sociais, você bate o Ibovespa?” (27/05/2022); “Suprassumo do Brasil: declarar IR na véspera, brigar pelos terrenos na herança, … comprar título de capitalização para ter 100% do seu dinheiro de volta” (26/05/2022); e “Quero ver você explicando para seu cliente que investe em um fundo de inflação e que está perdendo dinheiro em um ano que a inflação só sobe” (05/05/2022).
Assim, em Faria Lima Elevator e Investidor da Depressão o “operador enlouquecido” e o “mau investidor” são colocados em destaque como personagens centrais das narrativas humorísticas. Eles reforçam, dessa forma, discursos presentes nos conteúdos dos livros de autoajuda financeira, posto que maldizem as promessas de ganhos rápidos apregoadas por muitos cursos populares e alfinetam o investidor enlouquecido que toma péssimas decisões de investimento (como não poupar e fazer um grande número de parcelas nas compras, investir no Ibovespa em queda na esperança de altos ganhos ou comprar títulos de capitalização que costumam render muito pouco por falta de conhecimento de mercado).
O humor, nessas produções, tem como efeito de sentido a reprimenda indireta, atenuada, e aponta o dedo para os comportamentos e personagens que, na representação do mercado financeiro feita pelo discurso, devem ser objeto de escárnio e desprezo. No processo que transforma o investidor enlouquecido e/ou pouco hábil em um personagem sobre o qual devemos rir, há uma sutileza discursiva que demarca uma partilha entre práticas validadas para o sucesso financeiro e aquelas que não o são, em um tipo de convocação para o consumo simbólico-afetivo de ativos financeiros que reforça a argumentação de que quem de fato sabe o que está fazendo pode alcançar bons resultados.
Sobre esse aspecto, lembramos que, para que o discurso humorístico possa fazer efeito, é necessário que ele acione códigos culturais amplamente identificáveis (a partir de uma posição ideológica dominante) ao mesmo tempo em que opera uma distorção desse mesmo código (Berger, 2012).
Investidor da Depressão e Faria Lima Elevator convidam o público a rir das más escolhas de investimento, o que não é senão outra forma de apresentar uma crítica a um personagem malquisto e ridicularizar os maus investidores. As más práticas de investimento, sob essa lógica, são colocadas sob escrutínio público a partir de uma retórica do mau exemplo. Esse expediente, contudo, reforça a validade das próprias regras que aparentemente caçoam, a partir da torção de seus códigos usuais, uma vez que os conteúdos desses perfis não questionam a importância de se fazer parte do mercado de investimentos. Ao invés de apostar nas histórias de sucesso, os perfis apelam para o fracasso para criar o efeito humorístico e apontar o que não deve ser feito.
Leite (2017, p. 121) chama atenção para o fato de que, na literatura de autoajuda financeira, “aqueles que não são vistos como planejadores conscientes são considerados meros especuladores egoístas, apegados à riqueza material e ao dinheiro”. E, assim, “esse campo gera categorias normativas que caracterizam os especuladores impulsivos como figuras que devem ser excluídas dos circuitos dos mercados”. As páginas estudadas partem do mesmo princípio ao fazer graça dos agentes de mercado que, supostamente, se comportam de forma irresponsável.
Além de oferecer uma vitrine de maus exemplos, o recurso ao humor ainda reforça outro campo discursivo comum à autoajuda financeira. No gênero, é frequente o discurso que busca consolidar a ideia “de ‘homem rico’ em um homem simplesmente inteligente, que sabe colocar o dinheiro a seu próprio serviço, não se tornando, assim, seu escravo” (Leite, 2021, p. 332). Assim, “legitima-se o mantra referido, fortalecendo uma lógica social que implica a incorporação de técnicas capazes de permitir aos indivíduos transformar-se para alcançar a liberdade financeira” (Leite, 2021, p. 332).
Isso revela uma forma de produção de sentido sutil do discurso humorístico mediado por Investidor da Depressão e Faria Lima Elevator. Há uma espécie de pacto estabelecido na piada: se o leitor é inteligente o suficiente para entender a brincadeira presente nos posts e compartilhar a censura feita aos maus investidores, o discurso constrói a triangulação de que esse mesmo leitor é inteligente o suficiente para investir com sabedoria, em uma reafirmação do discurso de racionalidade no mercado financeiro. A vitrine dos maus exemplos, portanto, é acompanhada por um elogio velado ao leitor que, posto no lugar de rir do outro, pode afirmar sua própria inteligência.
Correlato aos discursos que constroem vitrines para os maus exemplos no relacionamento com os produtos financeiros, outro recurso discursivo comum do gênero de autoajuda financeira é, tal como apontado por Leite (2017), o apelo à ideia de que é possível ter segurança e controle a partir de técnicas que preveem movimentos de mercado. O futuro, portanto, é constantemente mobilizado como dispositivo que aciona afetos relacionados, de um lado, à perda de patrimônio e, de outro, relacionado a afetos positivos, de técnicas de mitigação de risco.
Não é por acaso, portanto, que o discurso de autoajuda financeira recorra, corriqueiramente, a atores sociais que Casaqui (2020, p. 6) denomina de “futuristas”: personalidades midiáticas que produzem narrativas inspiracionais voltadas para o futuro, “que se misturam com a psicologia positiva, com o gênero da autoajuda, com a atividade do personal coach, com os ‘treinadores da alma’ que pregam o ideal da gestão eficaz da vida”.
Tal como apontado por Casaqui (2020), o futurismo é construído, nas práticas midiáticas, como discurso inspiracional que, embora se manifeste como a produção de narrativas que se ancoram em sistemas de especialistas, apresenta visões parciais da realidade, muitas vezes ancoradas em lógicas econômicas. Por detrás da leitura de cenários futuros, é possível encontrar uma cultura de consumo que coloca em destaque “lógicas neoliberais de desmonte de leis trabalhistas, de políticas sociais, de Estado mínimo” (Casaqui, 2020, p. 17) e louva sujeitos retratados como “o homem do futuro nos moldes do empreendedor de alta performance: o sujeito resiliente, flexível, que não encontra limites para sua atividade” (Casaqui, 2020, p. 17).
Há um engajamento afetivo marcante nessas narrativas de futuro. Os sentimentos de incerteza, confusão, insegurança e medo são mobilizados, para o autor, como formas de acionar o seu reverso:
em uma sociedade em que um dos elos fundantes é o medo, há um papel importante reservado às narrativas que mobilizam afetos “positivos”, que devolvem ao sujeito a crença de um futuro desejável, planejado e concebido a partir de seus desejos. (Casaqui, 2020, p. 8)
Nos perfis analisados, o futuro também é recorrentemente posto como objeto do discurso – a partir de uma perspectiva cínica ou de um humor niilista. Há uma torção dos discursos tradicionais de educação e autoajuda financeiras de que é possível prever o futuro para tomar decisões racionais e assertivas de investimento.
Em Faria Lima Elevator, encontramos os seguintes posts com esse viés, no período analisado: “Só de pensar que ainda tem eleição já dá preguiça” (23/05/2022); “‘Se você tivesse comprado o ativo XYZ há 8 anos atrás, teria ganho XXXXX% hoje’. Não teria não. Você teria vendido beem antes disso” (15/05/2022); “Never bet against IPCA” (11/05/2022); “60 aos 100 anos: minha aposentadoria está em terrenos e imóveis. 40 aos 60: minha aposentadoria está toda na poupança. 25 aos 40: minha aposentadoria está toda em Tesouro Direto e Ações. 15 aos 25: minha aposentadoria está toda em Cryptos e NFTs” (07/05/2022); e “Mercado não discute política, discute risco. Pode ser, inclusive, de política” (03/05/2022).
Em Investidor da Depressão, as possibilidades de previsão do futuro também são satirizadas. No dia 20/05/2022, o perfil postou um vídeo de um corte do desenho Os Simpsons com a legenda “O Futuro de quem não investe”, que tinha o seguinte diálogo:
– A gente não vai precisar de previdência social, a gente vai ser rico!
– É, nunca vamos precisar de ajuda do governo.
[corte de cena para o futuro]
– Me ajuda governo!
– Precisamos do pagamento da aposentaria!
– Libera aí nosso pingadinho todo mês!
Na página, ainda é possível encontrar conteúdos como: “Jesus mostrando que com a carteira que eu tenho não tem como fazer milagre” (30/05/2022); e “Eu vendo meu amigo comprando robô trader: ‘Eu não sei que vontade é essa que você tem de fazer merda” (19/05/2022).
Esses conteúdos, que caçoam da ideia de que é possível prever o futuro, reestabelecem o pacto do humor que diagnosticamos anteriormente: ele ri da inocência dos que acreditam nessa possibilidade (em outro tipo de construção de vitrine de maus exemplos) ao mesmo tempo que elogia o leitor por entender a piada. Ao fazer isso, reafirma a validade dos pressupostos dos discursos vinculados à financeirização da sociedade e urde uma moralidade às práticas de consumo de produtos do mercado financeiro.
Além desse aspecto, podemos destacar outras linhas discursivas que se entrecruzam. Urdida à financeirização, é bastante comum, nos comunicadores financeiros, uma adesão a discursos neoliberais, a partir dos quais o enunciado “faz circular o enriquecimento fácil do e autocentrado no indivíduo, apresentando ser constituído de relações dialógicas com discursos produzidos pelo capitalismo, com ênfase no individualismo” (Stafuzza & Pereira, 2021, p. 1685). Para Leite (2021), uma das características do gênero é harmonizar, no discurso, uma série de inconsistências, uma vez que ele prega a eficácia de seus produtos ao mesmo tempo que, no entanto, sugere (a partir de princípios como liberdade, autonomia e abundância propalados por esse setor) que o sucesso está atrelado não apenas à inteligência de jogar a regra do jogo, mas sim, de adaptá-la a contextos da vida real. “A produção do ‘eu neoliberal’ evoca a importância da educação financeira, isto é, uma educação instrumental que deve estimular habilidades financeiras relacionadas ao mundo real” (Leite, 2021, p. 333). O sucesso ou o fracasso, nessa lógica, é sempre uma responsabilidade do indivíduo.
Esse aspecto é frequentemente satirizado nos perfis analisados. A fé na ação individual não é tão cega nos perfis humorísticos quanto na literatura de autoajuda, o que, superficialmente, pode sugerir um reengendramento do discurso neoliberal nesses perfis. O esforço pessoal e o trabalho duro são, muitas vezes, satirizados nesse discurso como forma de criar efeitos humorísticos.
Investidor da Depressão zomba dessa postura em memes como “Duas vezes por semana eu dou uns 5 tiros pra cima nos fundos de casa, para manter os aluguéis baratos aqui no bairro” (16/05/2022); “Na vida real você pode ser pobre, mas no Instagram a escolha é sua!” (15/05/2022); e, em um meme com a legenda “O segredo é se destacar” a figura mostrava um e-mail com os dizeres “Oi, Douglas, boa tarde! Tudo bem? Você encaminhou um boleto ao invés do seu currículo. Atenciosamente” (02/05/2022).
Se a ironia dá um tom de crítica bem-humorada aos discursos neoliberais em Investidor da Depressão, em Faria Lima Elevator são frequentes as alfinetadas a posturas consideradas preguiçosas ou pouco engajadas, em uma adesão mais explícita ao discurso neoliberal, ainda que sob um viés de sátira. Ali é possível encontrar postagens como: “Ter um chefe/líder ruim pode ser uma questão de azar. Continuar com um chefe/líder ruim é uma questão de escolha” (24/05/2022); “Se Warren Buffett fosse brasileiro seria investidor de Renda Fixa e funcionário público” (12/05/2022); “O homem nasce bom, a remuneração variável que o corrompe” (11/05/2022); e “Você não tem TDAH, você só é desorganizado mesmo” (18/05/2022).
O pacto estabelecido pelas piadas se mantém nessas reapresentações do discurso neoliberal. Tal como exposto por Gobbi (1999, p. 127), o humor mobiliza todas as instâncias participantes do processo comunicativo: “o enunciador, que marca intencionalmente o seu discurso como irônico; o receptor, que necessariamente deve decodificar como irônico esse discurso”. O pacto humorístico, dessa forma, irá se fundamentar em uma prática discursiva a partir da qual o leitor é colocado em posição de transcender a mensagem literal para vislumbrar os sentidos outros do discurso.
Mas além de posicionar o leitor em um lugar de inteligência no discurso – afinal, ele é tratado como alguém capaz de entender a piada – quais sentidos outros são esses? Ou, em outros termos, como o humor mobiliza discursos convocacionais ao consumo simbólico de produtos financeiros?
Safatle (2008a) nos ajuda a delimitar tais sentidos a partir da perspectiva de que se, durante muito tempo, os discursos que legitimavam práticas econômicas demandavam uma ética de compromisso, atualmente, em um momento histórico no qual o supereu se funda no imperativo de gozo, somos incitados a uma flexibilização dos regimes de indexação às normas. A convocação discursiva, nesses termos, está articulada em torno de um “não levar-se tão a sério”, de forma que “o capitalismo não exigiria mais espécie alguma de crença cega nos conteúdos normativos que ele próprio enuncia” (Safatle, 2008b, p. 1), em um discurso de poder que ri de si mesmo. “Essa aparente ausência de legitimidade”, contudo, “seria o verdadeiro núcleo da sua força. Isso a ponto de dizer que sua crise de legitimidade seria seu núcleo motor” (Safatle, 2008b, p. 2), uma vez que reforça a própria adesão às regras a partir de uma enunciação cínica. “Em outras palavras, basta que elas sejam seguidas ‘de maneira cínica’ fazendo com que elas justifiquem o contrário do que pareciam indexar”. Assim, a “lei sócio simbólica é sempre complementada por uma espécie de duplo, uma segunda lei superegóica que só pode ser enunciada cinicamente” (Safatle, 2008a, p. 24).
Na ética do cinismo, o ocultamento do caráter fetichista da mercadoria é dado a partir de discursos que são capazes de “revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal” (Safatle, 2008b, p. 1). Os discursos paródicos são manifestações desses mecanismos, a partir dos quais “poderíamos todos tomar distância dos conteúdos normativos do universo ideológico capitalista porque o próprio discurso do poder já ri de si mesmo” (Safatle, 2008b, p. 2). Trata-se, portanto, de um capitalismo triunfante que caçoa de si mesmo e não mais teme o discurso crítico. Ao contrário de significar uma crise de legitimidade, tal mecanismo é mesmo seu reforço, articulado a partir de um discurso que consegue realizar cinicamente a crítica.
Essa postura cínica do humor – ao contrário de significar o desmascaramento dos abusos de poder – perpetua as normatividades ao mesmo tempo que proclama as fragilidades dessas normatividades. Os indivíduos, nesse contexto, são convocados a sustentar identificações irônicas, em que “os sujeitos afirmam sua distância em relação àquilo que estão representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações” (Safatle, 2008b, p. 9).
Ao contrário de uma ética do compromisso (que seria típica do gênero de autoajuda financeira), os perfis humorísticos convocam discursivamente a partir de uma ética irônica – que já cria em si, para Safatle (2008a), uma espécie de identificação pelo negativo. “Esse auto-sarcasmo é uma maneira astuta de eternizar estruturas narrativas e quadros de socialização, ainda que reconhecendo que eles estão completamente arruinados” (Safatle, 2008b, p. 12). Para o autor, é justamente a satirização cínica desses modos de vida que permitem que o conteúdo continue circulando.
Investidor da Depressão e Faria Lima Elevator se apropriam cinicamente dos discursos de ganho rápido, das possibilidades de previsão do futuro e dos discursos neoliberais de ação individual. Ao fazê-lo, em uma aparente quebra de expectativas e satirização dos modelos discursivos presentes na autoajuda financeira, eles acabam por reforçar os mesmos tipos de discurso. Se, em aparência, eles parecem criticar esses discursos a partir do humor, o cinismo cria, como efeito de sentido, um distanciamento que reconhece a validade dessas mesmas normas, corroborando-as. Em nenhum momento esses discursos se propõem a criticar o neoliberalismo e os discursos de investimento, mas tem, como proposta, a partir de um enquadramento cínico, melhor preparar afetivamente os investidores para o consumo simbólico do mercado financeiro (seus valores, normas e pressupostos, ainda que muitos espectadores dessas páginas possam nem investir efetivamente).
Correlato a isso, há, ainda, outro efeito de sentido digno de nota nas convocações discursivo-afetivas ao consumo nessas páginas, que se refere à reiteração das histórias de fracassos e más escolhas financeiras. Além de atuar no reforço dos discursos mencionados (ainda que sob uma perspectiva irônica), outro efeito de sentido dessa iterabilidade está relacionado à naturalização da perspectiva da perda. O fracasso, assim, é retratado não apenas cinicamente, mas também como parte do jogo.
O FRACASSO COMO PRÁTICA NATURALIZADA
Chua (2021) chama atenção para o fato de que “em nossa era de capitalismo tardio, podemos testemunhar a contínua transformação criativa do fracasso bem-sucedido em uma mercadoria que cresceu em valor”. Isso está vinculado a uma série de manifestações, na cultura, que pregam a necessidade de aprender com o fracasso e agir de acordo com isso, articuladas a discursos de que é assim que economia empreendedora funciona. Assim, “a mercantilização das narrativas triunfalistas de fracasso ilustra o surgimento de uma nova ideologia que justifica o engajamento no capitalismo, pedindo participação da força de trabalho de uma nova maneira” (Chua, 2021). Certos tipos de fracassos bem-sucedidos são empacotados para causar impacto e se transformam em narrativas mercantilizadas de falha.
O fracasso, na literatura de autoajuda financeira, é muitas vezes naturalizado e justificado a partir de um discurso que prega que o indivíduo deve superar seus medos para assumir riscos econômicos. Assim, “fatores como incerteza e riscos começam a ser lidos como ativos positivos em contraponto às ideias de estabilidade e previsibilidade que figuraram como características do modelo capitalista do período industrial” (Leite, 2021, p. 333).
Como já afirmamos anteriormente, os perfis analisados são recheados de histórias de fracasso. Em Faria Lima Elevator, lê-se piadas como: “Não passo frio porque estou coberto de prejuízos na corretora” (25/06/2022); “A Berkshire do Warren poderia despencar 99% e ainda assim bateria o S&P desde o início. Esse é o tweet” (14/05/2022); “Lembre-se: o importante não é tentar ganhar dinheiro, é perder menos que seu amigo” (10/05/2022); “Já estamos em maio e tudo o que o mercado brasileiro conseguiu foi perder 5 meses” (09/05/2022); “Feliz dia do ‘você não é todo mundo’. Lembre-se, apesar de ser daytrader, sua mãe te ama’ (08/05/2022); “Algumas semanas você simplesmente agradece a existência do final de semana pelo fato do mercado fechar” (06/05/2022); e “Declaração de imposto de renda: a retrospectiva preparada pelo governo para te relembrar do seu péssimo desempenho financeiro do ano anterior” (04/05/2022).
Em Investidor da Depressão, igualmente, encontramos posts como: “Receita Federal planeja imposto sobre prejuízo após grande número de investidores declarar perdas em 2022” (31/05/2022); “Estudos apontam que casais que fazem trade juntos dobram as chances de perder dinheiro” (13/05/2022); “Indo pro trabalho pensando nos prejuízos que tô tomando” (12/05/2022); “Pedindo pra sua esposa abrir um OnlyFans porque você perdeu a casa” (11/05/2022); e, em um meme que mostrava os violonistas do Titanic: “Ufaaa, a semana a acabou! Cavalheiros, foi uma honra perder dinheiro com vocês” (06/05/2022).
Junto aos mecanismos discursivos analisados anteriormente, outro aspecto das páginas estudadas diz respeito a discursos que tomam o fracasso como prática naturalizada, como parte do jogo. Caminhando ao lado do cinismo, o fracasso é representado como algo corriqueiro e frequentemente observado. Há, aqui, um tipo de discurso que valoriza o fracasso como professor e como parte do caminho para o sucesso. Perder um pouco para aprender a ganhar muito depois faz parte do discurso da autoajuda financeira e é reiterado nesses perfis humorísticos, em uma perspectiva de naturalização que convida o espectador a correr mais riscos e a não sofrer por isso (nem mesmo diante de eventuais perdas).
A valorização do fracasso deixa entrever que “as tensões no mercado financeiro continuam a existir. Assim, as sátiras não desapareceram, e a figura do investidor ganancioso, manipulador ainda alimenta momentos de crise e compõe as ficções” (Leite, 2017, p. 121). Não obstante isso, nessas produções, as imagens negativas de investimentos têm como contraponto a utilização do humor e de uma racionalidade cínica que, a partir de uma aparente negação, retifica os pressupostos de um discurso que convoca a uma relação afetiva com os produtos financeiros, ainda que seja a partir do humor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do uso do humor e do cinismo como estratégias comunicacionais, Faria Lima Elevator e Investidor da Depressão fazem parte de um movimento a partir do qual “as finanças são várias vezes apresentadas de acordo com uma lógica de espetáculo e entretenimento” (Haro, 2013, p. 114) e integradas culturalmente em práticas quotidianas.
A análise das estratégias discursivas de convocação ao consumo dessas produções midiáticas revela que a financeirização funciona como cena discursiva legitimadora e, a partir disso, essas produções compartilham uma série de discursos com os gêneros da autoajuda e da educação financeira – ainda que sob um viés de humor. Entre esses discursos, destaca-se a censura a alguns tipos de investidor como o ganancioso, o pouco hábil ou o sem conhecimento – tornando-os objetos de escárnio. Ao mostrar uma vitrine dos maus exemplos, o discurso descortina também o seu contrário, a valorização da escolha racional e bem estudada dos investimentos, o que medeia discursos neoliberais corriqueiros sobre meritocracia e valorização da ação individual.
Embora muitas vezes os conteúdos dessas páginas pareçam caçoar de lugares comuns da literatura de autoajuda financeira – como a ideia de que é possível prever o futuro para fazer bons investimentos e o ideário de que o sucesso depende de um grande empenho e esforço pessoais –, a racionalidade cínica mobiliza um aparato discursivo que legitima a norma ao parecer contradizê-la. Isso, de um lado, porque o pacto humorístico posiciona o espectador, no e pelo discurso, como um espectador inteligente – já que se supõe que ele é capaz de entender a piada e, portanto, inteligente o suficiente para ficar fora da vitrine dos maus exemplos. Em um segundo aspecto, porque a negação da norma reconhece a validade da própria norma. Para Safatle (2008b, p. 7), “tudo se passa como se o capitalismo contemporâneo e suas formas maiores funcionassem a partir de uma certa lógica de ‘carnavalização’”, a partir do pressuposto de que a aparente suspensão da lei, típica dos processos sociais carnavalizantes, não são senão uma forma de reforço dessa própria lei.
Nos momentos em que a identificação cínica vacila, é possível contar ainda com outro efeito de sentido engendrado pelo discurso a partir do qual um fracasso bem-sucedido pode ser valorizado como um bom professor e como parte do jogo. Trata-se de produções que, a partir do humor, criam um discurso afetivo em relação aos produtos financeiros, validam certos tipos de comportamento em relação às finanças e constroem, através do discurso, um tipo de consumidor específico, culturalmente preparado para atuar no mercado financeiro, ao naturalizar práticas e legitimar comportamentos vinculados à financeirização das relações econômicas a partir da comunicação.
REFERÊNCIAS
Baccega, M. A. (2010). Comunicação/educação: relações com o consumo. Comunicação, Mídia e Consumo, 7(19), 49-65.
Berger, A. (2012) An Anatomy of Humor. Transaction Publishers.
Britto, R. R., Kistemann Jr. M. A., & Silva, A. M. (2015). Sobre discursos e estratégias em educação financeira. Jornal Internacional de Estudos em Educação Matemática, 7(1), 177-208.
Butler, J. (2021). Discurso de ódio. Unesp.
Casaqui, V. (2020). Os futuristas estão chegando: o futurismo como fenômeno midiático, cultura empreendedora e inspiração. Famecos, 27(1), 1-17.
Chua, C. (2021). Successful failure: The marketisation of failure in an entrepreneurial economy. Journal of Consumer Culture, 22(3). https://doi.org/10.1177/14695405211013989
Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. Boitempo.
Grün, R. (2013). A dominação financeira no Brasil contemporâneo. Tempo Social, 25(1), 179-213.
Haro, F. (2013). Se não cuidarmos de nós, ninguém cuidará: Autoajuda financeira e racionalidade política neoliberal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 1(17), 111-134.
Leite, E. (2017). A ressignificação da figura do especulador-investidor e as práticas de educação financeira. Civitas, 17(1), 114-130.
Leite, E. (2021). Autoajuda financeira: governamentabilidade neoliberal e a produção de sujeitos. Sociologia & Antropologia, 11(1), 331-336.
Maingueneau, D. (2005) Gênese dos discursos. Criar Edições.
Maman, D., & Rosenhek, Z. (2022). Governing individuals’ imaginaries and conduct in personal finance: The mobilization of emotions in financial education. Journal of Consumer Culture, 23(1). https://doi.org/10.1177/14695405211069952
Prado, J. L. A. (2013). Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. EDUC.
Safatle, V. (2008a). Por uma crítica da economia libidinal. Ide, 31(46), 16-26.
Safatle, V. (2008b). Sobre um riso que não reconcilia: notas a respeito da ideologia da ironização. A Parte Rei, 55(1), 1-13.
Safatle, V. (2016). O circuito dos afetos. Autêntica.
Santos, M. (2001). Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record.
Stafuzza, G., & Pereira, M. (2021). Sentidos do discurso coaching financeiro no enunciado vídeo publicitário ‘Meu nome é Bettina’ e possibilidade de cotejo. Estudos da Linguagem, 29(3), 1685-1716.
Notas
Notas de autor