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Flânerie pelas cidades do futuro
Flânerie through the cities of the future
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 101-118, 2023
Universidade de São Paulo

DÔSSIE


Recepción: 24 Mayo 2022

Aprobación: 21 Junio 2023

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v17i2p101-118

Resumo: Este artigo toma a ideia de flânerie, de Walter Benjamin, como uma ferramenta metodológica pensada para percorrer cidades futurísticas imaginárias em quatro filmes de ficção científica. O flâneur, portanto, é um operador cognitivo que me leva a construir uma outra forma de apreciar os filmes, criando meu próprio tempo de observação e apreendendo da ficção as ideias de futuro que hoje criam as paisagens urbanas futuristas. Este artigo resulta da pesquisa “Futuros Humanos: A percepção imaginária dos ambientes urbanos e paisagens do futuro no cinema contemporâneo”, que investiga as projeções do imaginário social sobre o futuro dos ambientes urbanos no cinema de ficção científica, considerando seus reflexos na sociedade atual.

Palavras-chave: Flânerie, cidades futuristas, ficção científica, imaginário.

Abstract: This study takes Walter Benjamin’s idea of flânerie as a methodological tool designed to travel across imaginary futuristic cities in four science fiction films. The flanêur, therefore, is a cognitive operator that leads me to think of another way of appreciating films, creating my own time of observation and learning from fiction the ideas of the future that currently create futuristic urban landscapes. This study results from the research “Human Futures: the imaginary perception of urban environments and landscapes of the future in contemporary cinema”, which investigates the projections of the social imaginary about the future of urban spaces in science fiction cinema, and ponders on its reflexes in today’s society.

Keywords: Flânerie, futuristic cities, science fiction, imaginary.

O princípio da flânerie em Proust. “Então, longe de todas essas preocupações literárias e sem me prender a nada, de repente um teto, o reflexo do sol em uma pedra, o cheiro de um caminho detinham-me pelo prazer singular que me proporcionavam, e também porque pareciam esconder, para além do que eu via, algo que me convidava a buscar e que apesar de meus esforços, não consegui descobrir.” Du Côté de Chez Swann, vol.01, Paris, 1939 p. 256. 708)

Deixar-se tomar por tudo a sua volta inaugurando, a cada passo na rua, uma nova experiência no mundo. Mas não apenas estar tomado pelos cheiros e sons das aglomerações de rua nas cidades modernas: é preciso também saber evocar esse sentimento e construí-lo em sua escrita. O relato minucioso da experiência presentifica o tempo e dá textura viva à própria experiência. Walter Benjamin (2018) reinventa o cronista das ruas no ofício do flâneur no início do século XX, e esse personagem me inspira como um dispositivo metodológico para o filósofo, o artista ou até mesmo o etnografista que intenciona conhecer as nuances da vida de rua de seu tempo.

Ao contrário dos transeuntes apressados nas calçadas, que têm inúmeros objetivos para cumprir ao longo do dia, o flâneur tem apenas um objetivo: colocar-se completamente à disposição para observar e sentir como o espírito do tempo acontece nas ruas. Esse único objetivo tem um sentido político intrínseco de tentar resistir à pressa e à velocidade dos tempos modernos que sufocam os tempos da tradição. Logo, o exercício focado do flâneur é tornar-se maximamente presente nas sensações e nos estímulos das ruas, para poder testemunhar os mínimos e quase imperceptíveis acontecimentos de seu tempo. O flâneur passeia, diverte-se, conversa nas bancas de jornais, nos bares, mas para ele tudo e todos fazem parte de seu estudo da experiência na intimidade poética do cotidiano urbano.

A flânerie se baseia, entre outras coisas, no pressuposto de que o fruto do ócio é mais precioso que o do trabalho. Como se sabe o flâneur realiza “estudos”. O Larousse do século XIX diz a esse respeito o seguinte: “seu olho aberto e seu ouvido atento procuram coisa diferente daquilo que a multidão vem ver. Uma palavra lançada ao acaso lhe revela um desses traços de caráter que não podem ser inventados e que é preciso captar ao vivo; essas fisionomias tão ingenuamente atentas vão fornecer ao pintor uma expressão com a qual ele sonhava; um ruído, insignificante para qualquer ouvido, vai tocar o do músico e lhe dar a ideia de uma combinação harmônica; mesmo ao pensador, ao filósofo perdido em seu devaneio, essa agitação exterior é proveitosa: ela mistura e sacode suas ideias, como a tempestade mistura as ondas do mar...” (Benjamin, 2018, p. 756).

Paris da virada do século XIX para o século XX é para Benjamim o lugar do acontecimento da modernidade que trouxe as multidões para as ruas, as mesas nas calçadas em frente aos bistrôs, uma vida noturna distendida até tarde sob os clarões de ruas sempre iluminadas pela energia elétrica recém-introduzida nos postes dos bulevares. É um novo acontecimento sociológico no qual as aglomerações estão imersas em uma nova experiência de cidade. Segundo Benjamim, as pessoas não conseguiam mais viver uma experiência da tradição que permitisse uma atenção delicada para o presente de cada momento da experiência. Por esse motivo ele localiza no flâneur aquele que não foi capturado pela urgência da modernidade que esvazia a experiência do sujeito.

Por ser um tipo social que vive no limiar entre a experiência da tradição (Erfahrung) e a vivência da modernidade (Erlebnis), mais precisamente a do choque (Chockerlebnis), o flâneur ainda consegue ter essa flexibilidade perceptiva que lhe confere um modo de olhar que possibilita, mais do que ver, ler tanto a cidade na história como a história na cidade, bem como seus outros tipos. Dentre eles, destacamos o jogador e o estudante, com os quais ele forma, segundo Benjamin, uma espécie de trilogia da ociosidade. (Biondillo. 2014, p. 14).

O flâneur é um personagem incrivelmente fascinante que assumo neste artigo como operador de um exercício metodológico. Sua motivação de conhecer o espírito do tempo observando cuidadosamente o cotidiano das ruas direciono para percorrer as ruas, os becos e todos os espaços urbanos apresentados em quatro filmes futuristas de ficção. Em outras palavras, não tenho interesse mais pela trama contada, pela história que é narrada, nem pelos personagens principais dos filmes, o que me move é o único interesse de percorrer e sentir as ruas, prestar atenção aos figurantes, à arquitetura dos prédios, à ideia de planejamento de cidade, tentar imaginar o que pensam e sentem seus habitantes. Tento me colocar como mais um figurante, e por isso, pausei o filme várias vezes sempre que os espaços urbanos surgiam e apresentavam personagens e lugares que desapareceriam em alguns segundos. Construí meu tempo para contemplar lugares em que a câmera passa rápido demais. Aqui forço o filme a me entregar o tempo de apreciação da vida nas ruas. Permito-me sonhar e imaginar como seria a vida daquela mulher, daquele homem ou daquele robô que passam, por três segundos ou menos, no plano de fundo das cenas. Como não tenho mais compromisso com o filme, deixo-me tomar várias vezes pela curiosidade de contemplar a cidade como uma paisagem.

Paisagem – é nisto que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto. (Benjamin, 2018, p. 703)

O flâneur benjaminiano tem a missão de devolver o vivido à experiência, logo, é preciso estar atento para deixar passar o fluxo dos acontecimentos da narrativa moderna e deter o olhar sobre o singelo das ruas e assim redescobrir o tempo. Nesse exercício sobre as cidades do futuro, como disse, precisei pausar e voltar os filmes várias vezes, precisei redescobrir passagens por becos, pontes, travessia de ruas, para encontrar cartazes nas paredes, lixo nas vielas, adereços em fachadas de prédios – e assim mergulhar em um imaginário urbano de futuro que atravessa quatro cidades em quatro filmes.

Dentre os lugares “visitados” está a Los Angeles de Blade Runner, o caçador de androides (1982), de Ridley Scott. Visito também New Port City, uma cidade imaginária no Japão, criada para o anime e o filme Ghost in the Shell, o fantasma do futuro (1995), de Mamoru Oshii. Por último, vou às cidades de Londres e Colônia, essa última também uma cidade imaginária situada em algum lugar da Austrália, no final do século XXI, ambas criadas para o filme Total Recall, o vingador do futuro (2012). É importante dizer que, nesses filmes, é possível acompanhar uma vida cotidiana pensada para esses futuros de cidades; eles trazem claramente a construção de imagens de uma vida urbana dentro da qual se desenrolam suas histórias – por isso eles me interessaram.

Neste artigo, tomei as imagens do cinema como expressões de um imaginário tecnológico que combina o desejo eterno de conhecer o futuro com a capacidade comunicativa de atingir as massas. A ficção científica futurista no cinema consegue criar imagens atravessadas pelos mesmos desejos e temores que moviam os povos antigos a tentarem adivinhar o que estava por vir por meio de seus oráculos proféticos.

Dessa especulação surgem novos mundos, planetas distantes, ilhas misteriosas, ruínas subaquáticas e cidades superlotadas de pessoas de todas as partes do mundo, misturadas com robôs, ciborgues e toda uma enorme fauna de humanoides híbridos com máquinas disputando espaços nesses ambientes. Esse é o aspecto dos futuros humanos que interessa a esse artigo: lançar o olhar de um flâneur sobre o imaginário que hoje se faz das aglomerações nas metrópoles e grandes cidades apresentadas nos filmes futuristas citados acima. Uma recursiva aparição de imagens em vários filmes que misturam a sofisticação de prédios, veículos, artefatos digitais urbanos de ponta com a precariedade de viela e becos, onde o submundo negocia restos e contrabando do mundo tecnológico.

Este artigo é resultado da pesquisa “Futuros Humanos: A percepção imaginária dos ambientes urbanos e paisagens do futuro no cinema contemporâneo”. O estudo investiga as projeções do imaginário social sobre o futuro dos ambientes urbanos no cinema de ficção científica, considerando seus reflexos na sociedade atual. Esse texto lida com as imagens produzidas pelo cinema de ficção científica não como algo que se encerra nas salas de exibição, mas como algo que ecoa em nossa fantasia além dos tempos. Essas imagens são reaparições de medos e desejos – afetos – que perduram em nossa imaginação e sonhos. Esses afetos estão intrinsecamente conectados à espécie humana nessa inconsciência social coletiva que Gilbert Durand chamou de imaginário: “vemos o imaginário, mais que nunca, como constituinte do capital dinâmico e espiritual do homo sapiens” (Durand, 2012, p. 5). Esse capital simbólico nos acompanha simbioticamente, nos alimentamos dele e o alimentamos, em um ciclo que define a existência do ser humano no planeta.

BLADE RUNNER, CAÇADOR DE ANDROIDES.


Figura 1
Los Angeles, novembro de 2019
Nota. Print do filme Blade Runner – caçador de androides. (time code: 10’45’’)

Quando sobrevoei Los Angeles à noite foi como se flutuasse sobre as chamas de antigas torres de poços de petróleo das cidades que margeiam o Golfo Pérsico. Lá embaixo, linhas retas de luzes mostram as ruas de uma cidade desenhada à régua, salpicada por gigantescas construções luminosas, verdadeiras fortalezas no meio da cidade. Assim se chega a Los Angeles no início do inverno, em que as manhãs ficam mais quentes e as noites mais frias, oscilando entre 10 e 22 graus. Chegar à noite a Los Angeles nesses carros voadores assusta. Os prédios intimidam. São blocos escuros, longilíneos, que se projetam nos céus, polvilhados por inúmeras luzes de seus ambientes internos. O que faz lembrar Baudelaire por Benjamim:

“Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante que uma janela iluminada por uma candeia”. Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris, Paris, Ed. R. Simon, p.62 (“Les fenêtres”). (Benjamin, 2018, p. 732).

Quando caminhei pelas calçadas, me chamaram a atenção luzes que piscavam sobre as cabeças dos transeuntes. No alto das fachadas de muitos dos edifícios, vídeos publicitários japoneses e chineses são projetados. Ideogramas chineses espalham-se nas marquises de todos os prédios. Na Los Angeles futurista de 2019, japoneses e chineses conquistaram as luzes noturnas. Há sempre uma névoa cortada pela chuva e efeitos de neon nas noites de LA no mês de novembro. Em partes da cidade, uma grande quantidade de pessoas acotovela-se sob guarda-chuvas acesos como sabres de luz. Elas caminham por ruas estreitas que lembram os mercados de alimentos e becos de pequenos restaurantes em Tóquio. Noutras partes da cidade, mais distantes do centro, um vasto vazio se estende por ruas desertas em bairros quase totalmente abandonados.

Por todo lugar onde se anda podem-se ver nos céus dirigíveis repletos de luzes e telas convidando as pessoas a investirem em uma nova vida, procurarem um mundo melhor e terem um novo começo nas colônias fora da Terra. A publicidade aérea tenta repetir o mito da terra de liberdade e oportunidade que trouxe milhares de Europeus para a América séculos antes. Por um instante, esses anúncios, sempre por cima das pessoas, fazem sentir que a vida na Terra não tem mais esperança. Los Angeles tem grandes áreas vazias, desabitadas. Muitas pessoas já saíram para morar nessas colônias em outros planetas. Mas a cidade tem também bairros superpopulosos, abarrotados de todas as tribos humanas, punks, devotos de Krishna, mercadores turcos, vendedores de rua orientais.

As pessoas transitam nas ruas alheias ao anúncio de uma outra terra prometida sobre suas cabeças, não percebem que a cidade convida a ir embora. Talvez muitos até queiram, mas não possam. Pessoas com doenças degenerativas, como JF Sebastian um dos personagens do filme, não passam nos exames médicos que permitem migrar para as colônias. Juntamente com milhares de pessoas, Sebastian atravessa seus dias no sufocamento naturalizado no qual as pessoas não mais escutam a publicidade que oferece um mundo melhor.

Mesmo sob a luz do dia é difícil ver o topo dos arranha-céus sombrios de LA quando se olha para cima. Eles sempre desaparecem no meio de uma névoa que filtra a luz do dia. De dentro dessa névoa apenas se vê as luzes se acenderem e se apagarem em diversas horas do dia. Existem várias formas de se conhecer Los Angeles, mas todas se dividem em dois planos: em um plano no nível do chão percorrem-se ruas estreitas, vielas sujas e superpopulosas, luzes piscando em fachadas a todo tempo, cheiro de frituras embalado na névoa fria de novembro. No outro plano é possível conhecer LA nesses veículos voadores que, a dezenas de metros do chão, percorrem a cidade por entre os arranha-céus. Da janela desses veículos atravessa-se toda a cidade por linhas de ruas e esquinas aéreas. Cruzam-se outdoors e letreiros luminosos dispostos para serem vistos de cima. As ruas aéreas mostram outra face da cidade, os prédios gigantes sombrios e suas antenas se apresentam de forma mais clara e podem-se até ver alguns habitantes nos pontinhos luminosos do paredão escuro.

Quando a chuva passa, nessas noites de novembro, várias pessoas se arriscam em grupos a passeios noturnos de bicicleta. Elas vestem suas capas amarelas de chuva e driblam os mendigos que se esquentam em torno das fogueiras no meio da rua. Monitores azulados de TV pendurados em postes marcam o que parecem ser pontos de ônibus. Acompanhando a panorâmica da câmera no frio da noite, tento ler alguma palavra nas ruas. Raramente uma frase ou palavra em inglês, tudo está tomado de ideogramas nos cartazes, nas pichações, nos depósitos de lixo e nas paredes dos prédios colossais. Essa cidade ficou triste, ela tem o rastro de que um dia acolheu seus habitantes, um dia foi possível ser feliz em Los Angeles. De repente a chuva para e pode-se ver a sujeira nas ruas tornar-se lama.

Os mercados de rua de animais sintéticos são especialmente curiosos. Eles lembram os antigos bazares de rua de Istambul e Teerã, onde se encontram os produtos mais diversos espalhados em um amontoado de pequenas bancas e lojinhas. Logo na calçada encontram-se os vendedores de comida de rua com suas grelhas acesas com os mais diversos tipos de espetinhos. A feira de animais sintéticos de LA é multicultural e contém águias e peixes ornamentais. Os animais são anunciados aos berros pelos feirantes na busca de clientes. Guaxinins em gaiolas, avestruzes à solta dividem o espaço com os clientes nas vielas lotadas a qualquer hora do dia. Cavalos e cobras híbridos de engenharia genética e robótica são expostos em lojas. Acompanhar as caminhadas por esses becos traz um misto de excitação, curiosidade e receio de esbarrar nos animais.


Figura 2
Região central de Los Angeles
Nota. Print do filme Blade Runner – caçador de androides. (time code: 56’49’’)

Os bairros da periferia são onde se consegue encontrar a maior quantidade de pessoas a qualquer hora do dia. Em Chinatown, pessoas e carros que não voam disputam espaços nas ruas. Em meio aos ruídos da cidade escuto uma voz metálica que também disputa a ambiência sonora. Na tentativa de organizar o trânsito, um mecanismo robótico instalado em um poste de rua, com vários monitores e saídas de som, insistentemente fala: “atravesse agora, atravesse agora, atravesse agora. Ou “não atravesse, não atravesse, não atravesse” repetidas vezes. Ninguém escuta, ninguém obedece.

GHOST IN THE SHELL

Chegar a New Port City, a cidade japonesa imaginária criada para o filme Ghost in the Shell, é como chegar a um parque de diversões. A cidade é apresentada por seu centro comercial, o bairro mais movimentado da cidade. A primeira coisa que chama a atenção são as ruas que podem apresentar andares: elas tanto correm ao nível do chão como também se espalham em corredores elevados, como viadutos sobrepostos em andares diversos atravessando toda a cidade. Assim, os viajantes nesses veículos têm noções diferentes da cidade a depender de que andar do elevado usam para percorrer o bairro. Essa forma de percorrer as ruas gera também a maneira de as publicidades serem apresentadas. Os outdoors foram substituídos por hologramas gigantes, figuras de vários metros de altura que surgem no meio da rua com slogans e jingles que ecoam em todo ambiente. Os anúncios apresentam novos implantes robóticos para melhorias do corpo humano, chamados de ciber-aperfeiçoamentos; cosméticos com substâncias nanotecnológicas; serviços de segurança para a estrutura genética de crianças (não faço a menor ideia do que seja isso) e uma quantidade enorme de produtos e serviços dos mais diversos tipos.

Muitos painéis luminosos gigantes escorrem pela fachada de edifícios com caligrafias japonesas que são belas por si só, mesmo que não se saiba se são parte de algum anúncio ou apenas o nome da empresa instalada no prédio. Quando se anda pelas ruas é difícil distinguir humanos 100% orgânicos, robôs, hologramas ou humanos aperfeiçoados; de alguma forma todos se parecem. São rostos sem expressão ou cobertos por máscaras e acessórios de ampliação de comunicação e leitura de informação do ambiente. Todos parecem tomados por um cotidiano automatizado, as pessoas não falam nas ruas –, as vozes que se escuta são das publicidades dos hologramas gigantescos. Todos vivem em um mundo particular de interação virtual com coisas que não estão a sua frente. Ou seja, mesmo caminhando nas ruas, as pessoas não interagem presencialmente umas com as outras, elas administram suas vidas em metaversos simultâneos.

Mas há uma coisa extremamente curiosa nos humanos e humanoides de New Port City: os robôs tentam cada vez mais parecerem humanizados, usando todo tipo de pele sintética e programas de conversação avançados, e, por outro lado, os humanos estão cada vez mais robotizados, eles trazem centenas de implantes e melhoramentos biotecnológicos que claramente mostram que são ciborgues. Logo, como a fusão corpo-máquina é tendência da humanização (ou robotização) por aqui, mesmo os humanos que não têm aperfeiçoamentos tecnológicos simulam partes de corpos aperfeiçoados com máscaras plásticas de aparência metálica, como as prostitutas dos bairros periféricos.

Sobre a psicologia do flâneur: “as cenas inapagáveis, que todos nós podemos rever fechando os olhos, não são aquelas que contemplamos com um guia na mão, mas aquelas às quais não demos atenção naquele momento, as que atravessamos pensando em outra coisa – em um pecado, uma namoradinha ou um aborrecimento pueril”. (Benjamin, 2018, p. 733).

Para se conhecer a diversidade de seres de New Port City é preciso olhar com muita atenção as pessoas que passam. No centro comercial encontra-se a mais diversa fauna de seres cibernéticos já vista, desde alguns com pequenos aperfeiçoamentos por implantes até corpos totalmente modificados por engenharia genética, além de muitos robôs e hologramas. Essa parte central da cidade é extremamente colorida com luzes em led, neon, fluorescentes, além das luzes dos próprios hologramas. Por este motivo essa região é sempre muito luminosa a qualquer hora do dia, quase não se percebe o pouco de luz do sol que atravessa as nuvens pesadas e cinzentas pela manhã.

Toda a sinalização de trânsito desta parte central da cidade é hologramática, elas podem aparecer, sumir ou simplesmente mudar de indicação a qualquer momento. Mas os hologramas não estão apenas nos prédios e placas de trânsito, eles se espalham pelas ruas em formas de pessoas ou animais, estão nas placas dos taxis, desenham cabelos em androides, peixes luminosos passeiam por sobre as cabeças como se estivéssemos em um corredor de luzes. A região central de New Port City lembra o visual de uma máquina de pinball acesa e em atividade, em que muitas luzes se alternam todo o tempo e provocam a sensação de um jogo do qual são os personagens aqueles que passam pela rua.

Mas é apenas se afastar um pouco das ruas do centro comercial de New Port para se voltar no tempo. Nos mercados populares multiétnicos, corredores estreitos de vielas e becos trazem tubulações hidráulicas expostas e aparelhos de ar condicionado pendurados nas janelas dos prédios. Lixeiras e placas de trânsito são iguais a qualquer cidade japonesa do século XX. Os bairros periféricos não são apenas mais afastados geograficamente do centro, mas são sobretudo mais afastados tecnologicamente, o que faz com que sejam, portanto, mais afastados temporalmente. É como se os bairros mais periféricos estivessem há 150 anos de distância da região central da cidade. Na região chamada de Zona Sem Lei podem-se ver as gambiarras de fios de postes cruzando as ruas, carros velhos abandonados nas esquinas, construções pesadas como prisões, prédios caixões sujos de lodo, com roupas penduradas nas janelas e lixo sobre as marquises dos andares, atirados pelos moradores dos andares acima.

Os condomínios mais afastados dos bairros mais periféricos mantêm a tendência forte de verticalização dos arranha-céus que se vê no centro. Prédios gigantescos, mas sem os brilhos das luzes, com apartamentos minúsculos que, vistos de longe, lembram os enormes conjuntos residenciais que se espalharam pelos bairros populares de trabalhadores nas periferias de cidades como Moscou e Varsóvia durante a vigência da antiga cortina de ferro dos países comunistas. Prédios sem identidade própria, enormes caixas de concreto salpicadas de janelas amontoadas em metros quadrados reduzidos em cada apartamento. New Port City alarga ainda mais o fosso entre as classes sociais criando, pela diferença tecnológica, um fosso de experiência do tempo entre as diferentes regiões da cidade.

O VINGADOR DO FUTURO – COLÔNIA

Adorei mergulhar no tempo deste lugar, mesmo sendo uma cidade desenhada para ser a expressão da periferia planetária no final do século XXI. Em um primeiro momento, quando a gente olha panoramicamente a cidade, assusta-se com a grande quantidade de grandes caixas de concreto armado escuro, justapostos, como que encaixados, que servem de moradia para os trabalhadores. A Colônia é como qualquer metrópole superpopulosa do século XX. Essa impressão de superpopulação ocorre pela paisagem das moradias que dispõem uma grande quantidade de caixas iluminadas amontoadas à beira de um rio. É sempre muito difícil descrever o que as imagens de um lugar fazem sentir quando as experimentamos com calma.


Figura 5
Colônia, final do século XXI
Nota. Print do filme O Vingador do Futuro. (time code: 08’44’’)

Vou tentar outra imagem para descrever a Colônia: é como se visitássemos um grande parque de containers amontoados no pátio de um porto. Os containers são essas caixas de concreto em que cada um é uma loja ou um apartamento. Os fios da iluminação pública unem o espaço aéreo entre os containers. Há uma grande quantidade de lojas de produtos chineses, mas suas fachadas são discretas. Elas podem ser reconhecidas pelo telhado em forma de pagode ou pelos ideogramas luminosos nas portas. Por saber que a Colônia abriga a parte mais pobre do proletariado do planeta nesse futuro cinematográfico, em um primeiro momento chama atenção a precariedade dos prédios sempre escuros. A cidade não acolhe à primeira vista. Quando se olha a cidade em uma panorâmica, à distância, ela nos lembra peças escuras de um brinquedo Lego montadas aleatoriamente.

Sobre essa descrição acrescento uma outra imagem: ruas estreitas que se embrenham em vielas e becos margeando canais que se ramificam por entre os bairros, lembrando os canais que se espalham por Veneza. Grande parte da circulação nessa cidade ocorre por esses bairros e é feita em barcos e balsas repletos de orientais. As atividades dos barcos nos canais me lembram, por sua vez, os mercados flutuantes de Bankok. Quando degustei com calma essa parte da cidade comecei a gostar da Colônia. Ela tem um ambiente de convivência mais agradável e atraente na vida noturna às margens dos canais.

Essa é uma das últimas regiões do mundo onde a vida ainda é possível, apesar do ar denso e sempre cinzento de descargas de produtos químicos que inviabilizaram quase completamente a vida na Terra. Prestei atenção em Colônia e percebi que chovia fino, quase no mesmo momento em que vi que o metrô é uma espécie de trem robusto, que mais lembra um tanque de guerra, com telas de plasma onde a publicidade é veiculada para os que estão do lado de fora. Em todo lugar há uma forte vigilância feita por robôs ou soldados vestidos com armaduras brancas por todo o corpo.

É curioso como os prédios e as ruas são tão escuros. Grandes massas de concreto retangulares que se espalham por todo lugar. Em uma noite, passeando na Colônia vi uma feira de rua noturna, com produtos que podem ser encontrados em qualquer feira no mundo, como pimentões, tomates, folhas de todos os tipos (provavelmente produzidos por engenharia genética). Essas feiras se espalham pelos contornos dos canais, lado a lado com mesinhas de bares e vendedores de incensos, fixados em calotas de automóveis. É interessante perceber como há gente jovem em Colônia: nessas ruazinhas estreitas escutam-se risos, conversas nos bares. Todos acabam ficando muito próximos uns dos outros pela própria geografia do bairro comercial. Ouvir as vozes das pessoas nas ruas me faz sentir que a cidade pulsa, ela acolhe de alguma forma os desejos de vida que a formam.

Sobre a lenda do flâneur: “Com a ajuda de uma palavra que escuto ao passar, reconstituo toda uma conversa, toda uma vida; o tom de uma voz é suficiente para o unir o nome de um pecado capital ao homem com quem acabo de cruzar, de quem só vislumbrei o perfil.” Victor Fournel, Ce Qu’on Voit dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p.270. (BENJAMIN, 2018, P.723).

Em um cartaz colado na parede de um beco vejo uma mulher jovem sentada no chão de um palco. Há vários cartazes como esses espalhados nessas ruas, este em específico parece-me ser o anúncio de um show ou uma peça. Impossível saber. Na colônia os cartazes, em sua maioria, são escritos com ideogramas chineses.

A Colônia também tem sua Red Light District1, o bairro mais iluminado de toda a cidade. Aqui sente-se no ar a atmosfera onipresente de diversão e lazer. A música ecoa nas ruas, as pessoas dançam nas calçadas. Um Robô com características femininas oferece programas sexuais encostada a um poste; uma moça mutante com três seios aborda possíveis clientes nas ruas; as mais diversas tribos de jovens com cabelos multicoloridos fazem suas festas particulares nas calçadas; em uma loja ao ar livre um tatuador constrói uma imagem gigantesca de um dragão fluorescente nas costas de um cliente; mulheres dançam em vitrines; nas ruas as pessoas se divertem sob uma chuva fina constante. A maior parte dessas pessoas carrega sombrinhas chinesas para se proteger. As calçadas se comunicam por pequenas pontes que passam por sobre os canais e as músicas são tocadas de todos os lugares, mas me chama atenção um DJ em um barco estacionado em um dos canais; muitas pessoas param nas pontes e calçadas para dançar suas músicas.


Figura 6
Região central da cidade de Colônia
Nota. Print do filme O Vingador do Futuro. (time code: 32’40’’)

O VINGADOR DO FUTURO – LONDRES

Passei pouco tempo em Londres – na verdade, o filme passa pouco tempo nas ruas de Londres –, mas o pouco que vi do centro da cidade me deixou perplexo. Londres se transformou nas engrenagens do motor de uma máquina gigante em operação a céu aberto – essa é a melhor imagem que tenho para definir o que uma paisagem me faz sentir e pensar. Apesar de toda sofisticação tecnológica, a cidade não ficou bonita, perdeu seu charme. Parece-me que nessa opção de futuro nem os ricos ficaram com a melhor parte do mundo. Londres neste futuro mistura seu antigo traçado urbano com novas construções pesadas e gigantes. A cidade é apinhada de arranha-céus que mais parecem fortalezas.


Figura 7
Londres, final do século XXI
Nota. Print do filme O Vingador do Futuro. (time code: 53’24’’).

O mais impactante é a verticalização da cidade. Essa é a forma mais radical que eu já vi de estrutura de ruas sobrepostas em diferentes andares, criando diferentes planos de pisos da cidade. Existem várias Londres sobrepostas cortadas por ruas suspensas, sustentadas por imensos cabos e elevadores de veículos. Logo, quem do chão olha para cima do Big Bang, por exemplo, não verá mais o céu livre, mas um amontoado de estruturas de ferros e cabos que sustentam autovias elevadas em andares diferentes.

Nessas autovias os carros se deslocam sobre colchões magnéticos a velocidades muito altas. Quando os veículos querem subir ou descer para outras autovias, em outros pisos, eles usam elevadores nos acostamentos. Ou seja, o sistema de trânsito é em boa parte pendurado e suspenso por cabos e estruturas de aço sobre os céus da cidade, criando uma teia espalhada por dezenas de metros de altura. Mas isso não elimina o trânsito terrestre que ainda existe, com tráfego de carros com rodas, como se conheceu no século XX.

<figura>


Figura 8
Ruas sobrepostas em Londres.
Nota. Print do filme O Vingador do Futuro. (time code: 59’24’’)

Da mesma maneira que o trânsito de veículos, os espaços abertos aos pedestres também se espalham por elevados arborizados entre os prédios, criando uma ideia de ambiente público verticalizado por toda a cidade. Então, encontrar um endereço em Londres implica também em saber em qual piso ele está. Há bancos, lojas, residências, restaurantes distribuídos em pisos diversos a que, para quem vem do nível do solo, só se tem acesso por um prédio ao lado que tenha elevador até o piso indicado. Londres continua uma cidade muito cinza, cosmopolita, mas com uma população mais envelhecida: quase não se vê jovens nas ruas. Infelizmente, não tive acesso a mais imagens da cidade que me permitisse imaginar o que sonham seus moradores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Minhas flâneries pelas cidades do futuro ficaram limitadas ao que as tramas dos filmes permitem ver dos espaços urbanos, ou seja, não tive liberdade de construir meus próprios caminhos pelas cidades, mas apenas revi os mesmos trechos, pausei e contemplei calmamente os ambientes como uma paisagem. Mesmo assim, é possível dizer que o imaginário que hoje formamos do futuro das cidades espelhados nesses filmes revelam muitas coincidências. A flânerie pensada como um exercício metodológico corre por fora do tempo diegético, e isso permitiu me deixar tomar pela percepção de uma ambientação que foi pensada para ser mero pano de fundo dos filmes e, assim, ampliá-la.

Há uma semelhança entre proposta metodológica e o método da deriva psicogeográfica, proposta por Debord (1958). A deriva é mobilizada pelos efeitos afetivos do ambiente urbano sobre quem o percorre. O método implica em se deixar levar ao acaso por uma rota indefinida, sendo movido por atrações e repulsas que desenham uma participação emocional mais intensa na construção psíquica do habitar uma cidade. Quem deriva tem um caderno de anotações em que registra o porquê das escolhas de caminhos feitos, o porquê virou à esquerda e não à direita, que sensações impulsionaram ou frearam a escolha das vias. Aqui surge uma clara diferença de intencionalidade em pensar esse gesto de olhar por entre as paisagens diegéticas dos filmes como uma deriva ou como uma flânerie.

O flâneur é menos passivo ao ambiente, na verdade ele é profundamente ativo nas escolhas que faz sem precisar consultar suas motivações na escolha do caminho. A flânerie como método traz intencionalmente o olhar sobre aquilo que não é visto, e o flâneur descreve o que não se vê, pois a intenção da vida moderna, como a intenção desses filmes, é ter a cidade como pano de fundo de sua lógica temporal e narrativa, respectivamente. A flânerie como método para o tempo para observar com cuidado o que ocorre fora da lógica temporal da cidade – ou da lógica intencional da narrativa fílmica, no meu caso. Nesse sentido, o flâneur é mais ativo sobre a cidade e menos reativo a suas mobilizações afetivas.

A figura do flâneur prenuncia a do detetive. O flâneur devia procurar uma legitimação social para seu comportamento. Convinha-lhe perfeitamente ver sua indolência apresentada como aparência, por detrás da qual se esconde de fato a firme atenção de um observador seguindo implacavelmente o criminoso que nada suspeita. (Benjamin, 2018, p. 739).

Então essa forma de investigação que é a flânerie revelou o poder de imagens recorrentes de futuro apresentando formas que se tornam lugares-comuns no imaginário de centros urbanos de megalópoles futuristas. Megalópoles repletas de neon e grandes hologramas nas fachadas dos prédios; robôs e ciborgues que caminham pelas ruas sempre agitadas, imersos na polifonia de ruídos de veículos voadores, propagandas e vozes indiscerníveis. Os céus raramente conseguem ser vistos, eles estão sempre pesados de nuvens ácidas que criam um tom cinza-chumbo sobre os prédios. De qualquer forma, o que vemos quando olhamos para cima são grandes painéis luminosos, holográficos ou não. As pessoas caminham pelas ruas imersas no tempo de seus compromissos ou nas suas interações virtuais em metaversos via implantes ou dispositivos como óculos e capacetes. Elas estão alheias a seu espaço, exatamente como as multidões que Benjamin encontrou na Paris do início do século XX.

Entretanto, aquilo em que mais essas cidades se assemelham é ideia de verticalização da malha viária urbana. Em todas elas as ruas se espalham pelos bairros como pisos em andares diversos. Às vezes há uma estrutura de aço suspensa nos céus para que os veículos circulem em platôs diferentes de altitude. Noutras vezes os veículos apenas voam entre os prédios que exibem sempre imagens publicitárias para qualquer nível aéreo de circulação. Ou seja, há uma cidade no nível do chão e várias outras que se sobrepõem como andares no espaço.

Quando nos afastamos da região central dessas cidades podemos ver o quanto as periferias são tomadas por amontoados de prédios, em bairros que estão a séculos de distância das tecnologias dos grandes centros. Pobreza, sucata e lixo se espalham pelas ruas. Afastando-se ainda mais das regiões urbanas dessas cidades encontramos ruínas e desertos do que não sobreviveu ao colapso ecossistêmico. Em todos esses futuros, os ecossistemas do planeta entraram em colapso total. Não fica claro o que o ocasionou e como tudo se deu. O fato é que isso levou à esterilidade grande parte do planeta, contaminada por níveis de radiação inviáveis a qualquer forma de vida.

Os chineses e japoneses parecem ser os únicos vivos que se espalharam pelo planeta independentemente de qualquer colapso. Apenas em Blade Runner a Terra ficou destinada para os replicantes mais avançados, para os humanos que não puderam migrar por algum motivo de saúde e os marginais não desejados nos novos mundos. Entretanto, o caminho natural dos que podem é abandonar o planeta. Todos esses que restaram, com exceção dos replicantes, estão com seus dias contados para entrarem em extinção. Estão prestes a sumir devido às terríveis condições do meio ambiente que restaram na cidade, e certamente em todo o planeta.

Essas cidades mostram várias formas de borramento de fronteiras físicas e psíquicas entre o humano e as máquinas. Elas mostram que a Terra passou a ser moradia de uma espécie mais aprimorada que o homo sapiens. Por mais aprimorada entenda-se, mais resistente às chuvas ácidas, ao ar tóxico, à falta de alimentos e à falta do sol. Resistentes a toda forma de destruição que o homo sapiens deixou sobre a Terra antes de partir para viver em colônias espaciais.

É isso que a imagem de futuro nos revela nessas obras. O imaginário é um repertório de imagens que se constituem afetivamente como lastro psíquico de nossa espécie. Esse banco de imagens atemporal é formado por toda herança de referências criadas pelo homo sapiens, de todos os aspectos da vida que migraram pela afetividade para dimensões inconscientes dos coletivos humanos. O imaginário é composto pelas percepções estruturantes da vida social, constituintes de nossos valores, medos e perspectivas. Mas o imaginário, da maneira como o percebo, não se distingue de um mundo real – como se houvesse um mundo real e outro imaginado. O que chamamos de mundo real é um aspecto do imaginário que é social e historicamente pactuado para chamar de realidade. Nesse sentido, o imaginário calça o real como a mão calça uma luva. O real é uma dimensão possível e coletivamente escolhida e compartilhada de nossas criações, do que imaginamos e legitimamos como verdade.

O imaginário futurista apresentado nesse artigo é indissociável do repertório tecnológico que nos acostumamos a imaginar pelas narrativas de ficção científica. Esse futuro se entrelaça também com nosso presente, com nossos medos e expectativas do presente. Logo, essa é uma pequena amostra de algumas expressões do imaginário contemporâneo sobre o futuro das paisagens urbanas em nosso planeta. Elas não definem o que vai acontecer, mas apontam o medo e a perplexidade sobre nosso próprio destino expresso no regime de historicidade2 (HARTOG, 2019) ocidental, tecnológico e liberal contemporâneo. São sintomas que nos dão ainda tempo para escolher e mudar. Mudar o próprio regime de historicidade ou talvez permitir-se explorar outros imaginários de culturas e povos ocidentais marginalizados e impedidos de expressar e construir em nosso presente opções de mundos por vir.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. (2018). Passagens. Editora UFME.

BIONDILLO, R. (2014). Walter Benjamin e os caminhos do flâneur. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Paulo]. Repositório institucional da Universidade Federal de São Paulo. https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/39273

DEBORD, G. (1958) Teoria da deriva.https://www.marxists.org/portugues/debord/‌1958/12/90.htm

DURAND, G. (2012). As estruturas antropológicas do imaginário. Martins Fontes.

HARTOG, F. (2019). Regimes de Historicidade – presentismo e experiência do tempo. Autêntica.

Notas

1 Bairro central de Amsterdã conhecido pelas luzes neon nas vitrines onde mulheres se expõem para prostituição.
2 or regime de historicidade entende-se a percepção sobre passado e futuro gestado e vivido no presente de um grupo social inserido em um contexto histórico e cultural.

Notas de autor

a Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado pela École des hautes études en sciences sociales. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7272-0088. E-mail: edwartte@gmail.com


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