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Resistência aos media e desconexão digital na literatura ocidental
Media resistance and digital disconnection in Western literature
Resistência aos media e desconexão digital na literatura ocidental
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 171-190, 2023
Universidade de São Paulo

Recepción: 19 Agosto 2022
Aprobación: 30 Mayo 2023
Resumo: Este artigo visa contribuir para o debate sobre a desconexão digital por meio do conceito de resistência, um construto relacionado e mais estabelecido nos estudos dos media e da comunicação. Para tal, realizámos uma meta-análise aos artigos científicos que abordam ambos os conceitos e destacamos duas tendências principais: uma perspetiva centrada nos media e uma outra centrada no contexto. A análise da literatura sugere que essas duas tendências principais não são lineares nem sequenciais, mas cíclicas e recursivas. Ou seja, essas tendências podem ser entendidas como relatos de ondas de constrangimentos. Em conclusão, o artigo sugere que os estudos sobre a desconexão se beneficiariam se se afastassem de uma perspetiva assente em uma agência individualista em favor de uma abordagem mais sensível ao contexto.
Palavras-chave: Resistência, Desconexão, Conectividade, Agência, Contexto.
Abstract: This paper contributes to the debate around digital disconnection by discussing resistance, a related and more established concept in media studies. A meta-analysis on the specialized literature highlighted two main trends: a media-centered perspective and a context-centered perspective. Our literature review suggests that these two main approaches are not linear and sequential, but rather cyclical and recursive. That is, they can be understood as waves of constraints. In its conclusion, the paper suggests that disconnection studies would benefit from moving away from an individualistic agency perspective in favor of a more context sensitive approach.
Keywords: Resistance, Disconnection, Connectivity, Agency, Context.
AS SOCIEDADES MODERNAS podem ser caracterizadas por um aumento global do papel das tecnologias digitais em uma grande variedade de dimensões da vida, uma vez que o social é cada vez mais construído a partir de, e através de, infraestruturas de comunicação mediadas pela tecnologia. A indispensabilidade dos media (Jansson, 2018) é uma dimensão fundamental nesse processo e está relacionada com a mobilidade, a conetividade e a interatividade dos media. Esses elementos ajudam a construir a normalidade na vida quotidiana (Bräuchler & Postill, 2010), e as mudanças culturais trazidas pela revolução digital contribuíram para alterar as estruturas, os contextos e os papéis sociais. O que antes era entendido como um conjunto de regras, espaços demarcados e papéis prescritos tornou-se objeto de constante negociação. A indispensabilidade dos media reforçou a dependência funcional de vários sistemas e infraestruturas tecnológicas e aumentou os sentimentos ambíguos nos indivíduos que vivem nessas sociedades hiperconectadas.
Vantagens sociais percebidas como auto-capacitação, liberdade e libertação digitais coexistem frequentemente com custos sociais e sentimentos de ansiedade por se estar sempre ligado. Isso está relacionado com o facto de, devido a processos de colapso dos contextos (Pagh, 2020), as transições entre actividades e esferas da vida estarem cada vez mais reduzidas, ou mesmo a desaparecer, uma vez que o trabalho pode ser continuamente realizado enquanto se faz a transição do escritório para casa ou dos papéis profissionais para os familiares. Importa ressaltar que a covid-19 reforçou dramaticamente essas condições.
Na era digital, a conetividade está, assim, associada a experiências paradoxais de libertação e aprisionamento. A coexistência de ambos os sentimentos exige uma constante negociação e redefinição de regras e fronteiras do indivíduo consigo próprio e com os outros – ou seja, a capacidade de lidar com dinâmicas conflituosas entre práticas mediáticas interiorizadas na era da cultura da conetividade (van Dijck, 2014; Pagh, 2020).
Nesse contexto, é possível observar um movimento de pessoas em ambientes saturados de media para níveis variados de desinteresse por eles, mesmo que apenas temporariamente. Embora a resistência aos media não seja um fenómeno social novo e esteja associada a uma tradição de investigação estabelecida há muitos anos, na última década, os estudos sobre a desconexão emergiram dessa tradição para abordar questões fundamentais no domínio dos media e da comunicação relacionadas com os custos da conetividade na era digital (por exemplo, Light & Cassidy, 2014; Syvertsen, 2017).
Nesse enquadramento, este artigo pretende contribuir para o debate sobre a desconexão digital, abordando, para tal, o conceito e o fenómeno relacionado, e mais estabelecido, de resistência. O estudo oferece uma oportunidade para esclarecer aspectos que não foram conceptualmente abrangidos pelo construto de resistência e que a desconexão pode efetivar de forma distinta ou única e, assim, contribuir para definir uma agenda de investigação para além da resistência. O artigo tem, ainda, como objetivo sublinhar a relação entre esses dois conceitos.
Para tal, realizámos uma revisão interpretativa (Eisenhart, 1998) de pesquisas anteriores sobre resistência e desconexão. A análise levou-nos a identificar duas tendências principais: uma que designámos por perspetiva centrada nos media e outra que designámos por perspetiva centrada no contexto da resistência aos media. Ao organizarmos a literatura dessa forma munimo-nos de uma ferramenta analítica para identificar pontos de foco na relação teorizada entre os media, a tecnologia e os indivíduos. Importa ressaltar que essas tendências não reflectem uma posição dicotomizante, uma vez que as entendemos como porosas – isto é, elas devem ser consideradas como parte de um espetro. Com a análise, concluímos que essas duas tendências principais não são lineares nem sequenciais, mas cíclicas e recursivas. Isso significa que, a cada vez que um novo media é introduzido na sociedade, é possível identificar o ressurgimento de alguns quadros analíticos “antigos” ou “anteriores”, como a tese do pânico moral, ainda que re-elaborados de forma mais complexa. Por conseguinte, este artigo defende que se deve entender a resistência aos media como um relato que se estabelece por ondas de constrangimentos.
Defendemos também que a resistência aos media, como conceito e prática, é flexível e adaptável. A forma como a resistência é elaborada em um período específico pode ser entendida como um sintoma de debates sociais particulares em um determinado momento. Por exemplo, o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos, em janeiro de 2021, foi associado ao modelo de negócio tóxico do Facebook e aos problemas que essa plataforma produz para a democracia (polarização, discurso de ódio, desinformação). A tecnologia abordada como patologia é um tema recursivo e, nesse sentido, a resistência está ligada a narrativas sociais, políticas e culturais de declínio coletivo.
Além disso, na última década, verificou-se uma evolução conceptual do pânico moral para a desconexão digital, associando-a a mudanças históricas e culturais. Nesse sentido, o artigo também questiona os pressupostos, significados e necessidades subjacentes à emergência dos estudos em desconexão, ou seja, estudos que, à primeira vista, podem ser difíceis de distinguir da investigação existente sobre a resistência aos media. A análise leva-nos concluir que a adoção do conceito de desconexão pode refletir uma construção estruturada em valores fundamentais da sociedade ocidental, colocando, assim, a agência no centro do discurso académico e o locus do poder no indivíduo.
Como ante-câmara deste estudo, na próxima secção descrevemos nossa abordagem metodológica e, na secção seguinte, debatemos teoricamente os conceitos de resistência e desconexão dos media. Em seguida, apresentamos nossas reflexões e desenvolvemos as duas principais tendências identificadas na revisão da literatura, destacando linhas dominantes de estudos em cada uma delas. O artigo termina com algumas reflexões sobre resistência e desconexão e a relação entre os dois conceitos.
ABORDAGEM METODOLÓGICA
O artigo baseia-se na revisão de uma seleção de pesquisas publicadas sobre resistência e desconexão, com o objetivo de contribuir para uma revisão da agenda dos estudos sobre desconexão. Esses estudos formaram-se na última década a partir da investigação sobre resistência aos media e, como nosso principal objetivo é explorar a relação entre resistência e desconexão, as pesquisas analisadas centraram-se no período entre 2010-2020: nesse intervalo, a comunicação tornou-se digital por defeito, o que levou a uma mudança de paradigma para os media digitais, que incluiu a digitalização dos media tradicionais.
Seleccionámos a literatura investigada a partir de nossa experiência na área e orientada pelos objectivos do artigo. Recolhemos as publicações com expressões ou palavras-chave específicas, tais como “resistência aos media”, “desconexão” e “desintoxicação digital”. Uma vez que esta investigação exploratória pretende apresentar uma visão alargada do campo, seleccionámos um vasto leque de revistas científicas: publicações de contextos anglo-saxónicos indexadas e revistas latino-americanas com impacto noutras culturas, línguas e geografias. Assim, seleccionámos artigos em inglês, português e espanhol publicados em revistas sediadas na Europa, na América do Norte e na América Latina. As revistas seleccionadas incluem títulos de elevado impacto que publicam amplamente sobre desconexão digital – tais como Big Data and Society, Convergence, Communication Research, Digital journalism, International Journal of Communication, Information Communication and Society, Media, Culture & Society, New Media & Society, Social Media & Society –, e também títulos que nos podem dar visões e contextos alternativos – como Participations, MATRIZes, Revista México e cuadernos.info. No entanto, o grupo de revistas com elevado fator de impacto é o que revela uma maior presença de artigos com o tema da desconexão digital, reforçando as perspectivas do eixo anglo-saxónico.
Após a recolha de dados, o artigo procedeu a uma revisão interpretativa da literatura (Eisenhart, 1998). Não pretendemos realizar uma revisão sistemática e de base quantitativa, mas sim uma visão qualitativa da forma como a resistência aos media e a desconexão digital têm sido conceptualizadas no período temporal, nas línguas e nas geografias em análise.
Ao analisar a literatura sobre resistência e desconexão, identificámos duas tendências principais: uma que designámos por perspetiva centrada nos media e outra que designámos por perspetiva centrada no contexto. Essa organização da literatura ofereceu-nos uma ferramenta analítica para identificar os pontos fulcrais da relação entre media, tecnologia e indivíduos. É preciso, no entanto, ter em conta que tais tendências não reflectem uma postura dicotómica e não devem ser entendidas como opostas. Pelo contrário, entendemos essas perspetivas como porosas e parte de um espetro. Isso significa que, embora os trabalhos centrados nos meios não ignorem o quadro mais amplo em que podem ocorrer práticas e atitudes de resistência e desconexão, o foco repousa principalmente sobre uma tecnologia ou conteúdo específico. Por sua vez, a perspetiva centrada no contexto analisa os media e a tecnologia em uma teia de estruturas ou circunstâncias da vida que têm um valor explicativo para compreender tanto a resistência como a desconexão como expressões de um contexto.
Na secção seguinte, apresentamos nossos argumentos e usamos exemplos retirados dos artigos seleccionados, mas também recorremos a outras publicações sempre que seja necessária uma contextualização mais ampla.
RESISTÊNCIA E DESCONEXÃO DOS MEDIA
O conceito de resistência, bem como a perspectiva de evitar os media, dominou o debate público e o discurso dos estudos dos media durante as últimas décadas do século XX. Como conceito, a resistência foi definida muitas vezes; Louise Woodstock (2014, p. 1986) propõe a seguinte definição:
“A resistência existe em um continuum complicado de atitudes e comportamentos em relação à utilização dos media, com falta de pensamento crítico sobre a utilização e aceitação total de todas as tecnologias, em um extremo, e uma mentalidade completamente crítica e concomitante desuso de todas as tecnologias, no outro. Muito poucas pessoas ocupam uma ou outra posição extrema”.
Essa definição sugere a concetualização da resistência aos media como um contínuo de resistência em termos de grau, duração e tipos de conteúdo e tecnologia que são evitados. Também lança luz sobre o paradoxo que reside no hiato entre os significados culturais em torno dos media e as experiências reais com os media. A resistência, enquanto tal, é uma prática que incorpora imaginários sociais relacionados com valores mais amplos, como a moralidade, a saúde, a cultura, o esclarecimento e a democracia (Syvertsen, 2017).
Todavia, no novo milénio, a resistência aos media começou a perder terreno para novas palavras e expressões mais relacionadas com o digital, como desconexão, desintoxicação digital e bem-estar. “Desconexão”, a palavra que domina o momento atual, significa remover ou quebrar uma ligação (Light & Cassidy, 2014), enquanto “desintoxicação digital” exprime várias ações e crenças que contrariam os efeitos “tóxicos” dos media, nomeadamente fases off-line que variam de períodos extensos de meses a algumas horas. A desconexão também é utilizada para descrever regras para momentos sem ecrã, mudanças de estilo de vida, retiradas graduais ou dietas restritivas dos meios de comunicação (Syvertsen, 2017).
Na era digital, as rotinas quotidianas estão profundamente interligadas com os meios móveis utilizados para uma grande variedade de atividades durante o tempo livre, o trabalho, as deslocações ou a prossecução de outras rotinas. A utilização quotidiana da tecnologia em rede tem, assim, fomentado progressivamente um clima sociocultural de questionamento da normalização do digital na vida de cada um (Kuntsman & Miyake, 2019, p. 2). Isso está ligado ao que Natale e Treré chamaram de momentum de desconexão: “uma fase histórica particular em que a perceção da saturação para com a tecnologia digital atingiu um clímax” (2020, p. 627).
A PERSPETIVA CENTRADA NOS MEDIA
A tendência centrada nos meios coloca o fator explicativo das práticas de resistência nos próprios meios de comunicação, quer se trate de uma tecnologia ou dispositivo de comunicação específico, de conteúdos ou da relação entre os media e mudança social quando um novo meio de comunicação social entra na sociedade. Se Drotner (1999) foi o pioneiro da perspetiva do pânico associado à emergência de novos media, mais recentemente a abordagem tem evoluído para pânicos políticos sobre a confiança nos media, restrições tecnológicas e resistência a diferentes aspectos dos media.
A resistência às novas tecnologias pode ser vista como parte de um processo de mudança social contestada (Kline, 2003, p.8), ligando, do ponto de vista do imaginário social, o progresso tecnológico ao determinismo tecnológico. A modernidade e o progresso simbolizados pelas “tecnologias urbanas” (Kline, 2003, p. 52) – como o telefone, o rádio, o automóvel e a eletricidade – comprometeriam visões de mundo estabelecidas, estruturas sociais e valores morais baseados na tradição, na repetição e na previsibilidade. Nesse sentido, a resistência é perspetivada como um ato voluntário de proteção contra uma mudança imaginada, como bem ilustra a análise de Kline (2003) sobre a resistência dos meios rurais norte-americanos ao telefone e à eletrificação na primeira metade do século XX.
Mais tarde, o medo e a ansiedade do desconhecido trazidos pelas novas tecnologias alimentaram o ressurgimento da tese do pânico moral sobre o desconhecido mundo virtual da Internet. Essa perspetiva moldou a agenda de investigação na década de 1990 e na década seguinte. A Internet, entendida como um “mundo de enganos”, foi enquadrada por receios do mundo real, tais como: riscos relacionados com dependência, isolamento social, exposição a estranhos, pornografia e outros problemas referentes à falta de governabilidade da Internet. Nesse contexto, o pânico moral associado à ideia de que os meios de comunicação controlariam as pessoas, especialmente as crianças e os jovens – considerados como o grupo etário mais vulnerável da sociedade – tornou-se um medo recursivo e renovado sempre que surgia um novo meio (Drotner 1999; Livingstone et al., 2018). Assim, a imposição de restrições tecnológicas, como proteger as crianças dos ecrãs e de seu conteúdo, tornou-se um tópico relevante de investigação: as restrições como práticas de resistência exploram ansiedades e medos relacionados com a forma como as tecnologias de comunicação, baseadas na ligação móvel e imediata, transfiguram a interação humana (Woodstock, 2014, p. 1996). O uso intensivo das tecnologias é entendido como prejudicial para a saúde física e mental, enquanto um uso menos intensivo é bom porque abre espaço para actividades off-line, como jogar, ler um livro impresso ou ter conversas copresenciais.
A desconfiança dos media e o caso persistente de evitar notícias
Nossa revisão interpretativa da literatura indicou que, nos últimos anos, o enquadramento do pânico moral evoluiu por vezes para pânicos políticos sobre a desconfiança nos meios de comunicação e práticas relacionadas com o evitar de notícias. Woodstock explica que essa prática pode ser uma “estratégia de isolamento” (2014, p. 838) contra o desconforto produzido por notícias negativas, deprimentes ou tristes (como argumentam outros autores no contexto mais amplo dos estudos de media, como Schrøder e BlachØrsten, 2016), ou pelo desencanto com a política e o jornalismo, pois ambos são vistos como parte de um sistema único e não confiável (Palmer & Toff, 2020).
A crise de credibilidade dos media é apresentada nos artigos analisados como um dos principais factores explicativos para se evitar notícias, pois desafia as concepções cívicas da relevância da informação para o bem-estar democrático da sociedade. Verifica-se uma variação considerável entre países: níveis elevados de evitamento de notícias em países com sistemas políticos polarizados e/ou instáveis, contra níveis baixos de evitação de notícias em democracias mais estáveis e sólidas. No entanto, independentemente dessas diferenças, a preocupação com o evitar de notícias tornou-se uma tendência global “se isso significa que os cidadãos não estão suficientemente equipados para tomar decisões em eleições ou referendos” (Newman et al., 2017, p. 40).
Os estudos salientam que o afastamento das notícias se deve frequentemente a um sentimento geral de impotência relacionado com a falta de eficácia política (Palmer & Toff, 2020). Nesse contexto, as pessoas percepcionam-se como tendo “uma eficácia mínima em relação às notícias e à política” (Palmer & Toff, 2020, p. 1645). Outros textos analisados salientam que indivíduos incapazes de lidar com uma perspetiva política oposta à sua utilizam as notícias para confirmar e reforçar suas crenças e atitudes existentes, ao mesmo tempo que bloqueiam informação nova ou desafiante. Nesse sentido, a resistência como prática ideologicamente motivada leva tanto à exposição selectiva partidária como ao evitamento: a escolha de evitar informações opostas, procurando propositadamente apenas meios de comunicação de apoio (Stroud & Collier, 2018). Como isso confirma a autoidentidade ideológica, também funciona como uma maneira de conectar indivíduos que pensam da mesma forma (Dvir-Gvirsman, 2014). Desse modo, os autores salientam o aumento da intolerância a pontos de vista opostos. Nos EUA, por exemplo, durante os anos Trump, as pessoas de esquerda eram mais propensas a evitar notícias porque estas tinham um efeito negativo em seu humor ou aumentavam a sensação de impotência, enquanto as pessoas de direita eram mais propensas a evitar notícias porque não confiavam nos principais meios de comunicação social (Newman et al., 2017).
As preferências individuais também foram consideradas em vários dos artigos analisados para explicar a “seletividade”, ou o evitar, como prática de resistência: não querer interagir com um determinado meio, evitar um determinado tipo de programa ou conteúdo. Evitar certos conteúdos de forma seletiva nas redes sociais pode também ser expressão das opções individuais de envolvimento político (John & Dvir-Gvirsman, 2015; Yang et. al., 2017). Em uma época de crescente polarização política em alguns países, os cidadãos hostilizam cada vez mais e abertamente seus adversários políticos. A remoção de amigos nas plataformas tornou-se uma estratégia para evitar o contacto com certas pessoas ou certos tipos de informação. Essa estratégia funciona como uma tática de repressão política e de resistência (Bucher, 2020; John & Gal, 2018; Natale & Treré, 2020).
Em uma nota diferente e mais positiva, há estudos que lançam luz sobre um significado distinto ao não consumo de notícias. Essa resistência pode ser compatível com o envolvimento cívico na esfera pública (Woodstock, 2014, p. 2016). Assim, a gestão da exposição aos media e às tecnologias de comunicação são uma prática de resistência que traduz “um maior sentido de foco desenvolvido para uma única tarefa” (Woodstock, 2016, p. 405). Nesse sentido, a resistência às notícias pode estar associada a uma contra-narrativa de cidadania. Resistir aos media é, de alguma forma, um mecanismo de sobrevivência para lutar contra a fadiga produzida pelo excesso de notícias e o desencanto cívico, criando compromisso por meio de diferentes práticas de envolvimento no mundo social e político: “assinando petições, doando dinheiro, participando em comícios, fazendo voluntariado em várias capacidades, iniciando organizações de bairro, fazendo escolhas de estilo de vida em consonância com a sua política, e (...) conversando sobre política” (Woodstock, 2014, p. 837). Em linha com essa perspetiva, recentemente tem havido apelos para a necessidade de afinar as definições de evitação de notícias, a fim de a não considerar apenas como um problema para a democracia (Palmer & Toff, 2022).
Desconexão e opções políticas
No âmbito daquilo que designámos por uma abordagem centrada nos media, incluímos a investigação que coloca o fator explicativo das práticas de resistência nos próprios meios. No entanto, como na era digital ninguém pode escapar a um registo digital, a desconexão pode ser entendida como uma prática de ampliação da resistência à própria conetividade. Nesse contexto, emergiu da revisão da literatura um fio condutor de estudos que relacionam desconexão e escolhas políticas.
Esses estudos sobre desconexão centram-se nas estratégias dos indivíduos para lidar com a conetividade na era digital. Problematizar os limites da ligação implica aceder a imaginários e práticas sociais que dão sentido ao ato de desligar. A capacidade de se desligar é, portanto, o que dá sentido às ligações. Como defende Light (2014, p. 159), “a ligação não pode existir sem a desconexão”. Desse modo, práticas de desconexão incluem evitar dispositivos digitais (por exemplo, smartphones), limitar os tempos de ecrã ou abster-se de utilizar plataformas específicas (por exemplo, Facebook) ou desligar-se temporariamente, por exemplo, em campos de desintoxicação digital (Bucher, 2020).
A investigação centrada na utilização das redes sociais, e nas múltiplas escolhas contínuas associadas (que conteúdo gostar, partilhar e comentar; com quem criar laços on-line e, pelo contrário, com quem não interagir mais), ilustra bem como os contornos da conetividade são delimitados por aquilo que fica de fora ou por aquilo de que nos desligamos. No âmbito dos estudos sobre a desconexão, uma forma de abordar esse tipo de limites é olhar para o unfriending no Facebook (Light, 2014; Yang et al, 2017; Portwood-Stacer, 2013). Na cultura do cancelamento, John & Gal (2018, p. 2982) perceberam que o unfriending político era uma forma de “regular os limites da esfera pública pessoal”. Essa estratégia de cancelamento visa controlar quem está dentro da esfera pública pessoal e é capaz de contribuir para a discussão política, e quem é mantido fora. Enquanto modalidade de exclusão social, a prática de unfriending revela a forma como cada indivíduo gere, através da desconexão, a quantidade de desacordo político que está disposto a tolerar ou com que consegue lidar.
Juntamente com essas estratégias de controlo, os campos de desintoxicação podem ser vistos como uma forma de escapismo e ilustram como a desconexão foi colonizada pela ideologia neoliberal. Isso ajuda a entender porque Hesselberth (2018) argumenta que a desconexão não é transformadora, mas restauradora do capitalismo informacional, do qual a cultura da conetividade faz parte (Couldry & Mejias, 2019; Jorge, 2019).
Na era digital, as informações pessoais tornaram-se um produto de dados recolhidos, processados, armazenados, recuperados, comprados e vendidos, uma vez que é quase impossível estar on-line, andar na rua, utilizar transportes públicos, pagar com cartão de crédito ou fazer uma chamada telefónica sem que os dados sejam captados e, por conseguinte, vigiados (Manokha, 2018). Nessa perspectiva, estudos recentes têm vindo a destacar o que se poderia designar por consequências invisíveis ou novos tipos de consequências produzidas pela evitação selectiva (John & Dvir-Gvirsman, 2015). As tecnologias digitais treinam algoritmos para filtrar automaticamente dissonâncias indesejadas e criar ecologias de conteúdos rigorosamente controladas ou cápsulas de filtragem que podem levar a um maior isolamento das visões do mundo umas das outras.
O big data é componente fundamental desse novo regime que foi integrado às operações gerais do capitalismo contemporâneo. Zuboff (2015) chamou à nova lógica económica “capitalismo de vigilância”. Esta baseia-se na monetização dos dados comportamentais por meio da venda do acesso ao fluxo em tempo real da vida quotidiana, a fim de influenciar e modificar diretamente os comportamentos com fins lucrativos. O indivíduo está ligado a esse sistema que permite seguir e monitorizar seus hábitos de consumo, sua mobilidade e seus interesses privados. Embora os indivíduos possam não compreender imediatamente como funciona a produção de dados e a extensão ou consequências dessa agregação de informação a seu respeito, a modulação dos dados pessoais é elaborada em todos os contextos. Isso significa que os algoritmos encontram relevância em qualquer tipo de informação, quer se trate da utilização ou da não utilização temporária de qualquer dispositivo digital. De facto, a recusa de ligação ou a desativação temporária é uma forma de ligação: “para um algoritmo, qualquer forma de ausência fornece informações importantes” (Bucher, 2020, p. 611). Ou seja, mesmo aqueles que tecnicamente não estão ligados à rede não estão fora do sistema de produção de dados.
Desconexão e escolhas de saúde
De acordo com a literatura analisada, a interrupção da utilização da tecnologia, como um smartphone ou as redes sociais, durante um período específico é outra forma de lidar com os custos da conetividade, colocando a tónica nas questões de saúde. Níveis elevados de estresse e ansiedade levam muitas pessoas a querer abrandar e desligar-se do mundo em linha.
Essa forma particular de desconexão oferece uma oportunidade de aceder a outros imaginários sociais na era digital. Nesse sentido, pode traduzir um desejo de lidar com o tempo de forma diferente. A aceleração da comunicação relacionada com a inovação tecnológica é uma das formas mais mensuráveis de aceleração – a estrutura temporal e o regime de tempo das sociedades capitalistas modernas (Rosa, 2013) – associada ao aprofundamento da mediatização (Couldry & Hepp, 2017), que gerou uma nova temporalidade na atual sociedade de alta velocidade. Nesse contexto, a desconexão está associada à ideia de suspender as pressões temporais e (re)ganhar controlo sobre o tempo.
Outros estudos indicam também que a desconexão digital é uma estratégia seguida quando se pretende contemplar outras formas de ligação ou reconexão com o mundo físico sem qualquer tipo de mediação tecnológica. Livre da pressão da tecnologia digital, pode-se “experimentar uma forma de reconexão superior a um estado primordial da natureza” (Natale & Treré, 2020). Se a conetividade excessiva à tecnologia digital é criticada por ser tóxica e intrusiva, as experiências mediáticas não digitais e off-line adquiriram novos significados associados a formas mais genuínas e autênticas de envolvimento e sociabilidade, ou seja, a uma maior interação com os outros (Karlsen & Syvertsen, 2016; Light & Cassidy, 2014; Woodstock, 2014).
Por conseguinte, sugerimos que, perspetivadas desse modo, a resistência e a desconexão podem ser entendidas como um mecanismo de sobrevivência para lidar com o que não se pode controlar. A resistência é uma prática para gerir a ansiedade e a incerteza relacionadas a um sentimento de impotência produzido pela tecnologia. Jorge (2019) salienta que o bem-estar é cada vez mais mercantilizado à medida que os indivíduos sinalizam a necessidade e a relevância do autocontrolo no uso dos meios digitais. Todavia, Franks, Chenhall e Keogh (2018) descobriram que a desconexão pode ser benéfica para a saúde e prejudicial para as relações sociais, uma vez que estas se tornam cada vez mais bidimensionais (on-line e off-line ao mesmo tempo). Isso conduz-nos à segunda tendência identificada na revisão da literatura, uma vez que a centralidade do contexto surge como um aspeto fundamental para compreender melhor os paradoxos da resistência aos media e, especialmente, da desconexão digital.
Perspetiva centrada no contexto
A perspetiva centrada no contexto discute o processo crescente de mediatização da vida, bem como o papel dos factores estruturais e contextuais na formação da resistência aos media. Nesse sentido, a resistência é abordada por relação a pontos de vista sociais, culturais e psicológicos, ligando-a a práticas e dinâmicas quotidianas. Enraíza-se também em constrangimentos individuais, nomeadamente em formas sociais de subjugação (como imposições familiares e socioeconómicas) e em decisões pessoais activas (como o direito a ser diferente ou a seguir uma visão política distintiva sobre as tecnologias).
Os factores estruturais e contextuais que moldam a utilização dos media e a resistência a eles são dimensões importantes da investigação reunida nessa segunda tendência. Além disso, a resistência compreende uma variedade de abordagens e ferramentas que expressam um espaço político de resistência às fontes de poder dominantes e de desigualdade. Por exemplo, Velkova & Kaun (2019, p. 13) exploram a noção de “resistência como reparação” – ou seja, como uma estratégia para corrigir o trabalho dos algoritmos: “uma que não nega o poder dos algoritmos, mas opera dentro da sua estrutura, usando-os para diferentes fins”. Nesse sentido, a resistência pode significar uma posição política contra uma forma particular de organização social estruturada nas assimetrias de poder entre aqueles que recolhem e analisam dados e aqueles que estão sujeitos a esses critérios de recolha e análise de dados (van Dijck, 2014; Milan & van der Velden, 2016).
Ciclo de vida e família
O ciclo de vida – especialmente suas fases negativas, como o desemprego – é um fator explicativo relevante, uma vez que as restrições económicas podem criar rotinas não voluntárias de resistência aos meios de comunicação e a desconexão temporária pode prejudicar as condições de vida.
Na era digital, em que a posse e a manutenção da tecnologia são fundamentais no quotidiano, para alguns dos mais vulneráveis da sociedade, conseguir manter o acesso ao telemóvel é normalmente feito à custa de outros recursos sociais (por exemplo, relações de tensão por pedir emprestado o telemóvel a amigos ou vizinhos) ou materiais (por exemplo, dinheiro para a gasolina ou calçado novo para os filhos). No entanto, a impossibilidade de manter o uso do telemóvel pode ter impacto no acesso a cuidados de saúde, oportunidades de emprego ou serviços sociais (por exemplo, habitação, senhas de alimentação), para além da perda de ligações sociais (Gonzales et al., 2016).
No lado oposto do espetro, encontramos estratégias de resistência para conter a utilização dos media (Woodstock, 2016). Enquanto evidência de capital social e ato de distinção (Bourdieu, 1979), a resistência pode basear-se no pressuposto de que os conteúdos mediáticos embrutecem culturalmente as pessoas. A partir de uma posição de abundância, dosear o uso dos media, nomeadamente telemóveis e redes sociais, é uma estratégia de resistência para limitar a presença da tecnologia na vida quotidiana (Kaun & Schwarzenegger, 2014; Woodstock, 2016). O espaço e o tempo sem ecrãs ligados – o silêncio digital (Beattie & Cassidy, 2020) – é descrito como uma estratégia para aumentar a consciência sobre a vida off-line (Dickinson et al., 2016; Rosenberg, 2019).
A família, bem como outras variáveis sociais e psicológicas, influencia a relação das pessoas com os conteúdos mediáticos, por exemplo, os hábitos de consumo de notícias. Alguns estudos centram-se em factores contextuais (por exemplo, currículos escolares), outros em usos e gratificações (por exemplo, vigilância) e outros em traços de personalidade (por exemplo, necessidade de cognição) e orientações relacionadas com assuntos públicos (por exemplo, sentido de dever cívico) (Valenzuela et al., 2016). A idade também é um marcador que molda a intenção de evitar notícias: os mais jovens estão cada vez menos interessados em informação sobre assuntos públicos e no consumo de notícias em geral. Ainda assim, considerando que os grupos mais velhos (por exemplo, estudantes universitários) são o foco central da investigação sobre o tema, os adolescentes continuam a ser “um grupo demográfico pouco estudado na investigação sobre a juventude e os media noticiosos” (Valenzuela et al., 2016, p. 3).
Caminho cívico
Como indicado anteriormente, embora alguns trabalhos destaquem dimensões positivas e refrescantes em relação à não utilização de notícias, que podem ser associadas a um forte interesse cívico (Woodstock, 2014, 2016), Palmer e Toff (2020) destacam que os incentivos sociais para se estar atualizado é uma norma cada vez menos dominante. A ligação a uma “comunidade de notícias” diminuiu nas sociedades digitais. Os evitadores de notícias consideram frequentemente que a informação importante sempre os encontrará, uma vez que fazem parte de um fluxo de comunicação a duas etapas filtrado por fontes pessoais. Essas pessoas confiam noutras, muitas vezes membros da família, para as informar sobre o que realmente precisam saber (Palmer & Toff, 2020).
A imaginação – e, ao mesmo tempo, a acessibilidade a conteúdos gerados pelos utilizadores – está a abrir caminhos para criticar a atmosfera omnipresente das tecnologias de comunicação. Mesmo que cada vez mais enquadrada como uma consequência inevitável de viver em um mundo digital, a intromissão dos algoritmos suscitou novos significados para a resistência, nomeadamente, em reação à vigilância (Light, 2014), como uma escolha de estilo de vida (Kaun & Treré, 2018) – mais especificamente, uma política de estilo de vida (Portwood-Stacer, 2013) – ou ativismo político (Kuntsman & Miyake, 2019).
Seja enquadrada como uma experiência temporária ou uma estratégia para domar a conetividade, Hesselberth (2018), Jorge (2019) e Treré, Natale, Keightley e Punathambekar (2020) argumentam que a desconexão é muito menos transformadora do que restauradora do capitalismo de dados (Zuboff, 2015; Couldry & Mejias, 2019). A cultura da conetividade faz parte ou é uma expressão dessa nova modalidade de capitalismo e há uma linha de pesquisa que cada vez mais destaca que a ideologia neoliberal encontrou um caminho para colonizar a desconexão, enquadrando-a como uma forma de escapismo que atende às necessidades do ethos neoliberal. Se considerarmos os campos de desintoxicação, por exemplo, com participantes provenientes das elites tecnológicas, podemos compreender que “a ‘fuga à desconexão’ temporária se revela como outra forma de aumentar a produtividade e, portanto, é completamente funcional para o status quo capitalista” (Natale & Treré, 2020, p. 628). Os autores continuam: “a desconexão como forma de crítica e de mudança sociopolítica é muitas vezes desactivada e subsumida pela dinâmica do capitalismo digital sob a fachada inócua da fuga em relação a questões de autenticidade, atenção plena e nostalgia”.
Do mesmo modo, a “desconexão através do envolvimento” (Natale & Treré, 2020, p. 626) assinala um conjunto de práticas que activam a desconexão como envolvimento crítico com as tecnologias e plataformas digitais. O hibridismo, o anonimato e o hacking são as principais formas de “descomodificar a desconexão e reformulá-la como fonte de crítica colectiva ao capitalismo digital” (Natale & Treré, 2020, p. 626). No entanto, é preciso ter em conta que a vontade de alguém se desligar não é suficiente, porque esse é um ato que escapa ao controlo individual, uma vez que os dados são moldados (ativa e passivamente) em conjunto com outros e requerem competências digitais. Isso significa que, na era digital, a desconexão é profundamente paradoxal: como prática ou crítica, é uma modalidade dentro – e não fora – da cultura conectada.
Por sua vez, a desconexão da Internet imposta de cima para baixo pode ser um ato de repressão política (Kaun & Treré, 2018) conduzido por governos iliberais, mas também por países democráticos, como ilustra o “caso Snowden” (van Dijck, 2014). Essa perspetiva também trouxe de volta um entendimento do pânico moral relacionado à cultura de vigilância em grande escala incorporada em sistemas de grandes volumes de dados.
Por sua vez, a desconexão ascendente (por exemplo, interferência no sinal de rede) está a ser praticada como um ato de pirataria ou de resistência contra a vigilância estatal e comercial ou, em um sentido mais lato, como uma resistência contra paradoxos das sociedades digitais. Essas várias modalidades de vigilância são a expressão de uma crítica a uma forma particular de organização social estruturada nas assimetrias de poder entre aqueles que recolhem e analisam dados e os que estão sujeitos a esses critérios de recolha e análise de dados (Milan & van der Velden, 2016; van Dijck, 2014). Nesse entendimento é concedida especial atenção à forma como a vigilância estatal e comercial explora os indivíduos sem seu pleno conhecimento, vontade ou interesse.
Nesse sentido, a discussão se beneficia do que Treré, Natale, Keightley e Punathambekar (2020, p. 607) identificam como “universalismo da desconexão”. Esse enquadramento revela uma perspetiva ocidental centrada em sujeitos com formação privilegiada e um discurso que gira em torno de ambientes mediáticos ricos e dos problemas que daí advêm. Como consequência, os autores argumentam que a agenda de investigação sobre a desconexão/conetividade tende a “ignorar as formas como a desconexão é realizada e vivida em outras partes do mundo e, na verdade, entre as minorias vulneráveis das nações ocidentais ricas” (2020, p. 607).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo teve como objetivo contribuir para o debate sobre a desconexão digital, abordando também o conceito de resistência, um construto relacionado e mais estabelecido nos estudos de media e comunicação. Nosso principal intuito foi, assim, identificar tendências de investigação associadas a ambos os conceitos e fizemo-lo através de uma meta-análise da literatura recolhida para o efeito.
Nesse processo identificámos duas tendências principais: uma que designámos por abordagem centrada nos media e outra intitulada perspetiva centrada no contexto. Como referido anteriormente, ambas as tendências não reflectem uma postura dicotomizante e não devem ser entendidas como opostas, mas sim como parte de um espetro. Isso significa que, apesar de os trabalhos centrados nos media não ignorarem o quadro mais amplo em que as práticas e atitudes de resistência podem ocorrer, o ponto focal é colocado em uma tecnologia ou conteúdo mediático específico. Por sua vez, a perspetiva centrada no contexto analisa os media e a tecnologia em uma rede de estruturas ou circunstâncias da vida que têm um valor explicativo para compreender a resistência e a desconexão como uma expressão de um contexto.
Em um ambiente de mudanças no panorama da tecnologia, nossa análise da literatura sugere que as duas principais tendências identificadas não são lineares nem sequenciais. Pelo contrário, são cíclicas e recursivas no tempo. Por exemplo, se a resistência aos media começou a relacioná-los com sentimentos de ansiedade e receios de pânico moral, no final do século XIX, esse enquadramento regressou ao discurso social nos primeiros anos do cinema e da televisão, no século XX. Por sua vez, como demonstrámos neste artigo, a ascensão das comunicações por meio das tecnologias refinou-se, em vez de interromper as ondas de pânico moral (como a resistência aos meios de comunicação social e aos contextos de desconexão digital) atualizando-as em processos de medo e reação ao desconhecido e a potenciais excessos. No novo milénio, o digital abordado como patologia surge recorrentemente no discurso público (os “ficheiros do Facebook” e os “Facebook Papers” são ambos exemplo disso). Isso significa que a preocupação histórica em torno dos media é recorrente e inicia rapidamente ondas de medo e suspeita sempre que um media emergente se torna proeminente na sociedade. Por isso, o artigo sugere que a resistência deve ser entendida como um relato de ondas de constrangimentos ao longo do tempo.
Além disso, este artigo sugere que a resistência aos media, enquanto conceito e como prática, é flexível e adaptável. Queremos dizer que a forma como a resistência é elaborada em um período temporal específico pode ser entendida como um sintoma que revela quais os temas que dominam o debate público e preocupam a sociedade em um determinado momento. Nesse sentido, a resistência é indissociável de narrativas sociais, políticas e culturais de esperança e declínio.
Este artigo estava, igualmente, interessado em considerar a relação entre resistência e desconexão. A ligação entre ambos os conceitos levou-nos a procurar quais seriam os pressupostos, entendimentos e necessidades subjacentes que ajudam a perceber as razões pelas quais os investigadores na área dos media e da comunicação desenvolveram uma linha de estudos que, à primeira vista, é difícil de separar da pesquisa sobre a resistência aos media.
De um ponto de vista pragmático, poder-se-ia dizer que o conceito de desconexão está mais em sintonia com a omnipresença conectiva da era digital, utilizando seu aparato teórico para abordar as experiências e os significados da conetividade para os indivíduos. De modo um pouco mais polémico, falar de desconexão em vez de resistência poderá revelar, acima de tudo, uma atualização ao nível do vocabulário do que uma verdadeira perspetiva distinta da consolidada ao longo do tempo pelos estudos de resistência. Não obstante, defendemos que o conceito de desconexão constrói uma relação diferente entre os media, a tecnologia e os indivíduos, uma relação que coloca a agência no centro da problematização e o locus do poder no indivíduo. Essa abordagem pode ser vista como uma expressão da cultura de autorregulação que domina a sociedade ocidental (Syvertsen et al., 2014), em que os indivíduos são vistos como tendo o fardo e a responsabilidade de lidar com as pressões e tensões promovidas pela ligação permanente.
Independentemente da quantidade, diversidade e intensidade das práticas de desconexão que se podem adotar, e dos significados subjectivos associados a essas práticas, é evidente que a literatura sobre desconexão e vida quotidiana tende a colocar a agência no centro. A possibilidade de optar pela desconexão, por qualquer motivo que seja, tende a ser enquadrada como uma opção controlada pelo indivíduo, ou seja, como uma forma selectiva e estratégica de agência individual. Desse modo, a desconexão é associada a práticas de autorregulação e a actos de auto-escolha, como ilustrámos com a discussão da desconexão como uma escolha individual, seja por razões políticas ou de bem-estar. Nesse contexto, e depois de efectuarmos uma revisão da literatura, consideramos que uma perspetiva que parece estar por explorar nos estudos sobre a desconexão é o papel desempenhado pela rede social dos indivíduos nas suas experiências de desconexão (explorado noutro lugar por Figueiras & Brites, 2022).
Em suma, o artigo argumenta que os estudos sobre desconexão se beneficiariam se se afastassem de uma abordagem individualista da agência, centrada apenas na escolha e no controlo individuais. Como observa Lomborg, “a desconexão individual é fútil” (Lomborg, 2020, p. 304). Por isso, consideramos que os estudos sobre desconexão se beneficiariam se incluíssem uma abordagem crítica que considera como a desconexão, mesmo que iniciada apenas por um indivíduo, é moldada por possibilidades colectivas.
Juntamente com a narrativa da desconexão como um ato de autoconsciência e autocontrolo individual, existem outros enquadramentos diferentes que possibilitam analisar a interação entre o indivíduo e a comunidade na era digital individualizada. Acresce que é necessária uma perspetiva ainda mais ampla para mobilizar a resistência contra a dataficação e a colonização de nossas vidas pelas plataformas, entendendo-a como um esforço crítico coletivo.
Uma nota final: questões relacionadas com os indivíduos privilegiados do Hemisfério Norte e das sociedades ocidentais continuam a dominar a agenda da investigação sobre a desconexão. Por essa razão, consideramos que é necessário desenvolver uma abordagem mais sensível ao contexto. Ou seja, uma abordagem que dê mais espaço às práticas de investigação e aos significados atribuídos à desconexão em contextos e grupos vulneráveis no Hemisfério Norte, bem como no Sul Global, uma vez que as experiências moldam os significados que lhes são atribuídos. Vale a pena mencionar que essa questão tornou-se bastante evidente enquanto realizávamos a recolha de dados. Encontrámos apenas alguns artigos sobre desconexão nas revistas científicas não anglo-saxónicas analisadas, o que realça que o conceito de desconexão é pouco perspetivado fora da esfera do privilégio e do individualismo.
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Notas de autor