EM PAUTA/ AGENDA
Ouvir para além do Antropoceno: Poetry as an echological survivala
Listening beyond the Anthropocene: Poetry as an echological survival
Ouvir para além do Antropoceno: Poetry as an echological survivala
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 191-204, 2023
Universidade de São Paulo

Recepción: 03 Enero 2022
Aprobación: 15 Diciembre 2022
Financiamiento
Beneficiario: Estre projeto foi desenvolvido com bolsa de doutoramento (UI/BD/151010/2021) em Ciência e Tecnologia das Artes na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, com fundos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e do FSE (Fundo Social Europeu), através do Programa Operacional Regional do Norte (NORTE 2020). A investigação preliminar para este artigo foi desenvolvida no âmbito do projeto (NORTE-01-0145-FEDER-022133), cofinanciado pelo NORTE 2020, através do Portugal 2020 e do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER).
Resumo: A partir de Poetry as an echological survival do artista Nuno da Luz, iremos refletir sobre formas de envolvência ambiental e ecológica. Esta exposição nos permite propor uma alternativa sensorial à discussão crítica sobre as narrativas do Antropoceno, respondendo às críticas colocadas sobre este conceito. A arte sonora tem um papel fundamental na redefinição da nossa relação com o planeta dadas as características materiais do som e o fato de complementar a mundividência ocidental, que privilegia a visão. O trabalho do artista cria um estar-no-mundo em que o visitante é penetrado pelas ondas sonoras, o que causa a redefinição da sua condição ecológica: criando, assim, uma “sobrevivência echológica.”
Palavras-chave: Antropoceno, arte sonora, ecologia, arte contemporânea, estudos culturais.
Abstract: From the analysis of Poetry as an echological survival by sound artist Nuno da Luz, we reflect upon forms of environmental and echological involvement. This exhibition proposes a sensorial alternative to the critical discussion around Anthropocene narratives, answering some of the critics of this concept. Sound art plays an important role given its material characteristics and the fact that it complements the Western world-view, which privileges vision. The way the work of Nuno da Luz creates a being-in-the-world in which visitors are penetrated by sound waves proposes a redefinition of our ecological condition, hence creating an “echological survival.”
Keywords: Anthropocene, sound art, ecology, contemporary art, cultural studies.
CRÔNICA DE UMA NATUREZA DESENCANTADA
NA ÚLTIMA DÉCADA, a destruição da natureza pelas sociedades humanas tornou-se evidente. Se a emergência de movimentos de jovens ecologistas não é nova1, tudo parece indicar que estamos próximos de um ponto de não retorno. A medir pela preponderância midiática que tem assumido, a conscientização sobre o estado do planeta é maior do que em algum momento nas últimas décadas. Contudo, a evidência do problema, fundada numa prolífica produção de imagens de sobre-exploração e desgraças climáticas, não é ainda suficiente para influenciar de forma significativa os círculos de decisão das sociedades humanas. A narrativa do Antropoceno, enquanto nova era geológica marcada pelo impacto significativo das atividades humanas nos ecossistemas terrestres, parece ter saído dos círculos privados da geografia para atingir o inconsciente coletivo. Este conceito, discutido mais à frente, parece pôr em evidência a necessidade de implementar medidas a nível global que atrasem ou revertam o problema.
Se uma política e economia mais ecológicas são em si necessárias, consideramos que não são suficientes. Tal estratégia assentaria numa correção da consequência, deixando por tratar a causa do estado atual. As sociedades capitalistas contemporâneas têm como prática e pensamento “segurar uma natureza desencantada.” (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 4). A primeira causa-consequência desse desencantamento é a oposição entre natureza-cultura – uma das dicotomias que definem a razão ocidental2. Este dualismo estruturante das sociedades ocidentais baseia-se numa produção social: a extração do humano dos ecossistemas a que pertence; e a criação da esfera cultural em que se insere tudo o que é humano, antípoda do que é natural. Esta transformação ontológica define a rutura que atravessa a história da relação das sociedades ocidentais do Hemisfério Norte – e mais recentemente de uma grande maioria das sociedades orientais e do Hemisfério Sul – com a natureza. A complexidade dos sistemas naturais é ordenada, classificada e reduzida a fórmulas numéricas com o único fim de aprender “como usar de forma a dominá-la [à natureza] e aos outros homens” (Adorno & Horkheimer 1944/2006, p. 4)3. Esta ação, levada muitas vezes a cabo pela ciência e pela tecnologia, consiste na “redução e maleabilidade dos homens [que] é apresentada como ‘progresso’” (Adorno & Horkheimer 1944/1967, p. 44), progresso esse que também se mede pela capacidade de dominar e explorar os “recursos naturais”. Esta perspetiva positivista vê todas as espécies e todos os elementos de cada ecossistema como algo a que tem o direito de usufruto.
O racional de dominação é hoje o racional do próprio capitalismo. Aquilo “a que chamamos “natureza” é interno ao capitalismo, não um domínio completamente separado” (Castree, 2017, p. 58). Neil Smith (1984, pp. 49-91) desenvolveu, a partir de textos de Marx e Engels, o conceito de “produção de natureza”, que descreve os vários processos através dos quais o ser humano, enquanto parte da natureza, produz os meios de satisfação das suas necessidades, através do trabalho. Ao longo da progressão dos estágios económicos – da produção em geral, isto é, produção direcionada a satisfazer necessidades biológicas; até à contemporânea produção capitalista, estágio em que se naturaliza a necessidade de produção de excedentes para garantir a sobrevivência do próprio sistema – o “substrato material é mais e mais o produto de produção social, e os eixos dominantes de diferenciação são cada vez mais sociais na sua origem”4 (Smith, 1984, p. 50). Neste processo, Smith descreve o paralelismo que existe entre a crescente alienação dos trabalhadores e a crescente produção social da natureza como consequências de uma complexificação de processos de produção no sentido de um sistema capitalista. Por esse motivo, apesar de este sistema social humano ter algum domínio5 sobre a natureza, os seres humanos (pelo menos aqueles que não controlam os meios de produção) não vivem livres, estando iminente a revolta que “traria consigo a histórica oportunidade única de os seres humanos se tornarem sujeitos sociais “com vontade” e não os sujeitos naturais da sua própria história” (Smith, 1984, p. 85).
A relação desencantada com a natureza é inextricável da produção capitalista e do modelo de razão ocidental. Boaventura de Sousa Santos (2018, p. 262) descreve de que forma a razão ocidental, que é “tão necessária como é parcial”, produz ativamente a não-existência (desaparecimento, coerção) de outras formas de conhecimento e de entender o mundo. No centro da razão ocidental, a ciência é constituída como única forma de interpretar o mundo – ou a qual une todas as outras formas – e a medida de valoração de um determinado conhecimento corresponde ao seu valor de uso, ao seu valor de troca e ao seu valor capital.
Qualquer solução duradoura que permita ultrapassar o grande impasse na relação das sociedades humanas com a natureza passará não só por uma reconfiguração do sistema econômico vigente, mas fundamentalmente pela promoção de uma maior diversidade de formas de conhecimento. Desta forma, poderá ser possível voltar a pensar o elemento humano como parte da natureza, e pensar esta não como um elemento externo que existe para ser estudado e explorado, mas como um sistema complexo do qual fazemos parte e cuja harmonia define também a nossa.
ANTROPOCENO – UM CONCEITO ANTROPOCÊNTRICO?
O Antropoceno apela à ação: sem uma alteração radical dos hábitos das sociedades modernas, está em risco a sobrevivência da espécie humana. Enquanto narrativa, a versão mais pessimista do Antropoceno – aquela na qual falhamos uma alteração de hábitos – nos é familiar. Relembra-nos o castigo de Prometeu, que ousou roubar o fogo aos deuses, o mito pessimista que descreve a tensão entre a civilização e a natureza. Sugere ideias de culpabilidade e de moralismo que têm uma história de opressão paternalista. Por outro lado evidencia a manifesta capacidade humana de agir criticamente sobre a sua ação, num apelo à responsabilidade e exercício da liberdade. Apesar de ser um conceito útil, não podemos deixar de discutir algumas das limitações das várias narrativas do Antropoceno.
Françoise Vergès (2019) denuncia o “Anthropos” que define o conceito, por este ignorar o fato de nem todos os humanos terem o mesmo impacto geológico e por tratar a humanidade como uma categoria homogênea que não reflete a sua concepção histórica como entidade “diferenciada internamente e desenvolvendo-se constantemente por via de contradições internas” (Hartley, 2015). Desta forma, dinâmicas epistemológicas, raciais, de classe e de gênero aparecem amalgamadas num só conceito que ganha parte da sua relevância numa operação de agenciamento da culpabilidade. Ignorando outras formas de exploração e dominação, o conceito revela-se incapaz de reconhecer que o movimento que gera a sobre-exploração dos ecossistemas naturais é, historicamente, o mesmo que define as relações de poder e dominação das sociedades capitalistas.
Esta figura mítica do Anthropos está no centro do conceito em análise e, apesar de ter um sentido geral de dissidência, este não deixa de ser antropocêntrico e, em última análise, débil para contrariar o seu sentido – o mito transforma-se em profecia catastrofista. O antropocentrismo do conceito funda-se num certo fascínio, “no reconhecimento dos poderes sem precedentes dos seres humanos” (Simon, 2020, p. 186), uma espécie de “complexo de supremacia humana” (Crist, 2013, p. 133) que “coloca os humanos num pedestal como a única espécie da história do planeta” capaz de transformar o equilíbrio da biosfera (Whitehouse, 2015, p. 54). Donna Haraway (2016) acredita que este conceito é um exemplo de excepcionalismo humano, ao ignorar todas as outras espécies que transformam o planeta – em particular o que ela considera serem as “maiores transformadoras planetárias”: as bactérias. Desta forma, nenhum modelo satisfatório poderá ignorar as complexas relações entre “espécies orgânicas e atores abióticos”. A narrativa do Antropoceno não é capaz de descrever a complexidade dos sistemas planetários – nem sociais – e muito menos de criar uma narrativa que nos ajude a pensar um futuro diferente, já que é tendencialmente pessimista.
Crist (2013, p. 130) considera, que apesar de muitos daqueles que o usam não terem essa intenção, mesmo “ usos compostos do termo estão indiretamente a fortalecer esse discurso ao promoverem a sua legitimidade”. Ao falar do discurso do Antropoceno, Crist refere-se sobretudo à naturalização da “mentalidade de gestão e administração ativa dos sistemas naturais”, e dos conceitos de “recursos naturais”, “capital natural” e “serviços ecológicos”, ao lado de “empreendimento humano” (2013, p. 137). O empreendimento humano considera já a subalternização do natural – daquilo que lhe é externo – à condição de recurso e capital, à disposição do uso. Neste contexto, mesmo as mais sérias preocupações ecológicas são secundárias diante da salvação dos fundamentos do modelo econômico tal como ele é. Sem “rejeitarem a trajetória histórica” (Crist, 2013, p. 136), são impotentes para “criar (ou até imaginar) outra forma de vida” (Crist, 2013, p. 138).
Por outro lado, Bruno Latour, (2014) na perspetiva do antropólogo, considera que qualquer narrativa do Antropoceno, por mais que se limite a narrar um fato, está também a denunciar uma situação grave, dessa forma apelando à responsabilidade das comunidades humanas. Latour vai mais longe, considerando que é precisamente o antropocentrismo do termo que faz do “Anthropos” uma entidade ativa – ao contrário do lugar passivo que assumia nas ciências da terra – ganhando, dessa forma, enquanto espécie, uma intrínseca dimensão moral e política. Seguindo este raciocínio, podemos pragmaticamente assumir que todas as inconsistências do conceito são imediatamente transparentes. Nesse sentido, Latour (2014) considera que “assim que o agente humano recebe o orgulho do lugar central, a natureza exata dessa união” – que ignora fatores epistemológicos, raciais, de classe, geográficos e de gênero – ”é imediatamente posta em causa”.
Além da sua difusão e operatividade no confronto e diálogo inter/transdisciplinar,6 o Antropoceno revela-se útil enquanto conceito pelas suas
ambiguidades, que dão ênfase às ansiedades e possibilidades que podem ser imaginadas em sistemas globais sob a influência de humanos, e ao seu poder para assinalar tanto a interconectividade de vidas humanas e não humanas e o potencial da sua destruição e silenciamento. (Whitehouse, 2015, p. 54).
Apesar de pensarmos no Antropoceno como algo que cria uma rutura e provoca uma “mudança sem precedente que reescreve os códigos disciplinares como os conhecemos e exige novos arranjos de conhecimento que ainda temos de estabelecer, … ainda pensamos sobre o nosso predicamento radicalmente novo nos termos que nos são mais familiares”, isto é, narrativas causa-efeito (Simon, 2020, p. 194). Para fazer face à exigência deste conceito – e suas limitações –, é necessário provocar uma rutura epistemológica que ponha em causa o modelo de razão ocidental – que consiste também no racional de dominação. Como foi brevemente demonstrado anteriormente, a relação de dominação sobre a natureza e sobre os humanos subalternos está diretamente relacionada com uma epistemologia dominante, ocidental ou eurocêntrica, em que o saber e o poder se equivalem. Em que o conhecimento é tomado como capital de produção de violência, e a violência capital de produção de conhecimento. O dilema do Antropoceno exige novas representações e ecologias de conhecimento, livres das estruturas ideológicas a que ele está sujeito. Defendemos que para esse efeito a centralidade da narrativa deve ser movida, já que privilegia relações de causa-efeito, e esta complementada por outras formas de conhecimento, como o são os conhecimentos do corpo e das sensações.
UMA FILOSOFIA DA EXPERIÊNCIA E DA SENSAÇÃO
Os sentidos são o nosso primeiro contacto com o mundo. Apesar de baseados em processos físicos e químicos, o corpo está perfeitamente articulado com aquilo a que podemos chamar mente ou espírito. Se o “mundo é uma [nossa] representação” (Schopenhauer, 1819/1991, p. 39), ela não se faz apenas de objetivas perceções do mundo, mas sobretudo de leitura e interpretação subjetivas de estímulos que nos chegam do exterior. Os nossos sentidos têm sempre uma “função ideológica bem como cultural” que existe antes mesmo de os utilizarmos, pelo que o “julgamento e a compreensão atingidos são inadvertidamente dirigidos pelo funcionamento do sentido usado” (Voegelin, 2010, p. xi). Para ultrapassar as predeterminações ideológicas e estéticas dos sentidos (Voegelin, 2010, p. 3) é necessário desenvolver não uma filosofia que explique a experiência, mas “uma filosofia que experiencie”7 (Voegelin, 2010, p. xiv). Para isso, a tarefa é de “suspender” noções conceituais tais como gênero artístico e contexto histórico, e “atingir uma escuta do material ouvido, [no momento], contingente e individualmente” (Voegelin, 2010, p. 3).
A razão ocidental8 privilegia a visão em detrimento dos outros sentidos. O visual e o conceitual são análogos, enquanto “o sonoro … supera a forma” (Nancy, 2002/2007, p. 2), dificultando a sua explicação através do discurso. As ideias desenvolvidas na esfera conceitual seguem uma “lógica discursiva … levantada com base em dominação real” (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 14). A posição da visão é por natureza distante “do seu objeto”, recebendo-o “na sua monumentalidade” (Voegelin, 2010, p. xi). É por isso uma “meta-posição, longe do visto, por mais perto que esteja”, que implica um “distanciamento e uma objetividade que se apresenta como verdade”, invocando por isso a necessidade da crença: “ver é acreditar” (Voegelin, 2010, p. xii). Esta é também a posição do método científico que promove uma distância entre o sujeito e o objeto, em busca de uma objetiva verdade científica. “A ideologia da visualidade pragmática é o desejo do todo” (Voegelin, 2010, p. 4), o desejo de compreender através dessa distância objetiva o real de forma evidente – que possa ser visualizada.
Contra a clareza da visão, o som é sempre “efêmero e dúbio” (Voegelin, 2010, p. 11). Enquanto que a visão se faz a partir da leitura de raios de luz refletidos em permanência pelos corpos, a audição acontece contemporaneamente ao evento sonoro (Nancy, 2002/2007, p. 14). “O visual persiste até ao seu desaparecimento; o sonoro aparece e desvanece até à sua permanência” (Nancy, 2002/2007, p. 2). O ouvido cria um “ressonante”, num movimento em direção ao interior, e o olho, para o exterior, cria um “evidente” (Nancy, 2002/2007, p. 3). Desta forma, o som também envolve o sujeito de uma forma diferente. “Ouvir é entrar numa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, sou penetrado, já que abre em mim e em meu redor, e a partir de mim e em direção a mim” (Nancy, 2002/2007, p. 14), revelando já as propriedades das dimensões espacio-temporais (Nancy, 2002/2007, p. 13), que transformam a natureza das ondas sonoras diretamente. Desta forma, o real “pode ser experienciado através do corpo que ouve à medida que o som incorpora e medeia uma conexão entre espaço e narrativa” (Taylor & Fernström, 2007, p. 4). A envolvência sonora coloca o sujeito no centro mas parte de um universo de onde provêem ondas sonoras que o atravessam – e que os corpos “não estão construídos para interromper à sua vontade a chegada do som” (Nancy, 2002/2007, p. 14). O espaço sonoro é um espaço de pertença, e .o sujeito da audição ainda está por vir, espacializado, atravessado, e chamado por si mesmo, soado em si mesmo” (Nancy, 2002/2007, p. 21).
A escuta exige uma “partilha de tempo e espaço com o objeto ou evento sob consideração” (Voegelin, 2010, p. xii). Durante a audição o sujeito é simultâneo com o que é ouvido, sem meta-posição, sem distância, seguindo uma “produção contínua que envolve o ouvinte como perceção intersubjetivamente constituída, enquanto produz a coisa percebida, e ambos, sujeito e trabalho, assim gerados concomitantemente, são transitórios entre si” (Voegelin, 2010, p. xii). A envolvência sonora “desafia os vieses prevalentes ou a dependência num modelo óculo-cêntrico que predominantemente lê o ambiente através de metáforas visuais” (Taylor & Fernström, 2007, p. 4). Mas, segundo Voegelin (2010, p. xiii), uma “sensibilidade sónica irá iluminar os aspetos invisíveis da visualidade, aumentando em vez de se opondo a uma filosofia visual”. Desafiando “noções de objetividade e subjetividade”, a escuta não distingue o objeto ou evento do restante fundo sonoro, já que a audição é um processo de descoberta: “in listening I am in sound” (Voegelin, 2010, p. 5).
Por esses motivos, a arte sonora constitui uma prática à partida ecológica – isto é, de respeito e de integração com o meio envolvente. Assim, a arte sonora produz uma forma de experienciar o real que está em grande parte apartada da experiência cotidiana. Uma experiência que desde logo contraria o óculo-centrismo, mas que sobretudo permite um contacto sensível com mundo9, não subjugada à propensão para a interpretação e para a leitura conceptual ou narrativa, que decorre em simultâneo com o evento sonoro e com a envolvente. Uma experiência que nos penetra e transforma, “baseada na experiência de estar-no-mundo” (Whitehouse, 2015, p. 62), que complementa e expande outras experiências baseadas em linguagem e modelos culturais.
POETRY AS AN ECHOLOGICAL SURVIVAL DE NUNO DA LUZ
O projeto Poetry as an echological survival de Nuno da Luz10 produz uma forma de estar-no-mundo que responde a muitos destes problemas. Desenvolvido no âmbito de uma residência artística na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto com o apoio do programa inresidenceporto11, a pesquisa do projeto decorreu entre setembro e dezembro de 2018.

O projeto consistiu num trabalho context-specific de investigação sobre a envolvente da Escola das Artes – a Foz do Rio Douro, em que o artista se propôs a “repensar certos fenómenos acústicos, como reverberação e ressonância, enquanto processos ambientais e sociais”12, de forma especulativa.
Assim, assumindo o “ambiente” da EA, a Foz do rio Douro e o Oceano Atlântico, a proposta identifica os elementos que o poderão representar, com base “na observação e recolha de dados”: por um lado dados marítimos e sub-aquáticos de “marés, ondulação, temperatura e outros, junto à Foz e na zona litoral de Gaia, Porto e Matosinhos” – da responsabilidade do Instituto Hidrográfico da Marinha Portuguesa (IH); capturas de som; capturas de imagem.
A exposição13 resultou numa instalação imersiva de som e luz constituída pelos seguintes elementos: modulação de lâmpadas incandescentes por meio de dados de altura de maré simulada, em escala temporal real; dois gongos de vento a vibrar de acordo com dados da agitação marítima registados, um pela boia costeira e outro pela boia oceânica de Leixões durante um ano; gravações da rebentação das ondas, na barra do Douro, no pico de ambas marés: praia-mar em reprodução nos altifalantes frontais, e baixa-mar nos altifalantes de retaguarda; filme 16 mm transferido para digital.
O desenho da exposição vem reforçar a ligação entre os conceitos de casa, ambiente e som evocado pelo “echo”, por funcionar como um sistema unificado pela instalação de som e de luz. O trabalho de Nuno da Luz é composto por poucos elementos visuais, e estes, mais do que apelarem à interpretação e ao reconhecimento de figuras, nos envolvem ao ritmo do som – a luz modulada pelos dados das ondas e as atmosféricas imagens em 16 mm filmadas pela artista Ana Vaz. Centra-se, nas palavras do artista, numa “escuta daquilo que está a acontecer no ar” (Escola das Artes – UCP, 2019a) e num trabalho com a dimensão matérica do próprio ar. “Para quem o consegue escutar há essa ideia de produção e receção sonora,” sem que se tenha “os referentes visuais diretos” da relação de causa-efeito do “o que é que causa o quê” (Escola das Artes – UCP, 2019a).
Ao trabalhar com os dados do IH, Nuno da Luz procurou dois processos paradoxais: a “visualização espacio-temporal” do som e a sua “abstração”. O artista confessa que as ondas do mar já “pressupõe ou parecem de perfil ondas sonoras” (Escola das Artes – UCP, 2019a).

No Porto, o artista teve a “oportunidade de vir a conhecer um novo meio, pensar a envolvente da Escola como trabalho de campo” (Escola das Artes – UCP, 2019a). O título da exposição (“Poetry as an echological survival”) vem de uma citação, provavelmente errônea que Álvaro Lapa faz no texto “Nota solta sobre o possível ‘valor’ das obras de arte, para o futuro” no livro Raso como o Chão de 1977, derivada do ensaio de Gary Snyder “Notes on Poetry as an Ecological Survival Technique”. Na citação, Lapa acrescenta um “h” a “ecological” transformando “eco-” (do grego “oikos” – casa) em “eco-” (“ēchos”– som). Neste texto, Snyder sugere que a poesia e as artes conservam muito de um pensamento e cultura primitivos, um “conhecimento de ligação e responsabilidade que não significa mais do que uma ascensão espiritual de toda a comunidade” (Snyder, 1969, p. 157). Para Snyder, este conhecimento pode ser uma forma de salvação. Snyder acompanha assim o pensamento de Adorno e Horkheimer, para quem a arte é o último reduto de uma forma de estar-no-mundo que em sociedades primitivas caracterizava as práticas rituais e mágicas, e que o discurso científico desvalorizou e limitou das sociedades contemporâneas.
O artista formaliza as hipóteses levantadas pelo texto de Snyder e explora a confusão introduzida pelo “h” de Lapa entre “eco” (oikos), ou seja, casa ou ambiente, e “echo” (êchos), ou seja, som. Nuno da Luz propõe o desenvolvimento de uma “atenção a certos ecos do espaço, e à ecologia desse espaço”. Isso passa por reconhecer a diversidade dos elementos em convivência e cohabitação num dado ecossistema, “num espaço liminar de tensão entre aquilo que é possível enquanto força geológica e ambiental e aquilo que é força antropogénica” (Escola das Artes – UCP, 2019a). Regressando a Snyder e à sua assunção de que “o universo não é uma coisa morta mas uma criação contínua” (Snyder, 1967, p. 162), o trabalho de Nuno da Luz com os seus ecos reintroduz uma primitiva conexão ao ambiente. E reintroduz no nosso subconsciente epistemológico ritmos cíclicos de criação, contra a era das grandes narrativas lineares que marcaram o século XX e que deixaram o trauma pós-Fukuyama ao século XXI.
A proposta de Nuno da Luz foi vista com curiosidade pelo IH: “que novos horizontes é que isso pode trazer para o trabalho que o Instituto faz enquanto serviço cartográfico nacional” (Escola das Artes – UCP, 2019b). O comandante Pires Barroqueiro do IH considera que o que faz desta nova perspectiva interessante é a possibilidade de “entrar no ambiente muito mais abrangente, muito mais sem fronteira e subtil” em comparação com os produtos do IH, que têm uma motivação muito mais “utilitária” para a “segurança da navegação e da utilização do mar” (Escola das Artes – UCP, 2019b). O comandante salienta que apesar de a leitura da bóia ser objetiva, a observação e a leitura dos dados fornecidos pelos cientistas não deixa de ser um processo “subjetivo”, já que requer a intervenção de um sujeito. “É muito interessante ver como é possível haver uma conversa entre estas duas áreas do saber”, entre as perspetivas científica e artística, ambas subjetivas (Escola das Artes – UCP, 2019b). Poderíamos questionar a exatidão destas afirmações. Não o faremos, porque elas servem aqui apenas como forma de invocar a criação artística como escrita do possível. Os cientistas do IH interessaram-se pelo projeto porque ele cria uma representação outra, com motivações diferentes das representações científicas.
Apesar da sua capacidade para compreender, fragmentar e (eventualmente) dominar a natureza, a ciência em nada nos ajuda a compreender o conjunto caótico de forças que a compõem ou a mediar a nossa conexão com ela. Numa sociedade em que o monopólio da produção de conhecimento é da ciência, a conexão entre humanos e com a natureza será desencantada – já que a relação de encantamento depende de conhecimentos que a ciência não consegue produzir. Isto apesar do esforço dos sistemas científicos de alargarem o seu espectro, nomeadamente através da inclusão da investigação artística e das humanidades.
UMA RUTURA ECHOLÓGICA
Poetry must sing or speak from authentic experience. Of all the streams of civilized tradition with roots in the Paleolithic, poetry is one of the few that can realistically claim an unchanged function and a relevance which will outlast most of the activities that surround us today. Poets, as few others, must live close to the world that primitive men are in: the world, in its nakedness, which is fundamental for all of us – birth, love, death: the sheer fact of being alive. (Snyder, 1969, p. 152)

Nuno da Luz propõe uma experiência do som feito poesia, uma experiência imersiva que nos coloca nessa relação de estar-no-mundo, uma relação de encantamento que consegue articular o fundamental paradoxo da natureza humana: por um lado parte da natureza que nos rodeia, e por outro com as nossas construções sociais, a nossa segunda natureza14 muito própria. A relação de envolvência que a exposição propôs faz sobreviver no tempo um ecossistema muito específico. Dessa forma, é uma experiência de “sobrevivência echológica”, caracterizando uma missão importante que as práticas de arte sonora podem ter na criação de uma sociedade mais ecológica.
Neste sentido afigura-se como uma prática relevante, muito diferente por exemplo dos trabalhos pioneiros de Bernie Krause – também fundamentais para a prática ecológica – que, através do estudo das soundscapes (paisagens sonoras), “ilustram” com as transformações sofridas nos sons de um ecossistema o impacto humano, nomeadamente através da disrupção da harmonia que caracteriza os ambientes naturais (Whitehouse, 2015, p. 56). O som tem sempre essa vantagem de conseguir revelar transformações invisíveis, que não conseguimos captar através do sentido que privilegiamos: a visão. Contudo, a prática de Nuno da Luz é especial porque usa as propriedades materiais do som e das suas capacidades de reverberação que ultrapassam o nosso viés utilitário e positivista de entender: em Poetry as an echological survival não há nada para entender, o som nos penetra enquanto as variações de luz nos sintonizam com o ritmo ecossistémico da Foz do Douro. Não é só um conhecimento novo mas também uma nova forma de conhecimento, ou melhor, uma velha forma de conhecimento que foi perdida, ou pelo menos alienada e limitada a momentos específicos de usufruto, fetichizada enquanto experiência – nomeadamente nessa economia do turismo natural que contrafaz essa conexão ao natural.
No Antropoceno, é necessária uma rutura epistemológica numa direção mais ecológica – que defina um novo entendimento da economia, como gestão da nossa casa/o nosso planeta. Não basta implementar medidas que pretendam tornar sustentável o mesmo sistema económico, já que este tem na sua base um racional de dominação que cria uma relação desencantada com a natureza. É preciso transformar a forma como nos relacionamos com ela. A arte sonora tem um especial, ainda que não exclusivo, potencial de provocar uma rutura epistemológica, elevando conhecimentos de outra forma ignorados e restabelecendo uma conexão com o planeta. Ao invocar saberes não semióticos e não interpretativos, mas conhecimentos que se encontram na matéria, a arte pode voltar a mediar a nossa relação com o natural. Apesar de ser uma atividade exclusivamente desenvolvida para humanos, a arte cria a possibilidade de uma mudança de posição, de um reposicionamento. Trabalhos como os de Nuno da Luz fazem-nos refletir, não só criticamente, mas também com o corpo, sobre a posição central que ocupamos e na forma como estamos a impactar unilateralmente os ecossistemas. Fazendo-nos sentir parte da natureza novamente, a arte poderá nos impulsionar a pensar para além do Antropoceno: transformando as nossas relações com a natureza e permitindo a criação de um novo conceito que não espelhe o antropocentrismo da nossa condição atual, mas que expresse um devir-envolvente ecológico.
Agradecimentos
Estre projeto foi desenvolvido com bolsa de doutoramento (UI/BD/151010/2021) em Ciência e Tecnologia das Artes na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, com fundos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e do FSE (Fundo Social Europeu), através do Programa Operacional Regional do Norte (NORTE 2020). A investigação preliminar para este artigo foi desenvolvida no âmbito do projeto (NORTE-01-0145-FEDER-022133), cofinanciado pelo NORTE 2020, através do Portugal 2020 e do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER).
REFERÊNCIAS
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Crist, E. (2013). On the Poverty of Our Nomenclature. Environmental Humanities, 3, 129-147. https://doi.org/10.1215/22011919-3611266
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Notas
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