EM PAUTA/ AGENDA

Recepción: 29 Agosto 2022
Aprobación: 20 Abril 2023
DOI: https://doi.org//10.11606/issn.1982-8160.v17i2p205-224
Resumo: O artigo busca contribuir para a história da fotografia experimental brasileira através de uma reflexão acerca da série fotográfica “Inimagens” (1983), de Eduardo Kac. Para tal, faremos uma breve contextualização de como esse trabalho se insere na trajetória artística de Kac e, também, na história da fotografia experimental brasileira. Em um segundo momento, discutiremos mais detidamente as imagens que compõem a série, fazendo uma reflexão sobre o gesto experimental na arte fotográfica a partir das noções de transgressão e informe, operacionalizadas por Georges Bataille, Michel Foucault e Georges Didi-Huberman.
Palavras-chave: Fotografia experimental, fotografia brasileira, transgressão, Eduardo Kac.
Abstract: This study seeks to contribute to the history of Brazilian experimental photography by reflecting on the photographic series “Inimagens” (1983), by Eduardo Kac. To this end, we will briefly contextualize how this work fits into Kac’s artistic trajectory and the history of Brazilian experimental photography. Then, we will discuss in more detail the images that make up the series, reflecting on the experimental gesture from the notions operationalized by Georges Bataille, Michel Foucault, and Georges Didi- Huberman.
Keywords: Experimental photography, Brazilian photography, transgression, Eduardo Kac.
A ARTE FOTOGRÁFICA DE EDUARDO KAC
CONHECIDO MUNDIALMENTE POR seus experimentos com arte e biotecnologia, Eduardo Kac despontou na cena artística brasileira no início dos anos 1980, integrante de uma geração marcada pelo experimentalismo e pela visibilidade internacional. As referências a esse momento da carreira de Kac são usualmente centradas em relatos panorâmicos de suas práticas performáticas e poéticas, e por isso, não deixam entrever o seu papel na história da fotografia brasileira experimental. No entanto, uma pesquisa mais aprofundada na sua produção desse período revela uma miríade diversificada de experimentos em suportes variados, desde a produção de fanzines, grafites, outdoors e intervenções urbanas, além de uma pouco conhecida série fotográfica, realizada em Polaroid, intitulada “Inimagens” (1983), sobre a qual pretendemos fazer uma reflexão neste artigo.
De modo a contextualizar esta proposição, convém esclarecer que este artigo é o resultado da primeira aproximação com o trabalho fotográfico em Polaroid do artista brasileiro Eduardo Kac, realizada no âmbito da pesquisa: “Cronologia da Fotografia no Brasil: 1979-2000” desenvolvida pelo grupo de pesquisa FIP-Fotografia, Imagem e Pensamento, da ECO/UFRJ, grupo que reúne professores pesquisadores de diversas instituições e Estados brasileiros, em parceria com as curadoras Angela Magalhães e Nadja Peregrino. O objetivo inicial deste projeto foi lançar luz a um período específico da fotografia brasileira, impulsionada pelas políticas públicas desenvolvidas na Funarte, e pelo protagonismo do Instituto Nacional de Fotografia (Infoto).
Cabe destacar que os trabalhos em Polaroid do artista Eduardo Kac são praticamente desconhecidos. Trata-se de um trabalho artístico sobre o qual praticamente não existem referências históricas em catálogos ou livros de arte, tampouco reflexões dentro do conjunto da obra do artista. A baixa qualidade das reproduções das imagens aqui dispostas se deve ao fato de que esses originais estavam perdidos, e foram localizados através desta pesquisa, no Centro de Documentação da Funarte (Cedoc), e fotografados de modo amador, no momento mesmo da descoberta, guardando o ineditismo do olhar, bem como as marcas do tempo nas molduras e nos papéis.
Historicamente marcada por um tipo de referencialidade que antevia no instantâneo fotográfico e no realismo da mímesis o seu potencial político, a fotografia no Brasil é também herdeira de um conjunto de referências históricas que guardam as marcas das experimentações fotográficas de importantes nomes como Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, bem como as influências do movimento concretista, rompendo com as práticas normativas da fotografia moderna e desafiando os limites da imagem. Ao observar estas práticas experimentais no contexto da fotografia brasileira contemporânea, nos vemos diante de um conjunto bastante diverso de estratégias e abordagens estéticas e políticas, desenvolvidas por artistas como Cassio Vasconcellos, Gilvan Barreto, Dirceu Maués, Feco Hamburguer, Luiz Baltar, Letícia Ramos, Chris Bierrenbach, entre muitos outros. São imagens que desafiam os limites da fotografia em sua formulação hegemônica essencialista, e alcançam o extremo da forma, transgredindo as fronteiras do reconhecimento, e fazendo a experiência do limite através da imagem. Deste ponto de vista, é fundamental resgatar a produção visual do período entre as décadas de 1960, 1970 e 1980, e a sua contribuição para a construção de uma história da fotografia experimental no Brasil, com o intuito de desenvolver uma reflexão que nos permita ampliar o entendimento e a contextualização estético-política do que pode ser a fotografia experimental na atualidade.
Apesar de haver uma grande fortuna crítica no que diz respeito à fotografia brasileira no século XX, há ainda uma nítida centralidade da fotografia associada à tradição documental e jornalística. No âmbito da produção cultural e da pesquisa histórica, destacamos os textos de Helouise Costa (1995), “A fotografia moderna no Brasil”, “A fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo” (2005) de Nadja Peregrino e Angela Magalhães, e “Fotografia na Arte Brasileira Séc. XXI” (2013), organizado por Isabel Diegues e Eduardo Ortega, como fundamentais para o reconhecimento da existência de uma fotografia experimental no país. No âmbito da reflexão teórica, no entanto, permanecem lacunas sobre as experiências fotográficas dissidentes, aquelas menos interessadas no aspecto representacional da imagem fotográfica e que exploravam o meio e a linguagem de forma transgressiva e experimental. Ao propormos uma discussão sobre a série “Inimagens” (1983) de Eduardo Kac, há a intenção não apenas de ajudar preencher essa lacuna, como também de sugerir caminhos conceituais que nos ajudem a criar um repertório crítico e teórico que possam contribuir para a investigação de outras produções experimentais no âmbito da fotografia contemporânea brasileira.
Dessa forma, pretendemos neste artigo, primeiramente, contextualizar a produção fotográfica de Eduardo Kac na década de 1980 em relação às experiências no campo das artes visuais das décadas de 1960 e 1970. Em um segundo momento, discutiremos mais detidamente algumas imagens que compõem a série “Inimagens” (1983), operacionalizando um repertório conceitual que nos auxiliará nas análises dessa obra e, também de outras que associamos ao gesto experimental na arte fotográfica de transgressão e informe em Georges Bataille, Michel Foucault e Georges Didi-Huberman.
EDUARDO KAC E A “GERAÇÃO 80”
No campo das artes visuais, os suportes tradicionais, como a pintura de cavalete e a escultura de pedestal, vinham sofrendo severas críticas desde a década de 60 e foram considerados obsoletos ou ultrapassados por diferentes movimentos artísticos, entre eles o grupo carioca Neoconcreto, liderado por teóricos e artistas como Ferreira Gullar, Lygia Clark e Hélio Oiticica, que, entre outras coisas, defendia uma relação na qual o espectador deixava de ser um sujeito passivo e contemplativo e se tornava parte da construção da obra. Semelhante inquietação era partilhada pelos pioneiros da arte cinética como Waldemar Cordeiro, Abraham Palatnik e Ivan Serpa para quem a interação com o observador era fundamental, bem como o movimento, a luz, a geometria e a matemática. A proposição de que o observador poderia participar de modo mais ativo na obra ganha cada vez mais espaço na cena brasileira, e impulsiona o desenvolvimento de trabalhos que apostavam no crescente uso de tecnologias para a produção da arte.
Integrante da “Geração 80”, Eduardo Kac difere de uma certa tendência ao retorno à pintura de muitos de seus contemporâneos, pois seus interesses estão mais próximos dessas duas vertentes (i.e., interatividade e tecnologia). As experiências de performance, que marcam o início da trajetória artística de Eduardo Kac, evidenciavam a enorme relevância dada pelo artista aos processos de construção e de percepção das imagens ao eleger o corpo como a sua principal interface de trabalho: “Em meu trabalho do início dos anos [19]80, o corpo era um instrumento que eu usava para questionar convenções, dogmas e tabus .... O corpo se tornou o suporte para minha escrita, em última instância”1 (Kac, 1994).
Criador da Arte Pornô2 no Brasil, um dos últimos movimentos de vanguarda organizado na arte brasileira e que teve a breve duração de dois anos (1980-1982), Kac participou em diversas intervenções urbanas e publicou textos e imagens em variados estilos, entre eles zines, opúsculos e antologias. Nesse contexto, Kac se reunia com um grupo de artistas todas as sextas-feiras na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, para improvisar diante de uma plateia composta das mais diversas pessoas – transeuntes, comerciantes e mesmo alguns que deliberadamente iam ali apenas para assistir à apresentação. Eram os poemas-para-gritar, também chamados pelo artista de poemas orais, nos quais predominavam palavras obscenas, zombarias linguísticas, paródias, inversões verbais e coloquialismos. A utilização de palavras normalmente interditas foi uma das estratégias usada pelo artista para inserir o corpo, de forma geral, no campo da poesia. Mais precisamente, Kac desenvolveu todo um programa poético de subversão do uso conservador e estigmatizante da linguagem associada aos gêneros. Ciente da tradição de Gregório de Matos, Bocage, Marquês de Sade, Antonin Artaud e mesmo de outros autores menos conhecidos que muitas vezes não chegaram a ter a obra publicada – como os brasileiros Bernardo Guimarães e Emílio de Menezes –, Kac foi além, levando a cabo um programa de inversão da carga semântica negativa comumente associada ao corpo. Kac estava interessado em questionar a supressão do corpo e de tudo que concerne a ele, como seus fluidos, suas partes e as diferentes formas de sexualidade, através de sua arte poética.
Em paralelo às experiências de performance, Eduardo Kac produzia e pesquisava diferentes possiblidades de transgressão à linguagem poética e à representação na imagem, dando início a uma nova forma de arte que miscigenava body art, design, resistência política, performance, ativismo, fotografia e poesia: os Pornogramas (Kac, 2013, p. 41). Em uma conversa recente com as autoras3, Kac afirma ter sido esta sua experiência artística mais radical naquela época. Uma retrospectiva de sua Arte Pornô foi exposta pela primeira vez na individual “Pornogramas: 1980-1982”, na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, em 2010. Uma generosa seleção da produção de Kac entre 1980 e 1982 — incluindo a série completa de nove Pornogramas — foi reunida no livro Porneia, publicado em 2022, em edição bilingue, pela editora Nightboat Books, do Brooklyn, em Nova York.
No cruzamento da performance, do design e da imagem fotográfica, os Pornogramas tinham como objetivo a fusão da imagem e do corpo. Das nove obras que compõe a série, duas foram publicadas no ESCRACHO, em 1983, um livro de artista que reuniu poemas e trabalhos visuais ligados a esta relação entre obra e corpo. No conjunto de sua obra, esta publicação talvez possa ser considerada um marco de transição para as experimentações com a fotografia e depois com a holografia, que viriam a se tornar cada vez mais presentes em sua pesquisa no campo das novas tecnologias da imagem. Cabe destacar que os três últimos Pornogramas da série foram feitos com Polaroid, técnica fotográfica que iria se tornar determinante como estratégia de intervenção artística e ultrapassagem dos limites temporais e representativos da fotografia modernista ancorada na representação mimética bidimensional e na captura do instante único.
“INIMAGENS”
Desde o início de sua trajetória como artista, é possível observar o interesse de Eduardo Kac pelas técnicas de produção e percepção de imagem e suas possibilidades transgressivas. Sua aproximação com a fotografia se deu a partir da experimentação e da interferência direta sobre a imagem, revogando sua condição de mimesis, assim como a concepção de uma temporalidade única instantânea, características marcantes da fotografia no contexto brasileiro da época. Tratava-se de utilizar a técnica fotográfica para descobrir novas dimensões espaciais e temporais para a imagem. Desde o trabalho com os Pornogramas, ir além dos clichês era fundamental para Kac, que tinha o intuito de expandir os limites técnicos e conceituais associados à fotografia moderna de viés documental e purista. Através do gesto de montagem de diferentes imagens sobre um mesmo fotograma e da miscigenação da fotografia com outras formas artísticas como o design, a performance, a poesia, a pintura e a escultura, Kac desafiava os limites do fotográfico.
O caráter experimental dos Pornogramas vai muito além do uso da fotografia como um elemento visual impuro, ao tratá-la não apenas como referência a um objeto pré-existente (na maior parte das vezes corpos nus), mas também como signos linguísticos verbais, que criavam segundos sentidos não-referenciais para a imagem. É o caso, por exemplo, do Pornograma II (Figura 1), em que os corpos formam a letra “U” duplicada, sugerindo o som de uma vaia. Os rostos, tão importantes na tradição fotográfica retratista, estão encobertos por máscaras, e o primeiro plano é tomado pelas nádegas e genitálias do casal. A mesma transformação da imagem em signo linguístico pode ser percebida, de forma talvez mais evidente, em Pornogramas VI (Figura 2). Nesse trabalho, a vulva feminina adquire a forma de um “V” com “I” ou de um “M”, a depender da posição. O sequenciamento das fotografias e sua estilização permitem ler, então as palavras: “Vi, Vim, Vivi” (Kac, 2013, p. 44). O caráter textual da imagem fotográfica a lança para além da referencialidade, além de criar uma dimensão temporal que diz respeito ao ritmo da leitura e aos múltiplos sentidos que a poesia proporciona.
Kac estava profundamente interessado na possibilidade de rompimento do aspecto bidimensional da imagem. Como declarou em 1984, sobre as suas experimentações nessa época: “Meus olhos não aceitam o bidimensional. Se o mundo é tridimensional, por que a arte não pode ou deve ser assim?”4 É nesse contexto que Kac apresenta suas fotografias em Polaroid no Salão Nacional de Artes Plásticas da Funarte, de 1983, no MAM do Rio de Janeiro. Nomeadas por ele de “Inimagens”, talvez em referência a um paradoxo intrínseco a esse trabalho (são imagens ou são não-imagens? Se não são imagens, o que são? São imagens inimagináveis?), a bidimensionalidade da fotografia é rompida com intervenções feitas diretamente no papel fotográfico, seja acrescentando objetos à fotografia, seja transformando a própria fotografia em um objeto.
Em Inimagens transformei fotos Polaroids em objetos tridimensionais. Numa foto da minha família reunida, coloquei uma miniatura de revolver. A fotografia da minha namorada aparecia toda chamuscada, e numa outra peguei meu avô e transformei num chocalho5. (Kac, 1984)
No auge da sua experimentação fotográfica, Kac participa da Mostra “Polaroid – imagens instantâneas”, na Galeria de Fotografia da Funarte6, em maio de 1986, sob a coordenação de Angela Magalhães e Nadja Peregrino. Da mostra participaram também Marcos Bonisson, Pedro Vasques, Rose van Lengen e Sergio Zalis. A exposição foi parte do importante programa desenvolvido pelo Infoto, vinculado à Funarte, que tinha a preocupação de promover e divulgar os mais diferentes campos da produção fotográfica brasileira.
Muito mais do que uma câmera ou uma marca, o nome Polaroid se refere a um processo único de produção fotográfica, que marcou toda uma geração, possibilitando novos usos vernaculares e conquistando adeptos tanto no mundo da fotografia canônica, entre eles Ansel Adams e Walker Evans, quanto entre os artistas e os fotógrafos experimentais, como Andy Warhol, William Anastasi, Elen Carey, Lucas Samaras, entre muitos outros. A primeira câmera Polaroid surge em 1947, com a promessa de tornar dispensável o processo de revelação, criando um tipo de fotografia instantânea. Edwin Land, criador do processo e fundador da empresa Polaroid, rejeitava o termo instantâneo por sua imprecisão e pela confusão que poderia causar, já que a história da fotografia costumava usá-lo para falar do tempo de exposição do filme, já rápido o bastante nessa época para que a foto fosse considerada uma captura instantânea. O que estava em jogo, então, era a vontade de que tudo o que acontece depois do clique fosse feito de maneira mais rápida, tornando desnecessárias as etapas subsequentes para a revelação do filme (tirar o filme da câmera, enviar para um laboratório, revelar o negativo e depois ampliar a imagem em uma folha de papel fotográfico). Por esse motivo, Land preferia a ideia de uma one-step photography.
No entanto, a primeira versão da câmera Polaroid ainda exigia do fotógrafo uma série de ações que tornavam esse processo muito menos automático do que o prometido: o fotógrafo precisava esperar alguns minutos para puxar o papel que cobria a foto durante o processo de revelação, impedindo que o filme continuasse a ser sensibilizado pela luz. Apenas em 1972, com o lançamento da câmera SX-70 a fotografia de fato era ejetada do aparelho praticamente pronta, sem que fosse necessária nenhuma outra ação do fotógrafo (Buse, 2016). Todas as câmeras Polaroid partem do mesmo processo básico: após a exposição do filme, um sanduíche de folhas de negativo e positivo sai da câmera através de um mecanismo de roldanas. Essas roldanas estouram uma bolsa de reagente e espalham a substância em uma camada fina, colocando em ação o processo de revelação. Graças a um agente opacificante, químico, que protegia a imagem ainda em formação, a imagem produzida pela SX-70 poderia ser revelada diante dos olhos do fotógrafo, em um processo conhecido como integral film7.
O que poderia parecer apenas uma economia de tempo e dinheiro, na verdade, revelou novas potencialidades para a prática fotográfica. O fato de a fotografia se fazer diante dos olhos do fotografado criava uma intimidade única entre fotógrafo e fotografado, possibilitando que imagens possivelmente constrangedoras – nus, poses eróticas ou mesmo pornográficas – não precisassem de um olhar externo, nem corressem o risco de acidentalmente chegarem a um público não-autorizado. Esse uso, que certamente foi bastante explorado no âmbito da fotografia vernacular, também ganhou adeptos entre fotógrafos profissionais, como Mapplethorpe, por exemplo, cujo extenso trabalho em Polaroid teve uma retrospectiva no Whitney Museum em 2008 (Bonanos, 2012, p. 73). Outros aspectos que diferenciam uma foto Polaroid de uma foto produzida pelo método tradicional são: a unicidade, a efemeridade e a espessura da imagem criada. Além de não possuir um negativo a partir do qual a imagem possa ser infinitamente reproduzida, uma foto Polaroid tende a perder qualidade com o tempo, à medida em que é exposta à luz. As fotos dessa câmera também tinham necessariamente uma moldura e um formato pré-estabelecidos que dão à fotografia Polaroid uma marca própria, um estilo, que as tornam inconfundíveis. As imagens resultantes do filme integral da SX-70 também possuíam um inconveniente técnico que passou a ser um elemento estético adicional, uma certa falta de foco derivada da necessidade dos corantes de ultrapassar uma camada espessa de pigmentos brancos (Bonanos, 2012, p. 101).
Muitas dessas características tornaram as câmeras Polaroid extremamente atraentes para fotógrafos e artistas que viviam um momento em que o experimentalismo era uma constante, fosse em trabalhos processuais, conceituais ou performáticos. O autorretrato performativo de William Anastasi, Nine Polaroid Photographs of a Mirror (1967) e os mosaicos das famosas montagens de David Hockney são exemplos de como a instantaneidade do processo da Polaroid foi explorada nessa época. Mas, uma das práticas mais interessantes que esse processo proporcionou foi a possibilidade de intervenção no próprio momento em que a imagem está sendo revelada, através de alterações físico-químicas que produziam efeitos inesperados e altamente perturbadores, como os emblemáticos autorretratos de Lucas Samaras, ou alguns trabalhos de James Welling do início de sua carreira.
Ainda que a Polaroid não tenha se tornado tão popular no Brasil quanto em outros países, segundo Pedro Vasques, autor do texto do catálogo da exposição “Polaroid – imagens instantâneas” (1986), ela se configurava como “um terreno livre onde a imaginação mais delirante pode se desdobrar em infinitas combinações” (Vasques, 1986, p. 1). Pedro Vasques referia-se às potencialidades oferecidas pela câmera SX-70, uma grande promessa de avanço tecnológico radical, especialmente no que dizia respeito ao processo de autorrevelação da imagem. Tal promessa foi interpretada por Eduardo Kac como mais uma possibilidade de transgressão para a imagem, a partir da interferência no processo convencional de revelação da fotografia. Tratava-se, para Kac, de criar etapas intermediárias durante o processo automático da Polaroid nas quais ele pudesse intervir de modo criativo e inesperado.
Integram a discussão sobre a Polaroid antigos dilemas fotográficos, como a sua relação direta ou indireta com o campo das Artes Plásticas, e a sua condição de mímesis, sempre tensionada tanto por aqueles que buscaram na fotografia as suas singularidades, quanto por aqueles que desde sempre a viram como parte de um repertório de múltiplas possibilidades inventivas em diálogo com outras artes. De modo geral, algumas práticas e o discurso sobre as potencialidades da Polaroid indicavam um caminho de liberdade para a fotografia, uma possibilidade de intervenção e criação durante um processo que já não envolvia laboratórios e químicos específicos. Sobre esse contexto, são emblemáticos os artigos de Florence Méredieu e Hervé Guibert (1981), que sob perspectivas diferentes associaram a fotografia Polaroid a uma liberdade erótica, muitas vezes relacionada também a uma liberdade de linguagem, “deixando espaço às imagens mais livres” (Meredieu apud Vasques, 1986, p. 7).
No intuito de alterar o processo automático de revelação da imagem, Kac muitas vezes separava as camadas de papel e química que compõem a fotografia em Polaroid. Outras vezes, a intervenção acontecia ao final do processo, com a inserção de objetos entre as camadas do filme e da revelação, criando imagens irreconhecíveis, informes, borradas e distorcidas. Uma dessas intervenções consistiu em aquecer, por exemplo, o composto químico utilizado para a revelação de Polaroid. Uma vez retirado o papel fotográfico da câmera, Kac acendia um isqueiro próximo à base química para esquentar sua superfície. O calor resultava na separação material das camadas através da criação de bolhas químicas que criavam uma dimensão volumétrica na fotografia, uma terceira dimensão em uma imagem que inicialmente foi concebida para ter apenas duas. Considerado por Pedro Vasques o trabalho mais radical dos seis artistas que compuseram a exposição da galeria da Funarte, as Polaroids de Kac foram descritas como “voluntariamente antifotográficas, e agressivamente antiestéticas” (Vasques, 1986, p. 5), descrição que pode se estender também às “Inimagens” apresentadas no MAM, três anos antes.


A interferência direta sobre a materialidade do fotograma foi o procedimento utilizado por Kac na Figura 3. Com a inserção de dois palitos de fósforo, um na vertical e outro na horizontal, atravessando e rasgando o papel fotográfico, o artista estabelece uma relação escultórica com a imagem fotográfica, que vai desafiar as principais definições canônicas da fotografia na modernidade: uma imagem estática, bidimensional, e feita com luz. Esse trabalho (Figura 3) nos intriga por diferentes aspectos, a começar pelo excesso de magenta, cor que ocupa praticamente todo o papel, e que poderia indicar um recurso de manipulação, utilizado pelos experimentadores na época, de virar o filme ao contrário na câmera para que a camada vermelha do filme – são três camadas de cor no negativo: azul, verde e vermelha – fosse a primeira a receber a química, criando assim um efeito conhecido como redscale. Observamos também alguns rabiscos na parte superior da imagem que direcionam a atenção do olhar menos para as formas capturadas com a luz, e mais para as formas adicionadas pelo artista ao longo do processo. Uma escrita poética ininteligível, voltada apenas ao estrato mais sensível da experiência perceptiva. Não é possível reconhecer a cena original fotografada com clareza, esta se perdeu em meio às manipulações e camadas de fluidos químicos, mas é interessante notar que Kac faz questão de que a imagem não seja uma abstração completa, pois estão aí os palitos de fósforo para nos oferecer uma relação com as formas, e desafiar o limite do fotográfico.
Na Figura 4, em meio a um chamusco, produzido pela intervenção no momento da revelação, conseguimos reconhecer as feições de um rosto masculino, de um amigo do artista. No entanto, essa feição resiste à unidade e à contenção de um rosto, ao se apresentar fragmentada, sem a delimitação dos contornos da cabeça, flutuando em um fundo bidimensional e sombrio. Como um espelho desgastado que perde parte da superfície refletiva, que nos remete ao “Retrato em um Espelho” (1938) de Raoul Ubac, a fotografia não nos devolve uma imagem totalmente reconhecível. O efeito de inquietação se dá justamente nesse estranho familiar que o reflexo/retrato se torna, como observa Rosalind Kraus em relação ao trabalho de Ubac (Kraus, 2002, p. 191).


O modo radical de trabalhar e interrogar os limites do corpo durante as experimentações visuais foi marca inequívoca dos trabalhos artísticos de Eduardo Kac no contexto da chamada Geração 80. Para Kac, o corpo era uma interface a ser trabalhada segundo uma variedade de práxis que compreendiam os seus sons e os seus movimentos, as suas formas e as suas funções, e os comportamentos individuais ou sociais (Kac, 2013, p. 32). Na Figura 5, é possível perceber vestígios do que poderia ser uma pequena estatueta em que dois corpos, possivelmente humanos, se unem em um ato libidinoso, ainda que não possamos ver com clareza por conta dos muitos arranhões e rabiscos sobre o papel fotográfico, incluindo a moldura característica do formato Polaroid. E na Figura 6, percebemos a sombra da mão de alguém, quase um fotograma dessa mão, com pouquíssima visibilidade, sem nenhum detalhe, apenas uma forma em processo de dissolução, não fosse o prego no centro da imagem atravessando a materialidade do papel. Todas as imagens em Polaroid feitas por Kac guardam os vestígios da manipulação do artista: cortes, rabiscos, manchas, bolhas, impressões digitais. São interferências diretas sobre a materialidade da imagem, produzindo um apagamento parcial da cena, porém criando uma outra camada para a observação, capaz de pôr em dúvida o registro, questionando o que a imagem fotográfica realmente pode nos dar a ver, tanto quanto a própria tarefa de fotografia.
A grande variedade de manipulações que a Polaroid permitia realizar expandiu enormemente as suas possibilidades plásticas, resultando na suspensão de sua mais importante característica para a modernidade, segundo Walter Benjamin: a sua reprodutibilidade. Para Benjamin (2012), a reprodutibilidade fotográfica foi responsável pelas mais radicais transformações no âmbito da arte e da política, pois uma vez emancipada de sua existência ritual, ou seja, operando fora de um regime de autenticidade, a arte teria uma função social diferente. Mas, se a Polaroid devolveu à fotografia o caráter de imagem única, irreprodutível a partir de um fotograma, ela certamente não promoveu um retorno às sujeições ritualísticas de uma estética da autoridade tal qual o regime dominante que imperava antes de seu surgimento. Primeiro porque a radical transformação de perspectiva sobre o que a arte é ou pode vir a ser decorrente do abalo provocado pela fotografia no campo da arte já não permitiria esse tipo de retrocesso. A própria ideia de uma fotografia única expressa o problema para ambos, a arte e a fotografia. E segundo porque as imagens únicas das Polaroids já não determinam um tipo de observação contemplativa descomprometida, e sim um observador atento, perturbado e ativo, provocado a se relacionar com a imagem segundo suas variações técnicas, estéticas, conceituais e políticas.
Para a pesquisadora Nathalia Brizuela, autora do livro Photography at its Limits (2019), a fotografia na era digital estabelece uma relação de poder assimétrica no processo de produção e recepção de mensagens, à medida que reproduz e reforça a ideia de que se trata de uma captura única de um momento passageiro, ou seja, a captura de uma verdade do mundo, seja do ponto de vista de quem faz a fotografia, ou de quem visualiza a imagem na rede social onde está circulando. A tecnologia e o acesso a ela são ressaltados pela autora como os fatores principais responsáveis por esta assimetria, determinando e sustentando, por exemplo, o colonialismo e a exploração (Brizuela, 2019, p. 10). Sob essa perspectiva, a fotografia moderna teria sido responsável por uma complexa crise que abrange simultaneamente o excesso de exposição e a naturalização de códigos como se fossem verdades, e a total invisibilidade para aqueles sem acesso a fotografia. Desse modo, forçar a fotografia ao seu limite seria também uma forma de criticar algumas destas tradições enraizadas em um ideal único de verdades a priori. Em um texto anterior, The matter of photography in the Americas, em 2018, Brizuela já afirmava que os artistas que optavam pela irreprodutibilidade da fotografia em suas produções produziam uma crítica da visibilidade total imposta pela era da Internet: “O trabalho único (a Polaroid, por exemplo) resiste ao deslocamento, à velocidade, à qualidade informativa da imagem na atualidade” (Brizuela, 2018, p. 9).
No jogo do visível e do invisível oferecido pelas imagens, a questão da representação retorna nas fotografias instantâneas como um limite a ser experienciado. Se, de fato, nas Polaroids de artistas como Eduardo Kac não vemos forma alguma com clareza, apenas fragmentos, lampejos, insinuações do que a imagem já não é, então é preciso observar o que essas imagens dão a ver no limite de seu próprio desaparecimento. Assim como “Atardecer 1103904104” (2015), da artista costa-riquenha Priscilla Monge, uma Polaroid sem nenhuma forma visível, apenas um infinito degradê dourado que diz respeito à materialidade do mundo ele mesmo, trata-se de questionar a própria matéria fotográfica para promover a crítica da desmaterialização prometida pelo digital (Brizuela, 2018, p.8). De modo semelhante, as imagens de Kac convocam a uma observação sensível, um modo de olhar que é mais tátil, que se desdobra sobre a superfície, passeia pelas dobras, e se volta às sensações provocadas pela luz.
Para muitos artistas das décadas de 1960 e 1970, a Polaroid foi recebida como um quadro em branco a ser preenchido de diferentes maneiras (Hitchcock apud Indrisek, 2017). As manipulações de Peter Beard com escritos e desenhos sobre a imagem Polaroid usando tinta, caneta, e eventualmente até sangue; as colagens inusitadas em grande formato de John Reuter; e as “Photo-Transformations” (1972) de Lucas Samaras, tornaram-se emblemáticas de um tipo de experimentação com Polaroid que incorporava erros, defeitos e diversos tipos de montagens durante processo de realização da imagem, além da inserção e manipulação de objetos sobre e através da película, criando efeitos visuais fotográficos inéditos. A transformação operada pelas imagens de Lucas Samaras, por exemplo, pode ser observada tanto como uma transformação no próprio estatuto da realidade, quanto na definição do que seria uma imagem fotográfica. Se, por um lado, a Polaroid apresentava-se como a tecnologia ideal para captação da realidade, fortalecendo a crença na fotografia verossimilhante, por outro lado, as imagens fantásticas, fabuladas, alucinadas de Samaras expuseram o conflito de uma evidência fotográfica impossível. As imagens de Eduardo Kac inscrevem-se neste conjunto mais amplo de experimentações que exaltavam o monstruoso e o psicodélico, se desenvolvendo para além dos limites do visível e do representável.
O INFORME FOTOGRÁFICO E A TRANSGRESSÃO DA FORMA-FOTOGRAFIA
Pode-se dizer, de modo generalizante, que praticamente toda a produção fotográfica experimental do século XX se deu a partir de um desejo de transgressão das formas canônicas de produção de imagens. Uma tomada de distância estética e política em relação ao funcionamento convencional dos aparelhos para encontrar outras possibilidades em seus contra-usos.
O conceito de “aparelho”8 (ou aparato, a depender da tradução), forjado por Flusser, e a maneira como ele pensou ser possível para o artista corromper a sua programação através do jogo, parecem refletir muitas das práticas experimentais da fotografia (Lenot, 2017). Flusser acredita que para além de uma relação funcional do aparelho é possível explorar o programa de maneira lúdica. É evidente que muitas práticas experimentais, nas diferentes linguagens – não apenas na fotografia experimental – se dão a partir do jogo e da desconstrução do que está previsto nos aparelhos produtores de imagens técnicas. Entendendo a fotografia experimental como um gênero, dentre muitos outros, há a recorrência do tipo de prática que vimos nas fotografias Polaroid de Kac, em que o aparelho é colocado em seu limite, explorando suas falhas e suas potencialidades não previstas. Como bem sintetiza Michel Poivert (2017, pp. 9-10):
O experimental é um gênero que toma o meio como terreno de experiência estética. Trata-se de uma prática poética que, utilizando todos as potencialidades oferecidas pelos materiais e as manipulações fotográficas, abre o meio a si mesmo, e cujos efeitos desestabilizam a relação usual que o espectador mantém com a fotografia. … O experimental é uma experiência dos limites.
Para realizar a experiência dos limites é preciso um gesto transgressivo pois, segundo Foucault, a transgressão é um gesto relativo ao limite, que pode resultar apenas na própria experiência do limite manifestada na espessura da linha ultrapassada. “A transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória” (Foucault, 2009, p. 32). O que esse jogo de vai e vem revela é, sobretudo, uma incerteza a partir da qual o limite se abre ao ilimitado. No entanto, nos diz Foucault (2009), nesse mesmo movimento violento da ultrapassagem, a transgressão se desencadeia na direção do limite e daquilo que está nele encerrado. Ligadas em uma relação em espiral, limite e transgressão teriam uma existência complexa, que não pode ser comparada a um sistema simplificado de oposições. Nessa relação há apenas a afirmação do ilimitado.
Segundo Didi-Huberman (2015) em sua preciosa análise da revista Documents, a transgressão em Georges Bataille é antes de tudo a transgressão da forma. A transgressão da forma conduz ao limite, e a partir dele a forma pode se constituir, se desfazer, ou se reinventar. Mas é preciso ressaltar que não há em Bataille uma transgressão no sentido de uma recusa da forma, mas sim “a abertura de um corpo a corpo, de uma investida crítica, no lugar daquilo que acabará, num tal choque, transgredido” (Didi-huberman. 2015, p. 28). Trata-se, portanto, de um trabalho que engaja praticamente toda a filosofia, ao desfazer – revirar seria a expressão usada por Bataille – a exigência de que cada coisa tenha uma forma. Em seu curto, porém explosivo, artigo sobre o informe, Bataille associa o informe à função de desclassificar, criando uma semelhança exatamente onde está a dessemelhança, exemplificada por ele como: “o mundo como escarro” ou “o universo como uma aranha”9.
O informe teria, portanto, uma vocação transgressiva, um gesto de deformação, capaz não apenas de negar a forma inicial, mas engajar-se no “trabalho das formas” (Didi-huberman, 2015, p. 29), indicando uma abertura para a invenção de algo absolutamente novo. Segundo Didi-Huberman (2015, p. 28), “a transgressão não é uma recusa, mas a abertura de um corpo a corpo, de uma investida crítica, no próprio lugar daquilo que acabará, num tal choque, transgredido”.
Ao marcar presença significativa no cenário do que hoje chamamos de fotografia contemporânea10, é fascinante que o experimental tenha adquirido lugar de destaque. São cada vez mais frequentes os trabalhos que assumem uma compreensão do atual regime de imagem como aquele em que predominam as passagens, as lacunas e os desvios de regimes de imagem hegemônicos, bem como o cada vez mais intenso diálogo entre os meios. Nesse contexto, destacam-se os trabalhos em que a imagem não nos é oferecida com clareza, imagens borradas, distorcidas ou em estado de apagamento, explicitando uma complexa relação ente visível e invisível. É sob essa perspectiva que o trabalho de Eduardo Kac se inscreve como uma referência inédita no Brasil. Sua praticamente desconhecida produção em Polaroid integra um contexto histórico marcado pela transgressão da forma-fotografia11, levando a fotografia a fazer a experiência de seu próprio limite. Ao desfazer as formas, sem, contudo, romper totalmente com elas, ao ultrapassar a compreensão do que foi concebido como fotográfico na modernidade, mas sem deixar de fazer fotografia, Kac abre a fotografia a outras possibilidades e, sobretudo, ao diálogo com as outras artes.
EDUARDO KAC E A FOTOGRAFIA EXPERIMENTAL NO BRASIL
Ainda que seja possível mapear, no Brasil, diversos tipos de experimentações com a fotografia desde os anos de 1920 – a exemplo dos “Os trinta Valérios” de Valério Vieira ou as fotografias do projeto “Turista Aprendiz” de Mario de Andrade –, a história da fotografia experimental no Brasil é contada através dos movimentos fotoclubistas, em especial pelo Foto Cine Clube Bandeirante12, em São Paulo. Fundado em 1945, o Foto Cine Clube Bandeirante vai consolidar uma linha experimental, caracterizada pelas geometrizações, abstrações e o intenso trabalho com a luz. Nomes como Thomaz Farkas, José Yalenti, Geraldo de Barros, German Lorca e José Oitica Filho, entre outros, constituíram o que mais adiante será a chamada Escola Paulista da fotografia, constituindo a ala experimental do fotoclube e responsável por influenciar as gerações seguintes.
A intensa busca de novas linguagens que motivou os artistas da década de 1980 é herdeira do legado deixado pela fotografia fotoclubista, mas também, pelos trabalhos seminais de artistas como Waltécio Caldas, Ana Bella Geiger, Iole de Freitas e Antonio Dias, entre outros, realizados a partir de fotografias (Fatorelli, 2003, p. 156). Desde então, é notável que o experimentalismo tenha se tornado uma marca constante na fotografia brasileira. Diante desse amplo conjunto de artistas contemporâneos que experimentaram com a fotografia, destacamos aqui as séries em Polaroid realizadas por Cassio Vasconcellos, “Noturnos São Paulo” (1998-2002), na qual segundo Nelson Brissac (2002), “a imagem polaroid faz com que a cidade, mergulhada na penumbra, emerja fulgurante”. Capturadas à noite com uma SX-70, as imagens de Cassio ganham cores, texturas, e materialidades outras, intensificando o jogo do visível/invisível através do contraste com imaterialidade e a fugacidade da cidade.
O trabalho de Eduardo Kac com as Polaroids é parte deste contexto marcado por uma intenção fortemente contrária ao modo de atuação hegemônico dos mais diversos dispositivos de visualização e leitura, na maior parte das vezes produzindo manipulações na matéria da fotografia com o objetivo de também promover alterações do tempo, questão que se desdobrará em seus trabalhos posteriores através de diversas estratégias13. A preocupação com a dimensão do tempo é presente em toda a obra de Eduardo Kac. O tempo como um operador de singularidades capaz de produzir diferentes percepções e experiências com as imagens aparece em seus trabalhos de modo recorrente ao longo de sua carreira, e o levou a empregar recursos técnicos e estéticos os mais variados.
Ao interferir nos processos convencionais de funcionamento da fotografia, Eduardo Kac amplifica a compreensão do fotográfico. Com o trabalho das Polaroids, “a mais tátil das fotos” segundo o pesquisador Philippe Dubois (Dubois, 1993, p. 294), Kac subverte seus códigos de produção e de recepção e cria novas dimensões espaciais e temporais para as imagens fotográficas. As Polaroids de Eduardo Kac foram expostas em molduras de vidro que respeitavam o volume da imagem, criando assim um objeto-fotografia que poderia ser visto pelo observador sob diferentes perspectivas. É importante destacar o caráter de escultura fotográfica, ou foto-escultura14 em seu trabalho, em uma compreensão expandida dos territórios da escultura e da fotografia, ao atribuir à fotografia não apenas uma terceira dimensão espacial, mas também uma quarta dimensão temporal. Segundo o artista, tratava-se para ele menos de compor uma cena, e mais de explorar o tempo.
A fotografia em seu limite nos permite refletir não exatamente sobre o que é a fotografia, mas sobre aquilo que ela pode vir a ser, sobre o que ela é em devir. Trata-se de um esforço para conduzir um outro olhar sobre as suas concepções modernas essencialistas, as suas tentativas de teorização e, também, de redução a um conjunto de estratégias singulares que remetem a um modelo de representação único, bidimensional e sempre associado a sua estaticidade. Sob essa perspectiva, pode-se dizer as passagens entre as imagens, os híbridos foto-cine-videográficos e os diferentes modos de inscrição das imagens sempre existiram, mas operaram historicamente sob a genérica denominação de experimental, conforme aponta Antonio Fatorelli (2013, p. 10). Integram esse campo experimental, trabalhos que vão desde a fotografia pictorialista, à produção fotográfica das vanguardas modernistas, até as configurações híbridas mais recentes, que desafiam esse modelo único da fotografia, demandando novas formulações e considerações sobre o que a fotografia também pode ser.
REFERÊNCIAS
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Notas
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