Resumo: Em A Superindústria do Imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível, Eugênio Bucci se debruçou sobre o tema por um terço de século e propõe reconfigurar e exponenciar a imbricação da linguística e da psicanálise na comunicação – transformada em centro do capitalismo extrator de dados, circulando-os como mercadoria, sobretudo entre os propagandistas, influindo no fluxo da informação, tão cara em tempos de um espalhamento desmedido de fake news. Assim, o olhar, como um vórtice que atua em circuitos secretos, é um ato de linguagem. Afinal, em sociedades fantasiosas, o sujeito, como uma espécie de joguete, tem seu pensamento substituído pelo olhar para, ao final, encontrar o gozo.
Palavras-chave: Superindústria, imaginário, capital, olhar, gozo.
Abstract: In A Superindústria do Imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível, Eugênio Bucci worked on the topic for a third of a century, proposing to reconfigure and broaden the imbrication of linguistics and psychoanalysis in communication—transformed into the core of a data-extracting capitalism which circulates them as commodities (especially among advertisers), influencing the information flow so dear in times of unrelenting spread of fake news. Hence, the gaze as an axis acting in secret circuits configures an act of language. In fanciful societies, subjects, as if puppets, have their thoughts replaced by the gaze to, at last, find jouissance.
Keywords: Super-industry, imaginary, capital, gaze, jouissance.
RESENHA DE LIVROS
O olhar como vetor do pensamento e do gozo
The gaze as a vector of thought and jouissance

| Bucci E.. Bucci, E. (2021). A superindústria do imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. Autêntica (Ensaios).. 2021. Autêntica. 448pp. |
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Recepción: 25 Abril 2022
Aprobación: 02 Octubre 2022
QUANDO NOS DEMORAMOS com o olhar ou com o ouvido em algo – qualquer coisa, texto, áudio, vídeo etc. –, o algoritmo invisível de plantão dentro de nossos gadgets, capta e registra dados para reforçar o molde do nosso perfil, constantemente analisado, colocado e recolocado em bolhas, indefinidamente. O tempo depositado olhando, gasto lendo ou ouvindo é computado. Se há aplicativos que, quando instalados, nos colocam diante da parte em que paramos para que possamos retomar o olhar daquele ponto, sem prejuízo, as equipes de monitoramento de plataformas, portais, sites e aplicativos sabem exatamente se fomos até o fim ou se abandonamos no meio. É possível “burlar”: abrir algo, deixar rodando e fazer outra atividade concomitante, principalmente quando estamos no modo ouvinte, e largamos as audições seguintes como um flaneurismo da escuta, mas “eles” contam com essa falha na probabilidade.
Por isso, nos dias atuais, temos a preocupação em passar rápido pelas coisas que aparecem nas timelines das nossas redes, nos canais e nas páginas que abrimos diariamente. Parece cisma? Não é. Se paramos o olhar para admirar um corpo bonito (como fazemos ao vivo e a cores, fora das máquinas), ou não resistimos e, cansados da sordidez da rotina, clicamos em um vídeo fofinho de um filhote (como acariciamos os animais de estimação), ou perdemos tempo lendo ou vendo uma live com mais uma atrocidade dos governantes (como quando parávamos na banca de jornal para folhear os periódicos), pronto, dito e feito. No ciberespaço, não tem escapatória, receberemos mais e mais do mesmo para retroalimentarmos com nosso olhar. Diga-me para quem olhas que te direi quem és. Isso é notório, mesmo para quem não estuda o comportamento dos usuários na internet, quando começam a pulular anúncios e informes publicitários de coisas relacionadas às nossas buscas cotidianas. Há quem deixe de pesquisar algo (ou “googlar”) para evitar receber uma avalanche publicitária, associada àquilo que se buscou, e o pior, por meses a fio. Assim, acabamos por ver “material patrocinado” do que acham que queremos ou precisamos ver, e muitas vezes o algoritmo acerta.
Eugênio Bucci dispensa apresentações detalhadas. Docente titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, é autor de livros na área da comunicação e uma referência nos estudos de Jornalismo. Conhecido pelo público leitor de jornais por sua coluna no Estadão, o jornalista faz críticas contundentes nas apreciações do estado da arte político, e ele faz isso com cuidadosa escrita, cujo poder de atração fisga, até mesmo a quem não se interessa pelo assunto.
Quem leu Videologias: ensaios sobre televisão, 2004, escrito em parceria com a psicanalista Maria Rita Kehl, terá uma melhor compreensão do mais recente livro de Bucci, A Superindústria do Imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível, publicado em 2021 pela editora Autêntica. A obra amplifica o estofo das ideias esboçadas anteriormente, atualiza conceitos, acrescenta outros vieses e, ao mesmo tempo, se mostra como uma leitura necessária para não sermos engolfados por essa “superindústria”, esse monopólio do capital sobre o imaginário, e para que saibamos nos esquivar dela.
A leitura de quase 500 páginas está longe de ser um passeio no bosque, demanda esforço com olhos de ver, mas esse percurso é atenuado por uma escrita leve, ilustrada com histórias como a de um filósofo sem cabeça, de quem brincava com Tamagotchi, com letras de música e inúmeros exemplos, próprios de quem é professor, que dão parâmetros para que todos os leitores (estudantes ou não) compreendam. Em tempo: atente-se aos intertítulos: exemplo-mor de condensação própria de quem domina a língua. Já de início, quando analisa e articula os porquês do surgimento do poderio das gigantes triliardárias da tecnologia, a linguagem ensaística facilita o entendimento de termos e conceitos complexos como as superindustriais espacialidades e as temporalidades imaginárias, ou ainda pela troca e consequente desestruturação dos padrões comunicacionais das instâncias da palavra para a imagem eletrônica e ao vivo.
Bucci versa, de maneira pessimista, sobre o sujeito fragmentado, incerto e descartável, ao cabo, um sujeito dividido ao meio. No decorrer dos tópicos, a redação fluida é um atributo próprio do jornalista (convenhamos, é difícil escrever fácil) e de sua experiência como editor, o que torna a leitura de temática densa menos alabirintada, especialmente em dois dos capítulos: quando detalha a esfera pública habermasiana, nos anos 1960, e suas transformações até o telespaço público de extensão global, onde explica que não é a tecnologia que expande a esfera pública, “a força motriz da expansão vem do emprego social e econômico da tecnologia” (Bucci, 2021, p. 51), e na última parte, ao redefinir o “valor de troca de mercadoria, que sob o império da imagem, agora se compõe do valor do trabalho e também do valor do olhar para conformar o valor de gozo” (Bucci, 2021, p. 30), quando se vale de autonomia intelectual e adentra a espinhosa psicanálise, mesmo dizendo, como que se desculpando, que sua abordagem é a partir do campo da linguagem e da comunicação. A comunicação, aliás, ganha com este livro uma contribuição de prestígio, que repercute na cultura, no imaginário e na economia do advento da superindústria, a forma dominante do capitalismo atual.
Bucci denomina esse fenômeno corrente como superindústria, mas também poderia ser hiperindústria, já que estamos inseridos no mundo hiper em que uma coisa leva à outra; ou ciberindústria, pois é no ciberespaço que o olhar é captado e cooptado. É importante frisar, como coloca Bucci, que não se trata de uma pós-indústria, estamos em plena superindústria de tudo, daquilo que imaginamos e do que vamos imaginar amanhã e ainda nem sabemos. A superindústria sugerida por Bucci extrapassa a produção de bens de consumo e é transportada para o polo do imaginário.
Contudo, os estudos do imaginário, ou mesmo do capitalismo como indústria do imaginário, especialmente na comunicação, envolvem outros referenciais. Para ficarmos em apenas três deles, que fazem ponte ao imaginário cultural-social a que se refere Bucci, trazemos primeiro Malena Contrera (2021) com um diagnóstico:
Ainda será preciso expandir a discussão acerca de como o processo pelo qual os meios de comunicação sociais filtram do imaginário, da noosfera, uma série de conteúdos e práticas, retrabalhando-os e os ressignificando, para em seguida os repropor à sociedade, para que se apresente com maior clareza a importância dessa relação entre mídia e imaginário na contemporaneidade.
Podemos ressaltar ainda a esfera do imaginário de Byung-Chul Han (2018, p. 45), quando diz que “A comunicação digital se torna cada vez mais sem corpo e sem rosto. O digital submete a tríade lacaniana do real, do imaginário e do simbólico a uma reconstrução radical. Ele desconstrói o real e totaliza o imaginário”.
A questão do simbólico é crucial para Cornelius Castoriadis (1991, p. 277): “O imaginário social é primordialmente criação de significações e criação de imagens ou figuras que são seu suporte. A relação entre a significação e seus suportes (imagens ou figuras) é o único sentido preciso que se pode atribuir ao termo simbólico”.
Em A superindústria do imaginário, Bucci investiga nossa forma de parar o olhar nas coisas, o tempo que levamos em cada uma delas, a escolha do que olhar, retroalimentando o que está sendo olhado e o que isso pode acarretar. Como o “trabalho do olhar” atua na produção de significação e fabrica valor por meio do centro nervoso da economia – a economia dos dados, economia da atenção –, formado pelo núcleo do que o autor chama de “conglomerados monopolistas globais”, que se ocupam da comunicação, que se torna a grande ciência desse século e transforma-se no âmago do capitalismo, se valendo das mídias digitais como “um combustível e uma extensão”.
Segundo Bucci, esse processo superindustrial revolucionou o capitalismo e escancarou um totalitarismo que invade a privacidade das pessoas, sem a menor transparência. Vale reforçar o que já foi exposto, que na mudança do paradigma comunicacional da instância da palavra impressa (mediadas pela credibilidade dos jornais impressos) para a instância mastigada do audiovisual, da imagem em movimento, da imagem ao vivo da TV, chegamos, impulsionados pela internet e tudo que decorre da cibercultura, à instância das lives, dos streamings e dos memes virais efêmeros.
Bucci traz um panorama de como se dá a mutação, desde meados do século XX, o capitalismo que extrai os nossos dados, de maneira sistemática e muitas vezes sem consentimento, que cria um espaço de controle, acabou por converter o discurso e as informações íntimas em mercadorias. Por vezes, uma mercadoria fetichizada, como é chamada por Karl Marx, em O Capital, uma das influências neste livro, “[a] mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa” (Marx, 1985 apud Bucci, 2021, p. 347). Em outra passagem, para entender a “relação física entre coisas físicas”, Marx designa: “A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como forma objetiva de uma coisa fora do olho” (Marx, 1985 apud Bucci, 2021, p. 353).
A mercadoria é um signo, uma imagem, e, sobretudo “o que assumiu lugar de destaque, ou o primeiro plano, foi outra espécie de mercadoria”, infere Bucci (2021, p. 21), “uma mercadoria que não tem corpo físico palpável: os signos, sejam eles imagens ou palavras. O capitalismo dos nossos dias é um fabricante de signos e um mercador de signos – as coisas corpóreas não são mais o centro do valor”. Enfim, o capitalismo relega as mercadorias corpóreas, dotadas de alguma utilidade instrumental ou prática, para um segundo plano.
Para que os signos (visuais ou não) carreguem algum sentido, Bucci (2021, p. 265) esclarece que eles “precisam ter sido incorporados ao repertório ativo do público a que se dirigem. Por essa razão, não podem estar apenas sob controle estrito de manipulador. Eis o que significa dizer que, na ‘indústria cultural’, o consumidor é a ideologia”.
A questão de como o capital transformou e ainda transforma o olhar em trabalho é uma dedução apropriada e oportuna para refletirmos em que e em quem olhamos no espaço numérico, já que nosso olhar municia algoritmicamente as bases de dados que as plataformas, ou seja, os meios de produção, especialmente os incorporados, de forma opaca, pelas big techs armazenam sobre nós para usar à revelia, repassar para agências de propaganda-publicidade vender produtos, que nem sempre queremos e, muito menos, precisamos, direcionar campanhas políticas, em particular, àqueles indecisos, “em cima do muro”, influenciáveis ou mesmo os que não sabem em quem votar. Assim, quando Bucci diz que o capital se apropriou de tudo que é visível, essa afirmação é perspicaz, e poderia também abranger tudo que é audível (já “ouvível” é uma palavra que ainda não existe, mas podemos cunhar agora), enfim, visível, “ouvível” e dado de mão beijada a ponto de desconfiarmos; mas os ingênuos não desconfiam. “É assim, como trabalho, que o capital compra olhar social: para construir os sentidos dos signos, da imagem e dos discursos visuais que ele pretende pôr em circulação como mercadoria” (Bucci, 2021, p. 23). Eis, então, os pontos cruciais de como Bucci constrói seu campo teórico.
Bucci conta que, a partir da segunda metade do século XX, o capitalismo entrou em acelerada mutação e o corpo da mercadoria perdeu lugar para a imagem da mercadoria, interpelando o sujeito pelo desejo, não mais pela necessidade. Assim, o valor de uso deu lugar ao valor de gozo. Tal gozo é mais psicanalítico do que jurídico, tem uma função de gozo (expressão lacaniana), que Bucci envolve e fundamenta em uma perspectiva da comunicação, assim, é um gozo imaginário, ou seja, um gozo que a mercadoria proporciona, um valor fabricado industrialmente como valor de troca. Afinal, o valor de gozo está lá, fabricado no olhar social, e deixa claro que existe um valor de gozo na mercadoria. Enfim, chegamos ao gozo habitualmente, sem pensar no valor encarnado. Chegamos ao gozo para tentar aplacar nossos desejos, encher nosso vazio, tampar nosso buraco, para ter uma sensação de preenchimento. São só tentativas, porque os desejos nunca são aplacados, conforme Bucci deduz. A superindústria traga nossos desejos.
O autor faz uma distinção ao afirmar que não é simplesmente uma superindústria do entretenimento ou do espetáculo e, para embasar sua fala, traz como referência Guy Debord e sua sociedade do espetáculo. O imaginário aprofunda um sentimento que aciona o circuito secreto dos desejos, da subjetividade de cada pessoa e desemboca no que colhe de Lacan, o valor de gozo, ainda que Bucci (2021, p. 361) arrazoe que o psicanalista nunca descreveu a expressão “de modo minucioso como categoria econômica”. Bucci burila essa reflexão há mais de 25 anos e, no início, como aponta, nem sabia que vinha de uma cogitação lacaniana.
A tese estampada em A Superindústria do Imaginário tem origem em sua pesquisa de doutorado, defendido em 2002, sob a orientação de Dulcilia Buitoni. Embora o Google catalogue nossos dados desde 1998, naquela época, as plataformas de tecnologia estavam longe de serem as gigantes que se tornaram, esse é um dos pontos destacados por Bucci, a atual onipresença das redes sociais digitais em que os usuários (como que viciados) são explorados e trabalham de graça produzindo signos pensando que só passam o tempo ou se divertem e, no fundo, depositam seus olhares que valem dinheiro.
Em estágio inicial, Bucci concebia o capitalismo como um modo de produção baseado em imagens (e nos fetiches embutidos nelas), como relatado na coletânea de textos Videologias, cujo título remete à obra Mitologias, de Roland Barthes. No livro de 2004, Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl já buscavam pelo “gozo lacaniano” para considerar as ferramentas teóricas e o embasamento crítico no intuito de compreender as continuidades e rupturas dessa fase do capitalismo (Bucci & Kehl, 2004, p. 23). Os autores já sustentavam a noção de que os mitos são “mitos olhados”, assim, designaram e criticaram a televisão e sua produção imaginária que tem o propósito de roubar falas “(verbais, visuais, gestuais), todas falas ‘naturais’, e as devolve aos falantes” (Bucci & Kehl, 2004, p. 19). O poder exercido pela TV no seu auge dava variáveis para que fosse dito que era como o mecanismo de tomada de decisões que permitia “ao modo de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, a sua reprodução automática”. O poder, portanto, era a “supremacia do espetáculo”. De lá para cá, no traçado de sua trajetória, Bucci leva ao extremo sua investigação e recupera o passo a passo da força-tarefa empreendida por mais de duas décadas. Na transição do pensamento, se supera, e é plausível celebrar esta obra que reconstitui suas reflexões e ideias, que agora estão disponíveis a você, leitor(a). Então, encante-se, pois, como diz Bucci (2021, p. 417): “Se houver alguma solução, ela passará pela política. Não há mais saída fora da política”; é preciso manter os regramentos democráticos, enquanto não há regulações globais para diminuir o poder das big techs, fico por aqui, deixando uma de suas frases que, de tão linda, gostaria de incluir ao seu lado um emoji de corações nos olhos, mas como o autor não aprova os emojis, fica aqui sua poesia: “O espaço público agora se assemelha a uma abóbada, tão grande ou tão pequena quanto o céu azul que embrulha a Terra” (Bucci, 2021, pp. 48-49).