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As relações entre ciência e cultura: vinte anos da espiral da cultura científicaa
Relations between science and culture: 20 years of the Spiral of Scientific Culture
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 121-132, 2023
Universidade de São Paulo

ENTREVISTA

A PANDEMIA DE COVID-19 alterou profundamente as relações entre ciência e sociedade, criando demandas e oportunidades para que as informações científicas circulassem de forma mais aberta e veloz. Cientistas e divulgadores de ciência foram para a linha de frente e fomentaram o diálogo com o público. Sob alta demanda da sociedade, informaram sobre resultados de pesquisas ainda em construção; além disso, a partir de dados fragmentados, auxiliaram a tomada de decisão, a mudança de comportamento e o desenho de políticas públicas.

O processo não foi isento de tensões e tampouco o movimento foi unidirecional (dos cientistas para a sociedade). Esse caldo de conhecimento científico chegou aos brasileiros e, aplicado à singularidade de suas vidas, seguiu impactando cientistas e instituições de pesquisa, que tiveram que lidar com novas demandas. Grosso modo, esse contato de influência mútua da ciência com a sociedade compõe a chamada cultura científica.

As interações entre os diferentes atores sociais que produzem e consomem a informação científica, que codificam e decodificam essas linguagens para que a comunicação seja efetiva, além das especificidades dessas relações, estão representadas na Espiral da Cultura Científica, um modelo de comunicação da ciência desenvolvido pelo linguista Carlos Vogt há 20 anos.

Repensar a espiral a partir da emergência de uma nova doença respiratória causadora de uma crise de saúde pública mundial nos faz refletir sobre a relevância não só da circulação das informações científicas na esfera pública, mas também do modo com que se deu a apropriação desse conhecimento e seu desenvolvimento contínuo a partir de interações entre ciência e sociedade.

Vogt atua há três décadas fomentando a divulgação científica no Brasil. Aos 80 anos, completados em fevereiro de 2023, ele tem sido incansável em projetos ambiciosos e pioneiros voltados a ampliar o acesso público ao conhecimento científico. Mestre em linguística geral e estilística do francês pela Universidade de Besançon, na França, e doutor em ciências pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele foi um dos idealizadores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, criado em 1994 para ser um centro de pesquisa e acompanhamento crítico da mídia.

Há 24 anos, o laboratório oferece um curso gratuito de especialização em Jornalismo Científico e um mestrado em Divulgação Científica e Cultural, que celebra em breve seus 15 anos de história e 200 dissertações defendidas. Vogt também participou da criação da Agência Pesquisa Fapesp, que se tornou uma referência para pautar a mídia sobre ciência no país; também atua como poeta, tendo publicado sete obras.

Como gestor, Vogt passou por instituições consideradas importantes na produção científica nacional: de 1990 a 1994 foi reitor da Unicamp e, entre 2002 e 2007 foi presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). É um dos fundadores da Universidade Virtual do estado de São Paulo (Univesp), instituição que presidiu entre 2012 e 2016; foi Secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo (de 2007 a 2010); ocupa a cadeira 23 da Academia Campinense de Letras e a cadeira 15 da Academia Paulista de Educação. É co-fundador também da revista ComCiência, publicação-escola por onde jornalistas de ciência em formação se capacitam, além de ter sido editor-executivo da revista Ciência e Cultura, por mais de uma década. Nesse período, essa tradicional publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) retomou sua proposta inicial de ser um veículo de divulgação da ciência para a sociedade.

O conceito de cultura científica é de grande importância na compreensão da divulgação científica como parte de um fenômeno social e cultural por meio do qual a ciência se consolida. Através de espectro contínuo das diversas etapas de produção e difusão do conhecimento científico, Vogt aponta ser possível distinguir quatro quadrantes por meio dos quais a Espiral da Cultura Científica flui. Em cada um deles, a ciência assume diversos paradigmas, cumpre funções diferentes e dialoga com públicos igualmente distintos. Tal modelo tem também o intuito de afirmar a importância da cultura científica como fundamental para o exercício da cidadania. “Ter cultura científica não é ser cientista necessariamente (...). É ser cidadão, no sentido abrangente das sociedades contemporâneas”, enfatiza o linguista.

A espiral foi concebida em um momento de discussão sobre como a divulgação científica pode contribuir para o exercício da cidadania. Nesse sentido, a linguagem tem um papel relevante. Quando deixa o primeiro quadrante da comunidade científica, a linguagem se torna mais didática e, em alguns casos, afetiva. O movimento dos códigos continua até que dados e expressões muito internas na ciência se tornam integrados à cultura. A linguagem na espiral, assim, é o meio pelo qual cidadãos entram em contato com a ciência e apropriam-se dela para qualificar a participação nas questões político-sociais.

Nesta entrevista, Vogt retoma o conceito da Espiral da Cultura Científica à luz das novas conexões estabelecidas entre ciência e sociedade com a pandemia de covid-19 quando houve uma ampliação do acesso público ao conhecimento científico. Isso se deu por meio de iniciativas de ciência aberta, como artigos sem barreiras econômicas para o acesso, bancos de dados compartilhados entre cientistas e a publicação de manuscritos científicos conhecidos como pré-prints. Na pandemia, a ciência se abriu para o “o outro”, o não cientista, exemplificando em alta velocidade o contato da ciência com a cultura que a espiral postula. “A ciência sai de um particularismo de comportamento e vai, em um movimento, adquirindo a universalidade da comunicação. É aí que ela vira cultura total”, descreve Carlos Vogt.

MATRIZes: Ciência Aberta (Open Science) e Acesso Aberto (Open Access) são normalmente tratados como temas que interessam somente à comunidade científica. Contudo, a divulgação científica é uma forma de abrir esse conhecimento para outros públicos e de abrir o cadeado dessas publicações, pois permite o acesso gratuito a produções científicas. Com as novas políticas de acesso aberto, como quando agências de fomento determinam que estudos financiados por elas devem ser publicados sem barreiras econômicas a todos, isso parece criar uma nova cultura científica. Como você enxerga essas questões?

Carlos Vogt: É como no caso dos medicamentos genéricos, existe o regime proprietário, ou seja, as patentes, e há um movimento internacional de quebrá-las. Dessa forma, você garante o acesso ao medicamento e a uma tecnologia de saúde. Imediatamente, as grandes empresas, como Sandoz, Pfizer, entre outras, passam a produzir os genéricos. Essa é a maleabilidade do capitalismo e é preciso prestar atenção nisso porque o assunto é manter a propriedade de alguma forma. Isso é sofisticado, mas ainda é sobre manter a propriedade. Entra nisso uma questão importante: de que forma o sistema se adapta? Como ele se reinventa? Como ele mantém aquilo que é fundamental para ele? Nesse caso, o fundamental é cobrar de alguma forma.

O Aaron Swartz1 propôs mexer na estrutura da propriedade intelectual através da tecnologia, dos artigos e, consequentemente, do sistema de controle econômico desses artigos. Quais são as consequências disso para outras grandes instituições, que são cientes da propriedade, do controle e das consequências que tudo isso teve? No caso dele, houve não só a consequência trágica de sua morte, mas as consequências tecnológicas e culturais pensando em cultura científica e na questão relativa à propriedade, aos pagamentos.

Não é que tudo mudou; o sistema econômico é poderoso. Existe uma coisa chamada capitalismo e ela é poderosa. O fundamento do capitalismo é a propriedade, então mexer nisso não é trivial. Eu acho que isso é um ponto importante. Penso que refletir sobre Open Science implica em tratar disso também, já que é uma questão interna.

MATRIZes: Você pode retomar as ideias que influenciaram a criação da espiral há 20 anos?

CV: Eu me lembro exatamente da criação dela em 2003. Eu estava pensando no assunto da divulgação científica e me lembrei do que havia dito, em determinado momento dos anos 1980, o físico inglês John Ziman2, de que a comunicação é parte essencial da ciência, ela é fundamental.

E há também o assunto da alfabetização científica, que prevaleceu em toda uma linha de atuação nos Estados Unidos e depois ganhou força também na Europa. O modelo simplesmente dizia que aqueles que sabem têm que educar, alfabetizar aqueles que não sabem. Então, o papel da divulgação científica era esse, de levar informação, acrescentar a informação. Com os anos, essa ideia foi criticada e é no interior dessas críticas que se constitui o conceito de cultura científica.

Com ele, tenta-se enxergar essa relação de comunicação como uma atividade mais complexa que diz respeito não só à educação, mas, sobretudo, à formação mais ampla social das pessoas dentro dessa cultura científica. Isto é: ter cultura científica não é ser cientista necessariamente. Pode ser, claro, mas não necessariamente. É ser cidadão, no sentido abrangente das sociedades contemporâneas.

O conceito de cultura científica nasce nesse momento, na minha concepção. Porque entender a ciência como cultura é exatamente expor a ciência ao outro, é necessário que haja um outro. E o outro da ciência é aquele que a divulgação pretende atingir, aquele em que ela quer chegar. O outro da ciência é o não cientista.

MATRIZes: Mas muitas vezes a ciência se comunica para chegar somente a aqueles que compartilham dos códigos dela, certo?

CV: Realmente, há a questão da maneira com que você conversa com um não cientista, a partir do momento em que a ciência se tornou um fenômeno tão cifrado, codificado e abstrato que não pode ser compreendido por imagens e metáforas. Você vai se distanciando cada vez mais do mundo analógico (ou da analogia) e entra na formulação de um código que é autossuficiente, que tem a sua lógica, a sua consistência, a sua eficiência, sua eficácia e assim por diante.

As linguagens matemáticas vão se transformando mais e mais na linguagem do mundo, ou melhor, na linguagem capaz de entender o mundo, especialmente com a Física e a Biologia. Acontece que essa linguagem vai se abstraindo e chega a um nível de abstração em que não há como você jogar ao outro, o leigo, uma referência analógica capaz de sensibilizar o conceito. Contudo, a ciência ainda assim está o tempo inteiro preocupada exatamente em tentar explicar o mundo.

Acontece que os fenômenos científicos são carregados pelo movimento cultural. A Física conheceu uma grande transformação no fim do século XIX e começo do século XX, em que o mundo estava totalmente ordenado e no qual a física de Newton enxergava as relações de causa e efeito com uma clareza fenomenal. De repente, chega um cara – o Einstein3, depois o Max Planck4 – e diz que não é nada disso, que as coisas não são tão certinhas desse jeito. A partir disso, a Física Quântica vai se desenvolver e dizer que as coisas não são da maneira como se pensava, que tem seres que estão e não estão, que aparecem e desaparecem.

Então, como é que você capta esse bicho? Isso muda tudo e traz consequências culturais que todos conhecemos – consequências fantásticas e políticas, como guerras, surgem com as grandes mudanças que os paradigmas da ciência vão imprimir. Quem olha para o positivismo se assusta, se perguntando “como é possível”?

O que acontece com a ciência vai ser fundamental para essa criação da cultura científica. Esse grande fenômeno (a Física clássica e a Física moderna), de grande mudança, que vai mexer com o paradigma, transforma tudo completamente. E a incorporação disso não é uma coisa única. A incorporação do Darwinismo e do evolucionismo também chacoalha tudo e coloca, digamos assim, uma relatividade sobre esses valores todos.

É um mundo que se transforma e esses movimentos transformam também a relação da ciência com a sociedade. Com o tempo, vai se instaurando esse outro que será fundamental para a formação do conceito de cultura científica porque exatamente não se trata de cultura da ciência, trata-se de uma cultura orientada e determinada por tudo aquilo que a ciência faz, pelas suas técnicas e consequência, mas cujos participantes não são necessariamente cientistas. Tudo isso significa que é preciso falar sobre a comunicação da ciência.

MATRIZes: Como você desenvolveu o conceito da Espiral da Cultura Científica com essas questões em mente?

CV: Pensando nesse fenômeno, distribuí momentos da relação entre ciência e sociedade em cada um dos quadrantes do ponto de vista didático. É uma metáfora, tentando caracterizar cada um desses momentos.

Então, tem o momento propriamente da produção da ciência, no qual a comunicação é fundamental, mas altamente codificada, porque acontece entre pares. Trata-se de uma comunicação entre iniciados, então é preciso conhecer os códigos porque senão você não entra de jeito nenhum. Esse momento, que está caracterizado como o primeiro quadrante, é o da produção e da comunicação da ciência através dos artigos científicos, congressos e tudo mais.

Tem um segundo momento que é fundamental, porque é a chave da coisa toda, porque é nele que a ciência se comunica de forma didática. Aquilo que é cifrado como linguagem, que é altamente codificado e especializado no primeiro quadrante é didatizado no segundo, porque é preciso ensinar. Então, a relação se dá em um espaço próprio que é a escola, em diferentes níveis e momentos. Mesmo assim, é uma comunicação teoricamente de quem sabe para quem não sabe, mas que vai saber.

Portanto, a história da linguagem é fundamental nessas distinções porque você tem uma linguagem cifrada e especializada de acordo com a ciência e você tem também uma linguagem didática que é predominantemente voltada para a intenção de fazer saber.

O momento seguinte é o do movimento de procurar fazer com que as pessoas amem a ciência. Eu até brinco com a palavra e digo que é o momento dos amadores da ciência: aqueles que a amam e não são profissionais. Estão aqui o nascimento dos museus de ciências no século XIX, as feiras, os grandes eventos, exposições, entre outros. A intenção é a seguinte: em uma sociedade que se transforma após a Revolução Industrial, feita em cima do desenvolvimento da máquina a vapor, da energia e do carvão – em que surgem novos desafios com o tempo das grandes máquinas e suas consequências sociais – é preciso então formar pessoas no sentido amplo, educá-las, porque você precisa de mão de obra para manipular essas máquinas. Então, você precisa atrair as pessoas para esse interesse, precisa despertar o amor dessas pessoas por essa nova realidade.

Há uma mudança total de conceito e, ao mesmo tempo, passamos para o quarto quadrante, no qual há ainda a necessidade de levar a ciência ao outro. Não há como evitar isso dentro desse conceito de cultura científica, já que é a alteridade que constitui a cultura. Então você tem, desde pelo menos o fim do século XIX, as grandes revistas francesas e inglesas de divulgação, que são revistas de curiosidade, mas que trabalham também com essa questão.

Especialmente no século XX, com as grandes mudanças que acontecem nos paradigmas da ciência, você tem todo um movimento de alfabetizar cientificamente. Isso não é formar cientista, você vai fazer com que as pessoas tenham algum letrismo em ciência e, portanto, não se entediem, não fujam dos temas de ciências que começam a aparecer nas páginas de jornais e mais tarde nas editorias.

É esse grande movimento que fecha, do ponto de vista da espiral, essa dinâmica que passa pelos quadrantes. Quer dizer, a ciência sai de um particularismo de comportamento e vai, em um movimento, adquirindo a universalidade da comunicação. É aí que ela vira cultura total. Depois a espiral avança e volta para o mesmo eixo, embora não no mesmo lugar porque, teoricamente, as pessoas se transformaram, existem novas descobertas, então ela começa o ciclo outra vez. Como se trata de comunicação, eu acho que, em tudo isso, uma coisa fundamental é a questão da linguagem.

MATRIZes: Por que a linguagem é tão importante?

CV: A linguagem em cada um dos quadrantes não é a mesma, embora tenha parentescos. A linguagem da comunicação da ciência entre pares é, como eu disse, cifrada, abstrata, em código especial e próprio. Portanto, é absolutamente esotérica em um dos sentidos que o Aristóteles falava do esoterismo5, até chegar ao ponto de ser exotérica com ‘x’ (isto é, que é a da comunicação). Penso que uma coisa interessante é verificar, tratar ou pelo menos mencionar as características e as qualificações dessa linguagem, porque se trata de comunicação.

Você vai do universo mais restrito e mais fechado (esotérico), para o universo totalmente aberto da comunicação (exotérico). Uma das coisas que caracteriza esse fenômeno é exatamente você olhar para os grandes divulgadores da ciência que são cientistas e ver esse esforço de transformar um código fechado e restrito a iniciados no código aberto, que é o da linguagem comum, e transformá-lo de maneira a carregar nessa transformação o essencial dos conceitos.

Você não pode perder os conceitos, então como se faz isso? Tentando sensibilizá-los. Isto é, tentando transformar conceitos que podem ser digitais em conceitos analógicos porque, sem analogia não tem metáfora e, sem metáfora, não tem as imagens que sejam capazes de transformar um conceito em coisa sensível. Em outras palavras, é transformar um assunto em algo que pareça pertencer à ordem vivencial de cada um. Você lê e, ao ler, você vai vivenciando, como diz o poeta, mesmo aquilo que você não viveu, mas que você incorpora como coisa vivida. Então, esse é um esforço interessante porque é nele que a ciência se aproxima da poesia e a poesia da ciência. Disso eu não tenho a menor dúvida.

MATRIZes: Em 2002, você participou da criação da Agência Fapesp, uma agência de notícias sobre os estudos realizados com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A Fapesp é uma das principais vias de recursos para a pesquisa nacional, considerando o volume de ciência produzida neste Estado, e a Agência pauta os jornalistas. Através dessas matérias, a pesquisa chega à sociedade. Nessa época você já estava pensando sobre o modelo da espiral, houve ligação entre o modelo e a prática?

CV: Eu criei a Agência Fapesp com uma motivação prática e outra cultural. A motivação prática era não termos no Brasil nenhuma agência capaz de figurar como fonte de ciência para a grande imprensa. Do ponto de vista cultural, se conseguíssemos fazer isso, teríamos dado um grande passo na configuração da cultura científica porque estaríamos trabalhando cotidianamente não só com informação e imprensa, que é a forma de contato mais amplo e direto, mas também com a configuração dessa cultura científica no país. Então, quando eu criei a Agência foi com essa ideia de fazer algo diferente da revista Pesquisa Fapesp6.

O próprio [José Fernando] Peres, que era o diretor científico [da Fapesp] na época disse ‘você vai fazer uma coisa que já existe?’ Eu respondia que era uma coisa completamente diferente, primeiro porque era algo puramente virtual, sem papel e cujo custo é o de produção de conteúdo. E segundo porque a ideia era de que a Agência construísse um mailing grande e acionasse toda manhã – o que ela continua a fazer até hoje e é um mailing bastante significativo. Em outras palavras, eu pensava “por que só [as revistas científicas] Nature e a Science? Vamos fazer isso também”.

MATRIZes: O acesso à informação científica mudou com a pandemia, que trouxe grandes mudanças no fluxo da informação e promoveu maior abertura do conhecimento em função de um acordo internacional entre grandes editoras para avançar as descobertas sobre a covid-19. Nesse cenário, o conhecimento que pertencia ao quadrante 1, acessado exclusivamente pelos pares, passou a ser divulgado amplamente por meio de pré-prints e acessado diretamente por pacientes e por qualquer pessoa interessada com acesso à internet. Como você vê essas mudanças em relação à espiral?

CV: É impressionante isso que você está falando porque na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], na Unesp [Universidade Estadual Paulista] e nas universidades de um modo geral, o impacto que isso teve foi diretamente provocar um esforço de mutirão científico no sentido de procurar adiantar não só a compreensão e o entendimento, mas [também] soluções que pudessem amenizar e trazer alívio às situações. É a história dos respiradores7, um monte de coisas.

Isso provocou e acentuou o fenômeno da transversalidade, que vem acontecendo como fenômeno epistemológico. A transversalidade entre os níveis de atuação dentro da universidade e de multidisciplinaridade é muito grande e se intensificou enormemente. Então, isso é um fenômeno que acabou provocando uma precipitação nesse cenário de mudanças que já estavam vindo e foram, na verdade, acentuadas, apressadas.

As mudanças foram muito grandes e isso que você está falando é verdade também, mas faz parte deste movimento que já vinha acontecendo porque a quantidade de cientistas que passam a se preocupar com a comunicação no nível fora da academia é muito grande. E o assunto da interdisciplinaridade, da transdisciplinaridade também são fenômenos que se acentuam com a pandemia.

MATRIZes: Você diria que, no seu modelo inicial, a origem desse conhecimento precisa ser no primeiro quadrante? Porque, com a pandemia, ficou claro que isso pode acontecer em qualquer lugar.

CV: Eu acho que sim. Ele pode vir de qualquer lugar, não significa que tenha que ser um conhecimento ortodoxo, canônico, mas precisa ser um conhecimento sistematizado. Se não for sistematizado, ele não consegue adquirir força de referência.

MATRIZes: Do ponto de vista da produção de conhecimento, em quais quadrantes você vê a possibilidade de democratizar o conhecimento? Algumas linhas teóricas vão dizer que a formação da cultura científica não se dá ao final de um processo, como o giro da espiral, mas ao longo dele.

CV: A minha ideia é que, como é um processo cultural, ele é necessariamente dinâmico. Isso significa que as partes que compõem o modelo são partes que, na verdade, estão distinguidas metodologicamente. Como o processo é dinâmico, essas partes só têm sentido quando funcionam de maneira integrada. A própria formação do conceito de cultura tem a ver com a leitura desse movimento pelas partes. E qual é o “outro” do quadrante 1? O outro do quadrante 1 é o quadrante 4, por duas razões: porque ele é o outro diferente e porque ele é o outro que integra o quadrante 1 para modificá-lo, para transformá-lo, para exatamente fazer esse movimento e mudar a própria concepção da ciência.

Isso não é inocente, quer dizer, quando você envolve a sociedade, envolve o outro, então você carrega para a ciência tudo isso que você está falando: todas as encrencas, todo o tradicionalismo, as culturas tradicionais e é isso que vai dar exatamente a força do conceito de cultura científica. Ele é exatamente esse conceito do movimento, que não pára e não termina. Isso significa que cada giro vai incorporando aquilo que faz parte de cada momento. Claro que tudo isso é didático e metodológico, mas é um fenômeno que visa caracterizar a ciência como um fenômeno social. Daí o conceito de cultura científica.

É preciso entender, primeiro, que o fenômeno é dinâmico. Em segundo, que o conceito de cultura científica é isso: ele não está no quadrante 1, 2, 3 ou 4, ele é a espiral e está no movimento.

MATRIZes: Quando você vai passando a mensagem de um quadrante para outro, ela vai se tornando mais imortal? Conforme se passa de um quadrante para outro, você vai depurando o aspecto social da produção do conhecimento científico e isso tem consequência no entendimento de como a ciência é feita. Se pegarmos o exemplo da cloroquina, o Didier Raoult8 publicou um artigo científico que supostamente comprovava a eficácia do medicamento para tratamento de covid-19 e o fato de não se entender a produção da ciência como social coloca esse artigo como se fosse uma prova de eficácia de algo que, na verdade, precisaria ter passado pelo processo de legitimação social no primeiro quadrante e não passou. Às vezes, tem essas situações em que as informações geradas no primeiro quadrante escapam.

CV: Para pegar seu exemplo do Didier e da cloroquina, ele foi tirado do altar no quarto quadrante. Isso aconteceu nas consequências que isso começou a ter, exatamente em um aspecto social chave da questão científica, que é a eficácia. Se fosse uma discussão puramente científica e não cultural-científica, nós ficaríamos alheios a isso tudo, mas na verdade fomos nós que divulgamos. Nós, eu digo, foi o fenômeno social cultural que derrubou essa coisa. E isso é chave para mostrar inclusive o quanto essas coisas estão imbricadas, como elas se relacionam, porque em cada um desses momentos você tem obviamente aspectos distintos. Quer dizer, no primeiro momento se exige, antes de tudo, a coisa pela qual o cientista tem fascinação: a beleza. A beleza significa harmonia, consistência, eficiência lógica e matemática do assunto. Conforme você vai saindo disso, vão entrando as aranhas, os percevejos que começam a perguntar, a indagar não só sobre a eficiência e a beleza, mas sobre a eficácia e a relevância sociais.

Então, a ciência não é imune a isso como ela pensava que seria. Ao contrário, ela se dá conta disso de um jeito dramático porque passa a trabalhar necessariamente e constantemente com essa relação com o social. Um fenômeno interessante é, por exemplo, o que vem acontecendo universalmente no mundo todo com as agências de fomento. Todas elas passaram a incorporar a necessidade da difusão, da comunicação, da divulgação dos conhecimentos e assim por diante. Não só porque se trata de passar para a sociedade, mas de ouvir a sociedade. Se trata de tentar estabelecer mecanismos de retorno. Mas é isso, o giro da espiral é exatamente um giro que não deixa a ciência incógnita porque o que a transforma em cultura é exatamente isso, a convivência com o que não é a ciência. É isso que a torna cultural e, portanto, a aproxima dos mortais.

MATRIZes: Você concorda que, conforme o fluxo da espiral vai caminhando, a ciência vai perdendo o controle de seus processos de apuração, levando a esses escapes?

CV: Total, é verdade. Você se lembra da discussão dos alimentos geneticamente modificados? Foram criadas instâncias reguladoras para mediar essa relação entre a ciência e a sociedade como forma de ativar institucionalmente a participação do cidadão. Então, aqui no Brasil criou-se, anos atrás, a CTNBio [Comissão Técnica Nacional de Biossegurança], em que se discutia exatamente o assunto dos alimentos. E aí já havia visões que não tinham nada a ver com a ciência, mas que integravam o processo cultural que diz respeito à ciência.

Isso envolveu os temas da governança da ciência, da governança participativa, enfim. Tem uma série de fenômenos que dizem respeito a essas grandes transformações e isso não significa que a ciência não mantém suas particularidades, mas esse compromisso do conhecimento como bem público é fundamental. Isso tem a ver com o tema da ciência aberta também.

MATRIZes: Sobre isso, percebemos que nos 20 anos de debate sobre ciência aberta e a necessidade de abrir o conhecimento científico para o público, a prática não saiu do quadrante 1. Ou seja, o bem público ficou como uma justificativa, e ficou restrito à academia. Mas a pandemia trouxe essa urgência de que só o acesso aberto da informação científica não é suficiente. Ele democratiza entre os pares, mas não é suficiente para ser apropriado socialmente. Nesse cenário, temos pensado a divulgação científica como ferramenta chave para levar o conhecimento dos artigos científicos e dos pré-prints para a sociedade, já que ela traz a noção de democratizar o conhecimento no seu cerne.

CV: É isso mesmo, acho que é nessa linha. Toda a motivação do conceito da cultura científica, como eu disse, está nisso. Quer dizer, quem transforma a ciência em cultura é a divulgação. É nesse momento, chamado de divulgação, que isso se concretiza.

REFERÊNCIAS

Vogt, C. (2003). A Espiral da Cultura Científica. ComCiência, 72. https://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/cultura/cultura01.shtml

Vogt, C. (2010). Ciência e bem-estar cultural. ComCiência, 119. http://comciencia.scielo.br/pdf/cci/n119/a01n119.pdf

Vogt, C. (2012). The spiral of scientific culture and cultural well-being: Brazil and Ibero-America. Public understanding of science, 21(1), 4–16. https://doi.org/10.1177/0963662511420410.

Vogt, C., MORALES; A. P. (2017). Espiral, cultura e cultura científica. ComCiência, 191. https://www.comciencia.br/espiral-cultura-e-cultura-cientifica/

Ziman, J. (2001). Getting scientists to think about what they are doing. Science and Engineering Ethics, 7(2), 165–76. https://doi.org/10.1007/s11948-001-0038-2

Notas

a Entrevista concedida pessoalmente no Labjor, no dia 27 de janeiro de 2023.
1 Aaron Swartz (1986-2013) foi um programador e ativista pela democratização do acesso à informação que participou da criação de inúmeras iniciativas pioneiras, como o Creative Commons (que define políticas de direitos autorais) e o Reddit, um agregador social de notícias. Ele foi preso em 2011 por utilizar o sistema do Massachusetts Institute of Technology (MIT) para fazer o download de milhões de artigos científicos do repositório digital JSTOR, que cobra pelo acesso a parte das publicações. Em janeiro de 2013, Swartz foi encontrado morto após cometer suicídio.
2 John Ziman (1925-2005) foi físico e professor inglês, trabalhando com física da matéria condensada. Dedicou parte da sua carreira à popularização da ciência e aos estudos sobre filosofia da ciência e responsabilidade social de cientistas.
3 Albert Einstein (1879-1955), físico teórico alemão e autor da Teoria da Relatividade Geral.
4 Max Planck (1858-1947), físico alemão considerado pai da física quântica. Ganhador do Prêmio Nobel de Física em 1918.
5 As obras de Aristóteles dividiam-se em dois grupos: i) escritos esotéricos ou acroamáticos, feitos para serem entendidos por seus alunos ou discípulos e ii) escritos exotéricos, feitos para o público amplo.
6 A revista Pesquisa Fapesp, publicada pela Fapesp, foi lançada em outubro de 1999 e chegou às bancas de jornais. Ela possui pouco menos de 30 mil exemplares impressos mensais, além dos acessos na versão gratuita online: https://revistapesquisa.fapesp.br
7 Nos primeiros meses da pandemia, um dos principais desafios foi a compra de respiradores para suprir a demanda extenuante em hospitais do país. O número de respiradores instalados nos estados seriam incapazes de suprir as taxas de internação e ocupação média de respiradores altas e crescentes, de acordo com a projeção de novos casos de covid-19.
8 Didier Raoult é um médico francês, conhecido por defender o uso de cloroquina como tratamento para a covid-19. Os estudos que publicou tratando sobre essa eficácia foram alvo de investigações de editoras científicas por violação à ética de pesquisa e má-conduta de ensaios clínicos.

Notas de autor

b Linguista, poeta, pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Unicamp, coordenador do Labjor-Unicamp e diretor-presidente da Fundação Conrado Wessel. Foi presidente do Conselho Científico e Cultural do Instituto de Estudos Avançados-IdEA, reitor da Unicamp (1990-1994) e presidente da Fapesp (2002-2007). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9517-8597. E-mail: cvogt@uol.com.br
c Pesquisadora e jornalista de ciência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista produtividade CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6064-6952. E-mail: germana@unicamp.br
d Bacharela em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mestranda no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0092-8637. E-mail: marihafiz@gmail.com ↑
e Jornalista e socióloga, doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutoranda do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das diretoras da Rede Brasileira de Jornalistas de Ciência (RedeComCiência). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7642-0971. E-mail: moniqueboliveira@gmail.com


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