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A fabricação dos corpos dóceis na pós - graduação brasileira: em cena o produtivism o acadêmico
The manufacturing docile bodies in the Brazilian post-graduation: scene in the academic productivism
Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 22, núm. 49, pp. 75-88, 2017
Universidade Federal de Santa Catarina

Artigos


Recepção: 11 Junho 2016

Aprovação: 10 Abril 2017

DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2017v22n49p75

Resumo: Trata sobre o produtivismo banal que se apossou sobre mentes e corpos na pós-graduação brasileira. Para abordar o tema, recorreu-se às concepções teóricas de Michel Foucault que é um dos grandes intelectuais franceses que se dedicou aos estudos relacionados ao saber, ao poder e à ética, questionando os papéis desempenhados por diferentes instituições sociais na disciplinarização dos corpos daqueles que eram colocados nesses lugares por meio da imposição de padrões de conduta. O objetivo deste trabalho consiste em mostrar como cada uma das técnicas de disciplinarização dos corpos, trabalhadas na perspectiva foucaultiana, corrobora para o surgimento de distorções, inclusive éticas, no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos. Para atingir a este objetivo desenvolveu-se uma pesquisa bibliográfica e exploratória, associando-se às técnicas de clausura, quadriculamento, controle do tempo, sanção normatizadora, exercício e exame às práticas acadêmico- científicas vivenciadas pelos docentes e discentes na pós-graduação brasileira. Os resultados revelaram, dentre outros aspectos, que ainda há um forte predomínio da avaliação punitiva em detrimento da formativa no momento da apreciação do desempenho dos corpos nos programas de pós- graduação. Por fim, encerra-se o artigo na esperança de contribuir para ampliar as discussões sobre o atual movimento de fabricação dos corpos dóceis na pós-graduação brasileira, colaborando para incitar os acadêmicos a pensarem novas rotas de fuga que tornem a pós-graduação mais criativa, inovadora e ética, permitindo aos corpos que nela operam viver a vida como uma verdadeira obra de arte, isto é, sem necessidade de praticarem imposturas intelectuais como forma de sobrevivência acadêmica.

Palavras-chave: Relações de Poder, Domesticação dos Corpos, Produtivismo Acadêmico, Avaliação de Docentes.

Abstract: It deals with the banal productivism that took possession of minds and bodies in the Brazilian graduate. To address the issue, appealed to the theoretical concepts of Michel Foucault is one of the great French intellectuals who devoted himself to studies related to knowledge, power and ethics, questioning the roles played by different social institutions in bodies of disciplining those who they were placed in these places by imposing standards of conduct. The objective of this work is to show how each of disciplining techniques of bodies worked in Foucault's perspective, confirms to the emergence of distortions, including ethics, in the construction and dissemination of scientific knowledge process. To achieve this goal developed a bibliographical and exploratory research, associating the cloistered techniques quadriculamento, time control, normalizing sanction, exercise and take to the academic-scientific practices experienced by teachers and students in the Brazilian graduate. The results showed, among other things, that there is still a strong predominance of punitive evaluation at the expense of training when assessing the performance of the bodies in graduate programs. Finally, closes the article in the hope of contributing to broaden discussions about the current movement of manufacturing docile bodies in Brazilian graduate, helping to encourage academics to think new escape routes that make the most creative graduate, innovative and ethical, allowing bodies that it operates live life as a true work of art, that is, without the need to practice intellectual impostures as a form of academic survival.

Keywords: Power Relations, Domestication of Bodies, Academic Productivism, Teacher Evaluation.

1 INTRODUÇÃO

A discussão sobre a questão do poder na sociedade contemporânea remete a necessidade de se recuperar as ideias de Michel Foucault que é um dos principais intelectuais franceses que se dedicou aos estudos sobre a questão do saber, do poder e da ética, colaborando para entender os papeis desempenhados por diferentes instituições sociais como escolas, hospitais, presídios, manicômios, dentre outras, no processo de disciplinarização dos corpos daqueles que eram colocados nesses lugares por meio da imposição de padrões de conduta.

Para Michel Foucault, o poder não está relacionado ao conceito tradicional que fora amplamente trabalhado desde os liberais até os marxistas que o via enquanto contrato ou mesmo como instrumento a serviço do aparelho de repressão dos Estados, mas, muito pelo contrário, o poder, para Foucault, é um exercício, um dispositivo em constante funcionamento na sociedade, sendo disseminado por meio de redes que envolvem todos enquanto uma rede de práticas e saberes constitutivos do que se conhece como realidade do indivíduo (FOUCAULT, 1984; 1987; 1988).

No campo da pós-graduação stricto sensu o exercício do poder se manifesta no conjunto de dispositivos normatizadores (planos nacionais de pós-graduação, modelos e critérios de avaliação de cursos stricto sensu e indicadores da produção intelectual) que são responsáveis tanto pela formulação dos jogos de poder e de verdade dentro do campo pós-graduado quanto pela sujeição de pesquisadores e instituições de pesquisa às diretrizes normativas de produtividade acadêmico- científica estabelecida pela Capes que se orienta pela concepção do publicar ou morrer (publish or perish).

Dito isso, vale ressaltar que, para manterem-se competitivos dentro da pós- graduação stricto sensu, muitos pesquisadores têm comprometido sua própria vida pessoal e familiar, o lazer e o descanso semanal com a família, bem como a saúde física e mental para darem conta das inúmeras atividades, como ensinar na graduação e pós-graduação, orientar teses e dissertações, participar de bancas examinadoras, organizar eventos científicos, coordenar grupos de pesquisas, participar de seminários, chefiar/coordenar departamentos e coordenar e publicar pesquisas científicas.

Além de comprometerem a sua saúde física e mental, muitos docentes, certamente devido à crescente pressão pelo aumento da produção intelectual, têm sido levados a praticarem, inclusive, desvios éticos no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos como forma de se manterem atuantes dentro desse sistema (SGUISSARDI, 2006; ROSA, 2008; BIANCHETTI; MACHADO, 2007; BIANCHETTI; MACHADO, 2009; SGUISSARDI; SILVEIRA JÚNIOR, 2009; GODOI; XAVIER, 2010; ALCADIPANI, 2011; PONCZEK, 2013).

Dessa forma, a este conjunto de situações aos quais docentes e, consequentemente, discentes estão expostos dentro do campo da pós-graduação, a literatura tem denominado de produtivismo acadêmico, objeto de discussão do presente artigo. Para abordar o tema, faz-se, no primeiro momento, uma discussão sobre a transição do modelo de avaliação formativa para o modelo de avaliação punitiva, mostrando, de certa forma, como o produtivismo acadêmico passou a ser incorporado ao habitus (BOURDIEU, 2004) de muitos pesquisadores brasileiros. No segundo momento busca-se correlacionar cada uma das técnicas de exercício do poder disciplinar aos desvios, inclusive éticos, vivenciados pelos docentes no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos. Por fim, na última seção deste trabalho, são apresentadas as considerações finais a respeito da temática discutida neste artigo.

2 DA PRODUÇÃO AO PRODUTIVISMO ACADÊMICO

Ao discutir sobre os dispositivos normatizadores que são utilizados por agências de fomento localizadas no Brasil e no exterior para mensurar a produtividade acadêmica de pesquisadores e instituições, se faz necessário levantar, inicialmente, duas grandes questões que parecem simples, mas, ao mesmo tempo, cruciais nesta discussão: a primeira delas diz respeito à concepção de que se a pesquisa científica é financiada por alguém, obviamente com alguma finalidade, não há como se evitar a avaliação dos resultados desse financiamento, isto é, é preciso avaliar a ciência.

No caso específico do Brasil, onde a pesquisa científica, em sua grande maioria, é custeada por recursos públicos, essa avaliação é, no mínimo, um direito da sociedade que, através do pagamento de impostos, arca com o financiamento e, ao mesmo tempo, é um dever das instituições e dos pesquisadores que executam as atividades para as quais esses investimentos foram realizados.

A segunda questão simples está relacionada à ideia de que, se é preciso avaliar a ciência, como as instituições de pesquisas e agências de fomento, controle e avaliação devem fazê-la? A resposta a esta questão não parece ser simples nem tão pouco universal, uma vez que

Avaliar não é, nem nunca foi uma atividade simples. Especialmente, porque a avaliação pertence ao avaliado e não ao avaliador. Contabilizar indicadores é um processo simples, mas qualificá-los é um processo complexo e que exige equilíbrio, parâmetros e regras bem (e previamente) definidas (ANDRADE; GALEMBECK, 2009, p. 1).

A citação acima dá a percepção de que o processo avaliativo envolve uma complexidade que ultrapassa a contabilidade de indicadores quantitativos. Nesse sentido, a adoção de instrumentos avaliativos de cunho mais qualitativo que possibilitem uma visão mais holística do desempenho dos avaliados ainda parece ser um grande desafio a ser superado. Quando se trata de avaliar o desempenho de pesquisadores inseridos em instituições sociais como universidades que, de modo geral, estão comprometidas com o desenvolvimento de valores da sociedade e que lutam pelo reconhecimento de sua legitimidade e autonomia deve-se pensar em uma avaliação que instaure “[...] a reflexão e o questionamento, ou seja, a produção de sentidos” (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 37).

A esse tipo de avaliação que tem como objetivo melhorar o cumprimento da responsabilidade social de uma universidade por meio da promoção de maior profissionalização dos docentes, da revisão crítica, sistemática e contínua dos seus currículos, programas e práticas pedagógicas, bem como da avaliação permanente dos impactos da pesquisa e da instituição como um todo na comunidade local, nacional e internacional a literatura tem chamado de avaliação educativa, sendo esta realizada de forma desvinculada da ideia de que seus resultados trarão como consequência a premiação ou a punição daqueles que se submeteram a ela, visto que a mesma não está vinculada a “[…] medidas [de] financiamento [ou] de qualquer mecanismo de premiação/punição e tampouco deve produzir hierarquizações (ranking) de instituições” (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 43).

É importante frisar que não se deve confundir avaliação educativa com avaliação punitiva. Enquanto aquela está mais preocupada em promover o melhoramento contínuo das práticas educativas das instituições sociais como universidades, esta última está mais voltada para a prestação de contas, ou seja, para a mensuração da produção científica, estando mais relacionada às práticas de regulação e de controle.

No campo da pós-graduação, observou-se que a Capes, a partir do biênio 1996/1997, alterou o foco de sua avaliação, passando de uma avaliação focada na formação de professores (de cunho mais educativa) para uma avaliação pautada na formação de pesquisadores (de cunho mais punitiva), esta última se caracterizando “[...] muito mais como um conjunto de procedimentos e de ações de regulação e controle do que como um modelo típico de avaliação, no caso entendida como avaliação educativa” (SGUISSARDI, 2006, p. 76).

A introdução dessa lógica avaliativa punitiva no campo da pós-graduação brasileira resultou numa espécie de busca desenfreada pelo aumento da produtividade dos programas de pós-graduação e, consequentemente, dos docentes e discentes neles inseridos. Nesse contexto, a categoria produtividade tornou-se a base de sustentação desse modelo avaliativo, estando relacionada geralmente à quantidade de produção intelectual, sobretudo bibliográfica, publicada pelos pesquisadores dentro de uma delimitação temporal e que se tornou um “[...] quantum básico e necessário para conservar os pesquisadores na sua posição estatutária em seu campo científico” (LUZ, 2005, p. 43).

De acordo com Waters (2006), a inserção de uma cultura avaliativa pautada na quantidade de publicações científicas em detrimento de sua qualidade tem comprometido o eclipse da erudição, isto é, o surgimento de publicações criativas e inovadoras tão necessárias aos processos de construção e difusão de novos conhecimentos científicos. Resgatando-se a metáfora apresentada por Luz (2005) em artigo intitulado “Prometeu acorrentado: análise sociológica da categoria produtividade e as condições atuais da vida acadêmica” pode-se inferir que o comprometimento do eclipse da erudição pode estar associado à forte atuação dos deuses do Olimpo estatal que, assim como o abutre mítico, mantém significativo controle sobre as atividades do Prometeu da ciência (os docentes vinculados às atuais estruturas universitárias), “[...] mordendo-lhe continuamente o fígado, através da exigência dos constantes relatórios parciais e finais, das avaliações periódicas em espaços de tempo cada vez mais curtos” (LUZ, 2005, p. 44).

Assim, a metáfora descrita por Luz (2005) sinaliza para um cenário no qual o pesquisador tem sido avaliado pela quantidade de produtos que é capaz de extrair a partir dos seus projetos de pesquisas, ou seja, quanto maior a quantidade de publicações científicas a ser explorada, maior sua produtividade no campo científico. Nesse sentido, pode-se afirmar que uma das principais consequências desse modelo avaliativo, pautado na regulação e controle, foi o surgimento de um fenômeno mundialmente conhecido como produtivismo acadêmico.

Este fenômeno – cultura ou ideologia – tem sua origem nos anos 1950 nos EUA. Tornou-se mundialmente conhecido pela expressão public or perish, significando que os professores/pesquisadores universitários que não publicassem de acordo com os parâmetros postos como ideais pelos órgãos financiadores, pela burocracia universitária ou pelo mercado, veriam sua carreira definhar e fenecer (SGUISSARDI, 2010, p. 1).

No Brasil, pode-se considerar que o produtivismo acadêmico se nutre de um intenso e contínuo processo de competição e disputa que se estabelece entre universidades, instituições de pesquisas e programas de pós-graduação, bem como entre docentes, pesquisadores e discentes. Dessa maneira, esses corpos individuais e populacionais encontram-se em permanente luta pelo aumento do capital científico e temporal que lhes proporcionem maior autoridade científica (BOURDIEU, 2004), inclusive no que tange aos recursos destinados aos financiamentos de pesquisas, sendo que toda essa competição decorre do formato das avaliações das agências como Capes, CNPq, FINEP, FAP etc. (SGUISSARDI, 2006; BIANCHETTI; MACHADO, 2009; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009).

Dessa forma, acredita-se que o crescimento da produção intelectual gerada pelos programas de pós-graduação não ocorre de forma aleatória. O que parece existir, na verdade, é um conjunto de técnicas disciplinares (clausura, quadriculamento, controle do tempo, exercício, sanção normatizadora e exame) que são utilizadas pela Capes, enquanto instituição disciplinar, para exercer poder sobre os corpos inseridos nos programas de pós-graduação, fabricando-os dentro de uma lógica de produtividade.

Entretanto, faz-se necessário ressaltar que, ao mesmo tempo em que essas técnicas são utilizadas pela Capes para o exercício de seu poder disciplinar e fabricação de corpos produtivos, elas também têm induzido naturalmente muitos pesquisadores a praticarem desvios éticos ou imposturas acadêmicas como formas de se manterem dóceis (produtivos) dentro desse modelo avaliativo punitivo.

Nesse sentido, as linhas seguintes estão reservadas para mostrar como cada uma das técnicas utilizadas para a disciplinarização dos corpos tem corroborado para o surgimento de distorções coletivas no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos no campo da pós-graduação strictosensu brasileira.

3 A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA PRODUÇÃO E NA DIFUSÃO DE CONHECIMENTO

Ao apresentar as técnicas de controle que possibilitam o exercício do poder dentro das instituições disciplinares, Foucault (1987) aponta que a primeira delas corresponde à clausura, ou seja, a criação de espaços analíticos que possibilita o controle dos corpos dentro das instituições disciplinares. Em sua abordagem, Foucault (1987) exemplifica alguns casos típicos de clausura como a que ocorre dentro da instituição disciplinar escolar, onde existe toda uma divisão espacial: salas de aulas, coordenação de cursos e salas dos professores, por exemplo, que possibilita controlar docentes e discentes neles inseridos.

Na concepção do atual modelo de avaliação da pós-graduação stricto sensu pode-se pensar que as publicações científicas (livros, capítulos de livros, artigos de periódicos e anais de congressos científicos) representam, de certa forma, os espaços analíticos de clausura por meio do qual se materializa o conhecimento científico produzido pelos corpos. Através das publicações científicas, a Capes exerce significativo controle sobre o desempenho dos programas de pós-graduação e dos pesquisadores neles inseridos uma vez que o quesito relacionado às publicações representa cerca de 70% no conjunto da avaliação da Capes.

Entretanto, vale ressaltar que a elevada valorização da numerologia da produção científica como forma de avaliar a produtividade acadêmica tem provocado, de certo modo, distorções no que tange às formas de materialização do conhecimento científico ao perceber-se que a maioria dos campos científicos valorizam a produção de artigos em periódicos científicos em detrimento das demais formas de publicações como livros, capítulos de livros, trabalhos publicados em congressos científicos etc.

O frenesi pela publicação de artigos científicos tem provocado, de certa maneira, uma espécie de deslocamento da ênfase dos pesquisadores do processo de criação e relevância social do conhecimento científico produzido nas estruturas universitárias para a publicação desse subproduto científico como um fim em si mesmo. Nos últimos dez anos, esses pesquisadores assistiram a um deslocamento da “[...] pesquisa e produção de conhecimento para a produção e publicação de artigos” (GODOI; XAVIER, 2010, p. 458).

Em decorrência dessa corrida pela produção de artigos científicos torna-se cada vez mais comum se encontrar uma multiplicidade de artigos oriundos de uma única investigação científica, a qual o professor Roberto Ponczek (2013), em seu bem-humorado livro que trata sobre o produtivismo banal que se instalou na academia intitulado “Os crocodilos guardiões e a biblioteca da Babilônia: manhas, artimanhas e imposturas acadêmicas”, chama de milagre da multiplicação dos pães. Esse milagre consiste em “[...] fragmentar a pesquisa no número máximo de papers, cuja base teórica dificilmente ultrapassa o revisionismo e a tática de empilhar citações, com a finalidade de aumentar a produção” (GODOI; XAVIER, 2010, p. 460).

A desenfreada produção de artigo de periódico científico no campo da pós- graduação brasileira incentivada pela implementação do modelo Capes de avaliação, a partir da última década do século XX, colocou o país, conforme De Meis et al. (2003); Marchelli (2005); Kuenzer e Moraes (2005) e Guimarães (2007) entre os maiores produtores de artigo de periódico científico no mundo, ocupando a 13ª posição no ranking da Web of Science e 14ª posição no ranking da Scopus. Entretanto, apesar do expressivo volume dessa produção, o caráter efêmero dela parece evidente ao se observar a sua baixa visibilidade e/ou impacto revelados pelos indicadores de citação.

Nos programas de pós-graduação a cultura do produtivismo acadêmico é transmitida cada vez mais precocemente aos discentes, incorporando-se ao habitus academicus (BOURDIEU, 2004), desses pesquisadores em processo de formação. Em outras épocas, o pesquisador, de modo geral, publicava seu primeiro artigo muitas vezes após a defesa de sua tese ou dissertação, mas atualmente “[...] isso ocorre desde a mais tenra fase, isto é, depois de cursada a primeira disciplina no mestrado ou doutorado, os professores já exigem um paper como trabalho final das disciplinas” (ROSA, 2008, p. 112), induzindo uma corrida desesperada para que muitos programas e departamento de graduação editem suas próprias revistas.

O excessivo culto pela publicação de artigos científicos na pós-graduação stricto sensu “[...] tem desencorajado autores a escreverem livros, por exemplo, pois demandam mais reflexão, mais tempo de elaboração, mais pesquisa e por isso, na contagem de produtos, rendem menos” (BIANCHETTI; MACHADO, 2007, p. 10). Na visão de Ponczek (2013, p. 79), a desvalorização da produção de livros também está relacionada à ideia de que os atuais avaliadores da ciência, isto é, os crocodilos da academia, na concepção do autor, estão interessados apenas em avaliar “[...] relatórios, projetos de pesquisa ou curtos artigos e raramente se dão ao trabalho de ler grandes livros que retratem de forma abrangente vastos painéis da ciência, da filosofia ou da arte”, ocasionando, consequentemente, a ideia de que os livros “[...] estão sendo considerados nocivos e tendem a ser banidos” da atual política de avaliação da pós-graduação brasileira (FREITAS, 2011, p. 1161). Vale ressaltar que a definição de um sistema de qualificação para livros, proposto nas últimas avaliações trienais pela Capes, não corrobora as afirmações dos autores citados quanto à tendência de banir os livros, embora seja mais um dispositivo de disciplinarização.

Para Foucault (1987), o quadriculamento é mais uma das técnicas que objetiva conformar os corpos aos dispositivos normatizadores que regem as instituições disciplinares. A técnica consiste em organizar e/ou classificar os corpos e os produtos gerados por eles dentro dos espaços de clausura, de modo a hierarquizá- los. No campo da pós-graduação brasileira a hierarquização dos corpos populacionais (programas) está fortemente baseada nos critérios do sistema Qualis que é um dispositivo utilizado pela Capes para classificar, em uma escala avaliativa formada por estratos, a produção intelectual gerada dentro dos programas de pós-graduação.

Dessa forma, pela própria proporcionalidade que a qualidade da produção intelectual medida pelo sistema Qualis representa na avaliação da Capes (cerca de 70%), pode-se afirmar que esse sistema tornou-se uma espécie de grande medidor da produtividade acadêmica dos programas de pós-graduação, induzindo os corpos docentes e discentes a publicarem os resultados de suas pesquisas em canais de difusão dotados de boa classificação no sistema, sobretudo naqueles classificados nos estratos superiores (A1, A2 e B1, para artigos; L4, para livros; C4, para capítulos de livros e E4, para eventos científicos).

Apesar de o Qualis ter sido “[...] de grande importância como primeira medida de qualidade do produto da pós-graduação” (SILVA, 2009, p. 1) em seus últimos dez anos esse sistema “[...] tem sido mudado para não mudar, ou seja, o sarrafo muda de posição, mas a lógica da avaliação continua a mesma, exacerbando [indicadores quantitativos] e subjugando a importância [de indicadores qualitativos]” (ANDRADE; GALEMBECK, 2009, p. 1).

Isto posto, o principal denominador das críticas ao sistema Qualis corresponde ao “[...] peso exagerado que o fator de impacto passa a ter na classificação da Capes e seus efeitos sobre publicações mal avaliadas, [sendo] previsível que [essas publicações mal avaliadas] passem a ser evitadas pelos pesquisadores, [aumentando suas] dificuldades [para] se consolidarem” (MARQUES, 2009, p. 32).

Em novembro de 2008, o Fórum de Coordenadores de Pós-Graduação em Química reuniu-se em Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo, com uma agenda de trabalho que incluía a discussão sobre a avaliação dos cursos. Após dois dias de debates, foi lançada uma moção que considerou inadequada a nova classificação do Qualis proposta pela Capes. A proposta consistia em considerar os percentuais de 20% e 50% para os estratos A1+A2 e A1+A2+B1, respectivamente. De acordo com os coordenadores, a aplicação desses percentuais implicava na exclusão de vários periódicos importantes dos estratos superiores, trazendo grandes consequências para subáreas tradicionais e de importância história para o campo da Química brasileira que, por não possuírem periódicos com elevado fator de impacto, certamente teriam suas publicações excluídas da referida classificação.

Considerando-se uma área específica como a Química, a comparabilidade entre os periódicos utilizando o FI incorre em sérios desvios. Por exemplo, o periódico Inorganic Chemistry dificilmente apresentará um [Fator de Impacto] maior do que Analytical Chemistry, o que não significa que não haja artigos de excelente qualidade, nas duas disciplinas. Simplesmente, a visibilidade das inovações metodológicas analíticas em outras disciplinas é maior do que a da química inorgânica (ANDRADE; GALEMBECK, 2009, p. 1).

Diante do exposto é possível perceber que a escolha do fator de impacto como principal indicador na composição do Qualis pode trazer grandes consequências para um campo científico, pois o uso inadequado desse indicador pode produzir: (1) diferenciações artificiais entre publicações de subáreas de um mesmo campo científico; (2) desconsideração das contribuições históricas e científicas de um livro ou periódico para um campo e (3) valorização excessiva dos periódicos internacionais em detrimento dos nacionais e/ou locais.

Para além das duas técnicas citadas até então relacionadas à organização dos espaços de clausura dentro das instituições disciplinares, o controle do tempo é a técnica que atua sobre os corpos no sentido de fazê-los utilizar o tempo da melhor forma possível, ou seja, induzindo-os a construir um tempo integralmente útil e produtivo (FOUCAULT, 1987).

Dentro do atual modelo de avaliação da pós-graduação stricto sensu a mensuração desse tempo integralmente útil é realizada a cada três, e, agora, a cada quatro anos quando o volume da produção intelectual dos programas de pós- graduação é apreciado pela Capes.

Assim, uma das primeiras consequências, talvez, do controle do tempo integralmente útil em espaços temporais relativamente reduzidos na academia tenha sido, justamente, a submissão de uma espécie de trabalho detentor de fortes características artesanais (produção de conhecimento científico) a uma lógica de avaliação típica do mundo empresarial/industrial, sendo esse perigo fortemente problematizado, em nível internacional, por Waters (2006, p. 18), cuja tese se sustenta na ideia de que “[...] a vida acadêmica é um chamado, não um emprego. Daí a propensão das necessidades acadêmicas a se orientar para um mundo diferente daquele dominado pelo relógio de ponto”.

Do ponto de vista histórico pode-se afirmar que uma das primeiras consequências da valorização excessiva do movimento do ponteiro do relógio dentro do modelo avaliativo da pós-graduação stricto sensu foi a redução dos prazos para a conclusão dos cursos de mestrado e doutorado no país (BIANCHETTI; MACHADO, 2007). Assim, o modelo avaliativo da Capes passou a premiar prazos de defesas curtos e penalizar prazos de defesas longos, isto é, aquelas superiores a 48 meses para teses e 24 meses para dissertações, iniciando-se “[...] a pressão do tempo cronológico. Pois, independentemente da proposta de tese, o tempo é o balizador, e a pesquisa deve se submeter ao prazo, sob o risco de perder pontos, logo, ‘perder’ posições no ranking da Capes” (ROSA, 2008, p. 111).

Entretanto, deve-se ressaltar que a importância dada ao movimento do ponteiro do relógio não ficou restrita à formação de novos pesquisadores, mas se alastrou pelas demais atividades desempenhadas pelos corpos docentes e discentes, sobretudo no que tange ao tempo necessário para a publicação dos resultados das pesquisas científicas. Logo, a importância dada à métrica do tempo aliada à busca de eficiência na pós-graduação impõe aos corpos um ritmo de vida acelerado que lhes sugere fazer mais em menos tempo. Com isso, criou-se um antagonismo essencial, que serve para justificar os mecanismos de pressão institucional derivados dessa lógica: o rápido como indicador de normal, de produtivo, moderno e eficiente, versus o lento como indicador de anormal, improdutivo, atrasado e ineficiente, conforme ilustra a figura proposta por Rosa (2008), em artigo que versa sobre a pressão institucional por publicações.


Figura 1
O papel da pressão institucional como
Fonte: Rosa (2008, p. 113)

Como ilustra a figura 1, a pressão por publicação tende a deslocar programas de pós-graduação e seus corpos para os parâmetros tidos como “normais” dentro do modelo de avaliação dos cursos stricto sensu, cuja sustentação se efetiva pela lógica da produção de pontos advindos do quantitativo de publicações geradas em um intervalo temporal de, até então, três anos.

Em meio a essas constantes pressões institucionais pelo aumento da produção intelectual em espaços temporais cada vez mais reduzidos encontram-se corpos docentes e discentes condenados “[...] a produzir mais e mais, sem nunca ter o direito de valorizar o que conquista. Mal [os corpos] terminam um artigo, paper ou livro, tudo é apagado pela avaliação feita e só o que interessa é o que eles ainda não fizeram, [ou seja, os corpos são] desmemoriados para alimentar um monstro sempre faminto” (FREITAS, 2011, p. 1161).

Dessa forma não faltam exemplos de pesquisadores brasileiros dotados de elevados capitais científicos que tiveram, em algum momento da história, suas trajetórias acadêmicas desconsideradas ao serem rotulados como improdutivos por não terem publicado artigo de periódico científico, de preferência internacional, em determinado espaço temporal de avaliação como revelou a matéria intitulada “A lista de improdutivos”, publicada no Jornal Folha de São Paulo, de 21 de fevereiro de 1988, no qual a Universidade de São Paulo (USP) relacionou a lista de docentes (1.108 em um universo de 4.398) que não apresentaram publicações científicas entre os anos de 1985 e 1986 e que, de acordo com Zanetic (2012), representou um dos marcos da introdução do produtivismo acadêmico no Brasil.

Pelo que se pode concluir desse produtivismo acadêmico à moda brasileira se Albert Einstein vivesse nos dias de hoje e fosse um docente vinculado a um programa de pós-graduação “[...] passaria por maus bocados, pois não lograria sequer obter uma boa bolsa de produtividade do CNPq, além de que suas publicações mais relevantes [que não ultrapassaram mais do que seis obras de caráter científico] foram feitas em periódicos alemães e, portanto, nacionais, o que faria seu Programa despencar na avaliação da Capes” (PONCZEK, 2013, p. 77).

A figura 1 proposta por Rosa (2008) ao mesmo tempo em que ilustra a pressão institucional como indutor de normalidade, representada pelo volume crescente de produção científica em espaços temporais cada vez mais reduzidos, ela também possibilita a visualização de algumas sanções normatizadoras aplicadas aos programas e aos pesquisadores que não atingirem as diretrizes normativas de avaliação da pós-graduação stricto sensu.

Conforme Foucault (1987), a sanção normatizadora é uma técnica disciplinar aplicada para a correção do comportamento de corpos que se desviaram dos dispositivos normatizadores que regem as instituições disciplinares. No campo da pós-graduação stricto sensu o corpo individual (docente) que “[...] devido ao tempo de amadurecimento da pesquisa não atingiu o número de publicações determinado pelos documentos normatizadores da Capes” (CORREIA; ALVARENGA; GARCIA, 2011, p. 11) é afastado dos programas podendo, inclusive, perder sua bolsa de pesquisa financiada por agências públicas. Já do ponto de visto dos corpos populacionais (programas), as sanções pelo não cumprimento das normas da Capes estão relacionadas tanto ao rebaixamento do conceito do programa, implicando em menor capital científico (BOURDIEU, 2004) e volume de recursos financeiros destinado ao custeamento de suas atividades, causando a eles uma baixa atração de talentos, quanto ao próprio descredenciamento do programa dentro do sistema de avaliação, em outras palavras, extinção do programa.

Dessa forma, as principais consequências desse modelo avaliativo punitivo que atrela financiamento a desempenho é que os programas de pós-graduação que recebem maior volume de recursos financeiros tendem a melhor estruturar seus grupos de pesquisas, atrair talentos e, consequentemente, apresentar uma produção intelectual publicada em canais de difusão melhor quadriculados no sistema Qualis/Capes, não dando espaço, portanto, para que novos programas de pós- graduação localizados, sobretudo, fora dos grandes centros urbanos ou em regiões menos desenvolvidas academicamente mantenham-se competitivos dentro desse modelo avaliativo.

Outra grande distorção ocasionada pela introdução da cultura do produtivismo acadêmico no campo da pós-graduação stricto sensu está relacionada à perda da noção de autoria e coautoria. De acordo com Foucault (1987), a técnica do exercício é aquela utilizada pelas instituições disciplinares para estimular que um corpo se articule a outro como forma de ampliar a produtividade. No campo da pós-graduação essa técnica é visível quando a Capes, por meio de seus documentos normatizadores, induz os corpos docentes a se articularem com os corpos discentes no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos.

Entretanto, a valorização das articulações dos corpos na produção científica tem induzido muitos pesquisadores a associarem-se em coautorias para escreverem artigos curtos produzidos em série, contabilizados pelas agências de fomento como 1 (um) artigo para cada um dos seus assinantes. A prática conhecida como “mutirão” funciona como uma verdadeira linha de montagem: alguns autores ficam responsáveis pela redação de partes do texto; outros realizam a coleta de dados; outros preparam as tabelas e os gráficos; outros compatibilizam as citações com as referências e outros normalizam o artigo dentro dos parâmetros das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Dentro dessa lógica de produção em série, a ordem dos autores quase sempre é permutada assim como suas funções na engrenagem de produção são modificadas na publicação dos próximos artigos (PONCZEK, 2013).

Outra prática de colaboração científica espúria e, talvez, de cunho ainda mais grave quando comparada à citada acima é quando apenas um ou dois pesquisadores são os verdadeiros autores de um texto científico, sendo os demais convidados a participar da parceria, sendo os convidados obrigados, em momento futuro, a retribuir o favor, incluindo esses autores como coautores em suas futuras publicações (PONCZEK, 2013). Dessa forma, não é incomum alunos encontrarem coautores de determinados texto em eventos científicos e, ao lhe fazerem perguntas sobre o conteúdo do trabalho, ficarem espantados com o grau de desconhecimento do coautor em relação ao próprio conteúdo do texto que ele mesmo assinou (SGUISSARDI, 2006; BIANCHETTI; MACHADO, 2009; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009).

A perversidade da cultura produtivista parece ter chegado a tal ponto que comissões editoriais de variados eventos e periódicos científicos chegam a estabelecer uma espécie de limite ao número de coautorias como condição para aceitação e publicação de um manuscrito submetido para avaliação. Alguns periódicos, mesmo que parecendo ir de encontro a todos os estímulos da Capes para a articulação dos corpos na produção científica dos programas de pós-graduação, estão recusando manuscritos submetidos sob a forma de colaboração científica entre alunos e orientadores, pois, infelizmente, “[...] não é incomum de se ver alunos serem coagidos a colocar o nome de orientadores em artigos e trabalhos que jamais foram lidos pelo orientador” (ALCADIPANI, 2011, p. 347) até como justificativa para que o trabalho, por conta do elevado capital científico (BOURDIEU, 2004) do orientador quando comparado ao do aluno iniciante no campo científico, seja aprovado para publicação.

Outra distorção praticada pelos pesquisadores para não se sentirem alijados da produção científica em série é a publicação de um número cada vez mais elevado de livros organizados em detrimento dos livros de autoria, visto que o quantitativo de obras organizadas “[...] pode chegar a 75% dos títulos lançados pelas editoras universitárias. É um número considerável, muitos com dois, três, quatro ou até cinco organizadores” (PONCZEK, 2013, p. 88).

Para acumular pontos e aumentar o capital científico (BOURDIEU, 2004), mantendo-se competitivo dentro do atual modelo produtivista, muitos pesquisadores reúnem “[...] um grupo de amigos (os organizadores) e um número maior ainda de colaboradores e lhes pede que escrevam, cada qual, pequenos capítulos ou artigos que somados constituirão um livro”, rendendo a cada organizador quase sempre o mesmo que “[...] um livro de centenas de páginas escritas, durante anos a fio, por um solitário autor”. Assim, a produção científica colaborativa que deveria ser, a princípio, uma desejável prática de construção coletiva de conhecimento tem se tornado, lamentavelmente, “[...] um truque editorial contábil para engordar os índices bibliométricos” (PONCZEK, 2013, p. 88), servindo de base para as agências de fomento atribuírem prestígio e autoridade científica (BOURDIEU, 2004) aos corpos individuais e populacionais na pós-graduação stricto sensu.

Por conseguinte, o ponto culminante da avaliação dos corpos quanto às suas conformidades aos dispositivos que regem as instituições disciplinares ocorre através da aplicação da técnica do exame que, dentro do modelo avaliativo da pós-graduação stricto sensu, pode ser entendida como a avaliação trienal e/ou quadrienal realizada pela Capes. Nesse exame, a referida instituição avalia o desempenho dos programas de pós-graduação durante um espaço temporal e, caso os mesmos não tenham atingido os índices esperados pela agência, há aplicações de sanções como forma de punição.

Dentro desse modelo avaliativo, cuja estrutura de premiação e punição está fortemente atrelada ao quantitativo de publicações científicas (SGUISSARDI, 2006; BIANCHETTI; MACHADO, 2009; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009), existem algumas distorções que estão sendo, aos poucos, incorporadas ao habitus (BOURDIEU, 2004) dos pesquisadores. Uma distorção avaliativa fruto desse modelo é a valorização da pesquisa científica em detrimento das atividades de ensino e extensão, e mesmo atividades administrativas.

Embora muitos docentes tenham relatado que as atividades de ensino e orientação, por exemplo, tenham lhe proporcionado uma elevada dose de prazer em suas trajetórias acadêmicas, justamente por propiciar contato pessoal e direto com jovens que buscam, avidamente, ampliar os seus repertórios de conhecimento científico e cultural (SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009), nota-se que o atual modelo avaliativo aplicado na pós-graduação stricto sensu tem corroborado, de certa forma, para a fabricação de uma espécie de professor do tipo pontuador, ou seja, aquele que corre, desesperadamente, pelos corredores das universidades para produzir, a todo custo, seus artigos de periódicos científicos (EVANGELISTA, 2006), esquecendo-se de estar presente na vida acadêmica e universitária da instituição de ensino à qual ele se encontra vinculado. Esse tipo de docente, quase sempre, se isola da vida social e cultural da cidade e do Estado em que vive e sua única preocupação passa a ser pontuar de acordo com os dispositivos normatizadores da Capes (GODOI; XAVIER, 2010).

A fabricação dos professores pontuadores, jocosamente chamados de Lattes generation por Ponczek (2013), certamente tem contribuído para alargar, ainda mais, o fosso existente entre o ensino da graduação e pós-graduação. Apesar dos docentes, originalmente, serem concursados para atuarem no ensino da graduação, pois não há concurso para docentes de programas de pós-graduação, muito deles, após ingressarem no quadro de professores efetivos das instituições de ensino superior, solicitam seu credenciamento na pós-graduação, objetivando reduzir carga horária de ensino na graduação (LUZ, 2005).

Uma das principais mazelas causadas pelo exame avaliativo da Capes corresponde ao fato de que muitos docentes são fabricados para atingir metas de produtividade e, para tanto, aumentam, exacerbadamente, sua carga horária de trabalho, chegando a mais de 60 horas semanais, em três turnos. Dessa maneira, para que possam se manter dóceis dentro desse modelo, isto é, produtivos, eles acabam sacrificando o lazer e o descanso, comprometendo, inclusive, sua saúde física e mental (LUZ, 2005; BIANCHETTI; MACHADO, 2007; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009; SGUISSARDI, 2010; CRUZ, 2012).

Assim, as principais consequências relacionadas a essa exacerbada carga horária de trabalho dedicada às atividades de pesquisa na pós-graduação é que muitos pesquisadores estão se tornando, cada vez mais, estressados e melancólicos (WATERS, 2006), sofrendo de ansiedade, depressão e insônia (PEREIRA, 2003; LOUZADA, 2005) por assistirem as suas produções artesanais serem avaliadas, gradativamente, sob os parâmetros da produção industrial.

Outra implicação do exame avaliativo da Capes está relacionada às deformações que esse exame tem causado na formação de futuros pesquisadores. A valorização expressiva do professor pesquisador tem levado muitos docentes, detentores de interessantes bagagens de pesquisa, a abandonarem as salas de aulas para dedicarem-se às atividades de pesquisa, gerando egressos menos preparados, ou seja, “[...] limitados, superficiais, desprovidos da chance de conhecer o verdadeiro significado de universidade, pesquisa, construção do conhecimento, docência e orientação” (GODOI; XAVIER, 2010, p. 463).

Ao trilhar o caminho dos seus mestres, as novas gerações estão aprendendo que a pesquisa é a única atividade da academia que traz status, dinheiro e realização pessoal, impactando, de certa forma, as demais esferas da função social da universidade (GODOI; XAVIER, 2010). O exame não está mais focado, como já dito, em avaliar a formação de pessoal especializado para atender as demandas dos empreendimentos públicos e privados, papel esse reservado, originalmente, a Capes, mas sim para examinar a formação de pesquisadores e produtores de artigos de periódicos científicos. Na figura 2 se encontra o relógio da Capes que simboliza o marcador/controlador do tempo da produtividade acadêmica dentro dos programas de pós-graduação stricto sensu, sintetizando, de modo geral, como cada uma das técnicas de disciplinarização dos corpos estão relacionadas ao surgimento de distorções no processo de construção e difusão de conhecimentos científicos.


Figura 2
Distorções causadas pelas técnicas de disciplinarização na produção e difusão de conhecimentos científicos na pós-graduação stricto sensu.
Fonte: Elaboração dos autores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo mostrou que, basicamente, existem dois tipos de avaliação: a educativa ou formativa e a punitiva. A avaliação formativa não tem um interesse imediato com a premiação ou punição dos avaliados, estando relacionada a um processo de reflexão contínua sobre o aprendizado daqueles que se submetem a ela. Por sua vez, a avaliação punitiva funciona como uma espécie de prestação de contas dos avaliados aos avaliadores, isto é, caso o avaliado não atinja os índices esperados pelos avaliadores, sofrerá sanções como forma de se adequar a esse modelo avaliativo punitivo.

Na oportunidade, lembrou-se aos leitores que as alterações promovidas pela Capes em seu modelo avaliativo, no biênio 1996/1997, deslocou sua avaliação de um paradigma formativo (sustentado na formação de professores) para um paradigma punitivo (lastreado na formação de pesquisadores), contribuindo para a implementação do produtivismo acadêmico no país.

Apresentado o conceito de produtivismo acadêmico guiou-se o leitor no sentido de lhes mostrar as principais consequências desse fenômeno no que tange à produção e difusão de conhecimentos científicos. Para isso, correlacionou-se cada uma das técnicas de disciplinarização dos corpos trabalhadas por Foucault (1987) ao surgimento de imposturas acadêmicas praticadas pelos corpos que operam na pós- graduação stricto sensu.

Espera-se que que este trabalho colabore para ampliar as discussões sobre o atual movimento de fabricação dos corpos dóceis na pós-graduação brasileira, incitando os acadêmicos a pensarem em novas rotas de fuga que colaborem para tornar a pós-graduação muito mais criativa, inovadora e ética, proporcionando aos corpos que nela opera viver a vida como uma verdadeira obra de arte.

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Informação adicional

Editores do Artigo:: Adilson Luiz Pinto, Enrique Muriel-Torrado



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