Resumo:
Objetivo: Analisar as contribuições da linguística documental via García Gutiérrez para os estudos da linguística documental desenvolvidos no Brasil. Pretende identificar as aproximações entre o contexto espanhol e o brasileiro, destacando os possíveis subsídios das perspectivas traçadas no âmbito da Ciência da Informação Brasileira.
Método: Orienta-se pelo levantamento da produção bibliográfica em anais e bases de dados nacionais (Enancib e Brapci) e internacionais (ISKO Espanha/Porto e Dialnet) com o intuito de identificar os autores da linguística documental. Destaca, do lado espanhol, as contribuições de García Gutiérrez e, do lado brasileiro, a proposta que tem sido desenvolvida por Lara, entre os autores que manifestam a visão brasileira desse intento disciplinar.
Resultado: A documentação, no âmbito espanhol ou da Ciência da Informação brasileira, tem a função de sistematizar as informações de determinada áera do conhecimento. Os problemas documentais aproximam-se da linguística com a intenção de constituir uma teoria documental, todavia com a autonomia do seu objeto de investigação. A linguística documental é apresentada como uma disciplina formada a partir do diálogo da documentação com a linguística.
Conclusões: Notamos uma inclinação para algumas perspectivas das vertentes francesas e inglesas, embora consideramos que os poucos pesquisadores brasileiros se esforçam para fazer uso de teorias e conceitos de acordo com suas realidades a fim de superá-las. O fato é que o termo utilizado para analisar os processos documentais é “análise documental”, terminologia que comprova a carência de estudos da linguística documental na Ciência da Informação brasileira.
Palavras-chave:DocumentaçãoDocumentação,LinguísticaLinguística,Linguística DocumentalLinguística Documental,Ciência da Informação BrasileiraCiência da Informação Brasileira.
Abstract:
Objective: To analyze the contributions of documentary linguistics through García Gutiérrez for the studies of documentary linguistics developed in Brazil. It intends to identify the approximations between the Spanish and the Brazilian context, highlighting the possible subsidies of the perspectives drawn in the scope of the Brazilian Information Science.
Methods: It is guided by the survey of bibliographic production in national and Brazilian databases (Enancib and Brapci) and international databases (ISKO Spain / Porto and Dialnet) in order to identify the authors of documentary linguistics. On the Spanish side, he emphasizes the contributions of García Gutiérrez and, on the Brazilian side, the proposal that has been developed by Lara, among the authors who manifest the Brazilian view of this disciplinary attempt.
Results: The documentation, in the Spanish scope or the Brazilian Information Science, has the function of systematizing the information of a certain area of knowledge. Documentary problems approach linguistics with the intention of constituting a documentary theory, however with the autonomy of its object of investigation. Documentary linguistics is presented as a discipline formed from the documentation dialogue with linguistics.
Conclusions: We note an inclination for some perspectives from the French and English sides, although we consider that the few Brazilian researchers strive to make use of theories and concepts according to their realities in order to overcome them. The fact is that the term used to analyze documentary processes is “documentary analysis”, terminology that proves the lack of studies of documentary linguistics in the Brazilian Information Science.
Keywords: Documentation, Linguistics, Documentary Linguistics, Brazilian Information Science.
Artigos
Linguística Documental Espanhola no Brasil: uma leitura crítica
Linguistics Spanish documentary in Brazil: dialogues between García Gutiérrez and Lara
Recepção: 28 Maio 2019
Aprovação: 07 Outubro 2019
Publicado: 03 Janeiro 2020
A documentação, no âmbito espanhol ou da ciência da informação no contexto brasileiro, é a disciplina responsável por organizar as informações relacionadas a uma determinada área do conhecimento. A documentação possui um caráter transdisciplinar no sentido de estabelecer sua fundamentação teórica e metodológica. Independente do país que se instale, os problemas documentais aproximam-se da linguística para elaborar uma teoria documental, porém com autonomia do seu objeto de investigação. García Gutiérrez (1989 apud LÓPEZ YEPES, 1993, p. 122) afirma que seu conceito está estritamente relacionado com a linguagem, sendo informação seu objeto e linguagem seu processo.
Para García Gutiérrez (1995), a documentação se declara e sempre se declarou como disciplina pragmática, isto é, voltada ao trabalho dos profissionais e o próprio sentido de sua investigação. Trata-se de uma disciplina instrumental e auxiliar para outras ciências. Seu objetivo é organizar e divulgar os conhecimentos em outros campos. Com isso, a instrumentalidade determina seu caráter pragmático (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1998b).
Desse modo, destacamos que a revolução dos sistemas de informação não provém apenas do fator tecnológico e, para tanto, a mudança deve surgir da aproximação da documentação com o campo cunhado por García Gutiérrez como linguística documental[1], pois o objetivo da documentação consiste na sistematização dos princípios de operação sobre o conhecimento, com a finalidade prática de organizá-lo, representá-lo e colocá-lo ao alcance da maior quantidade de usuários possível (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1998b).
A nomenclatura linguística documental é usada para marcar a confluência linguístico-documental proveniente da escola espanhola, embora reconhecemos haver outras possibilidades denominativas, como figura, no caso brasileiro, com a expressão “linguística documentária”.
O objetivo desse estudo foi analisar as contribuições da linguística documental via García Gutiérrez para os estudos da linguística documental desenvolvidos no Brasil. Pretendeu-se identificar as aproximações entre o contexto espanhol e o brasileiro, destacando os possíveis subsídios traçadas no âmbito da ciência da informação brasileira. A pesquisa se justifica pelas contribuições dos estudos espanhóis sobre a linguística documental que influenciaram na concepção da linguística documental no contexto brasileiro.
De um ponto de vista metodológico, nos orientamos pelo levantamento da produção bibliográfica em anais e bases de dados nacionais (Enancib e Brapci) e internacionais (ISKO Espanha/Porto e Dialnet) com o intuito de identificar as contribuições em linguística documental. Para uma análise mais aprofundada dessas relações enfatizaremos dois autores: do lado espanhol, indicamos as contribuições de García Gutiérrez e, do lado brasileiro, comentamos a proposta que tem sido desenvolvida especialmente por Lara que manifesta a visão brasileira desse intento ou projeto disciplinar. Compreendemos que não foram apenas García Gutiérrez e Lara que contribuíram com o desenvolvimento da disciplina, contudo estes discutem as partes fundamentais da teoria da linguística documental.
O objetivo desta seção é entender a linguística documental, a configuração da disciplina no contexto “espanhol” e mencionar brevemente as disciplinas que subsidiaram a formação da mesma, como, por exemplo, a documentação e a linguística.
Destacamos entre aspas a palavra “espanhol”, pois a linguística documental não foi um movimento que se disseminou por completo em todas as escolas de documentação na Espanha. Esta abordagem não representava um movimento teórico coeso, coerente e que reuniu muitos pesquisadores ou envolveu configurações curriculares nos planos de estudo dos cursos de diplomatura e licenciatura em biblioteconomia e documentação.
A perspectiva da linguística documental destacamos, sobretudo, na Universidade de Múrcia, na escola de Comunicação e Documentação, sendo a única que se tem notícia a dar destaque à denominação – linguística documental – como denominação de matérias. Posto isso, não podemos negar que há uma demarcação do termo por algumas escolas e isso se estende a outros países, como no caso brasileiro.
No âmbito da constituição da disciplina na Espanha, mencionamos o pioneirismo de García Gutiérrez, que é reconhecido como precursor da linguística documental. Assim, ao longo de seu percurso profissional, conseguimos identificar duas linhas de pensamento de García Gutiérrez.
A primeira linha é marcada pelo pensamento de influência linguística, concretizado em diversos trabalhos (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1983, 1984, 1987, 1990, 1992, 1996, 1998ª, 1998b, 1999ª, 1999b). Estes foram e ainda são muito influentes para a reflexão e análise no campo da documentação e, mais precisamente, na linguística documental.
A segunda linha de pensamento e/ou fase de García Gutiérrez (2002, 2004, 2005, 2007, 2008, 2011ª, 2011b, 2011c, 2013, 2014ª, 2014b, 2014c, 2014d, 2014e, 2018), é aqui caracterizada brevemente como antropológico-transcultural, em especial, nas publicações mais recentes. Reconhecemos que, em alguma medida, essas últimas produções representam um salto qualitativo do ponto de vista epistemológico e ao mesmo tempo um distanciamento em relação às ideias anteriores, no que concerne às questões da representação da informação e do conhecimento.
Notamos que na constituição da linguística documental há influência de dois campos científicos: por um lado, a documentação, como disciplina que se propõe ao estudo do processo científico-informativo, e necessariamente depende de um código de comunicação que é a linguagem. Por outro lado, a linguística – que visa estudar a linguagem como um sistema cujo propósito é comunicar informações –. Dessa fusão surgiu uma “nterdisciplinar de linguagens documentais” (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1984, p. 137).
A linguística documental recebe influência de vários campos científicos como, da lógica, da estatística, da informática, arquivística, biblioteconomia (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1984, p. 137), entre outros. Partindo do pressuposto de que os problemas relacionados à informação são problemas de linguagem, García Gutiérrez (1990) denomina a linguística documental como disciplina que dialoga e fornece subsídios teóricos e conceituais ao campo da recuperação da informação.
Ao considerar a definição de García Gutiérrez, Izquierdo Arroyo (1990) menciona que linguística documental consiste em uma disciplina teórico-prática que lida com o problema posto pelo armazenamento racional e, posteriormente, pela recuperação do conteúdo de qualquer tipo de documento. O propósito final é resolver este problema através do que Izquierdo Arroyo denomina de agentes qualificados e especializados, estes são sistematicamente entendidos, tanto no aspecto corporativo e institucional e em regime padronizado quanto no contexto dos meios semióticos, denominados “linguagens documentais”.
Dodebei (2002) recorda que foi a partir dos anos de 1940 que o tema das linguagens documentais se tornou objeto de estudos em vários campos. Contudo, para García Gutiérrez (1998ª), o termo linguagem significa um sistema sígnico sujeito a convenções estruturais, funcionais e pragmáticas e, desse modo, tem um significado especial no âmbito da documentação e da disciplina que se ocupa das linguagens documentais, a linguística documental.
Ressaltamos que a elaboração da linguagem documental tem como base conceitual a linguística documental. Esta última congrega e transforma conceitos de outras disciplinas, pois na medida em que busca expressar os conteúdos dos documentos e recuperá-los, ela se aproxima de outras disciplinas com fins análogos. Nesse contexto, cabe verificar a validade a interdisciplinaridade desta para a construção epistemológica da linguística documental.
A linguística documental está conectada com a linguística geral. Assim, é fundamental entender o que é a linguística. Segundo Fiorin (2013), a linguística é uma ciência que não está focada em erros e acertos dos fenômenos linguísticos, mas em aspectos descritivos e explicativos dos mesmos. Tal ciência, ao contrário da gramática, não se pretende normativa, mas descritiva e explicativa, cujo objetivo “é dizer o que a língua é e por que é assim” (FIORIN, 2013, p. 37).
Nesse escopo entendemos que a linguística é a ciência que estuda as línguas naturais, principalmente sua modalidade verbal, bem como as teorias das línguas, com a intenção de sistematizar suas invariantes. Assim sendo, a língua funciona de acordo com dois eixos: o sintagmático, que domina os possíveis agrupamentos dos signos linguísticos e o paradigmático, que considera as relações existentes entre os signos capazes de assumir a mesma função.
A linguística colabora com a linguística documental na medida em que essas relações levam a formulação de campos semânticos, bem como à estruturação e elaboração das linguagens tradutoras, isto é, a passagem de uma linguagem natural para uma linguagem documental (CUNHA, 1987). Nesse sentido, as linguagens assumem o papel de linguagens de representação.
A própria documentação utiliza contribuições de outras disciplinas ou teorias (computação, administração, matemática, estatística, filosofia, comunicação, análise do discurso, análise de conteúdo, entre tantas outras) que lhe são úteis para construir uma estrutura epistemológica por meio da apropriação de conceitos inerentes a estes campos.
A análise do discurso, por exemplo, surge na década de 1970 e segundo Gregolin (1995, p.13) “seu desenvolvimento significou a passagem da Lingüística (sic) da “frase” para a Linguística do “texto””. Gregolin (2015) dá continuidade a essa compreensão de constituição histórica da análise do discurso em outras publicações como, por exemplo, quando discorre sobre alguns temas que versam desde a concepção de uma linguística do discurso, passando pela análise do discurso francesa – dos autores referências como Pêcheux, Foucault, Baktin, entre outros – até chegar à caracterização de uma análise do discurso no Brasil.
Consideramos a análise do discurso como uma área abrangente e com variadas vertentes de interpretação fundadas pela intersecção de epistemologias distintas, entre as quais, a proveniente da linguística.
Embora não seja nossa intenção debruçar sobre o campo da análise do discurso é importante ressaltar que esta é bastante significativa para a análise documental. Segundo Terra, Almeida e Sabbag (2018, p. 3) a análise do discurso “contribui para os processos de mediação dos discursos para fins de recuperação da informação.” Os autores entendem que tal processo consiste no principal ponto de interesse quando se pretende tratar da interdisciplinaridade entre ciência da informação e análise do discurso, tendo como objeto comum o próprio discurso científico.
Após a elaboração do arrazoado sobre a concepção geral da linguística documental, devemos apontar as principais ideias desde campo presentes na literatura brasileira. Esclarecemos ainda que os estudos linguísticos voltados à ciência da informação são bem mais antigos e abrangentes do ponto de vista temático, contudo, nosso recorte de análise volta-se à configuração disciplinar de um campo linguístico voltado à ciência da informação. Em outras palavras, as aplicações linguísticas antecedem a linguística documental, mas esta análise requer outro trabalho e não considerado em nossa argumentação.
A linguística documental passa a ser reconhecida no contexto da Ciência da Informação brasileira a partir do desdobramento de pesquisas e estudos sobre as linguagens documentais. Enquanto Gardin (1973) considera as linguagens documentais partes de um estudo mais amplo no campo da análise documental (análise documentária), para García Gutiérrez (1990) era necessário ao aprimoramento das linguagens documentais, uma disciplina e/ou subcampo da documentação.
Lara (2009) considera a linguística documental (linguística documentária como prefere a autora) como um subcampo da ciência da informação, cujo objetivo é investigar os problemas que caracterizam a linguagem documental. Pelo olhar de García Gutiérrez, a linguística documental se interessa pela comunicação nos processos científicos e informativos via documentos – comunicação documentária. Segundo Lara (2009, p. 158) nos estudos da linguística documental, há clareza de que “o interesse social prevalece sobre o individual”.
Como uma proposta de campo de estudos no Brasil, a linguística documental, segundo Lara (2009), tem focado a construção do instrumento de mediação, com base em referências “linguístico-semióticas”. Além disso, estabelece diálogos com a terminologia.
Os aspectos da mediação de dados a partir da perspectiva do Grupo Temma no Brasil nos estudos da linguística documental com influências de García Gutiérrez e Jean-Claude Gardin se encaminham para a mediação documental. Para Lara (2009) um ponto em comum que marca os estudos da linguística documental no Brasil é a busca pelo entendimento sobre o funcionamento da linguagem para o tratamento da informação, tanto na metodologia como na elaboração de produtos documentários.
Nesse contexto, notamos uma variação no que concerne o desenvolvimento da nomenclatura desta disciplina e isso decorre das vertentes teóricas com as quais a área da ciência da informação dialoga. Ainda persiste uma questão não resolvida: como a linguística documental é visualizada? Seria a linguística documental um campo, disciplina paralela ou subdisciplina da ciência da informação? Por ora, não nos debruçaremos em tal questão, apenas indicamos que esta reflexão epistemológica é fundamental.
O objetivo desta seção é expor os pontos de conexão entre a linguística documental de extração espanhola e os estudos de linguística documentária recorrentes no Brasil, especialmente o confronto das ideias levadas a cabo especialmente por García Gutiérrez e Lara.
Vale mencionar que no contexto brasileiro identificamos pesquisas desenvolvidas cuja temática versam sobre a linguística documental, de modo que auxilia na avaliação de como os trabalhos e as pesquisas na área da ciência da informação têm abordado o referido tema. A pesquisa de mestrado de Voguel (2007) é um exemplo do interesse dos autores brasileiros pela linguística documental. Fundamentada na linguística estrutural, especialmente no conceito de estrutura linguística, resgatou os trabalhos do campo da linguística documental, mas furtando-se da necessária análise epistemológica desse campo.
Cervantes (2009) apresenta um breve resumo de aspectos conceituais da linguística documental para contextualizar o seu estudo relacionado à representação da informação, especificamente quanto à construção de tesauros. A autora se utiliza do termo proposto por García Gutiérrez para estabelecer uma distinção entre linguística documental (linguística documentária) e análise documental (análise documentária), atribuindo ao primeiro termo a função de desenvolver diretrizes para a elaboração das linguagens documentais, porquanto o segundo termo é caracterizado como “disciplina de natureza metodológica que propõe processos de organização da informação visando a sua recuperação e comunicação” (CERVANTES, 2009, p. 40).
Desse modo, a linguística documental estaria relacionada aos atributos normativos das linguagens documentais, e a análise documental ao processo de representação que recorre às ditas linguagens documentais.
Nesse escopo, apontamos que há pesquisadores dedicados aos estudos da linguística documental no Brasil e que, é fato, da necessidade de traçar análises críticas sobre a temática. A concretização dessa linha investigativa pode ser verificada pela própria elaboração e oferta da disciplina Linguística Documentária junto ao curso de graduação em Biblioteconomia, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Entretanto, a despeito do avanço de sistematização teórica representado pela criação da disciplina pela principal universidade brasileira, o plano de ensino não registra na bibliografia os trabalhos pioneiros de García Gutiérrez[2] a respeito do tema.
Para tanto, devemos destacar o importante trabalho desenvolvido por Lara (2002, 2004ª, 2004b, 2007, 2009). Tais estudos dão ênfase aos temas centrais da linguística documental e, consequentemente, ao aprimoramento das linguagens documentais, principalmente no que concerne à caracterização dos elementos centrais da terminologia, utilizados como base para a construção epistemológica da linguística documental.
Lara (2009) sustenta que as bases da linguística documentária estão nas contribuições da linguística estrutural, mais precisamente nos estudos da linguagem, da Semiótica, da Lógica e da Terminologia, e que na Ciência da Informação há uma apropriação de conceitos explicativos e operacionais dessas áreas.
Lara e García Gutiérrez concordam que a interdisciplinaridade é um fator inerente à construção epistemológica da linguística documental. A disciplina em questão congrega conceitos da linguística estrutural, semiótica, terminologia, lógica formal, entre outras. No entanto, García Gutiérrez (1998b, p. 8) enfatiza que muitas teorias linguísticas em desuso ou plenamente vigentes podem ser revistas e aplicadas sempre que se notar sua utilidade. Tálamo e Lara (2006, p. 207) consideram que tal apropriação ocorre de modo coordenado, propondo uma relação de mão dupla e não meramente de junção interdisciplinar.
Por outro lado, uma aproximação pluridisciplinar e, talvez, transdisciplinar da investigação documental seja necessária, pois, para abordar problemas cognitivos, o mais sensato é apreender os conceitos das disciplinas que estudam esses problemas de maneira mais estável e realizar recortes, de acordo com nossos fins, aproveitando as abordagens teórico-conceituais e metodológicas que propõem a resolução dos casos (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1993). O autor nos chama a atenção para os interesses factuais da área, no sentido da representação e recuperação de conteúdos informacionais.
Na medida em que se assemelham, os autores utilizam caminhos distintos para abordar a linguística documental. García Gutiérrez enfatiza a importância de se pensar o profissional da informação, principalmente no que tange à formação acadêmica.
García Gutiérrez prevê uma formação mais humanista que leve em consideração conteúdos que se distinguem de uma formação tecnicista e burocrática. Esta ideia foi reforçada na conferência inaugural do curso acadêmico de 2000 da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, em que afirma que:
[…] a universidade deve oferecer à sociedade um ativista na cultura da informação, um especialista reciclado, mas resguardando a essência daquele velho bibliotecário sábio, ilustrado, conhecedor de sua biblioteca e da psicologia dos leitores que a frequentam (GARCÍA GUTIÉRREZ, 2000, p. 3, tradução nossa).
Presumimos que compete ao profissional da informação conhecer profundamente os métodos de organização e disseminação do conhecimento, bem como propor meios de estudar os usuários para atender suas necessidades e demandas. Entendemos todo esse processo como de caráter pragmático, uma vez que o profissional volta seus esforços à obtenção de um resultado: organizar, representar e disponibilizar o conhecimento produzido.
Neste caso, a análise documentária atuaria como mediadora entre os documentos e os usuários. Contudo, para efetivar-se necessita de uma disciplina que contemple e desenvolva os mecanismos e instrumentos léxicos de recuperação da informação. Lara (2004b) considera os elementos centrais da terminologia como base da conceituação da linguística documental. Ou seja, a terminologia dá suporte ao estudo dos conceitos e sua representação em linguagens de especialidade. “Os elementos centrais são os objetos, conceitos, termos e definições. Nesse âmbito, os conceitos estão para os objetos e são representados por termos, isto é – designações dos conceitos – que são descritos por meio das definições” (LARA, 2004b, p. 235).
De acordo com a norma ISO 1087:2019 (tradução nossa), o conceito é “uma unidade de conhecimento criada por uma combinação única de características”. Os conceitos possuem influências socioculturais, pois existem diversas possibilidades de categorizações, variando de uma língua para a outra. Ademais, é possível definir relações hierárquicas entre os conceitos, modelando-os através de estruturas de relacionamentos. De certo modo, haveria na versão brasileira de linguística documental uma aproximação maior com a terminologia. As apropriações dos elementos centrais da terminologia, segundo Lara (2004b), são substanciais na construção epistemológica da linguística documental.
Por meio das estruturas de relacionamentos entre os conceitos chegamos a uma definição. Segundo a norma ISO 1087:2019 (tradução nossa), definição é uma “representação de um conceito por uma expressão que o descreva e o diferencie dos conceitos relacionados”. Esta definição pode ser: a) intencional, quando alude a um conceito genérico imediato e sua característica delimitadora; e b) extensional, quando “enumera os conceitos subordinados de um conceito superordenado sob um critério de subdivisão” (ISO 1087:2019, tradução nossa).
Portanto, cada conceito é representado por um signo, sendo ele linguístico ou não. Esta representação possui várias designações, dentre elas destacamos: a) termo: descreve um conceito geral por meios verbais; b) nome próprio: representa um conceito único; e c) símbolo: constitui um com conceito por meios não verbais (ISO 10871:2019, tradução nossa).
Para a ciência da informação no Brasil, mais precisamente para a linguística documentária, as discussões sobre o significado de conceitos, definições e termos destacam a necessidade de delinear procedimentos que observem as várias manifestações linguísticas discursivas para que o processo documental seja eficiente e capaz de cumprir sua função: mediar e disseminar a informação.
Mais que uma discussão da proposta de García Gutiérrez sobre linguística documental, poderíamos mencionar que a ênfase encontrada está mais próxima de uma “terminologia documentária”, isto é, a fusão da terminologia com o campo da documentação para promover a base teórica e instrumental das linguagens documentais. Em outras palavras, de linguística documentária, embora a expressão seja mais abrangente e aceita, o conteúdo terminológico da teoria pode superar as contribuições linguísticas, as quais ficam reduzidas à corrente linguística e à semântica estrutural.
As considerações elencadas neste trabalho não conseguem sintetizar as investigações sobre a linguística documental no Brasil, muito menos sobre a interlocução teórica construída ao longo dos anos entre o contexto espanhol e brasileiro, apenas alude aos aspectos gerais dessa relação. Com base nos trabalhos relacionados, verificamos uma desarticulação no que corresponde aos trabalhos desenvolvidos no contexto da linguística documental.
Em linhas gerais, notamos uma inclinação para as perspectivas das vertentes francesas e inglesas, embora consideramos que os pesquisadores brasileiros (CERVANTES, 2009; DODEBEI, 2002; GUIMARÃES; SALES, 2010; GUIMARÃES; SALES; GRÁCIO, 2012; LARA, 2002, 2004a, 2004b, 2007, 2009, 2011; MAIMONE; TÁLAMO, 2011; MOREIRA, 2012, 2013; NATALI, 1978; TÁLAMO, 1997; TÁLAMO; LARA, 2009; VOGUEL, 2007) entre outros, se esforçam para fazer uso de teorias e conceitos de acordo com suas realidades e limitações a fim de superá-las.
Dentre as produções das edições de 1994 até 2017 dos Encontros Nacionais de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (Enancib), verificamos que desde as primeiras edições, especificamente os trabalhos do GT2, quando se apresentava em 1994 como Representação do Conhecimento/Indexação/Teoria da Classificação, reúne trabalhos cujas abordagens contemplavam o tema das linguagens documentais e que ao longo das edições posteriores as propostas nesse grupo de trabalho foram crescendo e, atualmente, o GT2 denominado Organização e Representação do Conhecimento, se apresenta com uma variedade de temas cujo enfoque ainda permeia as linguagens documentais, a análise documental, e principalmente da linguística documental. Em certa medida, consideramos que estudos que perpassam sobre a temática das linguagens documentais como de (KOBASHI, 1995; TÁLAMO, 1997; LARA, 1995, 2000; MANINI, 2000; LARA e TÁLAMO, 2006; VOGUEL, 2007; MOREIRA e LARA, 2011), por exemplo, ainda possuem relação estreita com a análise documental.
A linguagem documental é tratada como um sistema híbrido “com estrutura e funções próximas [...] aos sistemas naturais” (GARCÍA GUTIÉRREZ, 1990, p.33). Nesse aspecto, García Gutiérrez enfatiza a noção estrutural que subordina à linguagem documental, tendo em vista que afirma a significação como consequência de relações opcionais, noção fundante do conceito de estrutura. A concepção de linguagem documental muda de perspectiva. É possível verificar isso em dois trabalhos de García Gutiérrez. Em 1990, a linguagem caracterizava-se como um instrumento comutador, referencial do sistema, sua função era informativa e dava assistência nos processos de análise documental. Já em 1998, García Gutiérrez redefiniu linguagem documental, como um dispositivo léxico construído artificialmente e com fins de análise e recuperação de um determinado sistema de informação.
Diante dessa concepção, García Gutiérrez defendeu que as linguagens documentais ignoravam a questão enunciativa. Para tanto, sugeriu uma linguagem associativa – linguagens epistemográficas – que toma por base estruturas horizontais de organização, desenvolvidas por contextos que reproduzam construções discursivas em alguma área do conhecimento.
Importante mencionar ainda que a noção de Linguística documental, mais precisamente linguística documentária nas palavras de Tálamo e Lara (2006), compreende um subdomínio da ciência da informação que estuda as características da linguagem e dos ambientes informacionais que combinam as referências da produção informacional, os objetivos institucionais e os elementos cognitivos e comunicacionais de grupos de usuários.
De acordo com os textos extraídos das bases Brapci e Dialnet, o Brasil tem recebido uma forte influência gardiniana no contexto da organização da informação. As produções foram recuperadas nas bases de dados através das palavras-chave “linguística documental”, “linguística documentária”, “documentação”, “análise documental”, “análise documentária”, “linguagem documental” e “linguagem documentária”. Na Brapci, obtivemos sete resultados e na Dialnet, três resultados.
Destacamos que alguns trabalhos se limitaram a verificar as distinções terminológicas existentes no campo epistemológico da linguística documental (GUIMARÃES; SALES, 2010; GUIMARÃES; SALES; GRÁCIO, 2012; LARA, 2011), além de enfatizar a inclinação pela matriz francesa. Outros trabalhos discutiram as linguagens documentais (MOREIRA, 2012, 2013) e a interdisciplinaridade da linguística documental (MAIMONE; TÁLAMO, 2012; NATALI, 1978; TÁLAMO, 1997; TÁLAMO; LARA, 2009), intentando estabelecer diálogos entre a documentação, a linguística e a terminologia.
A matriz francesa se sedimentou no país, através dos estudos do Grupo Temma, criado por Johanna Smit, no qual “concentrou seus esforços nas reflexões teóricas e práticas da análise documental, enfatizando os procedimentos que subjazem à atividade da representação do conteúdo” (GUIMARÃES; SALES, 2010). Segundo Moreira (2012, p.124), os pesquisadores do Grupo Temma rompem com a perspectiva tecnicista e agrupam-se pelos interesses em linguística e terminologia na construção e uso de representações documentais. O fato é que o termo utilizado para analisar os processos documentais é “análise documental”, terminologia que comprova a carência de estudos da linguística documental na ciência da informação brasileira.
Destacamos que, apesar das pesquisas cujos temas envolviam direta ou indiretamente a linha de investigação da linguística documental, ainda percebemos a necessidade de avançar com tais estudos, pois entendemos que seja possível investir em projetos de pesquisas que articulem outras problemáticas e possam acrescentar perspectivas que extrapolem a da linguística. Uma saída poderia ser retomar os estudos sobre semiótica no Brasil, reconsiderando a proposta iniciada por Izquierdo Arroyo (1990) no que tange uma semiótica documental.
A partir de um olhar sobre a linguística documental, devemos chamar a atenção para as novas perspectivas abertas pelos trabalhos recentes de García Gutiérrez em sua fase atual em que submete à crítica as linguagens e os sistemas de classificação tradicionais.
Parecer (pdf)
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA : Concepção e elaboração do manuscrito: C.C. Almeida, M.C.Q.S. Farias, I.L. Matias Coleta de dados: C.C. Almeida, M.C.Q.S. Farias, I.L. Matias Análise de dados: C.C. Almeida, M.C.Q.S. Farias, I.L. Matias Discussão dos resultados: C.C. Almeida, M.C.Q.S. Farias, I.L. Matias Revisão e aprovação: C.C. Almeida, M.C.Q.S. Farias, I.L. Matias
CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo
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PUBLISHER: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
EDITORES: Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros.
Agradecemos aos integrantes do Grupo de Pesquisa Fundamentos Teóricos da Informação, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.