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O fenômeno da pós-verdade e suas implicações para a agenda de pesquisa na Ciência da Informação

The post-truth phenomenon and its implications for the information science research agenda

Carlos Alberto Ávila ARAÚJO
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

O fenômeno da pós-verdade e suas implicações para a agenda de pesquisa na Ciência da Informação

Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 25, pp. 1-17, 2020

Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 02 Abril 2020

Aprovação: 27 Abril 2020

Publicado: 20 Maio 2020

Resumo: Objetivo: Apresentar as características do fenômeno conhecido como pós-verdade e como ele se coloca para a agenda de pesquisas da ciência da informação.

Método: É realizada uma revisão de literatura atualizada sobre o fenômeno da pós-verdade e seu tensionamento com a literatura sobre epistemologia da ciência da informação, considerando-se autores e perspectivas de diferentes países.

Resultado: Evidencia-se que o fenômeno da pós-verdade implica alterações consideráveis na maneira como a informação é produzida, compartilhada, consumida e utilizada, apresentando dimensões até então inéditas nas questões informacionais. A produção intelectual da ciência da informação, que privilegiou por décadas determinadas dimensões dos fenômenos informacionais (relevância, recuperação, estratégias de busca, dinâmicas de identidade e memória) não desenvolveu até o momento categorias de análise adequadas para se ter uma centralidade da dimensão de “verdade” da informação.

Conclusões: Recomenda-se que a ciência da informação aproveite as categorias de análise e modelos teóricos já existentes, aliadas a novos esquemas interpretativos a serem criados, para diagnosticar, caracterizar e propor formas de resistência e ação às consequências negativas do fenômeno da pós-verdade.

Palavras-chave: Pós-verdade, Epistemologia da ciência da informação, Informações falsas.

Abstract: Objective: We present the characteristics of the phenomenon known as post-truth and how it is placed on the information science research agenda.

Methods: An updated literature review is made about the phenomenon of post-truth and its tension with the literature on epistemology of information science, considering authors and perspectives from different countries.

Results: It is evident that the phenomenon of post-truth implies considerable changes in the way information is produced, shared, consumed and used, presenting dimensions previously unheard of in informational issues. The intellectual production of information science, which for decades has privileged certain dimensions of informational phenomena (relevance, retrieval, search strategies, dynamics of identity and memory) has not yet developed adequate categories of analysis to have a centrality in the dimension of “truth” of the information.

Conclusions: It is recommended that information science take advantage of the existing categories of analysis and theoretical models, combined with new interpretive schemes to be created, to diagnose, characterize and propose forms of resistance and action to the negative consequences of the post-truth phenomenon.

Keywords: Post-truth, Epistemology of information science, Fake news.

1 INTRODUÇÃO

A ciência da informação é uma disciplina científica surgida nos anos 1960. Num primeiro momento, envolvida com o fenômeno da “explosão da informação” resultante do incremento das atividades em ciência e tecnologia após a II Guerra Mundial, ela se centrou no estudo da recuperação da informação em sistemas analógicos e digitais de informação. Nas décadas seguintes, houve o aumento de estudos centrados nos usuários e o consequente desenvolvimento de sistemas de informação orientados a partir dos achados destes estudos. No século XXI, passaram também a ser realizadas muitas pesquisas voltadas para o caráter social da produção e do consumo da informação, bem como sobre os seus efeitos nas esferas políticas, econômicas, jurídicas, culturais, entre outras. Mais recentemente, um novo fenômeno no âmbito das dinâmicas informacionais vem apresentando problemas, questões e desafios para a ciência da informação: o fenômeno da pós-verdade, que acarretou “uma mudança profunda nos modos como as informações são produzidas, recebidas e reproduzidas” (SANTAELLA, 2019, p. 22).

Pós-verdade é uma expressão sobre a qual muito se tem falado e discutido atualmente, na mídia, nas redes sociais, na política e, também, na produção científica, em várias áreas. Ela já vinha sendo usada há alguns anos, mas se tornou popular em 2016, quando foi escolhida como “palavra do ano” pelo Dicionário Oxford e se tornou diretamente relacionada a dois fatos extremamente importantes para a política mundial – a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e a vitória do plano da saída do Reino Unido da União Europeia, conhecido pela sigla Brexit (abreviatura de Britain exit).

O uso dessa expressão para designar o momento atual é visto por alguns como algo inadequado, como um modismo, pois se trataria apenas de um novo nome para um fenômeno antigo, e seu uso estaria desconsiderando tudo o que já foi produzido e pensado sobre o assunto. Contudo, para aqueles efetivamente dedicados ao estudo do fenômeno, trata-se, sim, de um processo novo na história, marcado por determinadas características específicas e que exigiria, portanto, categorias de análise próprias. Inclusive, como apontam Aparici e García Martín (2019, p. 09, tradução nossa), “é fundamental a diferenciação entre os conceitos de pós-verdade e notícias falsas (fake news), dimensões que devem ser tomadas separadamente”.

Mas o que é, efetivamente, “pós-verdade”? A definição do Dicionário Oxford aponta que a expressão está relacionada com “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal” (McINTYRE, 2018, p. 34, tradução nossa). Essa definição tem uma série de implicações. A primeira deles é que cabe entender, inicialmente, qual o sentido do “pós” na expressão, que “pretende indicar não tanto a ideia de que ‘deixamos para trás’ a verdade em um sentido temporal (como em ‘pós-guerra’), mas no sentido de que a verdade foi ofuscada: que é irrelevante” (McINTYRE, 2018, p. 34, tradução nossa). Portanto, pós-verdade se relaciona com um desinteresse pela verdade. Em sua relação com as informações (ao buscar informações para tomar decisões, ao compartilhar informações para divulgar uma ideia ou convencer outras pessoas), o fato de serem essas informações verdadeiras ou não tornou-se algo irrelevante – mesmo, no contexto tecnológico atual, com muita facilidade e possibilidade de checagem da veracidade das informações a partir de consultas de alguns segundos na internet. A expressão se relaciona também com um certo declínio da razão, de atitudes racionais, em detrimento de ações dirigidas pelo emocional ou por crenças, preconceitos, visões de mundo pré-concebidas e estanques. Tais dimensões acabam por se desdobrar em outros fenômenos e aspectos, tendo implicações para a prática da democracia e da tolerância, estando relacionada a questões como populismo, autoritarismo e cultura do ódio.

Contudo, antes de avançar na compreensão do que é o fenômeno, é fundamental analisar as suas causas, isto é, o conjunto de fatores e processos que conduziram à sua configuração nos últimos anos. Assim, no próximo tópico, serão apontadas e discutidas essas causas. No tópico seguinte, são apresentadas algumas expressões e configurações do fenômeno, bem como indicadas algumas e suas consequências ou efeitos. Por fim, no último tópico, discute-se em que medida essa nova realidade altera ou coloca novos desafios para a ciência da informação, tanto no que se refere a uma nova agenda de pesquisa (compreender as práticas que se dão no contexto da pós-verdade) como na construção ou reformulação das categorias de pesquisa da área e, até, seus impactos na própria conceituação de seu objeto de pesquisa, a informação.

2 AS CAUSAS DO FENÔMENO DA PÓS-VERDADE

O que chamamos hoje de “pós-verdade” refere-se a uma conjuntura produzida por diversos fatos ou fenômenos que já vinham acontecendo há décadas (ou séculos, em alguns casos), mas que se relacionaram ou interagiram de uma determinada maneira somente nos últimos anos. Como colocado por McIntyre, a pós-verdade não surgiu antes, ela “esperou a tempestade perfeita que teria outros fatores como o viés partidarista extremo e os ‘silos’ das redes sociais que surgiram no começo dos anos 2000” (McINTYRE, 2018, p. 68, tradução nossa).

McIntyre dedicou-se ao estudo dos fatores que conduziram à pós-verdade e apontou cinco, que aconteceram de maneira paralela. São eles:

Também Kakutani (2019) realizou uma análise dos fatores que conduziram ao fenômeno da pós-verdade. Alguns dos fatores apontados por ela coincidem com aqueles listados por McIntyre. Mas ela acrescenta outros como a queda ou desvalorização da razão (um certo desdém pela razão, a valorização da “sabedoria da turba”, isto é, das pessoas comuns, em detrimento dos especialistas); as guerras culturais (desde a contracultura, a nova esquerda e o movimento pós-modernos, com uma apropriação populista por parte da extrema direita consagrando a ideia de subjetividade, acabando com a ideia de consenso); a cultura do narcisismo (“cultura do moi”, ideia de que todas as verdades seriam parciais); a própria desaparição da verdade (promovida por mentiras compulsivas ditas por líderes populistas e tidas como mais verdadeiras do que argumentos verdadeiros); déficit de atenção (pessoas que não leem os textos mas apenas as notícias, não prestam atenção na autoria, dando força a informações apócrifas – o que favorece a atuação de trolls); as chamadas “mangueiras da falsidade” (campanhas de propaganda de ódio em massa mobilizando amplos grupos a agirem de maneira irracional).

Na avaliação de Santaella, são dois os fatores estruturais que conduziram ao processo da pós-verdade. O primeiro é a formação das “bolhas” ou “câmaras de eco”, nas quais os usuários ficam isolados, fechados a novas ideias, assuntos e informações importantes, sobretudo na política, e acabam se expondo “quase exclusivamente a visões unilaterais dentro do espectro político mais amplo” (SANTAELLA, 2019, p. 15). O segundo é a disseminação de notícias falsas. Embora isso não seja novidade na história, o fato novo é a ausência de regulações como aquelas que incidem sobre as instituições jornalísticas, numa lógica em que toda informação teria o mesmo peso ou valor, independentemente de sua qualidade, de sua checagem e do compromisso institucional por detrás de sua produção.

3 EXPRESSÕES E CONSEQUÊNCIAS DO FENÔMENO DA PÓS-VERDADE

Uma vez que os distintos fatores apontados acima interagiram em condições específicas para criar uma conjuntura favorável ao surgimento do fenômeno da pós-verdade, surge a necessidade de entender como se dá, efetivamente, esse fenômeno. A pós-verdade “é uma ideia, um imaginário, um conjunto de representações sociais ou sentidos já incorporados pelas audiências e a partir da qual são possíveis as fake news que se relacionam com essa ideia, a afirmando e a ampliando” (MUROLO, 2018, p. 68, tradução nossa). Mas como, efetivamente, ocorre a pós-verdade? Quais as evidências concretas de sua existência? Tomemos como ponto de partida a seguinte análise sobre a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos:

O problema de Trump era duplo, por suas políticas e por sua personalidade. Era provável que seu nacionalismo econômico pioraria as coisas, em vez de melhorá-las para quem o apoiou, enquanto sua aberta preferência por homens fortes e autoritários, em detrimento dos aliados democráticos, prometia desestabilizar a ordem internacional. Com respeito a sua personalidade, era difícil imaginar alguém menos apropriado para ser presidente dos Estados Unidos. Ele carecia completamente das virtudes associadas com a liderança (integridade, confiabilidade, bom juízo, devoção ao interesse público e uma conduta moral inquestionável) (FUKUYAMA, 2019, p. 12, tradução nossa).

Para Fukuyama, Trump representa uma tendência da política internacional que ele denomina nacional-populismo. Conforme o autor, “outros líderes contemporâneos que podem ser incluídos nesta categoria são Vladimir Putin na Rússia, Recep Tayyip Erdogan na Turquia, Viktor Orbán na Hungria, Jaroslaw Kaczynsi na Polônia e Rodrigo Duterte nas Filipinas” (FUKUYAMA, 2019, p. 12, tradução nossa). Eatwell e Goodwin (2019) chamam esse fenômeno de “nacional-populismo”, apresentando uma lista de líderes políticos que se utilizam de estratégias de disseminação sistemática de informações falsas, e incluindo nessa lista o presidente eleito do Brasil, em 2018, Jair Bolsonaro.

Os casos mencionados acima são todos relevantes, pois evidenciam vitórias eleitorais de pessoas com tendências autoritárias e, no caso da discussão empreendida aqui, atores que desprezam a verdade. Trump é o caso mais exemplar, afinal, representa o país que é a maior economia e a maior potência militar do planeta. Wilber aponta inclusive que Trump fez da mentira sua estratégia política:

Durante a campanha de Trump, houve jornais que se dedicaram a contar o número de mentiras que Trump havia dito num dia: ‘Ontem foram 17, hoje já foram 15’. Um estudo sobre isso realizado pelo site Politifact chegou a identificar a falsidade de cerca de 50% das suas afirmações (!) (WILBER, 2018, p. 44, tradução nossa).

Diagnóstico semelhante é levantado por Kakutani:

Trump, o presidente número quarenta e cinco dos Estados Unidos, mente de um modo tão prolífico e a tal velocidade que The Washington Post calculou que durante o seu primeiro ano no cargo pode ter emitido 2140 declarações que continham falsidades ou equívocos: uma média de 5,9 por dia. Seus embustes sobre absolutamente tudo, desde a investigação sobre interferências russas na campanha eleitoral até o tempo em que ele mesmo passa em frente à televisão, não são mais do que o sinal vermelho que avisa seus constantes ataques às normas e instituições democráticas. Ataca sem cessar a imprensa, o sistema judicial e os funcionários que fazem com que o governo funcione” (KAKUTANI, 2019, p. 14, tradução nossa).

A autora destaca que o fato de um vilão como Trump, “narcisista, mentiroso, ignorante e cheio de preconceitos, rude, demagogo e com impulsos tirânicos” ter tido um apoio popular tão grande “só se explica pelo desgosto, pelo cansaço que existe sobre a questão da verdade” (KAKUTANI, 2019, p. 16, tradução nossa).

Na verdade, o sucesso de líderes autoritários e a emergência de formas de governo baseadas em disseminação em massa de informações falsas é tanto causa como consequência da pós-verdade, na medida em que criam um

ambiente perfeito para a proliferação de Fake News (notícias falsas – NF), motivada por interesses que visam manipular atitudes, opiniões e ações. Quando a confusão e a falta de confiança nas fontes se instalam, as portas ficam abertas para que a desinformação tome o comando (SANTAELLA, 2019, p. 33).

Tal movimento não se expressa apenas na política. Há também fenômenos importantes como o terraplanismo, a negação das vacinas, a negação de fatos históricos como a escravidão ou o holocausto, entre outros, num amplo quadro de conformação de uma verdadeira “cultura da pós-verdade” (WILBER, 2018), que alguns chamam de sociedade do desconhecimento (SERRANO OCEJA, 2019), era do ressentimento (FUKUYAMA, 2018), mundo Orwell (GÓMEZ DE ÁGUEDA, 2019), era pós-democrática (CASARA, 2019).

Outra questão é entender como acontece o fenômeno da pós-verdade. Dissecando as estratégias da pós-verdade, García Martín e Aparici (2019) apresentam as seguintes manifestações do fenômeno:

Os autores apontam ainda as principais estratégias da pós-verdade em termos de linguagem: uso de metonímia, manipulação de declarações, polarização através do estereótipo, descontextualização, saturação de conteúdo, modificação do significado de palavras, uso de frases feitas, apresentação de fatos aparentes, argumentos vazios e exagerados, omissão de fatos, adulação, agregados degradantes e opiniões diferentes segundo as circunstâncias. E destacam ainda um último fator, o que chamam de política-cyborg, isto é, o uso de robôs para automatização da circulação e popularização de determinadas informações e, até mesmo, para a sua criação:

“A difusão automatizada de conteúdos em redes sociais, mediante bots, especialmente no contexto de grandes eventos políticos e eleitorais, cada vez é mais frequente, e chegaram a ser um quinto das conversações registradas no Twitter nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos” (GARCÍA MARTIN; APARICI, 2019, p. 127).

Santaella (2019, p. 33) apresenta três grandes conjuntos de problemas em que se manifesta a pós-verdade: o conteúdo deliberadamente falso, as mensagens enganadoras que não são necessariamente falsas, e os memes que não são nem verdadeiros nem falsos, mas produzem impressões negativas ou incorretas. Ela aponta também outras condições de ocorrência do fenômeno, como o fato de as redes sociais provocarem mais efeito bolha do que os motores de busca, ou a importância da popularidade, sobre o qual estudos mostram que a informação falsa tem mais propensão a ser difundida do que a verdadeira. A atuação totalitária e empobrecedora da experiência dos indivíduos também foi constatada e caracterizada por Noble (2018).

Entre as consequências perigosas da vigência do fenômeno da pós-verdade, Kakutani (2018) retoma os argumentos de Hannah Arendt, que defende que o sujeito ideal para um governo totalitário é aquele para quem a distinção entre fato e ficção, verdadeiro e falso, deixa de existir. Para ela, portanto, o perigo último da pós-verdade é a consolidação dos populismos e fundamentalismos, que, por meio da destruição da própria ideia de “verdade”, destroem também a democracia e impõem o medo e o ódio sobre o debate racional.

Wilber (2018) situa a pós-verdade no âmbito de uma mudança no quadro geral de valores das sociedades contemporâneas. Para ele, teria havido um fracasso do projeto vanguardista iniciado com as revoluções culturais na década de 1960, marcado pelas ideias de pluralidade, relativismo, pós-modernismo, diversidade, inclusão, tolerância, direitos humanos, igualdade das pessoas. O autor destaca o relativismo da noção de verdade do pensamento pós-moderno e a cultura do narcisismo (“o que eu quero que seja verdade se converte em verdade”) como os principais responsáveis pela crise de legitimidade desse projeto e o nascimento do que chama de “cultura da pós-verdade”, marcada por um retorno ao etnocentrismo, uma política de identidade de modo ativo e agressivo. E aponta o incremento da internet e das redes sociais como um propulsor desse processo, uma vez que a promessa original delas, de uma humanidade global unificada e cooperativa, teria dado lugar ao anonimato do intercâmbio online com tendências carregadas de agressividade, narcisismo, ódio e crenças etnocêntricas (sexismo, racismo, xenofobia, fanatismo).

Uma outra forma de enxergar o problema é apresentada por Broncano (2019) a partir de sua proposta de uma epistemologia política, na qual articula as questões informacionais (informação e conhecimento como fontes de energia do nosso tempo) às questões políticas (uma compreensão de que tudo o que afeta nossas vidas, o preço da conta de luz, os agrotóxicos nos alimentos, a inflação, são resultado de decisões políticas). Seu objetivo é analisar uma sociedade vendo quem, como e o que se conhece e, paralelamente, quem, como e o que se ignora. A epistemologia política é, assim, o estudo do conhecimento, sua distribuição justa ou injusta na sociedade, numa proposta inspirada na ideia de “estrutura básica” de Rawls (a repartição de bens materiais e imateriais na sociedade) para se pensar numa topografia do conhecimento e da ignorância que organizam uma sociedade.

Broncano situa sua problemática informacional (ou do conhecimento) às questões políticas a partir do ideal de democracia deliberativa de Habermas: um modelo em que os cidadãos, utilizando a razão, exercem uma ação comunicativa de argumentação para, por meio do debate, influir nos rumos do sistema político. Essa seria a diferença entre uma sociedade (usando a razão para a deliberação democrática) e uma horda. Nesse sentido, ele detecta que a democracia deveria estar baseada na “verdade” e não simplesmente em opiniões e crenças. É aí que ele situa a problemática da pós-verdade, causada pelo avanço da polarização e isolamento nas bolhas, da diminuição do jornalismo de investigação e aumento do sensacionalismo e da lógica das redes sociais em que o objetivo é ter curtidas e compartilhamentos e não o aumento do conhecimento sobre a realidade.

Sua análise da pós-verdade, dentro desse espectro da epistemologia política, se dá a partir do conceito de “regime”. Ele parte da teoria de Foucault sobre os “regimes de verdade” desenvolvida em “Vigiar e punir” para estudar as imbricações entre o poder e certos corpos de conhecimentos e deriva daí a ideia de que existiria um “regime de pós-verdade” calcado na expropriação da atenção e na economia cognitiva.

4 IMPLICAÇÕES DO FENÔMENO PARA A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

A information science surgida na Inglaterra e nos Estados Unidos, no período imediatamente posterior à II Guerra Mundial, esteve relacionada com a importância que a informação possuía, na visão destes países, para o desenvolvimento científico e tecnológico no contexto da guerra fria. Nesse sentido, “informação” era entendida em um sentido bastante específico, enquanto informação científica e tecnológica, e seu estudo se dava dentro de uma lógica essencialmente governamental e militar, isto é, os objetivos com o estudo da informação eram, antes mesmo de serem propriamente científicos, pragmáticos, relacionados a um contexto de competição entre países pela hegemonia no cenário internacional. (COLL-VINENT, 1984; DEBONS; HORNE; CRONENWETH, 1988; LINARES COLUMBIÉ, 2005). Estudar a informação era compreender e mapear a produção, circulação e uso da informação científica e tecnológica (e apenas desta) para se pensar em instrumentos de seu processamento para garantir maior rapidez, menor custo, maior exatidão em sua transferência dentro da comunidade científica e desta para os setores estratégicos dos ambientes governamental e militar. Tratava-se de uma maneira muito específica de conhecer (a partir de um conjunto de interesses) e da delimitação de algo muito específico a ser conhecido - aquilo que era considerado objeto de estudo da ciência da informação (DAVIS; SHAW, 2001)

Desenvolveu-se aí uma ciência do controle da informação, da construção de técnicas para seu processamento ótimo num contexto da competitividade entre países por meio do incremento de seus sistemas de informação científica. O modelo teórico desta abordagem, conhecido como “paradigma dos sistemas” ou paradigma físico, que pressupõe o estudo dos sistemas de informação isolados da vida social e dos usuários, basicamente a partir de medidas quantitativas de desempenho de recuperação da informação (BAWDEN; ROBINSON, 2012). Tal modelo é resultado da complementação de duas perspectivas. A primeira é a da teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver, que entende a comunicação como um processo de envio de mensagens de um emissor a um receptor, cabendo à ciência da informação atuar na otimização do transporte dessas mensagens por meio do processamento e da recuperação da informação. O segundo é o modelo sistêmico derivado da tradição de estudos iniciados com os experimentos realizados Cranfield Institute of Technology nas décadas de 1950 e 1960, em que os sistemas de informação são avaliados em termos de seus atributos objetivos e suas performances em recuperação da informação (HJORLAND, 2018a).

Vários autores destacam que, nos anos que se seguiram, desenvolveu-se na ciência da informação uma perspectiva cognitivista, centrada nos usuários. Para Debons, Horne e Cronenweth (1988), tal movimento representou um deslocamento da mesma lógica de pesquisa dos ambientes governamental e militar para o âmbito do setor industrial e empresarial, com demandas de eficácia de gestão, operação e controle. A novidade, do ponto de vista conceitual, foi a introdução de uma perspectiva orientada não mais para os sistemas, mas sim para os usuários ou clientes (HJORLAND, 2018a). Com isso, deu-se o estudo dos processos cognitivos humanos e sua modelização, com o objetivo de desenvolver sistemas de informação que pudessem replicar tais processos, de modo que o foco dos estudos eram os indivíduos se relacionando com a informação e a manifestação de suas necessidades e os procedimentos para resolução destas necessidades (BAWDEN; ROBINSON, 2012; GILCHRIST, 2009).

Por fim, há diversos autores que apontam a existência de uma terceira visão ou forma de se estudar a informação em anos mais recentes. Linares Columbié (2005) aponta o surgimento de uma outra epistemologia da ciência da informação desde o estudo da sociedade e da cultura. Cronin (2008) fala de uma virada sociológica na ciência da informação, em seguimento à virada cognitiva da década de 1980. Hjorland (2018b) menciona as recentes visões orientadas desde uma perspectiva social e cultural. Bawden e Robinson (2012) indicam um paradigma “sócio-cognitivo”, inspirado na epistemologia social de Shera e na análise de domínio de Hjorland, que busca analisar um nível de análise mais amplo que o indivíduo (os grupos sociais, comunidades, países) bem como outras problemáticas além da cognição (nível apenas mentalista dos fenômenos informacionais), numa tendência a articular os níveis individual e coletivo da informação. Apontam ainda que a posição epistemológica da teoria crítica, oriunda das humanidades e das ciências sociais, deverá “ter mais impacto na ciência da informação no futuro” (BAWDEN; ROBINSON, 2012, p. 41, tradução nossa). Essa terceira abordagem tem expressões em teorias como a dos regimes de informação, análise de domínio, práticas informacionais, folksonomias, altmetria, entre outras, voltadas para o caráter socialmente construído da informação e suas imbricações com as dimensões políticas, econômicas, culturais, jurídicas, tecnológicas e outras das sociedades nas quais os fenômenos informacionais existem e se constituem.

O quadro acima permite evidenciar que diferentes atributos ou características dos fenômenos informacionais foram estudados ao longo das décadas: as questões relativas a dados, sistemas, otimização, recuperação, organização; relativas a conhecimento, necessidades, busca, uso; e relativas à identidade, memória, cultura, saberes, documentos. O atributo de ser ou não “verdade” nunca chegou a ser exatamente uma questão central para a ciência da informação. Agora, contudo, embora questões relativas a todos os aspectos anteriores continuem sendo relevantes, é preciso também no âmbito da ciência da informação desenvolver novas categorias de análise, novos métodos de pesquisa e mobilizar distintos referenciais teóricos para compreender em profundidade o fenômenos, suas causas, características e consequências, bem como propor “ações criativas como antídotos à propaganda enganadora, às falas de ódio, aos conteúdos preconceituosos e às notícias falsas” (SANTAELLA, 2019, p. 27). É essa a tarefa mais importante também na avaliação de McIntyre, para quem “como reagir ante a um mundo no qual alguém trata de nos tapar os olhos é algo que depende da nossa decisão. A verdade ainda importa, como sempre foi. Reparar a tempo nisso está em nossas mãos” (McINTYRE, 2018, p. 176, tradução nossa).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A verdade revelada desceu, pois, à Terra, já não como promessa, mas sim como informação” (BLATT, 2018, p. 13, tradução nossa). Esta frase, presente num livro chamado “História recente da verdade”, dá a medida da ligação existente entre informação e verdade. Neste livro, Blatt analisa como se deu, historicamente, a ideia de uma “verdade objetiva”, capaz de ser acessada pelo ser humano, e como, nos últimos anos, essa ideia se deteriorou, até chegarmos ao momento em que cada um, isolado em sua bolha, alimentado por um algoritmo que fornece o que cada um quer, possui a realidade que quer. A pós-verdade “se converteu num movimento social no qual amplas parcelas da sociedade preferem viver numa bolha, em uma realidade paralela. Não importam os fatos, apenas os sentimentos” (ESTEVE, 2017, p. 16, tradução nossa).

A ciência da informação, ao longo de sua existência, não concedeu centralidade à categoria de “verdade” como componente da informação e, hoje em dia, seguir nessa linha seria ignorar os efeitos sociais do conhecimento (e da ignorância) em prol de elementos como a transmissibilidade, a recuperação, a interatividade ou a relação com as lacunas cognitivas dos usuários. Nos últimos anos, teorias interessantes surgiram ou se relacionaram com a ciência da informação (humanidades digitais, ética intercultural, curadoria digital, neodocumentação, memória) trazendo novas questões e problemas. Cada uma delas, somadas as teorias anteriormente existentes, fornece elementos para se compreender o fenômeno da pós-verdade. Mas também novas categorias e conceitos precisam ser criados e utilizados diante dessa nova realidade.

Materiales Suplementarios

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REFERÊNCIAS

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Informação adicional

CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

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PUBLISHER: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

EDITORES: Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros

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