Ensaio
Recepção: 21 Julho 2019
Aprovação: 01 Dezembro 2019
Publicado: 15 Março 2020
DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e66383
Financiamento
Fonte: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Número do contrato: Edital 35/2017
Beneficiário: Gilberto de CASTRO
Resumo:
Objetivo: Este ensaio apresenta os argumentos principais utilizados por Araújo (2016) no seu artigo Novo quadro conceitual para a ciência da informação: informação, mediações e cultura no sentido de ampliar o escopo teórico da Ciência da Informação.
Método: Utiliza abordagem qualitativa objetivando identificar possíveis contribuições do Círculo de Bakhtin à Ciência da Informação.
Resultado: Na visão do autor, é preciso resgatar a Ciência da Informação de um certo abstracionismo conceitual, transformando-a numa ciência mais pragmática, em que questões subjetivas e sociais estejam presentes à reflexão sobre a informação. Para Araújo, esse novo viés estaria na direção do que vem sendo chamado na área de o terceiro modelo. Corroborando as expectativas do autor, o intuito deste trabalho é trazer algumas contribuições dos autores do Círculo de Bakhtin, que tendo a linguagem como o centro epistemológico do seu pensamento, enfrentaram pragmaticamente questões relativas à interação humana e à formação subjetiva.
Conclusões: No conjunto das reflexões dos autores russos, encontra-se uma visão muito particular de semiótica e ideologia, a discussão sobre os gêneros de discurso, sua diversidade social de enunciados e os seus ambientes sociais de realização, e também contribuições significativas sobre a interpretação da constituição social de nossa subjetividade que podem contribuir para uma visão mais concreta e material da informação.
Palavras-chave: Ciência da Informação, Círculo de Bakhtin, Informação, Epistemologia.
Abstract:
Objective: This article presents the main arguments used by Araújo (2016) in his article New conceptual framework for Information Science: information, mediations and culture in order to broaden the theoretical scope of information science.
Method: It uses a qualitative approach aiming to identify possible contributions of the Bakhtin Circle to Information Science.
Results: In the author's view, it is necessary to rescue the information science from a certain conceptual abstractionism, transforming it into a more pragmatic science, in which subjective and social issues are present in the reflection on information. For Araújo, this new bias would be in the direction of what has been called in the area of the third model. Corroborating the author's expectations, the aim of this work is to bring some contributions from the authors of the Bakhtin Circle, who, having the language as the epistemological center of his thought, have pragmatically faced questions concerning the human interaction and subjective formation.
Conclusions: In the whole of the reflections of the Russian authors, we find a very particular view of semiotics and ideology, the discussion about the genres of discourse, their social diversity of utterances and its social environments of realization, and also significant contributions on the interpretation of the social constitution of our subjectivity that can contribute to a more concrete and material view of information.
Keywords: Information Science, Bakhtin Circle, Information, Epistemology.
1 INTRODUÇÃO
Em artigo recente de Araújo (2016), cujo título “Novo quadro conceitual para a ciência da informação: informação, mediações e cultura” já deixa claro os propósitos do seu debate, várias questões de ordem conceitual são levantadas, deixando antever a necessidade e a possibilidade do estabelecimento de um diálogo frutífero e renovador da Ciência da Informação com questões e conceitos já desenvolvidos em outras esferas de debate das humanidades de um modo geral. De nosso ponto de análise, em linhas gerais, tendo em vista as preocupações apresentadas pelo autor, imaginamos que o estabelecimento de um diálogo com questões referente à semiótica, à comunicação e linguagem e à formação do sujeito, poderiam incrementar o debate de forma bastante contributiva.
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é acrescentar ao debate proposto por Araújo (2016), as ideias e os conceitos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e V. N. Voloshinov, dois dos principais autores do Círculo de Bakhtin, reconhecido grupo de intelectuais russos da antiga União Soviética. Estes autores, embora tenham produzido intensiva e extensivamente durante os anos 20 do século passado, por um conjunto de infelicidades de razões geográficas e políticas, foram tardiamente descobertos pelo Ocidente, chegando ao Brasil somente no fim dos anos 70[1]. Centralizando a heurística do seu pensamento na alteridade via linguagem, os autores do Círculo enfrentaram questões diversas que dizem respeito direto aos debates sociais, na medida em que propuseram a indissociabilidade inevitável entre a sociedade, o homem, a linguagem e os seus sentidos.
O registro de que algumas aproximações entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a Ciência da Informação vem a algum tempo acontecendo no Brasil, pode ser conferido em Bufrem; Arboit; Sorribas (2011). No artigo, as autoras fazem um levantamento no site da Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI), buscando trabalhos que relacionem o pensamento bakhtiniano à CI entre o período de 1972 a 2010. O número de artigos encontrados pelas autoras estabelecendo alguma relação conceitual foi de 53, sendo por elas classificados em quatro grupos temáticos: o primeiro grupo foi relacionado à área da Comunicação Social, com 16 referências; o segundo grupo, com 13 trabalhos, aborda os temas de Educação, Ensino Aprendizagem e Educação à Distância; no terceiro grupo, as autoras encontraram seis artigos com interesses simultâneos em CI e Educação e, o último grupo, considerado nuclear pelas autoras, compreendeu 18 trabalhos cujo foco central foi o debate epistemológico entre o pensamento do CB e a CI. Segundo as autoras, nesse último grupo, a grande maioria dos artigos tomou como base para o estabelecimento das relações teóricas a obra Marxismo e Filosofia de Linguagem, de Voloshinov. A associação a essa obra do Círculo de Bakhtin é perfeitamente natural, tendo em vista que ela foi a primeira publicação dos autores russos no Brasil e a que mais rapidamente difundiu-se no meio acadêmico brasileiro. Após essa obra, contudo, várias outras foram publicadas, ampliando o escopo de compreensão do alcance do pensamento bakhtiniano. E é nessa perspectiva que entendemos a contribuição do presente trabalho ao estabelecer o diálogo com os questionamentos propostos por Araújo (2016).
2 O CÍRCULO DE BAKHTIN E O PENSAMENTO INFORMACIONAL: uma aproximação teórica
Araújo (2016), para abordar o seu tema, faz um breve histórico do desenvolvimento da Ciência da informação, rememorando as balizas teóricas que a conduziram no seu início e durante o seu desenvolvimento ao longo dos anos 1950 e 1960. Segundo autor:
Vinculada ao contexto do pós-guerra e do início da guerra fria, a ciência da informação alinhou-se à percepção da dimensão estratégica da informação científica para o desenvolvimento tecnológico, econômico e militar. Distintas áreas de estudo (a construção dos primeiros sistemas automatizados de recuperação da informação, o mapeamento dos fluxos da informação científica com a identificação de fontes e atores relevantes, o desenho de sistemas planificados de armazenamento e disseminação de documentos) foram unificadas (SARACEVIC, 1970) em torno de uma demanda mais pragmática (política e estratégica) do que propriamente científica (teórica e conceitual). A utilização da teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver (1975) proporcionou a estabilidade conceitual desse movimento, trazendo um conceito de informação “limpo” das dimensões semântica e pragmática, isto é, focado apenas na dimensão sintática, portanto técnica, dos fenômenos a serem observados e estudados. (Araujo, 2016[2])
Para o autor, estudar a informação nessa perspectiva reduziu o seu estudo à percepção de um fenômeno de “transporte” de informação e dos meios mais eficazes que garantissem a agilidade, a economia e a integridade dessa informação. Para ilustrar isso, Araújo (2016) recorre à metáfora do quarto chinês, utilizada por Searle (1980), afirmando em relação à Ciência da Informação que ela seria “quase como um ´carteiro`, preocupada em garantir a entrega de uma mensagem, sem se preocupar com seu significado, com as identidades dos remetentes e dos destinatários, com os contextos em que tal ação acontece.” (Araujo, 2016)
Por esse viés teórico caracterizador da área da CI durante suas décadas iniciais, a “Informação” tornou-se um tanto asséptica, destituída que foi de sua “pregnância simbólica, sua inserção nos contextos, sua singularidade, sua existência como campo de intervenção ativa dos sujeitos” (Araújo, 2016). Como forma de resgatar a Informação desse abstracionismo, recolocando-a num contexto pragmático, ou seja, no seu contexto social e intersubjetivo de sua produção, é que o autor argumenta na direção do .que vem sendo chamado de o terceiro modelo, ou terceiro conceito ou terceiro paradigma da ciência da informação (SARACEVIC, 1999; ØROM, 2000; FERNÁNDEZ MOLINA; MOYA ANEGÓN, 2002; CAPURRO, 2003 apud Araújo, 2016)”. Para isso, ele vai buscar apoio na sociologia de Berger e Luckmann (1985), já que a reflexão desses autores está comprometida em compreender aquilo a que comumente chamamos de “real”, ou “realidade”. Araújo (2016) se pergunta o que faz com que algo possa existir, e como nós humanos conseguimos compreender os fatos e aquilo que nos acontece como sendo “a realidade”. Segundo ele, Berger e Luckmann
[...] partem de duas constatações fundamentais: os fatos sociais são coisas, são dotados de uma objetividade, tal como postulado por Durkheim; a ação humana é dotada de um significado que é subjetivo, tal como formulado por Weber. Essas duas constatações não são contraditórias, mas, antes, complementares. A sociedade possui, sim, uma dimensão objetiva, mas que é construída pela ação com significado subjetivo. Perguntam-se eles como é possível que a atividade humana produza um mundo de “coisas”, e como é possível que os significados subjetivos se tornem facticidades objetivas. Neste texto é proposta a seguinte resposta: por meio da informação. (Araujo, 2016)
Acreditamos que nesse ponto já é possível se fazer uma conexão com o pensamento bakhtiniano. Aqui, primeiramente com o de Voloshinov, que em suas reflexões sobre semiótica, presentes nos capítulos iniciais de Marxismo e Filosofia da Linguagem (M&FL) (1979), tocam em questões muito semelhantes às reinvindicações de Araújo (2016).
Voloshinov constrói as suas ideias sobre o tema, partindo do princípio de que as reflexões desenvolvidas pelo marxismo deixaram determinados questionamentos em aberto relativamente à produção dos sentidos sociais, uma vez que as várias alusões ao termo ideologia que aparecem nos escritos de Marx e Engels sempre remeteriam a algum viés de ideia, sentido e interpretação. Para Voloshinov, ao falarmos em Ideologia[3], inevitavelmente, precisamos abordar o mundo semiótico, na medida em que são nos signos (palavra, cor, som, gestos e movimentos), e em nenhum outro lugar, que o homem deixa os seus registros e rastros de sentido, história e de humanidade. Seguindo essa linha de raciocínio, a intenção do autor em debater o tema seria complementar ao marxismo, já que segundo ele essa reflexão não estaria devidamente desenvolvida nos textos de origem.
Para o teórico russo, portanto, a realidade simbólica é uma realidade essencialmente objetiva, tendo em vista que os indivíduos podem, a partir dos signos, interagir, observar, estudar e refletir sobre o comportamento e as ações humanas, uma vez que praticamente tudo o que o homem produz no campo objetal de suas ações, potencialmente pode ter uma representação em signo. Como afirma o autor:
Qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social – seja ele um corpo físico, um instrumento de produção ou um produto de consumo – mas também, ao contrário desses fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites. Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia. (Voloshinov, 2017, p. 91)
O que Voloshinov afirma é que o mundo semiótico é uma realidade paralela e, portanto, igualmente objetiva como são o mundo dos objetos, das coisas e da natureza. Tudo o que o homem conhece, produz e realiza socialmente acaba tendo - ou é potencialmente passível de ter em paralelo - uma representação simbólica. Quanto à questão de o signo ser “ideológico por excelência”, o que o autor russo quer dizer é que não há neutralidade no mundo dos signos. Isso significa que enquanto um determinado signo nasce com o propósito de refletir uma dada experiência ou realidade, ou representar um ponto de vista específico sobre o mundo, ao mesmo tempo, como que num reflexo imediato, ele de forma inevitável passará a ter o seu sentido tensionado e confrontado socialmente. Isto é, é da natureza do signo ser refratado por outras realidades e pontos de vistas sociais, uma vez que é próprio ao mundo dos signos a indissociabilidade valorativa, consequência dos inúmeros índices de valores sociais e culturais a favor e contrários existentes na dinâmica das nossas complexas relações sociais. Voloshinov ilustra isso ao citar como exemplos de signos o “pão e o vinho” (signos religiosos) ou “a foice e o martelo” (signos da revolução comunista).
A certeza de que esses signos e seus valores sociais e de sentido não tem unanimidade está garantida no fato de que para muitas sociedades, comunidades e indivíduos isolados de determinadas comunidades, eles não expressam qualquer valor positivo, despertando contrariedade, discordância, desprezo, rancor, distância, injúria, medo, enquanto que, ao mesmo tempo, encantam os seus seguidores e partidários, atraindo admiração, elogios, exaltação, fidelidade, devoção, etc. Ou seja, esses signos, embora existam do ponto de vista objetivo social, e expressem uma determinada crença e valores caros a certas pessoas, em outras têm os seus valores (sua ideologia) refratados, repelidos ou, no mínimo, tratados de forma indiferente. Em face disso é que Voloshinov assegura que "As categorias de avaliação ideológica (falso, verdadeiro, correto, justo, bom etc.) podem ser aplicadas a qualquer signo. O campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem ser igualados. Onde há signo há também ideologia. Tudo o que é ideológico possui significação sígnica." (Voloshinov, 2017, p. 93).
Voloshinov (2017) também faz questão de frisar que todo o campo de atividade humana - que corresponderia às superestruturas ideológicas pensadas pelo marxismo - possui a sua orientação particular em relação à realidade, refletindo e refratando-a a seu modo, e possuindo também função específica no contexto social, o que não eliminaria o fato de que “o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos.” (Voloshinov, 2017, p. 94).
Fundamentando-se nessa assertiva é que o autor russo vai pensar a especificidade da palavra enquanto signo, afirmando que
A palavra é o fenômeno ideológico par excellence. Toda a sua realidade é integralmente absorvida na sua função de ser signo. Não há nada na palavra que permaneça indiferente a essa função e que não seja gerado por ela. A palavra é o médium mais apurado e sensível da comunicação social. (Voloshinov, 2017, p. 98-99)
E, um pouco mais adiante, o teórico russo faz questão de frisar que
A palavra não é apenas o mais representativo e puro dos signos, mas também um signo neutro. Todos os demais materiais sígnicos são especializados em campos particulares da criação ideológica. [...] Já a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa. (Voloshinov, 2017, p. 99)
Por essa neutralidade da palavra, que lhe dá a elasticidade ideológica necessária para adaptar-se aos mais diversos usos e intenções, é que Voloshinov (2017) a considera o mais importante dos signos na escala semiótica geral. Ele destaca que, mesmo que a palavra não consiga substituir totalmente determinados signos (imagéticos, visuais, sonoros), a sua presença é inevitável na abordagem de qualquer outro fenômeno humano e simbólico, seja para tentar explica-lo, seja para acompanha-lo em complemento.
O autor russo também vai dizer que, embora o nosso cotidiano não esteja atrelado a nenhuma esfera ideológica específica, ele vive e sobrevive abaixo de uma verdadeira guerra simbólica, absorvendo os signos que vão adquirindo evidência e importância para a sociedade de um modo geral. Por conta disso é que Bakhtin (2015), ao se referir ao papel do discurso citado (ou do encontro entre a minha e a palavra do outro) dentro da sociedade e da prosa romanesca, lembra que é justamente pelo estudo da dinâmica alteritária da palavra, que poderíamos melhor compreender a sociedade em que vivemos, referindo-se a uma “hermenêutica do dia a dia” (BAKHTIN, 2015, p.131).
Na apresentação de sua semiótica, ressoando uma preocupação que perpassa toda a obra do Círculo de Bakhtin, Voloshinov também relaciona o mundo dos signos à produção de nossa consciência, de nossa subjetividade. Contestando certa visão psicologista da época, o autor faz questão de frisar que a criação e a sobrevivência dos signos só se dão pela relação intersubjetiva, ou seja, no interior de uma comunidade de falantes. Nenhum de nós seria, na sua visão e na de Bakhtin (2015), um Adão mítico a criar a primeira palavra, o primeiro signo. A criação de qualquer signo só se dá no concurso relacional, isto é, através da alteridade sócio verbal própria às comunidades humanas. Por consequência disso, ele vai afirmar a indissociabilidade de nossa subjetividade – de nossa consciência – da absorção do mundo simbólico que nos cerca. Seria a partir do contato objetivo de nossa consciência com os signos produzidos pelos nossos pares de existência - dentro do que poderia parecer um caos simbólico -, que emolduramos a nossa subjetividade e moldamos o nosso modo de pensar e atuar no mundo.
Assim, até aqui, acredita-se que se pode corroborar, a partir de Voloshinov (2017), as reinvindicações de Araújo (2016) supracitadas, de que “os fatos sociais são coisas, são dotados de uma objetividade”, que a sociedade tem uma “dimensão objetiva”, uma vez que toda a produção humana é passível de representação semiótica, e que é possível o estudo sistemático das sociedades a partir do universo simbólico por ela produzido, uma vez que em cada novo signo uma nova “informação” sobre as atividades, experiências e crenças humanas será veiculada. E, por sua vez, tendo em vista que os signos só nascem e sobrevivem em ambiente alteritário, em que as subjetividades os energizam com seu viés cultural e valorativo específicos, então, sim, as subjetividades atuam dotando os signos de uma perspectiva de significado, conforme Araújo sugere acima.
O autor brasileiro, citando Capurro (2008), também vai afirmar que:
[...] uma primeira noção de informação está vinculada justamente à ação humana de “dar forma a”, de proporcionar existência material a algo que ainda não existia, de dar materialidade à subjetividade humana. Informação nessa perspectiva não é o produto, mas, antes, a ação, essencialmente humana, de “in-formar”, isto é, gerar algo novo na realidade. É nesse sentido que a ação de externalização identificada por Berger e Luckmann pode ser associada à ação de informação (ou à ideia de informação como uma ação). (ARAUJO, 2016)
As reflexões de Bakhtin sobre a natureza dos enunciados, que no conjunto ele vai chamar de “os gêneros do discurso”, podem trazer alguma contribuição à perspectiva proposta por Araujo (2016).
Bakhtin (2015) assume, já no início do seu texto, a grande dificuldade existente para tratar de forma abrangente e sistemática a complexa comunicação (interação) humana. Segundo ele, isso seria plenamente compreensível e provavelmente explique porque ao longo da história do conhecimento o tema sempre tenha sido abordado de forma parcial e fragmentária, posto que as formas de dizer e enunciar, tanto na linguagem oral quanto na escrita, são tão variadas em suas demandas contextuais e nas suas finalidades que naturalmente criam dificuldade para um tratamento uniforme. O teórico russo ilustra que, na Antiguidade, no âmbito dos debates sobre Retórica a problematização do enunciado já estava presente, uma vez que a necessidade de compreender procedimentos argumentativos exigia uma reflexão sobre os procedimentos funcionais de gêneros desse tipo. O tema também aparecia na preocupação que havia em classificar os mais variados tipos de enunciados literários, todavia, reduzindo a complexidade do debate sobre o enunciado exclusivamente às formas de comunicação no âmbito do literário. Bakhtin (2015) também lembra das tentativas de explicação bastante simplistas sobre o uso da linguagem no cotidiano que foram elaboradas pela linguística (Saussure, seguidores e demais correntes do estruturalismo) temporalmente próxima ao Círculo. Essas explicações, segundo o autor, não passaram da representação parcial da relação entre um locutor e um ouvinte ideais, solitariamente retirados da dinâmica complexa da comunicação cultural e social. Em todas essas tentativas, o tratamento parcial do fenômeno interativo foi o que prevaleceu, sendo deixado de lado a correlação com a dinâmica complexa e geral das interações sociais.
Para Bakhtin (2015), o passo fundamental na busca de uma unidade para o estudo da comunicação (interação) está em o pesquisador colocar-se no ponto de vista do enunciado, tomando-o como o objeto empírico privilegiado da alteridade verbal. Isso porque, diferentemente das frases, da oração e dos períodos complexos - elementos verbais abstratos da ordem da estrutura, da gramática e do dicionário -, os enunciados, desde os diminutos que produzimos rapidamente no cotidiano pela fala até os mais complexos elaborados pela nossa cultura escrita, utilizam as unidades da língua (palavras, frases e orações) em contextos sociais reais e específicos, nos quais o sentido é sempre resultado da combinação inseparável entre os signos expressados pelos sujeitos envolvidos e o contexto histórico – micro ou macro – em que estes sujeitos estão inseridos socialmente[4].
Para o teórico russo, não é estranho que o estudo dos gêneros do discurso (dos enunciados) ainda estivesse embrionário durante a década de 1950, quando ele escreve o seu texto. Isso se deveu, segundo o autor, sobretudo ao ponto de vista prevalente dos estudos linguísticos que, de um modo geral, confundiram (e muitas correntes confundem até hoje) as unidades da língua e as estruturas gramaticais - sobretudo as sintáticas -, com a unidade da comunicação que seria o enunciado. Na avaliação de Bakhtin (2015), essa percepção atribui um excesso normativo aos elementos da língua (ao uso de suas regras gramaticais), deixando de perceber que há algo maior e mais complexo do ponto de vista normativo em relação ao uso que fazemos efetivamente dos elementos da língua: tratam-se das normas sócio-verbais historicamente criadas pelos usuários da linguagem (comunidades de falantes e de usuários da escrita) que vão sedimentando ao longo das experiências familiares, institucionais e sociais diversas as formas mais consagradas de utilização das línguas. A essa experiência sócio verbal relativamente normativa vivida pelos falantes e escritores é que Bakhtin (2015) vai chamar de “gêneros do discurso”, referência geral que ele dá à grande diversidade de enunciados existente no ambiente social.
Daí ele dizer no início do seu texto, que
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. (BAKHTIN, 2015, p.11)
O autor afirma que todo o campo de atividade humana elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2015, p.12), uma vez que as normas sociais de utilização da linguagem são geradas e mantidas num ambiente histórico, mutável e criativo ao mesmo tempo. Isso não o impede de assegurar que:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal campo se desenvolve e ganha complexidade. Cabe salientar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos). De fato, também devemos incluir nos gêneros do discurso as breves réplicas do diálogo cotidiano (saliente-se que a diversidade das modalidades de diálogo cotidiano é extraordinariamente grande em função do seu tema, da situação e da composição dos participantes), o relato cotidiano, a carta (em todas as suas diversas formas), o comando militar lacônico e padronizado, a ordem desdobrada e detalhada, o repertório bastante vário (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado universo das manifestações publicísticas (no amplo sentido do termo: sociais, políticas); mas aí também devemos incluir as variadas formas das manifestações científicas e todos os gêneros literários (do provérbio ao romance de múltiplos volumes). (BAKHTIN, 2015, p.12)
Assim, são os enunciados, segundo Bakhtin (2015), que dariam “forma” à comunicação humana, estabelecendo certa ordem social para a execução e a distribuição do uso da palavra e também dos demais tipos de signos[5], uma vez que eles regulam e normatizam os nossos modos de dizer, modelando a forma como desenvolvemos nossas ideias, registramos nossas intenções e pensamentos; ou seja, todas as nossas ações de comunicar, informar, discutir e argumentar. Evidentemente que somos nós (os interlocutores), os sujeitos envolvidos nos processos sócio-históricos e ininterruptos de comunicação, que energizamos os enunciados, replicando, reelaborando e normatizando as suas formas. Porém, como Voloshinov (2017) e Bakhtin (2015) reiteram sempre, esse processo nunca é algo isolado, decorrente da simples vontade individual, pois resulta da efetividade da interação, do encontro dialógico, ou, utilizando uma expressão bastante explicativa que sintetiza a essência do pensamento bakhtinano, da alteridade mediada pela linguagem.
3 A INFORMAÇÃO E SEU CARÁTER SÓCIOINTERATIVO
A presença, o registro ou a percepção de um maior ou menor grau de subjetividade na construção e na utilização dos enunciados está relacionada, segundo Bakhtin (2015), ao ambiente sóciointeracional da qual participa o falante ou o escritor, e também às funções comunicativas específicas de um dado enunciado. Quanto mais complexo for um enunciado, seja no sentido do estabelecimento de elos e ecos temáticos, seja no sentido do envolvimento de um número maior de interlocutores (leitores e escritores, no caso dos enunciados relacionados às áreas mais complexas da cultura humanística em geral), ou até mesmo decorrente das especificidades dialógicas e discursivas de determinados enunciados, mais esse enunciado será afeito à absorção dos aspectos caracterizadores da subjetividade. Para o autor russo, a maior ou menor presença da subjetividade de um autor num enunciado decorre da capacidade variável que os enunciados possuem de registrar em maior ou menor grau o “estilo” desse autor. Capacidade essa que é variável, não pelo enunciado tomado isoladamente, mas como decorrência do espaço sóciocomunicacional a que o enunciado pertence. Enquanto os enunciados mais esquemáticos e burocráticos de um modo geral (pequenos enunciados orais do dia a dia, as ordens militares, os inúmeros ofícios padronizados das áreas especializadas, as atas de reunião, os variados documentos de cartório - certidão de casamento, de nascimento, por exemplo, o grande número de enunciados jurídicos, etc) se mostram pouco permeáveis à presença mais explícita do seu autor no texto, o mesmo não acontece quando olhamos para a variedade de enunciados existentes no universo das ciências humanas. Esse é um ambiente interativo em que é praticamente impossível não associarmos um texto a um determinado autor, devido a uma série de elementos caracterizadores dessa subjetividade, tais como: preferências lexicais, modos de construção de argumentos, estilo dos períodos (mais ou menos longos), poder de síntese, traços de erudição, maneira de citar a palavra dos interlocutores no interior do próprio texto (opção por formas diretas ou indiretas) e o modo ético de tratamento dado a essas vozes alheias.
E um grau ainda mais elevado de presença dos traços autorais e estilísticos vamos encontrar nos gêneros literários. Nesses, o estilo do autor é marca interna, constante e distintiva dos enunciados. Nas diversas formas de poesia, nas crônicas, contos, e sobretudo os romances na sua enorme diversidade de gênero, o estilo do autor com todas as suas marcas é traço característico dos textos, inalienável a sua construção.
A questão do estilo nos debates de Bakhtin (2015) remete o tempo todo ao problema da relação entre o sujeito (os interlocutores) e o contexto de produção do enunciado (isto é, a esfera de atividade social em que se encontram esses interlocutores). Tanto para Bakhtin (2015), quanto para Voloshinov (2017), a subjetividade é um complexo produto da comunicação humana, de uma comunicação sempre dinamicamente especializada segundo os contextos de interação. Essa convicção de Mikhail Bakhtin fica muito evidente em diversas partes do seu texto “Os gêneros do discurso”. Para ele, portanto, o aprendizado da língua materna e das formas de enunciar reflete a dinâmica social da existência de cada um de nós. É somente após um conjunto infindável de experiências sócio interacionais que o ser humano é capaz de assimilar a sua língua e os enunciados mais característicos do grupo social a que pertence. Nas palavras do autor russo,
A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciados concretos que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas formas dos enunciados e justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência juntas e estreitamente vinculadas. Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas). [...] Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de cria-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente cada enunciado e pela primeira vez, a comunicação discursiva seria impossível. (BAKHTIN, 2015, p.38-39)
Embora a citação acima se refira apenas à oralidade, para que não haja dúvida, é bom lembrar que ao longo de todo o seu texto, Bakhtin (2015) deixa muito claro que o seu debate sobre a diversidade existente dos enunciados abrange inclusive os gêneros relativos à escrita. E também que a assimilação destes gêneros escritos igualmente se dá de forma efetiva pela exposição do sujeito às situações específicas de uso da linguagem escrita. Em outras palavras, o conteúdo subjetivo que nos determinou enquanto sujeitos singulares, e que está na origem de nossa capacidade expressiva, é reflexo direto da nossa alteridade sócio verbal, de nossos processos dialógicos em amplo sentido (orais e escritos). É por isso que Voloshinov vai afirmar no M&FL que o nosso “eu” seria, em verdade, um “nós"![6]
Assim, nos escritos do Círculo, começando pela problemática semiótica, passando pelos debates sobre a palavra e o enunciado, e mesmo nos debates sofisticados sobre a literatura (sobretudo os de Mikhail Bakhtin, seja nos ensaios autorais, seja nos trabalhos teóricos[7]), o tema da formação da subjetividade é presença constante. Nesse sentido, os escritos dos autores russos podem também trazer ideias e elementos importantes para agregar às preocupações de Araújo (2016), quando ele se refere à importância para o debate da informação de melhor compreendermos a “dimensão subjetiva da realidade”, acompanhando mais uma vez as ideias de Berger e Luckman:
Cada indivíduo não nasce, já, membro de uma sociedade. Desde que nasce, cada pessoa passa por diferentes processos de socialização, por meio dos quais ela adota padrões de comportamento apresentados a ela, apreende ou interpreta acontecimentos objetivos dotados de sentido. Os significados criados pela pessoa ao longo de sua vida não são autônomos, criações próprias de cada uma isoladamente – antes, são processos em que cada indivíduo “assume” o mundo tal qual os outros que já vivem nele. Só depois de concluído certo grau de interiorização de valores, ideias e percepções é que o indivíduo se torna membro de uma coletividade ou sociedade. Berger e Luckmann chamam de processo de “aquisição de conhecimentos” essa ampla e consistente introdução de um indivíduo numa “ordem social”, isto é, no mundo objetivo de uma sociedade ou parte dela. (ARAUJO, 2016)
Salienta-se que na linha da expectativa a que se refere Araújo (2016), seguindo a inspiração de Berger e Luckmann, é importante apontar aqui algumas das ideias desenvolvidas por Voloshinov (2017) no seu debate com Sigmund Freud. É verdade que o tema da formação do sujeito perpassa quase todo o M&FL, e é tratado de forma mais direta na parte I, item 3 e também na parte II, item 3. Mas é no Freudismo, monografia escrita especificamente para o debate das ideias centrais do pai da psicanálise, que ele enfrenta o tema de forma mais profunda e extensiva[8]. Em linhas gerais o foco da análise que Voloshinov vai fazer sobre a teoria freudiana se fundamenta na interpretação de que o criador da psicanálise, mesmo se apoiando na linguagem como centro de sustentação dos processos introspectivos e terapêuticos, não desenvolveu uma teoria sobre ela à altura de suas descobertas sobre o inconsciente. Voloshinov faz elogios a Freud em diversas passagens do seu texto, reconhecendo o caráter de novidade e os avanços do pensamento freudiano para o campo dos estudos de psicologia. Em um desses momentos ele diz que:
Quando tomamos conhecimento da doutrina de Freud, o primeiro que salta à vista e permanece como a última e mais forte impressão de toda a sua teoria é, evidentemente, a luta, o caos, e o infortúnio da nossa vida psíquica, que atravessam como leitmotiv toda a concepção de Freud e que ele mesmo denomina dinâmica psíquica. Nisto efetivamente reside a diferença essencial entre Freud e todas as outras correntes da psicologia. A vida psíquica na velha psicologia transcorria naquele estado de “sombra e água fresca”. Tudo arrumado, no seu lugar, nenhuma catástrofe, nenhuma crise. Do nascimento à morte era o caminho uniforme e plano da evolução tranquila e racional do crescimento gradual da alma. A inocência da criança era substituída pela consciência da razão do homem adulto. Esse otimismo psicológico ingênuo é um traço característico de toda a psicologia anterior a Freud. (BAKHTIN, 2001, p. 75-76[9])
Apesar dessa consideração elogiosa e, sem dúvida nenhuma meritória, à incrível contribuição de Freud para os estudos humanísticos em geral com a sua descoberta de que nossa subjetividade é cindida e conflituosa, Voloshinov (2017) faz algumas críticas contundentes ao pai da psicanálise[10]. Para o autor russo, mesmo considerando os avanços apresentados por Freud no tocante à descoberta do inconsciente, o fato de o autor centralizar as patologias fundamentalmente como reflexos do desenvolvimento da sexualidade a partir da tenra infância, de forma isolacionista à realidade exterior circundante, acaba por equiparar a psicanálise a uma versão nova da “psicologia da consciência”. Isso porque, como afirma Voloshinov:
Nessa teoria não há uma só palavra sobre qualquer um dos fundamentos sociais do caráter, alicerçados na constituição física do homem, nem sobre as influências físicas e sócio-objetivas do ambiente. Todo o processo de formação do caráter transcorre nos limites do psiquismo subjetivo tomado isoladamente. […] Desse modo, as zonas erógenas determinam, segundo Freud, o caráter e os atos do homem - uma vez que o caráter é totalmente inseparável da sua expressão material no comportamento humano -, evitando inteiramente o corpo e a constituição física e todo e qualquer meio material.
No fim das contas, Freud acaba tendendo a aplicar com coerência o ponto de vista subjetivo interior: em suma, toda a realidade exterior vem a ser para ele mero “princípio de realidade” psíquico, que ele coloca no mesmo plano com o “princípio de prazer. (BAKHTIN, 2001, p. 72)
Para o teórico russo, a subjetividade é decorrente de nossa existência material, ficando muito distante de representar apenas um mero reflexo de um princípio de realidade, uma vez que é justamente a “realidade total” circundante ao indivíduo que é o elemento fundamental de sua construção subjetiva. Nossa consciência e, por extensão e consequência, também nosso inconsciente, no entendimento de Voloshinov, é produção de nossa alteridade verbal que vai, ao longo de nosso amadurecimento biológico e social, materializando toda a nossa subjetividade simbolicamente. Para ele, o universo simbólico que nos rodeia, incessante e dinamicamente produzido no meio social, se responsabiliza em desenhar nosso viés ideológico e valorativo, impactando os indivíduos segundo as diretrizes sociais e ideológicas dos grupos em dado espaço cultural e temporal. Para o autor, seria a “ideologia do cotidiano” a grande promotora de nossa construção subjetiva. Voloshinov chama de ideologia do cotidiano o espaço sócio simbólico geral em que as interações sociais diversas acontecem em nosso dia a dia. Diferentemente das ideologias estruturadas em grandes eixos de pensamento e ação simbólica no mundo, como a religião, as leis, a política, a comunicação, a ciência, a arte, entre outras, a ideologia do cotidiano de todos nós não está alheia aos reflexos e refrações valorativas desses grandes segmentos de pensamento estruturado ideologicamente. A diferença reside no fato de que ela possui uma forma mais desordenada e livre de distribuição simbólica e valorativa sendo, contudo, a base em que vai se fundamentar a nossa subjetividade. É sob um certo caos sócio verbal, expressado no amálgama incessante do encontro com a enorme diversidade de vozes sociais e seus respectivos valores ideológicos alheios, da família, da escola, da região, do país em que vivemos, etc., que nos formamos como sujeitos. Por essa razão é que Voloshinov considera que:
O conteúdo e a composição das camadas não-oficiais da ideologia do cotidiano (isto é, o conteúdo e a composição do inconsciente, segundo Freud) são condicionados pela época e por uma classe tanto quanto o são as suas camadas “censuradas" e os sistemas da ideologia enformada (a moral o direito, a visão de mundo). Por exemplo, as paixões sexuais de um heleno antigo da classe dominante não criavam absolutamente quaisquer conflitos em sua ideologia do cotidiano, passavam livremente ao seu discurso exterior e chegavam até a ganhar expressão ideológica enformada (veja-se O Banquete, de Platão). Todos os conflitos com que opera a psicanálise são sumamente característicos da atualidade pequeno-burguesa europeia. A “censura" freudiana exprime com muita precisão o ponto de vista da ideologia do cotidiano do pequeno-burguês, razão pela qual surge uma impressão cômica quando os freudianos a transferem para o psiquismo de um grego antigo ou de um camponês medieval. A enorme superestima do elemento sexual pelo freudismo é sumamente ilustrativa no clima da atual decomposição da família burguesa. (BAKHTIN, 2001, p. 89-90)
Assim, no entendimento de Voloshinov, tanto a consciência quanto o inconsciente possuem uma mesma e única nascente e orientação social. Essas duas instâncias do psiquismo subjetivo tem a mesma origem na realidade material e ideológica vivida pelo indivíduo, realidade essa que se encarrega de delimitar aquilo que deve ou não ser interditado e, por isso, não verbalizado em certos espaços sociais.
Ao campo de nossa subjetividade que poderá ser mais facilmente expressa e verbalizada sem sofrer grandes refrações do ambiente, Voloshinov vai denominar de “consciência oficial”, e ao campo onde as interdições ganham espaço, ele chama de “consciência não oficial” - essa última equivaleria, digamos assim, a ideia de inconsciente de Freud. Tanto uma como outra são, como já dissemos, determinadas simbolicamente como decorrência da nossa vivência sócio verbal particular.
Como conclui o próprio Voloshinov:
O componente verbal do comportamento é determinado em todos os momentos essenciais do seu conteúdo por fatores objetivo-sociais. O meio social deu ao homem as palavras e as uniu a determinados significados e apreciações; o mesmo meio social não cessa de determinar e controlar as reações verbalizadas do homem ao longo de toda a sua vida. Por isso todo o verbal no comportamento do homem (assim como os discursos exterior e interior) de maneira nenhuma pode ser creditado a um sujeito singular tomado isoladamente, pois não pertence a ele, mas sim ao seu grupo social (ao seu ambiente social). (BAKHTIN, 2001, p. 86)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra do Círculo de Bakhtin é bastante extensa e variada tematicamente. Não obstante, qualquer texto dos autores que se visite, esteja ele discutindo estética geral, a especificidade das obras literárias ou o estilo de um autor literário, a especificidade das ciências humanas, as particularidades do texto, a linguagem no cotidiano ou os temas da psicologia, o que será encontrado é uma visão essencialmente pragmática de homem, linguagem e sociedade. A perspectiva epistemológica dos autores do Círculo se fundamenta totalmente na linguagem humana - envolvendo inclusive as linguagens não verbais (uma semiótica, portanto) - que só existe em razão da alteridade, ou seja, do regime de interlocução inevitável que nos subjetiva.
Em face disso, acreditamos que muitas das preocupações e argumentos utilizados por Araújo (2016) encontrariam um importante elo responsivo nas obras dos teóricos russos. A teoria de interlocução geral desenvolvida por eles, tanto na sua extensão quanto nas suas particularidades, pode contribuir bastante para um discernimento maior da relação estabelecida entre os sujeitos, os documentos e as informações que produzem. A reflexão sobre os modos de produção simbólica e a noção de gêneros do discurso presentes nos trabalhos do Círculo ajudariam a compreender melhor a diversidade enorme dos documentos existentes. A ideia de signo posta pelos autores russos (sobretudo por Voloshinov), além de abarcar todos os estratos simbólicos (palavras, som, imagens, gestos, silêncio, etc), indica o quanto as nossas escolhas semióticas revelam nossos valores, ideias e comportamentos históricos e sociais.
Complementar a esse conceito, o debate sobre os gêneros do discurso desenvolvido por Bakhtin, contempla de forma bastante extensiva as características da interlocução/interação verbal realizadas em sociedade, demonstrando o quanto o ato humano de enunciar está subjugado a uma certa ordem do discurso, ou seja, a regras sócio-verbais estabelecidas ao longo da história pelos próprios usuários de uma dada língua. Toda essa reflexão sobre a comunicação humana se fortalece ainda mais na teoria bakhtinana na medida em que do seu bojo nasce uma consistente teorização sobre os determinantes sócio verbais da formação da nossa subjetividade, tendo em vista que a produção da consciência humana para os autores russos reflete intensamente o recurso à memória e à citação da palavra alheia (o discurso citado), o que pode auxiliar bastante a CI nas suas reflexões sobre o interesse informacional dos usuários, suas expectativas, receios e considerações.
Em contrapartida, consideramos que a teoria do Círculo também pode ganhar muito ao dialogar com as questões e os conceitos trazidos pela Ciência da Informação, colocando em prova mais uma vez a capacidade conceitual de sua heurística, que tantos temas tem enfrentado no âmbito das humanidades, fora e dentro do Brasil, desde que o pensamento bakhtiniano foi redescoberto em solo russo no final dos anos 50.
Material suplementar
Parecer (pdf)
Agradecimentos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
REFRÊNCIAS
ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Novo quadro conceitual para a ciência da informação: informação, mediações e cultura. In: XVII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 2016, João Pessoa. Anais... . João Pessoa: UFPB, 2016.
BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. 6. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
BAKHTIN, M.M. O Freudismo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001
BAKHTIN, M.M. Teoria do romance: a estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAKHTIN, M.M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1981.
VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad.Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
Notas
Informação adicional
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA : Concepção e elaboração do manuscrito: G. de Castro Discussão dos resultados: G. de Castro, B. S. do Nascimento Revisão e aprovação: G. de Castro, B. S. do Nascimento
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EDITORES: Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros.