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Mediação cultural da informação para o reencantamento do mundo.
Arthur Coelho BEZERRA; Luciane de Fátima Beckman CAVALCANTE
Arthur Coelho BEZERRA; Luciane de Fátima Beckman CAVALCANTE
Mediação cultural da informação para o reencantamento do mundo.
Cultural mediation of information for the re-enchantment of the world
Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 25, pp. 1-19, 2020
Universidade Federal de Santa Catarina
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Resumo: Objetivo: O presente artigo propõe discutir a implementação de práticas de mediação cultural da informação no âmbito do ensino e da pesquisa acadêmica, destacando a contribuição de tais práticas para a ampliação dos horizontes epistemológicos do pensamento científico. Tais objetivos se apoiam no reconhecimento do método científico como a forma mais arrojada de sistematização do conhecimento desenvolvida pela humanidade, porém em oposição à ideia de que o saber científico é o único portador de rigor e validade.

Método: Iremos empreender o viés metodológico de uma pesquisa exploratória de natureza teórica em torno dos conceitos de “mediação da informação” e “mediação cultural” (conforme pensado nos diálogos entre os estudos da informação e da comunicação social), amalgamando-os em uma noção de “mediação cultural da informação”. Posteriormente, a crítica aos usos da racionalidade da ciência moderna nas políticas de colonização servirá de mote para a defesa de sua aproximação com outras epistemologias e concepções de vida e mundo; nesse âmbito, a ideia de tradução surge como exemplo de prática de mediação cultural da informação.

Resultado: Compreendemos que o processo de “desencantamento do mundo”, que opera uma espécie de marginalização de conhecimentos e saberes de povos tradicionais e minorias ao redor do planeta, pode ser superado mediante a adoção de práticas de mediação cultural da informação, admitindo que os fenômenos investigados pela ciência não se deem exclusivamente no âmbito da racionalização instrumental dos processos do conhecer, mas, também, pelas singularidades e pluralidades construídas e reconstruídas a partir de trocas simbólicas no plano da cultura.

Conclusões: As práticas de mediação cultural da informação, tais como os processos de tradução descritos neste artigo, são essenciais para que o diálogo entre saberes e a compreensão intercultural dos fenômenos sejam bem sucedidos, permitindo que a ciência, “reencantada”, desenvolva ações e técnicas orientadas por uma visão não colonial do mundo, da humanidade e do pensamento.

Palavras-chave:DesencantamentoDesencantamento,ReencantamentoReencantamento,Mediação culturalMediação cultural,Mediação da informaçãoMediação da informação,Conhecimento científicoConhecimento científico.

Abstract: Objective: This article proposes to discuss the implementation of cultural mediation practices in the context of teaching and academic research, highlighting the contribution of such practices to the broadening of epistemological horizons of scientific thought. Such objectives are supported by the recognition of the scientific method as the most daring form of systematization of knowledge developed by humanity, however in opposition to the idea that scientific knowledge is the only carrier of rigor and validity.

Methods: We will undertake exploratory research around the concepts of "information mediation" and "cultural mediation" (as thought of in the dialogues between information and social communication studies), amalgamating them in a notion of "cultural mediation of information". Subsequently, the criticism of the uses of modern science's rationality in colonization policies will serve as a motto for the defense of its approach to other epistemologies and concepts of life and the world; in this context, the idea of translation emerges as an example of the practice of cultural mediation of information.

Results: We understand that the process of “disenchantment of the world”, which operates a kind of marginalization of knowledge of traditional peoples and minorities around the planet, can be overcome through the adoption of practices of cultural mediation of information, understanding that scientific investigation should take place not only within the scope of instrumental rationalization of the processes of knowing, but also taking into account the singularities and pluralities constructed and reconstructed from symbolic exchanges on the cultural field.

Conclusions: The practices of cultural mediation of information, such as the translation processes described in this article, are essential for the dialogue between knowledge and intercultural understanding of phenomena to be successful, allowing science, "reenchanted", to develop actions and techniques guided by a non-colonial view of the world, humanity and thought.

Keywords: Disenchantment, Re-enchantment, Cultural mediation, Mediation of information, Scientific knowledge.

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Artigos

Mediação cultural da informação para o reencantamento do mundo.

Cultural mediation of information for the re-enchantment of the world

Arthur Coelho BEZERRA
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasil
Luciane de Fátima Beckman CAVALCANTE
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 25, pp. 1-19, 2020
Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 08 Abril 2020

Aprovação: 08 Julho 2020

Publicado: 04 Setembro 2020

Financiamento
Fonte: Bolsa de Produtividade em Pesquisa – CNPq
1 INTRODUÇÃO

Vivemos como os antigos, quando o seu mundo ainda não havia sido desencantado de seus deuses e demônios, e apenas vivemos num sentido diferente.

Max Weber, A ciência como vocação

“Desencantamento do mundo” é a expressão por Weber para se referir ao fenômeno histórico de substituição de uma concepção de mundo permeada por forças ocultas, segundo o primado da magia religiosa, por práticas científicas e pelo desenvolvimento tecnológico, conforme observado no advento da perspectiva iluminista. Em seu clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, bem como em outros trabalhos, o sociólogo aponta o início do que chama de “processo histórico-religioso do desencantamento do mundo” nas profecias do judaísmo antigo que, “em conjunto com o pensamento científico helénico, repudiava como superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação” (WEBER, 2004, p.96). O desencantamento do mundo reflete a mudança nas atitudes e mentalidades humanas que subjaz os princípios da intelectualização e da racionalização, este o mais geral dos elementos que compõem a filosofia da história de Weber.

A tensão entre a religião e o conhecimento intelectual destaca-se com clareza sempre que o conhecimento racional, empírico, funcionou coerentemente através do desencantamento do mundo e sua transformação num mecanismo causal. A ciência encontra, então, as pretensões do postulado ético de que o mundo é um cosmo ordenado por Deus e, portanto, significativo e eticamente orientado (WEBER, 1982b, p. 401, grifo do autor)

Em Adorno e Horkheimer (1986, p. 19), o desencantamento do mundo é definido como o próprio “programa do esclarecimento”, cuja meta seria “dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”. O esclarecimento (aufklärung) a que se referem os filósofos alemães não se resume, stricto sensu, ao período do Iluminismo; antes, caracteriza o processo histórico de racionalização que pode ser encontrado na filosofia, na ciência e, de uma forma geral, na cultura das sociedades modernas. Não obstante, em que pesem todas as pretensões de dominação da natureza pela ciência positiva, o diagnóstico crítico da indústria cultural do início do século XX, que os autores apresentam em A dialética do esclarecimento, denuncia seu potencial de “mistificação das massas” e, de modo geral, sua conversão em aparato ideológico a serviço do controle e da hegemonia dos mercados capitalistas, apontando que “o aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 14).

Ao longo do século XX, a concepção de esclarecimento como forma do que os autores chamam de “mistificação das massas” dá azo a uma série de críticas ao movimento de racionalização da vida, especialmente da perspectiva dos povos que foram colonizados mediante a justificativa de uma missão dita “civilizatória”. Parte dessas críticas é dirigida ao que Santos (1995; 2007) chama de “epistemicídio”, referindo-se à subalternização, marginalização, ilegalidade e, em última instância, ao assassinato de conhecimentos ditos “alternativos”, oriundos de trabalhadores, índios, negros, mulheres e minorias em geral, sejam étnicas, religiosas ou sexuais (1995, p. 328), e perpetrado por uma “monocultura do saber e do rigor” (2007, p. 29) que elege o saber científico como o único portador de rigor e validade.

Partindo do vetor oposto à tal concepção, porém sem deixar de reconhecer o método científico como a forma mais arrojada de sistematização do conhecimento desenvolvida pela humanidade, nossa investigação propõe, como principal objetivo, discutir a implementação de práticas de mediação cultural da informação no âmbito do ensino e da pesquisa acadêmica, destacando a contribuição de tais práticas para a ampliação dos horizontes epistemológicos do pensamento científico. Para alcançar tal feito, e como forma de desenvolver uma linha argumentativa alinhada ao objetivo proposto, iremos empreender o viés metodológico de uma pesquisa exploratória de natureza teórica em torno dos conceitos de mediação (em seu sentido filosófico mais amplo, de relação entre os sujeitos e o mundo) e de “mediação da informação” e “mediação cultural” (conforme pensado nos diálogos entre os estudos da informação e da comunicação), procurando amalgamá-los em uma noção de “mediação cultural da informação”.

Posteriormente, aprofundaremos a supracitada crítica ao fenômeno histórico de sequestro epistemológico da racionalidade da ciência moderna, instrumentalmente posta a serviço das políticas de colonização de corpos e mentes para a expansão do capital comercial europeu. Por fim, a partir de uma perspectiva de “ecologia dos saberes” (SANTOS, 2007) que valoriza a aproximação da ciência de outras epistemologias e concepções de vida e mundo, como as que despontam de matrizes africanas e ameríndias, argumentaremos, a título de conclusão, que a adoção de práticas de mediação cultural da informação tem o condão de operar uma espécie de “reencantamento do mundo”, permitindo que a ciência se beneficie dessa pluralidade de saberes sem precisar abrir mão dos métodos e rigores científicos que lhe são caros.

2 MEDIAÇÃO CULTURAL DA INFORMAÇÃO

O termo “mediação” carrega em si uma complexidade de interpretações, visto que é explorado por diferentes áreas do conhecimento, tais como filosofia, antropologia, sociologia, comunicação e ciência da informação – o que tem reflexos, também, nas distintas formas sob as quais a mediação é posta em prática, seja em seu uso comum, teórico ou operatório (DAVALLON, 2007).

Conforme esclarece Almeida (2007, p.4), “no campo das ciências sociais a noção de mediação se vincula às chamadas “teorias da ação”, nas quais as mediações encarnam as conexões estabelecidas entre as ações sociais e as motivações (individuais e/ ou coletivas)”. Tais conexões, acrescentamos, ganham especial destaque na sociologia compreensiva weberiana, que está preocupada em investigar não apenas o sentido que os agentes atribuem às suas práticas, mas também as motivações “secretas” que o sociólogo pode desvendar como orientadoras de tais práticas (cujas esferas tradicionais e afetivas nem sempre são conscientes ao sujeito da ação). Por se estabelecerem no contexto da esfera pública, as ações dos indivíduos são permeadas por processos de construção intersubjetiva propiciados por meio da comunicação, o que envolve direta ou indiretamente o fator humano, na condição de mediador de tais processos.

Já no que tange o campo da ciência da informação, ainda segundo Almeida, a concepção sobre mediação apresenta compreensões distintas, que englobam desde concepções de “atendimento ao usuário” até a elaboração de “políticas de capacitação ou de acesso às tecnologias de informação e comunicação” (ALMEIDA, 2007, p. 4). Em tal aspecto, o “profissional da informação” seria o responsável por propiciar a mediação da informação nos espaços informacionais ligados ao seu contexto de atuação. A partir de semelhante compreensão, a mediação da informação seria, no entendimento de Almeida Junior:

[...] toda ação de interferência – realizada em um processo, por um profissional da informação e na ambiência de equipamentos informacionais –, direta ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural; individual ou coletiva; visando a apropriação de informação que satisfaça, parcialmente e de maneira momentânea, uma necessidade informacional, gerando conflitos e novas necessidades informacionais (ALMEIDA JÚNIOR, 2015, p. 25)

Para Almeida Júnior, a mediação da informação pode ocorrer tanto de forma implícita quando explícita. Na primeira forma, “[...] as ações são desenvolvidas sem a presença física e imediata dos usuários. [...] A mediação explícita ocorre nos espaços em que a presença do usuário é inevitável, mesmo que tal presença não seja física” (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 93). O referido autor também argumenta que, a mediação, em seu entendimento amplo, exige a presença de um “terceiro” (seja uma pessoa ou não); em Jeanneret (2005, p. 106), este terceiro é compreendido como um “‘terceiro’ simbólico (conjunto de valores, de práticas compartilhadas, de lugares de memória) que de uma certa forma transcende o cotidiano das trocas”. Nessa chave de leitura, a mediação se dá nas construções e simbologias estabelecidas por meio de processos comunicacionais, sendo estes permeados por aspectos informacionais e culturais. Conforme explicam Marteleto e Couzinet (2013, s/p), tal abordagem considera atores e objetos em uma “cadeia extensa de mediações diversas, capazes de criar solidariedades e compartilhamentos em redes sociais”. Para Gomes (2014, p. 48), “[...] a ação mediadora é compreendida como uma ação essencialmente pautada na dialogia”, uma vez que o locus da mediação, constituído por práticas de comunicação e transmissão cultural, envolve um processo de compartilhamentos objetivos e intersubjetivos por meio dos quais os sujeitos envolvidos geram significações.

O desenvolvimento de estudos que contemplam os aspectos informacionais, compreendidos em uma lógica de construção social dos saberes (produção e apropriação), permite estender a visão da mediação ao campo de entendimento das simbologias intrínsecas na relação do sujeito com o mundo, ou seja, os valores e práticas compartilhadas para além das relações de troca entre dois polos, de acordo com a citada perspectiva do terceiro simbólico de Jeanneret. Uma vez que os aspectos culturais são inerentes aos contextos informacionais, bem como às relações estabelecidas entre sujeito e informação, cabe destacar a mediação cultural como um fator crucial nessa relação do sujeito com o mundo, instrumentalmente ligada ao “[....] conjunto de elementos de diferentes ordens (material, relacional, semiológica) que se interpõem e atuam nos processos de significação” e, ao mesmo tempo, entendida como “[...] ação portadora de sentidos próprios que estão em relação com sentidos incrustados tanto nos objetos, como nos sujeitos culturais e seus respectivos contextos” (PERROTTI; PIERUCCINI, 2014, p. 8-9).

O conceito de “mediação cultural” emerge na contemporaneidade como formulação teórica e metodológica inscrita em um quadro que reconhece conflitos, por um lado, e a necessidade de estabelecimento de elos que viabilizem diálogos necessários à geração de ordens culturais mais democráticas e plurais, por outro (PERROTTI, 2016, p. 13). Assim, a mediação cultural pode propiciar novos atos de significação no sujeito interagente em contextos de práticas informacionais e culturais, uma vez que permite a apropriação dos elementos simbólicos ali desenvolvidos.

Na diversidade que caracteriza o espaço público, sem silenciar conflitos nem vozes discordantes, sem isolar ou impedir a emergência da pluralidade, das tensões que lhe são próprias, a mediação cultural apresenta-se, pois, como um território discursivo, de embates e possibilidades, ao mesmo tempo que de afirmação da esfera pública como instância superior organizadora e legitimadora do campo simbólico (PERROTTI, 2016, p.13)

Se considerarmos que os sujeitos, na condição de seres individuais e coletivos, estabelecem conexões com elementos culturais que lhes propiciam a interpretação e construção da realidade, e se entendermos que tais conexões se dão a partir da apropriação da informação dos elementos simbólicos por meio de processos de mediação (seja direta ou indireta), é possível concebermos a noção de “mediação cultural da informação”, de forma ampla, como um processo para aproximação e interlocução das diferentes formas culturais de compreensão dos fenômenos informacionais existentes nas sociedades. Ou seja, a mediação cultural da informação, ainda que estabeleça interlocução tanto à mediação da informação quanto à mediação cultural, se diferencia ao englobar e propiciar compreensões interculturais dos fenômenos inseridos na lógica dos processos das relações informacionais/culturais que circundam os sujeitos, para além somente de um contato stricto com a informação ou objeto cultural.

A racionalização e a separação das esferas da vida, que Weber (1982ª; 2004) enxerga como as principais características do mundo moderno, permitem que a economia, o direito, a política, a ética e outros campos de conhecimento e ação sejam vistos como formas distintas de saber, dotadas de lógicas e finalidades próprias. No entanto, outras concepções de vida que escapam às formas modernas de institucionalização do saber (incluindo outras maneiras de se pensar e praticar a economia, o direito, a política e a moral) foram, ao longo do chamado “processo civilizador”, descreditadas, marginalizadas e apagadas, impedindo, por exemplo, que populações africanas participassem do debate sobre as práticas de escravização às quais foram submetidas, bem como que povos ameríndios pudessem opinar sobre as pretensões europeias de exploração das terras que os indígenas habitavam por séculos. Tal fato histórico, que se reproduz até os dias de hoje como parte da herança secular de um modelo de imperialismo econômico, político e cultural, mostra que o diálogo entre a pluralidade de conhecimentos e saberes no âmbito do ensino e da pesquisa acadêmica, pretensão que almejamos defender neste texto, não pode prescindir de uma crítica à orientação monocórdica do pensamento científico quando submetido à lógica colonialista.

3 A ECOLOGIA DOS SABERES

A emergência dos estudos pós-coloniais e decoloniais na América Latina e em outras terras, especialmente a partir do final do século XX, revela a preocupação de historiadores, sociólogos, cientistas políticos, filósofos, pedagogos e outros pesquisadores e pesquisadoras com a colonização eurocêntrica e norte-americana das formas de pensar e de conhecer o mundo, que caracteriza a base do imperialismo ocidental há mais de 500 anos e que se mantém entranhada nos limites do pensamento intelectual contemporâneo, reforçando a noção de superioridade cultural e intelectual do chamado Ocidente. As colônias, nas palavras de Mbembe (2018, p. 35), são “o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’”. As justificativas para essa forma de governo, segundo o filósofo camaronês, provêm da “negação racial de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo”, que é acompanhada pela missão messiânica que transforma, no plano do discurso, práticas de colonização em práticas de “civilização”, como aponta o pensador indígena Krenak:

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história (KRENAK, 2019, p. 11)

Na crítica de Adorno e Horkheimer, assim como a ideia de “esclarecimento” encarna o movimento real da sociedade burguesa em pessoas e instituições, “a verdade não significa meramente a consciência racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 14). Para estes pensadores alemães, a concepção de verdade dos colonizadores esteve fincada em uma perspectiva de distanciamento entre sujeito e objeto, “na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 27-28), seja o objeto de domínio o povo colonizado ou a própria Terra, organismo da qual a humanidade é alienada através da percepção de que “ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a Humanidade” (KRENAK, 2018, p. 16).

À colonização da Terra e dos corpos escravizados, soma-se a colonização dos saberes tradicionais, entendidos como “primitivos” ou “selvagens”. A agenda colonial, conforme nos lembram Simas e Rufino, “produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de saber, como também produz a morte, seja ela física, através do extermínio, ou simbólica, através do desvio existencial” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 11). No entender do historiador e do pedagogo, “enquanto há diferentes formas de saber que nos falam acerca da possibilidade de reinvenção e encantamento do mundo há também um modo arrogante que se quer único que grita mais alto para ser ouvido” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 77, grifo nosso).

Os desencantamentos das ciências humanas e da noção de humanidade assentam-se, basicamente, na incapacidade que os modelos alicerçados nos paradigmas do Ocidente europeu têm de não reconhecer outras perspectivas ontológicas, epistemológicas, cosmogênicas e filosóficas produzidas fora do eixo em que ele julga se encontrar (Ocidente europeu como ideologia) (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 31).

Em resumo, Santos afirma: “eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos” (SANTOS, 1995, p. 328). É esse processo de apagamento que constitui o que o sociólogo português denomina de “monocultura do saber e do rigor”, ou seja, a ideia de que apenas o saber científico possui validade. Para Santos, a “monocultura do rigor baseia-se, desde a expansão europeia, em uma realidade: a da ciência ocidental” (SANTOS, 2007, p. 29).

Essa monocultura reduz de imediato, contrai o presente, porque elimina muita realidade que fica fora das concepções científicas da sociedade, porque há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares, conhecimentos indígenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos, mas que não são avaliados como importantes ou rigorosos. (...) Ao constituir-se como monocultura (como a soja), destrói outros conhecimentos, produz o que chamo de “epistemicídio”: a morte de conhecimentos alternativos (SANTOS, 2007, p. 29).

Em sua tese de doutorado em educação, Carneiro descreve o epistemicídio como “um processo persistente de produção da indigência cultural”, que produz inferiorização intelectual e rebaixamento da capacidade cognitiva, uma vez que, para desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados, é necessário “esqualifica-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes”, destituindo-lhes da razão e da “condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou legitimado” (CARNEIRO, 2005, p. 97). Seria, no entanto, um equívoco considerar que conhecimentos de matrizes africanas e indígenas, por exemplo, são necessariamente inferiores, não rigorosos ou desimportantes.

Ao debruçar-se sobre o que chamou de “ciência do concreto”, listando exemplos do extenso conhecimento de diferentes povos indígenas em relação às propriedades de plantas, insetos e animais que coabitam seus complexos ecossistemas, o antropólogo Lévi-Strauss, um dos principais expoentes do estruturalismo francês do século XX, nos lembra que “essa exigência de ordem constitui a base do pensamento que denominamos primitivo, mas unicamente pelo fato de que constitui a base de todo o pensamento”, e que “esse cuidado com a observação exaustiva e com o inventário sistemático das relações e das ligações pode por vezes chegar a resultados de boa postura científica” (1989, p. 25).

O pensamento mágico não é uma estreia, um começo, um esboço, a parte de um todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, neste ponto, desse outro sistema que constituirá a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de segundo. Portanto, em lugar de opor magia e ciência, seria melhor coloca-las em paralelo, como dois modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de vista, é verdade que a ciência se sai melhor que a magia, no sentido de que algumas vezes ela também tem êxito), mas não devido à espécie de operações mentais que ambas supõem e que diferem menos na natureza que na função dos tipos de fenômenos aos quais são aplicadas (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 28).

Se concordarmos com a proposta de Lévi-Strauss de colocar ciência e magia em paralelo, podemos considerar, também, a promoção do diálogo entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento, conforme vemos na perspectiva de Santos (2007, p. 33) de substituição das monoculturas do saber e do rigor por uma “ecologia dos saberes”, vislumbrando uma realidade em que “[...] o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês”. Krenak (2019, p. 24) complementa essa perspectiva afirmando que “a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade”.

Em nosso entendimento, para que tal uso seja possível no âmbito acadêmico, é preciso contar com a contribuição de práticas de mediação que facilitem o diálogo intercultural, fomentando a ampliação do repertório científico mediante o contato com a pluralidade de formas através das quais diferentes povos conhecem e concebem o mundo. É nesse esforço de compreensão intercultural dos fenômenos e das relações entre indivíduos de distintas matrizes informacionais e culturais que se insere a noção de “mediação cultural da informação” aqui apresentada.

4 TRADUÇÃO COMO PRÁTICA DE MEDIAÇÃO CULTURAL DA INFORMAÇÃO

Ao passo que as ciências se desenvolvem na relação com diferentes culturas, se faz pertinente destacar o seguinte questionamento: o que há de comum entre o conhecimento científico e o conhecimento baseado nas experiências e práticas sociais? Um caminho para se aproximar da resposta passa pelo que Boaventura de Sousa Santos (2002; 2007) denomina como procedimento de “tradução”, designando aquilo que possibilita a produção de sentidos nos processos interculturais e intersociais.

A tradução permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências. [...] procura captar a relação hegemônica entre as experiências e o que nestas está para além dessa relação [...] incide tanto sobre os saberes como sobre as práticas (e os seus agentes) (SANTOS, 2002, p. 262).

No léxico de Santos (2002, p. 262), a tradução entre saberes é compreendida como uma “hermenêutica diatópica”, ou seja, o “trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas com vista a identificar preocupações isomórficas entre elas e as diferentes respostas que fornecem para elas”. Embora os saberes e culturas sejam plurais, o procedimento de tradução permite estabelecer as relações e conexões de elementos semelhantes para o desenvolvimento de relações recíprocas ao entendimento de um ou mais fenômenos.

A hermenêutica diatópica é amparada pelo autor na proposição de exercícios comparativos, como o que faz entre a forma que a ideia de “sabedoria” assume na filosofia ocidental e a que encarna no conceito de “sagacidade filosófica”, encontrado em regiões da África tradicional. Em outro exercício, Santos compara os dois modos distintos de se conceber a vida “produtiva”: de um lado, a concepção de produtividade do sistema capitalista, reproduzida pela ciência econômica convencional; do outro, a concepção do swadeshi desenvolvida por Gandhi, que se vincula à ideia de sustentabilidade e reciprocidade (SANTOS, 2002, p. 263).

Ao configurar-se como uma hermenêutica diatópica, a tradução acaba por assumir uma forma de mediação para o entendimento daquilo que coaduna, ainda que em perspectivas culturais distintas. Em tal perspectiva, a tradução seria o cerne para uma proposição do diálogo entre saberes e culturas, revelando-se uma prática de mediação cultural da informação, com vistas à promoção do entendimento satisfatório entre diferenças.

No que diz respeito às práticas sociais, a mediação cultural da informação praticada através do trabalho de tradução pode criar um ambiente de “inteligibilidade recíproca” entre modos de organização e formas de ação, incidindo sobre os saberes “enquanto saberes aplicados, transformados em práticas e materialidades” (SANTOS, 2002, p. 265). Age, nesse sentido, sobre os saberes que decorrerão em um determinado tipo de prática, como, por exemplo, na relação entre biomedicina e medicina tradicional, ou nos movimentos sociais circunscritos em um mesmo cenário cultural, mas que internamente também possuem culturas distintas, que atuam sobre o contexto do desenvolvimento das ações. Basta pensarmos nas manifestações antiglobalização da virada do século, que reuniram movimentos e organizações tradicionalmente ancorados em diferentes culturas e bastante diversos em suas práticas e objetivos. Nestes casos, o complexo trabalho de tradução dos saberes ajuda a “esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou agregação entre eles” (SANTOS, 2002, p.266).

Entendida como forma de mediação cultural da informação no âmbito acadêmico de desenvolvimento do conhecimento científico, a tradução se dá nas interconexões estabelecidas entre atributos teóricos e práticos advindos ou inseridos em interlocuções com contextos de natureza variada. Há que se considerar todo o escopo que abrange as diferenças para ser possível compreender em que medida conexões semelhantes podem ser estabelecidas, considerando os fatores sociais, culturais, políticos e econômicos, bem como as relações de poder existentes. Nessa perspectiva, um procedimento de tradução entre o conhecimento indígena e o conhecimento científico para a concepção da relação do homem com a natureza deve, primeiramente, abarcar a compreensão do que Santos chama de “zonas de contato”, observando que “as duas zonas de contato constitutivas da modernidade ocidental são a zona epistemológica, onde se confrontaram a ciência moderna e o saber ordinário, e a zona colonial, onde se defrontaram o colonizador e o colonizado” (SANTOS, 2002, p. 268).

A proposta do sociólogo português é problematizada, em palestra proferida naquele mesmo país europeu, por uma indagação do pensador ameríndio do povo Krenak, comunidade indígena profundamente afetada pelos crimes ambientais ocorridos na região do vale do Rio Doce: “como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos, que tem tanta origem comum, mas que se descolaram a ponto de termos hoje, num extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso?” (KRENAK, 2019, p. 51).

Temos apontado neste texto a profunda desigualdade que marca o cenário de desenvolvimento do campo científico, mormente quando a ciência explora os conhecimentos ditos tradicionais ou populares apenas como um objeto de estudo, e não como um construto colaborador, ampliador e potencializador do desenvolvimento do conhecimento. Tal fato, conforme reconhecemos, é resultado da constituição histórica da ciência enquanto um campo atrelado às concepções de desenvolvimento capitalistas que são impostas às culturas e povos colonizados.

Em contraponto, cabe mencionar que, embora ainda exista um caminho extenso a ser trilhado, algumas inciativas têm surgido para promover o encontro de saberes, como as listadas no Dossiê Povos Tradicionais da revista ComCiência (revista eletrônica de jornalismo científico):

A Benares Hindu University (Índia) reúne disciplinas convencionais e de conhecimentos de tradição védica. No Japão, a filosofia ocidental, a filosofia chinesa e a filosofia indiana estão presentes em quase todos os departamentos de filosofia. Na Nigéria, a Universidade Obafemi Awolowo, em Ife, discute textos orais da tradição Odú com a participação de babalaôs de várias regiões da Nigéria, do Benin e do Togo. Na América Latina, o Centro Amazónico de Formação Indígena (Brasil), a Universidade Indígena Intercultural Kawsay (Bolívia), a Universidade Autônoma Indígena e Intercultural (Colômbia) e a Universidade Intercultural das Nacionalidades e Povos Indígenas Amawtay Wasi (Equador) foram criadas por dirigentes e/ou por organizações indígenas. A Universidade das Regiões Autônomas da Costa Caribe Nicaraguense surgiu da iniciativa de dirigentes afrodescendentes e indígenas da Nicarágua (CASTRO; CAIRES, 2017, s/p)

No que concerne o cenário brasileiro, a referida reportagem cita a iniciativa tomada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para romper com a hierarquia entre pesquisadores e “pesquisados”. Desde 2014, a UFMG oferece disciplinas do Programa Transversal em Saberes Tradicionais que são ministradas por xamãs indígenas, afrodescendentes, cantores de congado, reisado e candomblé e pesquisadores convidados (CASTRO, CAIRES, 2017, s/p), fugindo do modo tradicional de como aulas são ministradas na universidade.

Acreditamos que iniciativas como as citadas acima, bem como as políticas de ações afirmativas, sejam alguns dentre outros caminhos existentes para propiciar a prática de mediação cultural que fomenta o contato entre distintas formas de conhecimento, o que se dá, como já vimos com Perrotti (2016), em um quadro que reconhece tanto os conflitos quanto os possíveis caminhos de entendimento para ordens culturais mais democráticas e plurais.

Por extensão, entendemos que os procedimentos de tradução podem ser reconhecidos como práticas de mediação cultural da informação no âmbito acadêmico, visto que propiciam a abertura de espaços no campo científico para o movimento dialético de interlocução entres os saberes advindos de ramos culturais distintos, entendidos não mais como objeto de estudo e exploração mas, sobretudo, como elementos fundantes de desenvolvimento mútuo, seja no âmbito puramente teórico ou na práxis.

Concluímos, por fim, que a mediação cultural da informação no campo científico guarda um potencial de “reencantamento do mundo”, ao permitir que o entendimento dos fenômenos investigados pela ciência não se dê exclusivamente no âmbito da racionalização instrumental dos processos do conhecer, mas, também, pelas singularidades e pluralidades construídas e reconstruídas a partir de trocas simbólicas no plano da cultura.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenha sido idealizado no final do ano de 2019, o presente artigo foi efetivamente escrito durante os meses de março e abril de 2020, enquanto o mundo enfrenta uma situação de pandemia causada pelo rápido espalhamento do novo coronavírus (coronavirus disease 2019, ou COVID-19). A verve argumentativa de nosso texto foi tomada de assalto por tais circunstâncias, especialmente por conta do descompasso entre as orientações de entidades científicas de todo o mundo (destacamos aqui o protagonismo da Organização Mundial da Saúde) e o discurso do governo federal brasileiro, que não raro contrariou as orientações da comunidade médica internacional.

Tendo em vista que a discussão aqui proposta – a saber, a importância das práticas de mediação cultural da informação no âmbito acadêmico – pressupõe uma crítica à orientação monocultural do pensamento científico, impôs-se o temor de que, vista de forma apressada, tal crítica corria o risco de ser confundida com uma negação da ciência em termos gerais. Cabe, portanto, deixar evidente que não é este o caso; antes, a proposta que trazemos alinha-se com a dos filósofos, sociólogos, antropólogos, pedagogos e historiadores aqui citados, oriundos do velho e do novo mundo, defensores do saber científico e cientes da importância da validade e do rigor das formas de conhecimento encontradas em outras matrizes culturais que não as contempladas pelas epistemologias forjadas na Europa ou no que, com alguma imprecisão, se costumou chamar de “Ocidente”. Conforme afirma Santos, “não se trata de ‘descredibilizar’ a ciência nem de um fundamentalismo anticiência”; como cientistas sociais, não podemos fazer isso. O que vamos tentar fazer é um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica” (SANTOS, 2007, p. 32).

Ainda assim, tendo em vista as disputas políticas em curso, chegamos a nos indagar: vale a pena questionar a autoridade científica em um momento tão delicado quanto este? Para seguirmos em frente, precisamos reformular a questão, colocando-a nos seguintes termos: vale a pena que a ciência reflita sobre o seu papel na sociedade? Não temos dúvida quanto à resposta afirmativa, e pensamos que a crítica que estas linhas comportam podem aproximar a ciência de seus velhos objetivos e valores: a busca da verdade e o espírito questionador. As palavras de Adorno e Horkheimer reforçam nosso argumento:

Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu carácter superador e, por isso, também sua relação com a verdade (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 13)

Mais de 70 anos se passaram, e a percepção dos filósofos frankfurtianos de que o “germe para regressão” está por toda a parte continua válida. De fato, podemos ver esse germe brotar na comunidade científica internacional durante o atual contexto de combate a outro germe, o novo coronavírus; mais especificamente, por exemplo, no diálogo entre o chefe do departamento de terapia intensiva de um grande hospital de Paris e o diretor de uma organização pública francesa dedicada a pesquisas biológicas (o INSERM). Na conversa, transmitida por uma das maiores emissoras de televisão da França, Jean Paul Mira e Camille Locht defendem que testes de vacinas para a COVID-19 sejam feitos na população da África, onde, nas palavras aqui traduzidas de Mira, “não existem máscaras, tratamento ou terapia intensiva, um pouco como é feito, a propósito, em certos estudos de AIDS ou com prostitutas: tentamos coisas porque sabemos que elas estão altamente expostas” (NY TIMES, 2020). Esse exemplo é bastante ilustrativo do que Mbembe chama de “necropolítica”, instância em que residem “formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição de corpos humanos e populações’” (MBEMBE, 2018, p. 10-11).

Para que a ciência não seja posta a serviço dessas formas de soberania, o filósofo defende que nossas instituições de ensino sejam submetidas a um processo de descolonização do conhecimento, para que possamos conceber “uma universidade capaz de convocar vários públicos em novas formas de assembleias que se tornam pontos de convergência e plataformas para a redistribuição de diferentes tipos de conhecimentos” (MBEMBE, 2015, s/p, tradução nossa, grifos dos autores). Nesse sentido, é necessário, conforme escrevem Simas e Rufino (2018, p. 19), “[...] sair do conforto dos sofás epistemológicos e nos lançar na encruzilhada da alteridade, menos como mecanismo de compreensão apenas (normalmente estéril) e mais como vivência compartilhada”.

Reivindicar o reconhecimento/legitimidade de determinado campo de saber como possibilidade credível implica em assumir suas potências e inacabamentos teórico-metodológicos como fontes para repensar o próprio campo, e também como possibilidade de pensar e dialogar com outros (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 26).

Ao mencionar a perspectiva de Santos de que o conhecimento só pode ser pensado como universal se for, por definição, “pluriversal”, Mbembe argumenta que tal pluriversalidade deve ser entendida como um “processo de produção de conhecimento aberto à diversidade epistêmica”, que “não abandona necessariamente a noção de conhecimento universal para a humanidade, mas que a abraça por meio de uma estratégia horizontal de abertura ao diálogo entre diferentes tradições epistêmicas” (MBEMBE, 2015, s/p, tradução nossa). Acreditamos que as práticas de mediação cultural da informação, tais como os processos de tradução descritos neste artigo, são essenciais para que o diálogo entre saberes e a compreensão intercultural dos fenômenos sejam bem sucedidos, permitindo que a ciência, “reencantada”, desenvolva ações e técnicas orientadas por uma visão não colonial do mundo, da humanidade e do pensamento.

Material suplementar

Parecer (pdf)

Informação adicional

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA: Concepção e elaboração do manuscrito: A. C. Bezerra, L. F. B. Cavalcante Coleta de dados: A. C. Bezerra, L. F. B. Cavalcante Análise de dados: A. C. Bezerra, L. F. B. Cavalcante Discussão dos resultados: A. C. Bezerra, L. F. B. Cavalcante Revisão e aprovação: A. C. Bezerra, L. F. B. Cavalcante

CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

LICENÇA DE USO: Os autores cedem à Encontros Bibli os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (CC BY) 4.0 International. Estra licença permite que terceiros remixem, adaptem e criem a partir do trabalho publicado, atribuindo o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico.

PUBLISHER: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

EDITORES: Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros.

Agradecimentos

Agradecimentos ao CNPq pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa

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