Ensaio
Recepção: 23 Julho 2020
Aprovação: 23 Novembro 2020
DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2021.e75576
RESUMO
Objetivo: O ensaio objetiva refletir sobre informação, misinformação e desinformação como meios empregados por movimentos antivacina, abordando a produção dos seus efeitos sociais em termos de materialidade e de institucionalidade de enunciados no âmbito de regimes de informação.
Método: A revisão bibliográfica teve como foco os temas materialidade e institucionalidade de enunciados, informação, misinformação, desinformação, regimes de informação e movimentos antivacina. Além disso, foram realizadas consultas em legislações e em websites governamentais brasileiros, mediante as quais foi possível realizar as reflexões sobre os temas estudados.
Resultados: As reflexões apontam para a materialidade da misinformação e da desinformação como fonte ou produto de discursos antivacina, algo que, por vezes, mimetiza recursos empregados pelo regime de informação em ciência e tecnologia vigente e, com efeito, alimenta um modo de resistência junto às políticas públicas do Estado, num contexto em que doenças imunopreveníveis antes erradicadas têm retornado, como é o caso do reaparecimento do sarampo no Brasil.
Conclusões: A dificuldade de distinção entre informação, misinformação e desinformação constitui um problema para o Estado, para a ciência, para as entidades de saúde pública ou para os meios de comunicação e instituições de mediação, comprometidos com a informação. O viés de confirmação capitalizado pelos movimentos antivacina aparece como meio de resistência e/ou confrontação ao controle do Estado. Efeitos adversos de vacinas podem ser utilizados descontextualizadamente para reforçar a ideia de que “toda vacina é maléfica”. A ciência e o poder público têm o desafio de esclarecer a opinião pública sobre os benefícios ou cuidados a serem tomados em relação às vacinas.
PALAVRAS-CHAVE: Informação, Desinformação, Misinformação, Materialidade, Enunciados, Movimentos antivacina, Regimes de Informação.
ABSTRACT
Objetive: This essay aims to ponder information, misinformation and disinformation as a means used by Anti-vaccine movements, addressing the production of their social effects in terms of materiality and institutionality of enunciations within information regimes.
Methods: Bibliographic review focused on materiality and institutionality of enunciations, information, disinformation, information regimes, and anti-vaccine movements. Furthermore, consulting Brazilian governmental websites and legislation made reflections on the topics of this study viable.
Results: The reflections point toward the materiality of misinformation and disinformation as a source or product of anti-vaccine discourses, which, at times, mimics resorts employed in public State policies, in a context in which previously eradicated immunopreventable diseases reappear, such as the case of measles in Brazil.
Conclusions: The difficulty in distinguishing information from misinformation and disinformation constitutes a problem for the State, for Science, for public health entities, or for means of communication, and institutions of mediation, committed to information. The capitalized confirmation bias from anti-vaccine movements stands out as a means of resistance and/or confrontation to the control of the State. Vaccinations’ side effects can be used out of context to reinforce the idea that “every vaccine is harmful.” Science and the public power face the challenge of clarifying public opinion on the benefits and care to be taken concerning vaccines.
KEYWORDS: Information, Disinformation, Misinformation, Materiality, Enunciations, Anti-vaccine movements, Information regimes.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo busca problematizar a produção de efeitos sociais a partir do fenômeno dos movimentos antivacina e dos sujeitos que se autodenominam antivaxxer (CAMBRIDGE..., 2020) sob a ótica de suas manifestações e discursos que, quando institucionalizados, constituem e são constituídos por enunciados como informação, misinformação e/ou desinformação. Pressupõe-se que as dimensões material e/ou política incidem em tais configurações enunciativas.
Os movimentos antivacina - compostos por aqueles que rejeitam, questionam a eficácia ou desprezam programas vacinais e/ou a própria vacinação em si (APS et al., 2018) - têm se expandido. Os argumentos antivacina encontram raízes históricas nos últimos dois séculos,1 e vêm sendo difundidos, mais recentemente, por meio de mídias sociais, que facilitam a disseminação de enunciados enganosos em relação às vacinas (SUCCI, 2018), ou mediante websites voltados ao assunto,2 cuja extensão pode ser observada quando explorada quantitativamente em buscas na web.3 Os resultados de tais buscas demonstram a premência de estudos acerca do fenômeno da antivacina, sobretudo diante das questões informacionais que podem interferir na cobertura vacinal, algo de interesse, por exemplo, para contextos pandêmicos, como o da COVID-19.4
Considerando que informações sobre saúde recuperadas por buscadores têm impacto na saúde pública - sobremaneira na aceitação das vacinas -,5 o estudo de Ghezzi et al. (2020) objetivou pesquisar a “[...] relação entre a abordagem dos motores de busca tocante à privacidade e a qualidade científica das informações que eles retornam” (tradução nossa). O estudo observou que as tomadas de decisões em saúde devem ser respaldadas na qualidade da informação recuperada pelos motores de busca, sobretudo para as páginas da web relacionadas à saúde. Além de tais páginas impactarem eticamente no direito de consentimento, a qualidade destas deve ser priorizada para que “[...] possam ser consideradas fornecedores confiáveis de informações de saúde pública.” (GHEZZI et al., 2020, tradução nossa).
As vacinas são responsáveis pelo avanço na prevenção de doenças imunopreveníveis (BRASIL, 2014). Já os discursos contrários à sua eficácia têm sido uma preocupação constante de governos e instituições de saúde. Por trás dos movimentos antivacina por vezes se encontram comportamentos anti-intelectuais, anti-científicos, naturalistas e relativistas os quais impactam no interesse, utilização e apropriação de conhecimento balizado por critérios científico-racionais. Correspondem a expressões públicas que se inserem no espectro da denominada pós-verdade,6 que toca a aceitação da informação produzida com a intenção de enganar - desinformação -, ou o faz sem essa intenção - misinformação - para a sustentação de narrativas, dentre outras, de antivacina.
Em reportagem investigativa observando publicações científicas na televisão e em plataformas digitais, principalmente no Facebook,7 a jornalista científica Gammon (2020) trouxe demonstrações do modo pelo qual grupos antivacina vinham respondendo à COVID-19. Dentre os principais argumentos para a recusa da vacina, por ora em desenvolvimento, a autora observa a negação da existência e/ou do grau de contaminação e riscos que a COVID-19 pode trazer, a culpa atribuída à capacidade de transmissão de informação mediante tecnologias que supostamente supervalorizam a letalidade da doença, os lucros a serem alcançados com o desenvolvimento de vacina e, até mesmo, a sugestão da perigosa infecção voluntária pela COVID-19. Gammon (2020) aponta para a tendência de continuação do ceticismo em relação à COVID-19 e de resistência ou hesitação à vacina, mesmo nas condições delicadas e calamitosas da pandemia. Ainda assim, há indivíduos repensando suas opiniões a respeito de uma possível vacina para a doença e há aqueles que corroboram pensamentos conspiratórios e com exaltada desconfiança de governos.8
Narrativas dessa natureza são de interesse à ciência da informação e áreas afins à medida que informação, misinformação e desinformação correspondem a construtos enunciativos cuja produção e transmissão é facilitada no contexto da web e das tecnologias de informação e comunicação (TIC). Envolvem, ainda, instituições e institucionalidades responsáveis por práticas, comportamentos e processos de intermediação de conteúdos e por modos de acesso, utilização e apropriação de tais conteúdos.
Desde os estudos da comunicação científica que inauguraram de certa forma o campo, os estudiosos da ciência da informação têm se preocupado com os modos consensualizados de informação no contexto científico, os quais têm na validação um pressuposto ou éthos característico. Contudo, deixaram de lado um objeto tão fundamental quanto a própria informação, isto é, conhecer a produção da desinformação e da ignorância enquanto política e estratégias de determinados grupos9.
O objetivo do presente trabalho consiste em apresentar reflexões acerca da informação, da misinformação e da desinformação como meios empregados por movimentos antivacina, abordando, particularmente, a produção dos seus efeitos sociais em termos de materialidade e de institucionalidade de enunciados no âmbito de regimes de informação.
Para tanto, a revisão de literatura teve como foco os temas materialidade e institucionalidade de enunciados, assim como o problema de tais dimensões quando pensadas no contexto dos regimes de informação. Pressupõe-se que esse percurso aponta para caminhos relevantes com vistas à reflexão sobre a relação informação, misinformação, desinformação e movimentos antivacina.
Para as questões acerca da vacina (imunobiológicos) de doenças imunopreveníveis, da vacinação e dos movimentos antivacina, foram realizadas buscas no Google Scholar, Scielo, Science Direct e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), em junho de 2019 e janeiro de 2020, bem como consultas em legislações e websites governamentais brasileiros. Parte dessas buscas foi realizada antes da pandemia e, por esse motivo, as citações sobre a COVID-19 foram incluídas posteriormente à medida que o mencionado vírus depende da criação de vacina.
O texto está organizado em quatro seções centrais, além da introdução (seção 1) e das conclusões (seção 6), onde serão abordados os temas “dimensões materiais da (mis/des)informação” (seção 2), “regimes de informação e movimentos antivacina” (seção 3), “narrativas antivacina: vacinas, efeitos e mis/desinformação” (seção 4) e, por fim, “movimentos antivacina e Estado” (seção 5).
2 DIMENSÕES MATERIAIS DA (MIS/DES)INFORMAÇÃO
Para a análise sobre as narrativas antivacina, faz-se pertinente recorrer ao conceito de informação. Para abordar a informação, neste cenário, faz-se relevante ainda recorrer a modalidades conceituais que a diferencia tendo em vista o contexto de produção que atua com a intenção de enganar, naquilo que pode ser denominado de desinformação, ou quando o engano ocorre sem essa intencionalidade, algo expresso no termo misinformação. Para a abordagem desses conceitos serão considerados aspectos epistemológicos e políticos, que orientam ações e práticas.
À luz de tais aspectos, a presente seção apresenta reflexões a partir de estudos de Frohmann (2006) e Rabello (2019) sobre a fisicalidade, a materialidade e a institucionalidade de enunciados - ainda que a implicação destes dois últimos aspectos dos enunciados tenham sido de principal interesse para este estudo -, considerando a ação qualificada segundo alguma forma - informação -, e/ou a ação cuja deformação desqualifica seu conteúdo semântico, enquanto pseudoinformação ou misinformação (FLORIDI, 2005), ou cuja intenção de enganar a qualifica como desinformação (FALLIS, 2009; 2015).
A ideia de fisicalidade remete à existência de objetos físicos que podem servir de suportes analógicos ou digitais da informação, garantindo a sua existência no tempo e no espaço. Os objetos, em escalas das infraestruturas de informação, são os suportes cujas propriedades físicas abrangem “[...] a escala mais elementar ou referencial do registro [...] [ou recepcionam] configurações mais complexas [...].” (RABELLO, 2019, p. 13).
A materialidade está relacionada à permanência e força de enunciados que circulam socialmente (FROHMANN, 2008). Ao corroborar Frohmann (2006) sobre o caráter social, material e público da informação, Rabello (2019) entende a materialidade da informação como expressão da força de enunciados em contextos diversos, como é o caso daqueles suscitados a partir de redes sociais. Sua força pode condicionar, influenciar ou orientar ações e práticas dos sujeitos. Nessa direção, a materialidade pode ocorrer antes mesmo de a informação ser expressa em algum registro, ou seja, em algum suporte físico (RABELLO, 2019). Assim, a materialidade não é constituída apenas por sua existência física. A materialidade traz consigo antecedentes em enunciados socialmente referidos e referendados, a partir de determinadas institucionalidades.
A institucionalidade da informação, segundo Rabello (2019), pode ocorrer de modo mais ou menos formal, onde se configuram, por exemplo, redes referidas e/ou referendadas socialmente. No modo mais formal, observam-se figurações tradicionais de instituições no setor público ou privado as quais, dentre outros aspectos, estão referendadas de modo legal e formal, mediante normas e regras. No modo menos formal, a institucionalidade pode ocorrer, por exemplo, em contextos de redes sociais e/ou naqueles que envolvem, dentre outras expressões, arquivos pessoais, coleções como produto do colecionismo, bibliotecas ou museus comunitários e, no ciberespaço, em modos de interconexão entre sujeitos na web de superfície (ou visible web) ou na web profunda (invisible web).
Segundo esse raciocínio, os modos de institucionalidade mais ou menos formais podem compreender sistemas de armazenamento, intermediação e recuperação de produtos e serviços de informação em distintos contextos (RABELLO, 2019). Ao decorrer de vínculos mais ou menos formais, a institucionalidade pode ter como amálgama o viés de confirmação dos sujeitos,10 seja ele orientado pela informação (information) e/ou desinformação (disinformation) ou misinformação (misinformation), conceitos estes que podem se distinguir em termos semântico e/ou lógico.
Considerando a polissêmica da “informação semântica”, Floridi (2005, p. 367) observa um fenômeno comum: quando alguma coisa aparenta ser outra em virtude de situações de carência e/ou insuficiência de repertório semântico e, com efeito, a coisa aparente passa a receber denominação daquilo que parece ser. Para exemplificar, o autor aborda o caso de uma baleira ser confundida e nomeada como uma espécie de peixe. Esse fenômeno ilustra, para o autor, o caso de se denominar uma informação falsa como algo com carência de informação, ou misinformação (misinformation). Para tanto, recorre à abordagem de Dretske-Grice, segundo a qual os “[...] dados significativos e bem formados constituem informações semânticas” quando igualmente “[...] qualificados como contingentemente verdadeiros.” (FLORIDI, 2005, p.351, tradução nossa).
Tal abordagem auxilia Floridi a reconhecer as condições necessárias, mas insuficientes da definição padrão de semântica de informação. Nesta, os “[...] valores de verdade não sobrevêm à informação semântica” (FLORIDI, 2005, p. 351, tradução nossa), ainda que o valor de verdade deva ser considerado como aspecto a ser considerado para a dimensão semântica da informação. No caso, a informação falsa - ou misinformação - não se configura como informação semântica, mas se caracteriza como pseudoinformação. Portanto, sua confiabilidade é prejudicada.
Um conteúdo confiável retoma em alguma medida a um fato verificável de modo a deslindar uma representação razoável de uma ilusória, ficcional. A misinformação, nessa direção, pode ser pensada também no contexto da produção de conhecimento acadêmico. A misinformação se afirma ingenuamente respaldada na aceitação social de algo, supostamente, verificável racionalmente. Assim, somente uma aceitação social não é suficiente para a constituição semântica da informação; no caso da ciência ou de outros modos de episteme - que se apoiam em conteúdos semânticos que podem ser comprovados - a possibilidade de verificação ou o recurso a algo factual é determinante. Um delírio coletivo ou uma ficção aceita por uma maioria pode se passar por um suposto conteúdo confiável, mas a checagem é um critério essencial para demonstrar como delírios e ficções originam ou se convertem em misinformação e/ou em desinformação, à luz da intencionalidade envolvida.
A misinformação pode ser entendida como um erro honesto (como um acidente), ou por engano (equívoco). Para Fallis, um erro honesto, nesses termos, não deve ser concebido como desinformação (disinformation). É interessante observar que, segundo esse raciocínio, se a fonte de misinformação sabe que é mentira, trata-se de uma desinformação. Portanto, se no caso da misinformação não há a intenção de enganar, no caso da desinformação há essa intenção (FALLIS, 2009; 2015).
A desinformação, segundo Floridi (1996), decorre de ao menos três entendimentos: 1. Falta de objetividade, como no caso da propaganda; 2. Falta de completude, como em caso de damnatio memoriae; e 3. Falta de pluralismo, como no caso da censura.11 Eles podem se inter-relacionar, mas cada modo de desinformação pode prescindir de alguma das intencionalidades sugeridas, cujo efeito dependerá das condições de ignorância, coerção ou impotência na relação entre emissor e receptor.12 Este estudo, ainda que publicado na década de 1990, já apontava - com a crescente interatividade na web - para uma auto-desinformação ou desinformação personalizada, algo observado com o desenvolvimento, por exemplo, de tecnologias de inteligência artificial, de algoritmos e de manipulação de big data. A consideração de tais aspectos tem sido recorrente, por exemplo, no debate público sobre as plataformas digitais na web.
Fallis (2009) define desinformação como informação deliberadamente enganosa; com intenção de enganar; praticamente o mesmo que mentir, já que este ato “[...] muitas vezes conta como desinformar.” (p. 4). Esse sentido do termo se apresenta relativamente recente à medida que tem sido empregado nos últimos 50 anos. Ainda assim, desinformar é enganar. “Em outras palavras, ao contrário da mentira, desinformar é sempre sobre o engano em algum nível.” (p. 7). Além disso, a “[...] desinformação é a informação (ou seja, o material com conteúdo representacional) disseminada por alguém que está desinformando”, destinando a ser (ao menos em intenção) enganosa (p. 7, traduções nossas).
A desinformação não necessita proceder de quem a cria, e mesmo que tenha sido criada ou divulgada de forma inocente, ainda é desinformação. A informação não necessita ser precisa para ser desinformação, mas necessita ser enganosa. Às vezes, desinformar é mais restritivo que mentir. É possível mentir sem desinformar, o que ocorre quando a mentira não pretende enganar alguém. A mentira é contada como omissão da verdade e não para enganar uma pessoa. Por isso, a desinformação deve ter a intenção de enganar e não necessariamente a de divulgar informações falsas (FALLIS, 2009).
Segundo o raciocínio do autor, a desinformação às vezes não é nem verdade nem mentira. É uma informação que a pessoa quer que outra acredite por não se saber a verdade. É possível desinformar mesmo com a verdade ou com o que se acredita ser verdade. Nesse caso, o indivíduo mente acreditando ser verdade.
É necessário diferenciar sobre o que é e o que não é informação, porém, quando pensamos em termos de controvérsia - como é o caso das controvérsias científicas - informações não são exatamente precisas ou verdadeiras. Ao menos três aspectos são, segundo Fallis (2005), característicos para a definição da desinformação: 1. Desinformação é um tipo de informação; 2. No caso da recepção, são informações falsas que criarão falsas crenças, mesmo que a pessoa a que se destina a desinformação não acredite no que foi dito/compartilhado; 3. É informação não acidentalmente enganosa; não é enganosa por acaso, ponto que diferencia a desinformação de outros tipos de informações falsas ou enganosas.
Para que um emissor desinforme alguém, deve ser razoável que esse alguém conclua da desinformação o sentido segundo o qual o emissor gostaria que o receptor apreendesse do conteúdo (FALLIS, 2009). Nessa direção, diante do entendimento de que o conteúdo da informação precisa ter caráter enganoso, pessoas ou instituições13 espalham desinformação sem ter, necessariamente, intenção de enganar alguém, quando é o caso de se disseminar ingenuamente mensagens ou documentos falsificados, fotografias adulteradas, propaganda enganosa, mapas falsificados, propaganda governamental, manipulação de termos na Wikipédia, dentre outros exemplos (FALLIS, 2009; 2015). Com as TIC há facilidade para a manipulação de informações de modo enganoso. Com tais recursos não são necessárias técnicas aprofundadas para criar desinformação. Para fazê-lo é tão simples como contar uma mentira (FALLIS, 2015).
À luz de tais observações, a desinformação pode ser identificada ou estudada a partir das seguintes características: 1. A desinformação como atividade governamental ou militar; 2. Serviços de notícias, que disseminam desinformação; 3. Desinformação planejada, com algum propósito; 4. Nem sempre a desinformação surge da organização ou do indivíduo que pretende enganar; 5. É normalmente escrita ou verbal, mas também pode estar contida ou constituir imagens (fotografias adulteradas); 6. É distribuída de forma descontrolada por qualquer pessoa que tenha, por exemplo, assinatura em um jornal, TV ou com acesso a internet. Também pode ser destinada a organizações específicas.
Pode haver produção e circulação de desinformação em quantidade se seus resultados gerarem benefícios - políticos, econômicos, religiosos, dentre outros - em relação aos custos de não ser acreditado e/ou se o público-alvo da desinformação tiver muito mais probabilidade de ser crédulo do que cético (FALLIS, 2009; 2015). A desinformação pode ter consequências desastrosas e/ou perigosas, como em casos de política eleitoral, de investimentos financeiros, de saúde, dentre outras. São informações falsas que criarão falsas crenças.
Os fenômenos da misinformação e da desinformação são aqui abordados igualmente como constituintes e constituidores de materialidade e institucionalidade à medida que, da mesma maneira do que incide na informação semântica, dependem da força, permanência e da circulação de enunciados. A misinformação e a desinformação afetam e provocam ações e práticas. Nesse contexto, a materialidade se faz presente, ainda que o sentido do algo transmitido seja orientado por enganos, equívocos, sofismas, de modo honesto ou desonesto, com ou sem intenção de enganar, com carência de compromisso com alguma representação verdadeira de fatos ou com o produto de um exercício intelectual metódico.
Para produzir desinformação poderá haver a edição compromissada em mutilar ou corromper algum fato em favor de interesses ou motivações políticas, econômicas ou de convicções ou valores, dentre outros, de ordem moral, ideológica e religiosa. A edição jornalística, quando com interesses e motivações, pode transitar ou pendular no fio tênue entre informação e desinformação. A desinformação, portanto, circula socialmente, possui massa, peso e inércia, permanecendo em redes ou institucionalidades mais ou menos formais. Essa densidade é produzida socialmente, mas carece, por vezes, de postura cética ou crítica de quem recebe, utiliza e dissemina a desinformação, como ocorre com os antivaxxers.
Os produtos ou enunciados - em stricto sensu - da controvérsia científica podem abrir margem para serem confundidos com misinformação ou desinformação, já que caminham entre a dúvida radical e a certeza indiscutível (LATOUR, 2016). Em ciência, o enunciado certo “[...] não é senão a etapa final de uma controvérsia e, de maneira alguma, seu início.” (LATOUR, 2016, p. 80). Os “[...] argumentos discutíveis e os fatos indiscutíveis correspondem a etapas sucessivas na série de transformações que um enunciado deve sofrer para abrir os ‘prós’ e os ‘contras’.” (LATOUR, 2016, p. 82, grifos do autor). Nesse caso, o enunciado se enraíza da validação no hiato entre o como se chegar a ele (teoria e procedimentos metódicos) e a aceitação da autoridade (citações).
Parte-se do pressuposto de que os enunciados - não apenas em stricto, mas também em lato sensu, no mundo da vida - materializam-se em documentos, mediante algum suporte físico, em contextos institucionais, social, cultural, ético e político, algo que lhe confere peso, massa, força e permanência. Os documentos correspondem à materialidade pronunciada da informação (FROHMANN, 2008). Noutras palavras, depois do registro dos enunciados em algum suporte físico, a informação materializada e institucionalizada pode ser sintetizada na palavra “documento”, ou seja, naquilo que:
[...] representa algo e pode ser representado; [apresentando-se como] [...] uma expressão simbólica de poder/saber [...] [ou] um produto de ações e práticas sociais, sendo definido por institucionalidades da informação as quais têm o acesso e as condições de atuação condicionadas por perspectivas de materialidade. (RABELLO, 2019, p. 5).
Ante a tais pressupostos, como pensar o documento em registros (ou em fisicalidades) com alguma materialidade e institucionalidade, mas carente (parcial ou totalmente) de um referente ou com ou sem intencionalidade de enganar? Conforme observado, tal carência ou insuficiência de referente constitui, juntamente com motivações e elementos valorativos, aspectos do entendimento de misinformação. Quando há a intenção de enganar, o registro de algum conteúdo que desinforma se torna referente e, portanto, passa a representar e a documentar o próprio fenômeno da desinformação. Nesse sentido, a desinformação pode se apresentar como uma imagem distorcida, invertida ou “avatar” de algum referente criado ou idealizado. Essa metáfora se torna clara quando se pensa nos documentos, nos textos ou nos websites falsificados ou “clonados” para transmitir alguma impressão de autenticidade ou de veracidade de seus conteúdos.
Assim, a informação presente na desinformação (veiculada em alguma fonte ou suporte) evidencia a sua falsidade, ausência de verdade ou intenção de enganar. Ela não necessariamente documenta um referente de antemão, mas passa a documentar, posteriormente, o contexto, a motivação, os valores, enfim, os fenômenos relacionados que levaram a produção ou a utilização da desinformação. Configura-se como um modo de representação mediante o qual se tem acesso ao contexto em que os discursos são legitimados (RABELLO; RODRIGUES, 2019). Tal contexto é caro, como fenômeno, sobremaneira para investigações nos campos das ciências humanas e sociais.
No atual cenário das TIC, sujeitos são influenciados pelo viés de confirmação ou cognitivo - que pode motivar o engajamento a determinadas “bolhas” (bubbles) em redes sociais -, algo somado ao contexto ou emprego da inteligência artificial mediante algoritmos e robôs, por exemplo, em plataformas digitais, dentre outras intervenções de atores não humanos, em modulações que podem levar ao erro do raciocínio indutivo.
Portanto, existem, no contexto digital e em rede, implicações materiais e institucionais envolvendo as TIC, levando a questões e posicionamentos éticos e políticos. As implicações podem ser apreciadas considerando os movimentos antivacina à luz dos debates tangentes à economia política da informação, particularmente naquilo que tem sido denominado de debates sobre regimes de informação, encabeçados por autores como Frohmann (1995; 2008), Braman (2004) e González de Gómez (2003; 2012).
3 REGIMES DE INFORMAÇÃO E MOVIMENTOS ANTIVACINA
Os movimentos antivacina - especificamente no que concerne o fenômeno da aceitação de enunciados anticientíficos relacionados à imunobiológicos - podem ser analisados considerando as relações de atores humanos e não humanos em redes e infraestruturas sociotécnicas, conforme preconizada pela Teoria Ator-Rede (TAR, ou ANT, acrônimo em inglês a partir de Actor-Network Theory) proposta por Latour.
A TAR busca explicitar relações em rede e os possíveis vínculos sociotécnicos entre atores. Permite a escrita de cosmogramas em que se inserem as associações dos agentes e as controvérsias tocantes ao curso de ações que culminam em traduções. Noutras palavras, a TAR permite, em um contexto de redes,
[...] descrever as associações de conveniência, de coexistência, de oposição e de exclusão entre os seres humanos ou não humanos cujas condições de existência vão pouco a pouco se tornando explícitas no transcurso das provas submetidas pelas disputas. (LATOUR, 2016, p. 117).
Considerando as mencionadas relações e os possíveis vínculos sociotécnicos, os regimes de informação, para Frohmann (1995), são provenientes de políticas de informação e trazem uma perspectiva crítica à visão reducionista por vezes concebida pela biblioteconomia e ciência da informação, quando menosprezam o seu potencial mais amplo ao considerar a dimensão política apenas sob o desígnio governamental.
Braman (2004) conceitua regimes de informação como regimes globais de informação em que são consideradas outras abordagens políticas, como já apontava o escopo heterogêneo sugerido por Frohmann (1995). Os regimes envolveriam atores governamentais, não governamentais e emergentes agenciados em determinadas realidades e tecnologias, como é o caso daquelas observadas no contexto da web.
A amplitude que o conceito de regimes de informação sugere está relacionada, segundo Braman (2004), à facilidade de imersão de todas as dimensões e tipos de atividades sociais para além da manipulação das mídias de massa e do poder governamental. A autora complementa que, em sua definição de regime de informação, há a plasticidade e o distanciamento das nomeações tradicionais de políticas de informação.
Nessa direção, para González de Gómez (2003; 2012), regime de informação corresponde ao modo informacional dominante em uma formação social, em que são definidos os sujeitos, as organizações, as autoridades informacionais, as regras, os meios e os recursos de informação preferenciais, assim como seus modelos de organização, interação e distribuição. Nessa perspectiva, os regimes de informação possuem invariavelmente contextos sociais, culturais, éticos e políticos, permeados pelas TIC e correspondendo a infraestruturas e plataformas digitais, em diversas mídias e formatos.
Para a autora, há de se considerar, ainda, a justaposição de regimes de informação, suas capacidades e possibilidades econômicas que os fazem se constituir e se expressar numa espécie de devir incessante. Regimes de informação expressam, portanto, relações políticas e de poder tocantes à informação (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012).
Para Frohmann (1995), o poder é exercido por meio de relações sociais mediadas pela informação e em como sua dominância é alcançada e mantida por grupos específicos. Correspondem também às formas particulares de dominância de raça, classe, sexo e gênero implicados no exercício do poder sobre a informação (FROHMANN, 2008). Enlaçado em e sobre diversos atores, o poder advém, na maioria das vezes, de quem detém a informação.
Em suas formas de controle, a informação afeta atores humanos e não humanos ao ponto de modificar contextos sociais, sobretudo por meio da web, com sua rapidez e “leveza” em criar materialidade (FROHMANN, 2005; 2008). A esse respeito, o autor inclui os enunciados digitais em que a informação é materializada não apenas por seus meios institucionais, mas também por meios tecnológicos.
Nesse contexto, os regimes de informação se desdobram em conjuntos mais ou menos estáveis de redes formais e informais em que informações são geradas, organizadas e transferidas entre produtores, por vários meios, canais e organizações, e para destinatários ou receptores de informação distintos (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2003). Os regimes de informação nunca estão prontos, finalizados. Não possuem padrões homogêneos, apesar de disporem de características em cada formação que os singularizam.
Os movimentos antivacina podem se utilizar das características de regimes de informação vigentes de modo a fazer uma espécie de simulacro destes, como é o caso do uso de roupagens do regime de informação em ciência e tecnologia. Como os movimentos antivacina são um terreno fértil para a misinformação e a desinformação, a apropriação de características, quando orientados por conteúdos que enganam, ocorre de modo invertido, distorcido ou distinto.
Exemplos da apropriação de características do regime de informação em ciência e tecnologia podem ser observados com esforços para se veicular conteúdos com conceitos científicos (embora parciais ou descontextualizados), e relacionados a pesquisas para argumentar contra as vacinas (pesquisas com vieses); e/ou com a utilização de formatos nalguma medida similares aos utilizados pelos meios consolidados, valendo-se de recursos reconhecíveis em termos de comunicação científica, como periódicos, artigos, livros, dentre outros; e/ou com o emprego das TIC para a disseminação de conteúdos; e/ou com a organização de pessoas ou grupos aos moldes acadêmicos, com a criação e participação de reuniões, congressos, além de outras iniciativas com intuito de se valerem como verdadeiros, confiáveis. Ainda assim, os meios, talvez, mais eficazes são aqueles com a roupagem de difusão ou de vulgarização científica, à medida que expressam conteúdos pretensamente científicos mediante canais com linguagem de fácil acesso e assimilação.
Portanto, para ganhar adeptos, as pessoas ou os movimentos negacionistas da realidade ou da ciência - como é o caso dos movimentos antivacina - tendem a simular práticas utilizadas pelo regime de informação em curso e, por esta razão, é difícil aos olhos dos não especialistas obter subsídios contra-argumentativos para algum questionamento às premissas negacionistas produzidas e disseminadas - como é o caso das premissas antivacina - haja vista que os formatos e as situações de expressão são, por vezes, semelhantes aos dos meios formais.
Contudo, uma diferença marcante refere-se à capacidade de as narrativas se adequarem aos fatos. Do lado dos defensores dos imunossupressores imonobiológicos há a ciência, os testes e a generalização pautada em evidências científicas; do lado dos movimentos antivacina existe, por vezes, a crença, a pseudociência, as generalizações sem evidência confiável, a pseudoinformação, a desinformação. Em meio a essa quebra de braços, há, ainda, a opinião pública que nem sempre dispõe de instrumentos comprobatórios para uma diferenciação das narrativas expressas em enunciados enraizados ou flutuantes.
Atribui-se aos denominados movimentos antivacina a constituição - quando se valendo de um simulacro - de enunciados em institucionalidades menos formais. As redes sociotécnicas constituídas por tais movimentos, o seu potencial distributivo e de alcance razoável permite a materialidade de enunciados e de narrativas, por vezes, negacionistas à realidade e à ciência e/ou orientados pela misinformação e/ou pela desinformação.
4 NARRATIVAS ANTIVACINA: VACINAS, EFEITOS E MIS/DESINFORMAÇÃO
Os movimentos antivacina, assim como indivíduos antivaxxers, têm preocupado autoridades e especialistas em saúde pública no mundo todo. Ocorre que uma fatia da população mundial tem negado a confiabilidade das vacinas e conduzido discursos a respeito da vacinação como ação destrutiva para o corpo e para a saúde, como é possível verificar na hesitação vacinal de doenças como o sarampo (BRASIL, 2014; SUCCI, 2018). Em situações conflituosas dessa natureza, Foucault (1987, p. 29) observa que:
[...] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam [...] obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.
Nas campanhas de vacinação, relações políticas tocantes a ações do governo fazem emergir grupos contrários a uma espécie de mutilação ou agressão em que o corpo humano pode ser submetido se vacinado. São os efeitos adversos - colaterais -, que fomentam e preocupam grupos contrários à vacinação.
De acordo com a literatura científica consultada que versa a respeito dos efeitos adversos relacionados a vacinas, é certo que riscos existem e sempre existiram, porém, muitos dos danos supostamente causados que fundamentam argumentos de movimentos antivacina carecem de comprovação científica, ou são resgatados de modo descontextualizado ou anacrônico, como é o caso dos problemas com os eventos adversos pós-vacinação (EAPV) tiveram desdobramentos catastróficos.
Nos anos 30, várias crianças morreram pela aplicação de vacina BCG (bacilo de Calmette & Guérin, contra tuberculose) contaminada com o Mycobacterium tuberculosis. Em 1955, nos EUA, falhas no processo de fabricação da vacina contra a poliomielite com vírus inadequadamente inativo (vírus mortos) fizeram com que crianças contraíssem pólio, além de outros eventos graves decorridos da vacina contra a coqueluche na década de 1970 (MILLER et al., 2015; APS et al., 2018).
Na contramão dos EAPV, benefícios foram cientificamente provados quanto à eficácia dos imunobiológicos desde 1796, quando Edward Jenner descobriu a primeira vacina da história, que foi contra a varíola bovina, algo que permitiu a erradicação da doença em 1980 (APS et al., 2018). A erradicação de doenças como a rubéola, sarampo, poliomielite, difteria, coqueluche e outras, são exemplos da eficácia dos imunobiológicos utilizados. Contudo, movimentos antivacina que enaltecem somente os possíveis EAPV têm sido o principal motivo para que doenças, como o sarampo, tenham ressurgido recentemente como problema de saúde pública (SUCCI, 2018). Por outro lado, movimentos contraditórios, tanto favoráveis como desfavoráveis à vacinação, marcam a história de países como o Brasil. Em 1904, a chamada Revolta da vacina foi motivada por indivíduos infectados pela varíola e por cidadãos das camadas mais populares que recusavam a vacina por consistir de líquido de pústulas de vacas doentes e pelo receio de ficarem com feições bovinas (FIOCRUZ, 2005). Após a obrigatoriedade legitimada pelo governo, a população se manifestou nas ruas contra a coação que ocorreria já que o indivíduo não vacinado teria direitos negados e seria imunizado a força dentro de sua residência (FIOCRUZ, 2005).
Longe da possibilidade de feições bovinas, Miller et al. (2015) explicam que EAPV graves em imunobiológicos são raros, mas não inteiramente livres de acontecer (WALDMAN et al., 2011). As vacinas ou imunobiológicos são, quando comparados a outros fármacos, considerados seguros (WARD, 2000). Assim como diversos medicamentos, seu uso requer cuidados e efeitos adversos podem ocorrer. Fatores que ocasionam possíveis erros e EAPV podem ser provocados por propriedades inerentes à composição da vacina, como no manuseio, preparo e/ou aplicação inadequada (WALDMAN et al., 2011). Estes fatos devem ser considerados para a compreensão dos movimentos antivacina e para o conhecimento comum sobre o assunto. Indivíduos predispostos biologicamente, com hipersensibilidade e/ou histórico a reações anafiláticas ao leite, ao ovo ou a outros componentes, podem sofrer reações a vacinas (APS et al., 2018). Ademais, os EAPV podem ser ocasionados sobremaneira com a inobservância dos elementos extrínsecos à fabricação, à qualidade da vacina e a seus componentes.
Considerando possíveis problemas, foram desenvolvidos regulamentos, legislações, normas e uma pluralidade de documentos e órgãos que garantem a qualidade das vacinas. Os sistemas de vigilância de eventos pós-adversos pós-vacinação (SEAPV) existem em vários países e, no Brasil, o Programa Nacional de Imunização (PNI) desenvolvido em 1973 compõe o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) com um conjunto de outros seis sistemas regulamentadores na imunização do país (BRASIL, 2019a). Ao todo, são disponibilizadas 19 vacinas para mais de 20 doenças, cuja proteção inicia-se nos recém-nascidos e pode se estender por toda a vida adulta (BRASIL, 2019b). Waldman et al. (2011) esclarecem que o Brasil possui um dos mais bem-sucedidos programas de imunização do mundo e, com exceção de episódios dramáticos, como o retorno agressivo dos casos de sarampo (BRASIL, 2014; 2019b), o país costuma alcançar altos índices de aceitabilidade na aplicação de vacinas para doenças imunopreveníveis.
As ações de SEAPV ou do PNI possuem, entre outras responsabilidades, a de identificar problemas com lotes de imunobiológicos; alertar acerca de EAPV falsos e/ou verdadeiros, assim como os considerados graves; monitorar reações, fatores de risco e/ou de EAPV desconhecidos e informar e manter a confiança da população frente aos riscos fundados e infundados acerca dos processos de vacina e vacinação (WALDMAN et al., 2011). Os SEAPV são, portanto, uma forma de garantia no padrão de qualidade e na vigilância de possíveis EAPV relacionados aos imunobiológicos existentes em que cidadãos podem se informar a respeito de programas de imunização. Ademais, toda vacina passa por altos crivos de exigência quanto a sua eficácia antes de chegar à população.
Aps et al. (2018) explicam que as vacinas são rigorosamente testadas, inclusive por estudos clínicos, e monitoradas por seus fabricantes e por sistemas de saúde dos países em que são aplicadas. No Brasil, todos os lotes de imunobiológicos adquiridos pelo PNI são analisados pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) desde 1983, antes de serem aplicados na população (BRASIL, 2014). Segundo dados do INCQS, menos de 1% dos lotes dos imunobiológicos analisados pelo instituto apresentaram inconformidades (BRASIL, 2014). Segundo o Ministério da Saúde,
[...] nenhuma vacina está livre totalmente de provocar eventos adversos, porém os riscos de complicações graves causadas pelas vacinas são muito menores que os das doenças contra as quais elas protegem. (BRASIL, 2014).
Os riscos existem, mas, segundo Aps et al. (2018), o pior e mais grave deles é não se vacinar. Outro risco é propagar misinformação e/ou desinformação a respeito dos imunobiológicos, haja vista que as vacinas são testadas e aprovadas para um único objetivo: garantir que as pessoas não contraiam doenças na maioria das vezes já erradicadas e/ou controladas e que vivam com mais saúde. Sabe-se que pessoas imunizadas e sadias geram menos esforços humanos e financeiros para governos no que tange os gastos em saúde pública.
A vacinação de doenças imunopreveníveis tem histórico mundial de altas e baixas em relação à aderência da população (SUCCI, 2018; WALDMAN et al. 2011; WARD, 2000). Intitulada de hesitação vacinal (vaccine hesitancy), o conceito elaborado por MacDonald e o SAGE Working Groupon Vaccine Hesitancy (WG), em 2012, criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para discussões a respeito do movimento e suas influências, consiste no atraso na aceitação ou, ainda, na recusa da vacinação, mesmo que os imunobiológicos sejam gratuitos (MACDONALD, 2015), estejam disponíveis nos serviços públicos de saúde e possuam fácil acesso.
De modo geral, a hesitação vacinal é influenciada por aspectos históricos, políticos, culturais, sociais, econômicos, religiosos e de gênero, que se diversificam ao longo do tempo de acordo com a localização geográfica, o tipo de vacina, cobertura midiática, influências de líderes ou grupos sob as novas tecnologias e a percepção da população acerca dos ganhos exponenciais almejados e garantidos às indústrias farmacêuticas (MACDONALD, 2015) e até mesmo no interesse dos governos em extermínio massivo da população.
Fatores dominantes dos movimentos antivacina foram, de acordo com MacDonald (2015), denominados, em 2011, pelo WHO EURO Vaccine Communications Working Groupe, da OMS, de “modelo 3C”: confiança, complacência e conveniência. A confiança é refletida na competência dos órgãos responsáveis por programas vacinais e na segurança dos imunobiológicos. A complacência se refere à baixa percepção do indivíduo em contrair as doenças imunopreveníveis se a vacinação não ocorrer. Já a conveniência resulta na locomoção física e geográfica para a realização da vacinação e na capacidade de compreensão e acesso a informação em saúde (MACDONALD, 2015).
É um fato notório que indivíduos são contagiados por dúvidas em relação à necessidade e à eficácia da vacinação e por incertezas direcionadas aos riscos que os imunobiológicos podem causar. Muitas vezes, as dúvidas e a falta de informação ou excesso de misinformação e de desinformação são os motivos para não vacinar. Desse modo, os movimentos antivacina se sustentam na ineficácia da aplicação do modelo e no não desenvolvimento da confiança, complacência e conveniência em relação à vacinação.
As fontes de informação online da sobre saúde com baixa qualidade estão propensas a serem tomadas como fontes confiáveis por aqueles sujeitos mais “[...] vulneráveis aos efeitos do mundo real de misinformação e desinformação [...]”. Eles, além disso, “[...] são mais propensos a espalhar esse tipo de informações imprecisas” (GHEZZI et al., 2020, tradução nossa).
Diversas justificativas podem ocasionar a hesitação vacinal e, consequentemente, os movimentos antivacina. Muitos países tornaram a vacinação de doenças imunopreveníveis obrigatória e isso é visto como um tipo de coerção e, em muitos casos, assimilado como uma coação direta sobre os indivíduos uma vez que a vacinação é considerada um tipo de violência impingida sobre o corpo.
Foucault (1987, p.123, grifos nosso) já demonstrava que “[...] castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade - nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo [...]”. Esse discurso ainda é muito comum na compreensão dos movimentos antivacina. As punições legais e até mesmo a vacinação compulsória parecem ter resultados contrários ao esperado. Levi (2013) explica que muitos países, como a Inglaterra, no final do século XIX tiveram o número de vacinados ampliado quando deixou de tornar a vacina da varíola obrigatória. Na região do Vênitona, Itália, em 2008 a mesma situação ocorreu quando a obrigatoriedade de quatro vacinas, em todo o país, foi anulada e nenhuma diminuição na vacinação foi registrada naquele local (LEVI, 2013).
No Brasil, a Lei nº 6.259/75 (Lei de Vigilância Epidemiológica e Programa de Imunizações) utiliza a palavra obrigatória para indicar a ação compulsória em vacinar e demonstra, por meio do Art 5º, que “O cumprimento da obrigatoriedade das vacinações será comprovado através de Atestado de Vacinação.” (BRASIL, 1975, grifo nosso). Também no Brasil, a Lei 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - informa, inclusive, que o ato de não vacinar crianças pode ocasionar em multas para pais ou responsáveis. Não raramente, indivíduos adultos ou crianças necessitam comprovar situação imunológica para adquirirem ou participarem de serviços públicos. É o que acontece em contratações em empresas públicas ou privadas ou em matrículas em instituições escolares.
Embora altos níveis de hesitação levem à baixa demanda por vacina, baixos níveis de hesitação não significam necessariamente alta demanda por vacina, explica MacDonald (2015). Isso ocorre porque um indivíduo ou comunidade pode aceitar a vacinação totalmente sem hesitação, mas não exigir vacinas ou uma vacina em específico e/ou, simplesmente, não vacinar.
Aceitar, atrasar ou rejeitar a vacinação são questões complexas que grupos de movimentos antivacina se apoderam para que seus discursos tenham maior alcance. Cidadãos providos de certezas contra a vacinação e de ideias nocivas em relação às vacinas e aos raros efeitos adversos, não se contentam e divulgam, propagam e difundem conteúdos que crêem ser verídico ou exato.
Esses cidadãos, guarnecidos de discursos e dados quase sempre não científicos ou pseudocientíficos, utilizam da web e das TIC para comunicar suas “descobertas” e pleitear mais seguidores. Materializam e institucionalizam a misinformação ou a desinformação em documentos que simulam tipologias oficiais - tais como artigos, revistas, livros, matérias, relatos de experiências, documentários e entrevistas - com enunciados que fortalecem movimentos antivacina. Desse modo, utilizam-se dos recursos operacionais de regimes de informação vigentes mesmo que para defraudá-los, de modo intencional ou não intencional. As ações dos movimentos antivacina têm por vezes atingido seus objetivos que se refletem em resultados negativos ao Estado e à ciência, como é o caso do retorno de doenças imunopreveníveis então erradicadas no mundo e no Brasil, como é o caso do sarampo.
De 2013 a 2015, por exemplo, 1.310 casos de sarampo foram registrados no Ceará e em Pernambuco. Em 2018, 1.510 casos foram confirmados em Roraima e no Amazonas e também no estado de São Paulo. Após eventos ocasionados, o Vacinômetro (BRASIL, 2020) do Ministério da Saúde acusa que na campanha de 2018, 97,89% da população foi vacinada contra o sarampo e a poliomielite. Em 13 de dezembro de 2019, o Ministério da Saúde anunciou que 99,4% das crianças de um ano de idade estão vacinadas no país, o que corresponde ao melhor resultado vacinal dos últimos cinco anos (BRASIL, 2019c).
Entretanto, oito estados e o Distrito Federal não atingiram a meta mínima, que é de 95%. O bom desempenho é decorrente da intensificação de ações de vacinação em todo o país por meio das campanhas nacionais de vacinação contra o sarampo, já que o país tem vivido novos surtos da doença. Ainda assim, a doença circula em 17 estados brasileiros, com um total de 3.565 casos entre 1º de setembro a 23 de novembro de 2019 (BRASIL, 2019c). São dados alarmantes já que em 18 de julho de 2019 o Brasil tinha apenas 561 casos de sarampo confirmados em sete estados. Destes, 2.702 casos estão concentrados em 147 municípios do estado de São Paulo, o mais rico da federação. Também foram confirmados 15 óbitos: seis em menores de um ano de idade, dois em crianças de um ano de idade e sete em adultos maiores de 20 anos (BRASIL, 2019c). Os dados são preocupantes para um país que tinha controle sobre a doença desde 2000 e para as Américas, que haviam eliminado o sarampo desde 2002 (APS et al., 2018). Neste avanço da doença não se sabe se as campanhas vacinais têm sido insuficientes para convencer os cidadãos a se vacinarem ou se os movimentos antivacina têm ganhado mais adeptos.
Os eventos, boatos, mitos e discursos antivacina têm tomado tamanha proporção que no Brasil o Ministério da Saúde e órgãos aliados como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a OMS têm elaborado e divulgado vídeos informativos e diversos outros conteúdos, principalmente na internet e em aplicativos móveis, para informar a população acerca dos riscos de não vacinar.
A tentativa da OMS, assim como do Ministério da Saúde e outros órgãos de saúde, é tentar dissuadir os movimentos antivacina e a proliferação de desinformação, correntemente associada às fake news.14 Diante disso, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2019b, não paginado) elaborou uma espécie de coletânea dos principais enunciados antivacina com maior impacto na internet e em redes sociais, no sentido de desmitificá-los e demonstrar como tais afirmações ou enunciados são infundados:
1 - “Vacinas causam autismo.” Não. Em 1998, o artigo de Wakefield publicado na The Lancet informava que a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) provocava autismo (SUCCI, 2018). No entanto, este estudo foi refutado por conter informações falsas e destituído cientificamente por ordem judicial (APS et al., 2018; BRASIL, 2019b).
2 - “Uma melhor higiene e saneamento farão as doenças desaparecerem - vacinas não são necessárias.” Não necessariamente, pois as doenças que podem ser prevenidas por vacinas retornarão caso os programas de imunização sejam interrompidos. Uma boa higiene não garante eliminar o espalhamento de infecções (BRASIL, 2019b).
3 - “As vacinas têm vários efeitos colaterais prejudiciais e de longo prazo que ainda são desconhecidos. A vacinação pode ser até fatal.” As vacinas são muito seguras e a maioria dos riscos e reações são inofensivos e temporários, como uma febre baixa (BRASIL, 2019b).
4 - “A vacina combinada contra a difteria, tétano e coqueluche e a vacina contra a poliomielite causam a síndrome da morte súbita infantil.” Não há relação causal entre a administração de vacinas e a Síndrome da Morte Súbita Infantil (SMSI), também conhecida como síndrome da morte súbita do lactente (BRASIL, 2019b, não paginado).
5 - “As doenças evitáveis por vacinas estão quase erradicadas em meu país, por isso não há razão para me vacinar.” Embora muitas doenças imunopreveníveis tenham se tornado raras em muitos países, seus agentes causadores continuam a circular em algumas partes do mundo. Indivíduos não vacinados e em viagem a outros países podem, por exemplo, transportar vírus de doenças cuja região pertencente não havia indícios para isso e, assim, despertar reações epidêmicas (BRASIL, 2014).
6 - “Doenças infantis evitáveis por vacinas são apenas infelizes fatos da vida.” Não são; enfermidades como sarampo, caxumba e rubéola são doenças existentes e graves que podem levar a complicações severas em crianças e adultos como pneumonia, encefalite, cegueira, e a morte (BRASIL, 2019b).
7 - “Aplicar mais de uma vacina ao mesmo tempo em uma criança pode aumentar o risco de eventos adversos prejudiciais, que podem sobrecarregar seu sistema imunológico.” Segundo o Ministério da Saúde, evidências científicas demonstram que a aplicação de várias vacinas ao mesmo tempo não causa aumento de EAPV. Além do mais, uma criança é exposta a muito mais antígenos (moléculas que formam anticorpos) em um resfriado comum ou dor de garganta do que em vacinas (BRASIL, 2019b).
8 - “As vacinas contêm mercúrio, que é perigoso.” O mercúrio empregado em alguns tipos de vacina é resultante do composto orgânico, tiomersal. No entanto, não existe evidência que desponte que a quantidade de tiomersal utilizada nas vacinas represente riscos para a saúde (BRASIL, 2019b). Igualmente, Aps et al. (2018) explicam que a quantidade de mercúrio ingerida diariamente na alimentação é muito maior que a dose utilizada em vacinas.
A materialidade dos enunciados documenta e é documentada pelo Estado como prova da ação de misinformação ou de desinformação promovida pelos movimentos antivacina ou pelos indivíduos antivaxxers, que difundem tais enunciados. A materialidade da misinformação e da desinformação - assim como a materialidade da informação - tem como característica circular e/ou gerar efeitos sociais, ganhando massa, peso e inércia, numa força e permanência de enunciados que - no caso de movimentos ou culturas anti-intelectualistas, negacionistas ou anti-científicas, naturalistas e/ou relativistas - desafiam o Estado, a ciência, a opinião pública e as instituições com o compromisso com a informação, em suma, desafiam pressupostos caros aos regimes de informação vigentes.
5 MOVIMENTOS ANTIVACINA E ESTADO
Os discursos antivacina apresentam enunciados que aparentemente encontram referência ao regime de informação em ciência e tecnologia vigente, velando a misinformação ou a desinformação junto à opinião pública. Na falta de empoderamento informacional, indivíduos se vêem protegidos por argumentos anticientíficos contra a cobertura vacinal. A carência de adesão voluntária aos programas de imunização tem representado o retorno de doenças antes erradicadas e a falta de acurácia de outras enfermidades existentes.
Pautados principalmente por riscos possíveis da imunização, estes grupos ou indivíduos criam frentes de oposição à vacinação, à ciência e a suas comprovações. Pode-se atribuir parte do apelo à liberdade de escolha a uma premissa transplantada de princípios liberais, com alcance na lógica do mercado, algo que faz algum sentido prático àquele sujeito que deseja ter o poder de decisão em todas as esferas da vida, tanto no que se refere ao consumo quanto às decisões daquilo que se refere ao seu próprio corpo.
As ideias associadas ao coletivo e à relevância de ações para a comunidade são deixadas de lado, enquanto o comportamento individualista - analogamente associado ao consumismo - toma lugar. A vaga ideia de ser um sujeito consciente de si e possuir poder para decidir sobre quaisquer assuntos que lhe digam respeito nutre a recusa ao conhecimento científico e às ações do Estado, por exemplo, para a imunização.
Acrescenta-se, ademais, o reforço dessas atitudes de recusa ao conhecimento científico por autoridades públicas - por vezes ocupando cargos eletivos - ou por personalidades com espaço na opinião pública. Observa-se, em várias regiões do mundo, o papel fundamental desses sujeitos para reprodução da ignorância, sobremaneira onde o nível de competência científica, o grau de instrução formal e/ou de exercício da cidadania são pouco elevados, ou mesmo onde os meios de comunicação de massa e/ou algoritmos em plataformas digitais são decisivos para conduzir e/ou modular a opinião pública. A pandemia provocada pela COVID-19 revelou até onde um agente de Estado, mesmo eleito, é capaz de ir para naturalizar a ignorância e dar positividade e ares de liberdade a atitudes anticientíficas e anti-intelectuais.15
González de Gómez (2012) salienta que a informação-poder é uma das atribuições presentes em regimes de informação, principalmente nas relações alavancadas sob as tecnologias digitais e ubíquas. Nas TIC, os regimes de informação encontram parte da materialidade da informação como um substrato de poder, também pronunciada nos documentos em seu caráter social e público (FROHMANN, 2008) e que alcança os atores, suas ações e práticas em distintos contextos institucionais (RABELLO, 2019).
Foucault (1987, p. 178) observa que o poder e o saber “[...] estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.” Todo saber pressupõe, assim, relações de poder e esta condição é observável em enunciados. Os discursos antivacina são, nalguma medida, institucionalizados em redes distribuídas, constituindo aquilo que se denominam movimentos antivacina.
Tais movimentos organizam-se produzindo, disseminando e utilizando informações duvidosas, misinformação ou desinformação. Ao produzirem uma narrativa que simula àquelas em adequação o regime de informação vigente, tendem a recusar o poder-saber instituído. Tendem, ainda, a desconsiderar o saber científico e o poder estatal, contestando, publicamente, a imunização mediante vacinas.
O Estado brasileiro, mediante o Ministério da Saúde e em relação com outros organismos, como a OMS e outras entidades, corroboram as prerrogativas benéficas das vacinas para a saúde da população. Se as vacinas são direito de todos, indagações às vacinas não devem ser cerceadas, ainda que devam estar respaldadas pelo conhecimento científico. O problema colocado pelos movimentos antivacina toca aos questionamentos não qualificados defendidos com base na misinformação ou na desinformação.
Braman (2004) explica como o poder informacional em regimes se relaciona com outros, como é o caso dos poderes instrumental, estrutural e simbólico.
No poder instrumental, a ação é realizada mediante a utilização de máquinas, técnicas e tecnologias para interferir no meio. Nos movimentos antivacina, esta ação pode ser verificada por intermédio do controle executado pelo Estado mediante sistemas de informação ou procedimentos que sistematizam, por exemplo, a aceitabilidade da vacinação de cada indivíduo.
No poder estrutural, a ação pode ocorrer no mundo social por meio de regras e instituições. Neste caso, as leis, regulamentos e outros dispositivos legais e morais impostos fazem com que os governos exerçam poder de coação sobre indivíduos e na informação coletada em coberturas vacinais. Os dados estatísticos, segundo observa Braman (2004), são uma forma de manipulação, controle e de tomada de decisão acerca de classes sociais. Podem-se observar, nessa esfera, as coberturas vacinais em modelos estatísticos computadorizados.
No poder simbólico, a ação é decorrente do mundo material, social e simbólico, por meio de palavras, ideias e imagens (BRAMAN, 2004). Uma das formas mais comuns deste tipo de intervenção ocorre com a veiculação de propagandas. Em campanhas de vacina, os governos realizam publicidade na televisão, rádio e em mídias diversas. Mais que isso, para conduzir a população à vacinação, governos utilizam de perfis em redes sociais e em plataformas para ampliar o seu alcance.
Em linhas gerais, Braman (2004) entende o poder informacional como um modo de controle. Nesse contexto, faz-se relevante recordar a seguinte afirmação de Foucault (1987, p. 187): “Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornar-se sábio.” Fato é que as relações de controle e poder em regimes de informação têm sido intercambiadas entre Estado e população, especialmente mediante enunciados digitais.
Os discursos advindos de movimentos antivacina no Brasil têm tido amplo alcance e, por esse motivo, o Ministério da Saúde lançou campanha contra a desinformação, ou contra as fake news, em sua homepage. Um canal de atendimento aos usuários foi desenvolvido e denúncias podem ser realizadas pelo cidadão (BRASIL, 2019b). Entretanto, no canal não há um serviço para a resolução de dúvidas ou de orientação, mas somente permite denúncias de sentenças que o cidadão julga ser fake news. A situação suscita questionamentos, considerando a mão dupla da relação de poder entre Estado e população.
O Estado por vezes deixa de informar, com respaldo na ciência, a parcela da população que busca por orientação; acontece, então, uma inversão nas condições de controle. Indivíduos ou grupos organizados da sociedade civil passam, então, a assumir as rédeas para a qualificação daquilo que julgam de confiança; já o Estado, por outros caminhos, busca recuperar o controle perdido. Se o poder produz efeitos, os “corpos dóceis”, no âmbito, por exemplo, dos movimentos antivacina, podem encontrar na misinformação e na desinformação um modo de resistência ante o poder do Estado. Observam-se, assim, as forças em disputa entre atores e seus enunciados.
6 CONCLUSÕES
O presente estudo objetivou refletir e apresentar um panorama da temática das vacinas e movimentos antivacina, considerando a materialidade e a institucionalidade de enunciados - em termos de informação, desinformação e/ou misinformação - no âmbito de regimes de informação. Ocorre que, na emergência de movimentos negacionistas à realidade e/ou à ciência protagonizados junto à sociedade, doenças imunopreveníveis, antes erradicadas, têm reaparecido de modo a acometer novas vítimas. É o que se pode constatar, por exemplo, com o reaparecimento do sarampo no Brasil.
Tanto misinformação (pseudoinformação, imprecisão ou equívoco não intencional) como desinformação (com a intenção de enganar) ocupam espaço na disputa de narrativas a favor ou contrárias às vacinas. A questão envolvente aos denominados movimentos negacionistas da ciência - como é o caso dos movimentos antivacina - está para além da dimensão da crença pura e simples nos enunciados. A materialidade destes enunciados como informação, desinformação e/ou misinformação tem na intencionalidade da mensagem algo definidor da contingência semântica do conteúdo comunicado, já que nem sempre existe a intenção deliberada de enganar e, quando o há, o conteúdo nem sempre cumpre com o objetivo de manipulação. Ainda assim, nas redes sociais, sobretudo nas digitais, indivíduos têm aceitado misinformação e/ou desinformação acerca das vacinas e seus riscos, acolhendo enunciados sem questioná-los ou sem lançar mão de algum posicionamento cético.
Há, portanto, a tendência de a misinformação ou a desinformação serem empregadas como agentes impulsionadores de movimentos antivacina. A despeito do interesse pela busca por informações confiáveis sobre vacinas, o desinteresse ou a falta de preparo para obtê-las têm se apresentado como um desafio para o Estado, para a ciência, para as entidades envolvidas aos temas de saúde pública ou para os meios de comunicação e instituições de intermediação, comprometidos com a informação.
A propagação de conteúdos enganosos pode ser empregada como simulacro da estrutura do regime de informação vigente e isso tem se configurado como um problema, pois o sujeito não especialista pode apresentar dificuldade para distinguir as intenções por trás das mensagens ou se constituem de pseudoinformação. Esse sujeito, em muitos casos, desconhece fontes de informação científicas ou carece de meios ou recursos para auxiliá-lo a identificar informações confiáveis. Soma-se a tais dificuldades o viés de confirmação capitalizado pelos movimentos antivacina, quando recorrem à articulação de interesses aos sistemas de crenças, por vezes empregados como um modo de resistência e/ou confrontação ao controle dos corpos encabeçado pelo Estado.
Ademais, as controvérsias científicas associadas à ideia generalista de “a vacina” podem legitimar o discurso dos movimentos antivacina. A existência de efeitos adversos de alguma vacina e que pode levar a alguma controvérsia pode ser utilizada de forma descontextualizada pelos movimentos antivacina para corroborar a tese de que “toda vacina é maléfica”. Noutro sentido, a defesa inconteste “da vacina” realizada pela ciência pode fragilizar o seu discurso ao, por vezes, não esclarecer à opinião pública de que as controvérsias fazem parte do mundo científico. Antes da defesa intransigente da vacina, a academia, no contexto de políticas públicas, deve promover a alfabetização científica e a melhoria dos níveis de educação. Com isso, se conhecerá o papel científico das controvérsias e se identificará, apesar delas, o que em ciência é contingencialmente consensual, base para qualquer formação de crença e decisão esclarecida.
A ciência e, especialmente, os campos do conhecimento que têm a informação como um de seus interesses privilegiados de estudo ou de atuação profissional - como é o caso da ciência da informação - têm o desafio de trabalhar com a produção e a divulgação de pesquisas de modo a auxiliar no esclarecimento da opinião pública acerca dos benefícios ou cuidados a serem tomados em relação às vacinas, fazendo frente à misinformação ou à desinformação utilizada por movimentos anticientíficos.
Além do compromisso de esclarecer a população sobre as vacinas e o papel da ciência na sociedade, a ciência da informação deve, também, voltar-se ao estudo da ignorância - ou agnotologia -, pois no Brasil, similar a outros países, há muitos elementos para se debater o papel das políticas públicas e de seus agentes na promoção da ignorância. É importante conhecer porque pessoas aceitam com mais facilidade certas premissas, qual o papel das emoções na conformação das atitudes, como personalidades e agentes de Estado utilizam a exposição pública para desvalorizar o conhecimento científico, quais são as estratégias de disseminação de conteúdos ilegítimos, que variáveis psicológicas são utilizadas pelos algoritmos para o convencimento e a dissuasão de engajamentos.
Por fim, os movimentos antivacina - quando orientados pela desinformação ou pela pseudoinformação - podem recorrer à imagem invertida ou distorcida do regime de informação em curso. Conquanto tais movimentos se valham de crenças, desconhecimento, pressupostos políticos, de algum interesse econômico e de uma parcela de práticas mimetizadas, poder-se-ia dizer que a propagação de desinformação seguindo alguma organização ou intencionalidade constitui ou é constituída de um “regime de desinformação”? Ou seria, simplesmente, um efeito adverso - e, portanto, parte - do regime em curso mediante o qual se estabelece a situação de diferenciação ou de caracterização?
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Notas
Autor notes
Declaração de interesses