Artigo Original

POR UMA PROMOÇÃO DEMOCRÁTICA E DIALÓGICA DA LEITURA

For a democratic and dialogic promotion of reading

Hélio Márcio Pajeú
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Wérleson Alexandre de Lima Santos
Colégio Saber Viver, Brasil

POR UMA PROMOÇÃO DEMOCRÁTICA E DIALÓGICA DA LEITURA

Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, vol. 26, e78364, 2021

Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação - Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 21 Novembro 2021

Aprovação: 25 Maio 2021

RESUMO

Objetivo: O artigo tem como intuito traçar uma discussão teórica sobre os caminhos e ideais necessários para uma democratização dialógica da leitura e para sua promoção enquanto um direito humano.

Método: As reflexões são tecidas em diálogo com textos de autores que tratam da leitura como ato social, ideológico e político, por meio de uma revisão bibliográfica.

Resultado: É visto como as condições sociais colaboram para o desenvolvimento das práticas de leitura, sua concepção dentro de um orbe ideológico, bem como seu poder político como ferramenta de conscientização social e como instrumento de ameaça a manutenção hegemônica do poder.

Conclusões: É necessária uma defesa a promoção da leitura arquitetada na dialogia, como fundamento de constituição da cidadania e fortalecimento da democracia. Isso apresenta-se como dever de todo profissional mediador de cultura e informação, como forma de garantir a plenitude do exercício de direitos pelo povo.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura+ Democracia+ Ideologia+ Promoção da leitura+ Direitos humanos.

ABSTRACT

Objective: The paper intends to draw a theoretical discussion about the paths and ideals needed for a dialogic democratization of reading and for its promotion as a human right.

Methods: The discussions are drawn in dialogue with texts of authors who deal with reading as a social, ideological and political act, by using literature review.

Results: It is seen how social conditions contribute to the development of reading practices, their conception within an ideological orb, as well as their political power as a tool for social awereness and as an instrument of threat for the hegemonic maintenance of power.

Conclusions: It is needed a defense of the promotion of reading built within the dialogy, as a basis for the constitution of citizenship and strengthening of democracy. This shows up as a duty for each one that presents as culture and information mediatior, as a way to ensure the full exercise of rights by the people.

KEYWORDS: Reading, Democracy, Ideology, Reading promotion, Human rights.

1 INTRODUÇÃO

Há uma disparidade no que tange a definição do que seja leitura na contemporaneidade, é possível encontrarmos sujeitos enunciando sobre o tema e seus objetos de maneiras bem distintas. Se procurarmos em um dicionário, por exemplo, seu significado aparece como aquele mais elementar, como “ação de ler; ato de decifrar o conteúdo escrito de algo. Ação de compreender um texto escrito” (DICIO, 2018). Não é espantosa, contudo, tal definição, visto que ela é algo, extremamente, comum de se deparar ao pensarmos em primeiro momento sobre o que seria a “leitura”.

De acordo com Britto (2012), chamamos de leitura diversas ações que são, em sua finalidade, bastante distintas. Se pegarmos uma bula com o objetivo de sabermos quais efeitos aquele remédio terá em nosso corpo, estamos realizando uma leitura, mas uma leitura tipicamente informativa, que não é a mesma que a leitura de um romance do Stephen King. A leitura da bula pode ser tida como uma simples decodificação dos signos linguísticos, na qual compreendemos o que está escrito e processamos aquela informação, sem trazer grandes reflexões acerca do texto e seu conteúdo e sem estabelecer algum tipo de relação mais profunda com o mesmo (algo bem consonante com a definição de dicionário). Esse mesmo tipo de leitura informativa ou decodificadora pode ser feita ao lermos placas de trânsito, panfletos, propagandas eleitorais, anúncios de vitrine etc. Contudo, falar de ler dando início pela palavra escrita é ignorar o fato de que nenhum de nós nasce, efetivamente, sabendo fazê-lo; antes mesmo de sabermos unir sílabas e compreender o que elas representam, nós realizamos uma leitura primordial para a relação com a leitura do escrito: a leitura de mundo.

Ler o mundo é sentir, observar e conhecer o contexto no qual somos inseridos; é viver os detalhes e observar a realidade, assimilando-a mesmo sem ter consciência disso. Quando olhamos um rio em seu curso, ao conhecer a palavra “rio”, saberemos do que se trata, pois já teremos o lido no mundo dado que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, como tão brilhantemente nos alerta Paulo Freire (2008, p. 11). Para compreender um texto (palavra), é preciso antes compreender o mundo no qual estamos inseridos, pois a leitura do mundo auxilia na constituição da identidade e da subjetividade de todo ser humano.

A palavra surge a partir da vivência dos sujeitos em seus mundos, e a vivência nesse mundo abrilhanta e completa a vivência na palavra, bem como as percepções desse mundo ajudam nas percepções do texto; e o texto, por sua vez, nada mais é que um fragmento de um mundo e de uma realidade, e tal relação não pode ser desconstruída. Ao ler e escrever, o leitor revive seu passado e reescreve dentro de si o que lê a partir do momento em que a experiência de leitura se encontra com seu acervo de memória.

Desse modo, o texto é o elemento de materialização da palavra, tomada como discurso, que clareia as esferas da cultura como o lugar de interação entre sujeitos, lugar de consolidação das relações cotidianas sólidas, que representam a vida repleta de sentidos, de tons emotivo-volitivos diversos, dos sujeitos verdadeiramente humanos que falam e respondem aos seus atos num continuum dialógico. Nesse sentido a leitura é traiçoeira e fantástica ao mesmo tempo, pois ela revela as esferas culturais de interação do homem com seu outro por meio da palavra. “Se nada esperamos da palavra, se sabemos de antemão tudo quanto ela pode dizer, esta se separa do diálogo e se coisifica” (BAKHTIN, 2003, p. 351). Esses fenômenos culturais têm na relação entre enunciados e signos ideológicos o alento que move essa interação dialógica que consolida a silhueta do que se denomina texto e leitura na perspectiva bakhtiniana.

Para se chegar a essas interações que formam o contexto cultural da leitura pela palavra-mundo materializada em distintos textos, é, antes de tudo,

necessário abandonar a semiótica do código e considerar tal relação em termos dialógicos e de recíproca interpretação, como uma relação de textos reciprocamente outros, e por isso dialogantes entre eles, e capazes de contribuir cada um para a compreensão do outro, mais do que em termos de língua coletiva unitária e de parole: os textos do contexto unitário da cultura não têm entre eles uma relação lógica, mesmo no sentido mais amplo da palavra, mas uma relação dialógica (PONZIO, 2013, p. 131).

Para Petit (2009), o processo de leitura é um processo de apropriação dos textos, no qual o leitor toma posse das palavras escritas e estabelece uma conexão com elas, introduzindo no significado dos escritos, suas lembranças e anseios. A autora vem chamar isso de alquimia da recepção. Ler é um elemento social que depende de toda a carga de vivência do leitor para que possa ocorrer, uma vez que não há como removê-lo de seu contexto, mesmo que ele não esteja diretamente inserido nele no momento em que a leitura está sendo realizada, e isso vai implicar no processo de compreensão do texto e na relação que será estabelecida por ambos. “Se é fato que o leitor, enquanto ser histórico, constrói os sentidos que lê, é fato também que sua leitura estará sempre constrangida pelas condições - também históricas - em que se dá, das quais uma delas é o texto” (BARZOTTO; BRITTO, 1998).

Os gostos de leitura são moldados conforme o tempo e conforme a história de cada sujeito em sua individualidade no mundo, logo, cada pessoa terá uma compreensão diferente sobre o mesmo texto; mesmo que suas opiniões e valores sejam semelhantes, as relações de cada um com um único texto nunca serão idênticas. Bakhtin (2010, p. 102) ao tratar das questões de unicidade dos sujeitos, acredita que “experienciar um objeto significa possuí-lo como unidade real, mas tal unicidade do objeto e do mundo pressupõe a correlação com a própria singularidade do ser” para que a partir dessa vivência interativa o sujeito possa enunciar palavras e contrapalavras ao seu respeito, possa compreender. A compreensão se dá por meio de um diálogo entre quem lê e o que é lido. O escritor do texto expõe uma realidade em forma de palavras e a põe no mundo, e o leitor, emergido de sua realidade única, irá se deparar com esse mesmo texto e irá pôr em confronto sua realidade e a realidade que deu luz ao objeto; desse confronto irão surgir sentidos que podem ou não ser os mesmos pretendidos no momento de criação inicial do escrito, e assim uma leitura foi realizada. Em apoio a isso, Petit (2009) nos diz que:

O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca onde isso poderá leva-lo. (PETIT, 2009, p.28)

A relação entre texto e leitor é uma relação de diálogo, na qual ambos se abrem, se expõem e permitem se conhecer e juntos trabalhar em uma compreensão. A leitura é, portanto, um instrumento humano de reflexão que carrega o seu tom. Para Bakhtin (2010, p. 91) qualquer interação humana abarca e permeia o existir-evento singular e único, e considerando a leitura não seria diferente, posto que se trate de uma ação humana que

não é psíquica passiva, mas uma espécie de orientação imperativa da consciência, orientação moralmente válida e responsavelmente ativa. Trata-se de um movimento da consciência responsavelmente consciente, que transforma uma possibilidade na realidade de um ato realizado, de um ato pensamento, de sentimento, de desejo etc. Com o tom emotivo-volitivo indicamos exatamente o momento do meu ser ativo na experiência vivida, o vivenciar da experiência como minha (BAKHTIN, 2010, p. 91).

A leitura é um importante elemento que arquiteta a constituição da identidade, pois ela garante que sujeitos únicos participem de um diálogo com outros sujeitos únicos, pelo qual exprimem em suas enunciações os feitios da alteridade e da palavra alheia. Essa unicidade não se refere a um sujeito “associal, reduzido a uma entidade puramente biológica, confinado na esfera das necessidades fisiológicas ”(PONZIO, 2010, p. 25), todavia, a um sujeito ativo, sem álibis, cujo diálogo e as interações sócio ideológicas com seus outros, funcionam como elementos que esboçam o encontro de palavras no processo de compressão.

Goulemot (2006, p.113) afirma que ler é “fazer emergir a biblioteca vivida”, ou seja, trazer para o diálogo presente o conhecimento adquirido em diálogos passados com outros textos, fazendo emergir dessa mistura de conhecimentos um novo saber e um novo sentido únicos em seu espaço e tempo, pois somos seres compostos por momentos, experiências, valores e crenças. O que Goulemot quer dizer é que, a partir do momento em que nos deparamos com um novo texto, essa carga de vivência vem à tona e começa a agir em prol dessa nova experiência de leitura e é a partir disso que podemos nos identificar ou criar resistência a algum texto, e é assim que nossos gostos e preferências literárias são construídos. É com a carga de vivência e o contexto social que o sentido literário é criado.

Desta forma, Petit (2009, p.33) afirma que “o leitor não é uma página em branco onde se imprime o texto [...]. As palavras do autor fazem surgir suas próprias palavras, seu próprio texto”. Ou seja, os discursos, sendo eles literários ou não, surgem a partir da absorção dos discursos de terceiros. As palavras surgem a partir do momento em que o leitor vê o que o autor quer dizer e, com o auxílio de suas vivências, consegue elaborar uma própria visão e um próprio discurso. Nesse sentido, a leitura abrange a compreensão dos valores do grupo social que se aprestam sob uma linguagem que envolve tons valorativos, palavras não-convencionadas, signos ideológicos que sustentam a interação dilatada entre as consciências em jogo, do leitor e do autor.

Também se deve ponderar de que o próprio texto é um reflexo da realidade sociocultural e política da qual ele nasce. Os textos vão evoluindo com o passar das eras e das localidades, pois ele é uma expressão do autor e de sua inserção em seu meio, sendo assim um fruto direto do mundo, um objeto no qual habitam outras vozes sociais. Não há como isolar o texto, assim como o leitor, de seu contexto, pois, inevitavelmente, haverá elementos do mundo real que aparecerão na escrita, seja de forma voluntária ou não. Isso é um elemento primordial para reforçar o teor social da leitura, já que até mesmo o próprio nascimento do texto se dá dentro de uma esfera social repleta de contextos, subcontextos e realidades distintas.

Compreender isso é o primeiro passo para compreender a leitura em sua forma mais completa e abrangente, em sua forma dialógica, sem limita-la à inicialmente mencionada definição de “decodificação de signos”. A leitura é um ato social por depender das nuances de mundo do leitor, no ato de contato com o texto, e do escritor, no ato de criação do texto. É o choque de realidades de ambos os sujeitos, materializado na forma de escrita, que darão firmamento aos sentidos e significados, ocorrendo, portanto, uma ação de leitura.

As questões sobre a leitura precisam cada vez mais serem discutidas no âmbito das ciências humanas e sociais levando em consideração a sua força e importância no processo de constituição da subjetividade dos sujeitos, deste modo, nosso objetivo nesse escrito é arquitetar uma discussão teoria, por meio de uma revisão de literatura, que reflita a leitura e suas práticas de promoção sob uma perspectiva democrática e dialógica como um direito humano de todos os sujeitos.

2 LEITURA E IDEOLOGIA: QUAIS RELAÇÕES ESTABELECEMOS?

A leitura está sujeita aos efeitos das ideologias acerca de si, tais ideologias semeadas ao decorrer dos séculos causam o que chamamos de mitificação da leitura (BARZOTTO; BRITTO, 1998). Não é incomum ler propagandas que tratam a leitura como a salvação para todas as mazelas do planeta, que versam sobre a leitura em sua mais alta magnitude e esplendor, além da visão concebida de que as pessoas que leem (e que leem os clássicos literários, sobretudo) são mais cultas e intelectuais do que as demais.

Para compreendermos os aspectos ideológicos que circunscrevem a leitura, devemos olhar para o que Bakhtin (2009) diz a respeito desta última. O filósofo afirma que:

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo (BAKHTIN, 2009)

Qualquer coisa pode ser transformada em signo ideológico, e este signo ideológico vai passar a refletir e refratar outra realidade além daquela na qual ele foi originalmente concebido, e esse signo ideológico passa a ter um valor que irá atribuir quesitos valorativos, de ser bom ou ruim, melhor ou pior (BAKHTIN, 2009). Quando absorvemos este pensamento e olhamos para a leitura, podemos ver como ela foi transformada em uma ideologia de segregação e valorização pessoal com o decorrer do tempo e da história.

Hoje em dia, a leitura continua sendo vista como algo em que somente os melhores possuem e algo que é a solução para todos os males. Tais ideias são frutos de um discurso proveniente de sujeitos pertencentes a uma esfera de poder que corroboram para a criação de uma barreira intelecto-literária na qual os indivíduos que não desenvolvem práticas de leitura (principalmente se tratando de livros literários, especialmente os clássicos) são postos como inferiores e menos capazes que aqueles que possuem um grande acervo de obras literárias em casa e na mente, alimentando, portanto, um ciclo que ajuda no fortalecimento da mitificação da leitura e atribuem aos sujeitos que não possuem condições de acesso à leitura uma imagem de “burros” ou “ignorantes”. Tal discurso “ignora os modos de inserção dos sujeitos nas formas de cultura e estabelece em torno da questão da leitura juízos de valor do tipo “bom” ou “mal”” (BARZOTTO; BRITTO, 1998).

A ideia de que leitura é algo de pessoas culturalmente superiores e que ler os clássicos é melhor do que ler as demais produções reflete uma realidade da já mencionada esfera de poder. Ela origina-se da burguesia iluminista que adotou tal ideal como maneira de se estabelecer no poder, posto que a história da leitura como item libertador está vinculada as intenções de dominação social da classe burguesa e como forma de desafiar a tradição que legitimava a aristocracia da época (ZILBERMAN, 1999).

Esse preconceito literário também surge a partir do momento em que a leitura é promovida para as classes operárias, não como forma libertadora, todavia apenas como maneira de compreensão e decodificação de signos. Quando o ensino e a escolarização se tornam obrigatórios, deixando de ser privilégio apenas dos filhos da elite econômica e passando também a atender os filhos das classes mais pobres, a mão de obra infantil deixa de existir e isso causa prejuízo às indústrias; como forma de remediar a situação, passa-se a promover a leitura para o proletariado com o único intuito de que eles saibam desempenhar suas funções ao ingressarem no mercado de trabalho, desta forma, o indivíduo iria ter o acesso à educação e também, no futuro, iria poder realimentar a máquina de produção capitalista (ZILBERMAN, 1999).

Acrescido a isso, nos deparamos com o que Abreu (2006) nos conta ao falar sobre o que é literatura. Segundo a autora, o que temos hoje como clássicos literários e o que definimos como sendo literatura de qualidade só estão nesta posição por meio das ações de legitimação das chamadas instâncias de poder. A autora nos conta que nossas opiniões e gostos literários moldam e condicionam a maneira como seremos vistos e tratados na sociedade; isso fica evidente quando ela nos fala que “Os livros que lemos (ou não lemos) e as opiniões que expressamos sobre eles (tendo lido ou não) compõem parte de nossa imagem social” e que “Alguns aprendem e tornam-se leitores literários [...] o que quase todos aprendem é o que devem dizer sobre determinados livros e autores, independentemente de seu verdadeiro gosto pessoal” (ABREU, 2006, p. 19). Ou seja, as relações que estabelecemos com as obras literárias são forjadas dentro de uma esfera ideológica na qual “terceiros”, ocupando cadeiras nas instâncias de legitimação (universidades, escolas, jornais, etc.) nos dizem quais escritos são realmente dignos de atenção e quais devem ser descartados. É com essa ação que livros como os de Clarice Lispector são tidos como cultos, e seus leitores são vistos com bons olhos, enquanto livros da Thalita Rebouças são tidos como inferiores, e seus leitores são vistos com olhares de preconceito.

Isso gera uma dinâmica cultural e opressora que reverbera até nossos dias. O ato de ler por prazer e em horas vagas é algo muito mais comum de ser visto entre a elite econômica, de modo que a classe trabalhadora e operária, ao estar inserida num sistema de produção massivo, passa a não poder ter os mesmos hábitos e horários de leitura que o patronato, estando mais ocupada com a produção e reservando a leitura apenas para situações em que ela irá colaborar no desempenhar de suas funções, e não como maneira de lazer, de prazer.

Além disso, os leitores de obras literárias recebem mais apreço por parte da sociedade, uma vez que “saber que algo é tido como literário provoca certo tipo de leitura” (ABREU, 2006, p. 29). Poesias, contos e obras de autores consagrados fornecem um status mais elevado aos seus leitores que demais tipos de produções escritas. Esta supervalorização da literatura acaba fornecendo um obstáculo para a democratização da leitura e para as ações que visem aproximar não-leitores (especialmente os mais pobres), pois acabam passando uma imagem para muitos de que eles não são capazes de se tornarem leitores ávidos, uma vez que veem essas obras como algo inalcançável que apenas pessoas cultas e com dinheiro tem acesso. A sacralização da leitura não ajuda em nada a não ser como combustível para inflar ideais de cultura e de intelectualidade e para segmentar sujeitos por meio de estratificação literária e sutis jogos de poder.

Ainda alimentando-se da ideologia, inicialmente mencionada; ao tratar a leitura como uma atividade superior, ignoram-se as outras atividades culturais pertencentes ao orbe da vivência humana. Ler é, assim como música ou cinema, um modo de expressão e um ato de manifestação da cultura, não podendo ser concebida sob uma ótica de mitificação e glorificação.

A leitura não é uma prática superior a outras formas de intelecção, interpretação e projeção do mundo. Ler o contexto, ler a mão, ler o jogo, ler o mundo, ler um quadro, ler um filme são ações culturais e intelectivas diferentes de ler o texto, com maiores ou menores aproximações. De fato, ao pôr-se como sujeito diante do mundo, a pessoa, na busca da compreensão dos fatos, realiza múltiplas ações, quase sempre de modo articulado. Ler é uma delas. (BRITTO, 2012).

A leitura não se difere das outras maneiras de consumo de cultura. Ela é uma prática comum, da mesma forma que ouvir músicas ou assistir filmes. Ela é utilizada da mesma maneira para entreter, informar, proporcionar prazer, etc., não tornando-a uma prática superior, mas igualmente comum. Da mesma forma que outras práticas culturais podem ser usadas para “salvar o mundo” ou proporcionar bem-estar, a leitura também pode, mas isso não a torna melhor ou mais altiva. A origem dessa mitificação insurge quando se ignora seu viés sociocultural e a articula a partir apenas de um pensamento ideológico e monológico. Ao tratar todos os sujeitos da mesma forma, deixando de lado suas mais diversas formações, atribui-se um juízo de valor a leitura que não abrange, por exemplo, as pessoas que não gostam de ler.

3 LEITURA E POLÍTICA: POR UMA PROMOÇÃO DEMOCRÁTICA

Por ser um ato social e, consequentemente ideológico, a leitura é também um ato político, e para falar da leitura dentro desse víeis, devemos falar primeiramente de informação.

Ao ler, o sujeito está decodificando, adquirindo, compreendendo, apreendendo e assimilando informações, e elas, assim como a leitura, também são algo socialmente condicionados, de forma que “qualquer informação se articula com e ganha sentido dentro de uma rede complexa de outras informações já enunciadas ou possíveis de ser enunciadas” (BRITTO, 2007, p.78). Ou seja, toda informação vai depender de uma previamente enunciada, ou só fará sentido a partir do contato com outra informação. O acesso às informações será dependente da ação do Estado nas instâncias de disseminação imediata; é ele que tem o poder de vetar, manipular ou dar acesso, desta forma “aquilo que se entende por informação resulta necessariamente da ação política de instância de poder (ou contrapoder) na forma de um produto cultural sócio-histórico” (BRITTO, 2007, p.79). A informação vai circular de acordo com os interesses das classes políticas e da elite econômica do país, por sua influência direta, de maneira que irá impactar diretamente no acesso e promoção da leitura.

Portanto, “[...] a produção e circulação de textos escritos, como de toda informação de ampla circulação, estão diretamente articuladas ao modo como se exerce o poder” (BRITTO, 2007, p.82). Essa afirmação traduz a dimensão política que a leitura tem, uma vez que é por meio da leitura que boa parte da informação é consumida; ao controlar a leitura e o acesso a mesma, está sendo controlada uma das maiores ações de acesso à informação.

Uma das facetas do mundo é a faceta política, e como a leitura é um fragmento desse mesmo mundo e auxilia na compreensão do mesmo, ler é conseguir o aparelhamento intelectual necessário para entender os jogos políticos, seus direitos e os deveres do cidadão e do Estado; e ao compreender sua própria realidade e se situar dentro da realidade política de seu país, o sujeito consegue obter o necessário para cobrar ações das instâncias superiores. Além disso, ler textos, inclusive os literários, fornece ao sujeito a capacidade de prever as possíveis consequências que ações - seja dos cidadãos como indivíduos, da sociedade como todo, ou dos políticos - possam ocasionar dentro de uma realidade. A falta de leitura deste modo faz com que o sujeito se distancie, torne-se alheio em relação aos sentidos que constituem a esfera social, da vida cotidiana, das relações humanas,

ao significado, ao valor que as coisas, os outros homens e ele próprio tem para si mesmo. Sua própria vontade e seu desejo submetem-se ao mecanismo inexorável da reprodução capitalista. Tornando-se um homem “alienado”, inconsciente do fato de ser ele mesmo, homem, que produz as coisas e as relações entre os homens, que produz a si mesmo. Oculta-se o papel de elemento dinâmico principal, de produtor da história (MAAR, 2013, p. 18).

E é por toda essa dimensão de poder que a questão do acesso à leitura é algo a ser discutido também como ato político e responsável na concretude da vida real. Tudo nos sujeitos, cada movimento, cada gesto, cada experiência vivida, cada pensamento, casa sentimento deve ser político e responsável “é somente sob essa condição que realmente vivemos, não nos separando das raízes ontológicas do existir real. Existimos no mundo da realidade, inelutável, não naquele da possibilidade fortuita” (BAKHTIN, 2010, p. 101).

Nesse sentido, para que a leitura componha sua arquitetônica política, é necessário que ela seja compreendida a partir da vida dos sujeitos, na sua relação de existência como evento necessário, único, irrepetível e singular composta por atos responsáveis. Para Bakhtin (2010, p. 80) somente

o ato responsável supera toda hipótese, porque ele é - de um jeito inevitável, irremediável e irrevogável - a realização de uma decisão; o ato é o resultado final, uma consumada conclusão definitiva; concentra, correlaciona e resolve em um contexto único e singular e já final o sentido e o fato, o universal e o individual, o real e o ideal, porque tudo entra na composição de sua motivação responsável; o ato constitui o desabrochar de mera possibilidade na singularidade de escolha uma vez por todas.

É pela axiologia, pela constituição dos sentidos, pela tomada de posição frente ao mundo que os sujeitos tornam a leitura um ato político e responsável, uma unidade não abstratamente metódica, mas valorativa a partir da posição única que cada um ocupa, de maneira insubstituível, no mundo, enquanto núcleo participativo e não indiferente nos seus arrolamentos com as alteridades. E essas alteridades não se tratam de sujeitos ou “individualidades soltas no mundo, mas individualidades e subjetividades que se constroem no processo mesmo de uso de linguagem, no contexto de uma organização social e seus modos de relações, também essas historicamente mutáveis” (GERALDI, 2010, p. 78).

Parece haver um senso comum de que todos possuem acesso à informação (e, por consequência, leitura) e que ela está ao alcance de todos, mas isso não é bem verdade. A informação e a leitura podem estar globalizadas, mas elas não estão democratizadas. É fato, sim, que pessoas ao redor do globo agora possuem acesso a itens que antes não possuíam, contudo ainda existe uma série de sujeitos que vivem à margem dessa realidade.

Alguns fatores devem ser levados em consideração ao se tratar disso. O primeiro deles é o primordial: a educação. Para ler textos é preciso ser alfabetizado, é preciso saber decodificar os signos linguísticos. A parcela de indivíduos ao redor do globo que não sabem ler ou escrever é uma das mais afetadas por essa falsa ideia de “informação ao alcance de todos”, visto que muitos dos veículos, não só de notícia, mas da produção de discursos e cultura, realizados de forma escrita, estão longe do alcance desses sujeitos.

O segundo fator é a questão econômica. Os livros são produzidos por editoras, que nada mais são do que empresas de comercialização de bens culturais. O valor empregado aos livros gera impacto direto em seu acesso. As classes mais altas e a elite econômica não veem isso como um problema, contudo, para a população que mesmo alfabetizada vive em situação de fragilidade social, o acesso a esses itens em mercado é difícil.

O terceiro fator é o acesso de maneira pública aos objetos de leitura, e aqui entram as bibliotecas. Ao restringir verbas destinadas ao aprimoramento em bibliotecas - sejam elas públicas, escolares ou especializadas - está sendo restringido um acesso mais abrangente a leitura. O sucateamento intencional desses locais está ligado ao fato de que eles são um dos mais primordiais no que tange a democratização da leitura. A censura aos livros que compõe o acervo de bibliotecas públicas e escolares, a definição de quais obras devem ser utilizadas no ensino e na alfabetização da população, e o vandalismo político na conservação e manutenção da estrutura física desses locais são atividades que impedem uma leitura democratizada, dialógica e de acesso a todos, que poderia servir para diminuir a barreira econômica que separa as classes mais carentes da leitura.

Devemos nos conscientizar, primeiramente, do que falamos quando pensamos em democracia. Muitos acreditam que democracia seja somente sinônimo de respeito à vontade da maioria, ou a submissão às mesmas, mas, na verdade, democracia é um processo de promoção da liberdade e da participação popular (ROSENFIELD, 2006); ela é a legitimação das liberdades individuais e coletivas dos cidadãos e a permissão de sua participação dentro das esferas públicas, políticas, sociais e econômicas. A democracia permite com que os sujeitos socialmente organizados se identifiquem com seu ambiente através de sua integração ao coletivo de maneira ativa, de forma que eles possam sentir-se livres para contestar, serem ouvidos e participar ativamente das dinâmicas sociopolíticas dos locais onde estão inseridos. “O regime político democrático tem como objetivo alçar o indivíduo da informe vida cotidiana moderna, deste isolamento no qual vive, ao lugar da comunidade, ao lugar da solidariedade, onde o que é político pode ser visto e vivido por todos” (ROSENFIELD, 2006, p. 49).

Para garantir democracia e garantir sua manutenção, o Estado deve intervir no investimento das instâncias de disseminação de liberdades, que não são apenas entidades físicas e jurídicas, mas também instrumentos legais que garantem a livre expressão e o acesso aos insumos que servirão como base e passaporte para a permissão do pensar e agir. Desta forma, elementos que funcionam como janelas para o desvendamento e compreensão da realidade, justamente com os locais que asseguram a troca de o debate e o câmbio de ideias e ideais, são instrumentos de garantia e manutenção da democracia, pois eles servem como recursos para o fomento da participação popular e, consequentemente, da liberdade e das consciências individual e coletiva dessas liberdades. A leitura e as bibliotecas, e sua consequente promoção, são, portanto, elementos de democracia.

Neste quesito, a biblioteca pública é o veículo de melhor condição para a promoção e democratização da leitura, uma vez que ela tem por função “ser geradora de conhecimentos, por meio da oferta de informação” (FREITAS; SILVA, 2014, p. 126). Ela permite o câmbio, acesso e uso da informação por parte das camadas sociais marginalizadas e favorece uma apropriação dos meios de produção cultural escritos por parte desses sujeitos. São as bibliotecas públicas que vão garantir a leitura enquanto um direito de todos, e é por isso que elas são tão perigosas para a manutenção dos jogos de opressão e manipulação social, pois, conforme Carvalho (1987, p. 42) “tanto a leitura quanto a escrita podem ser manipuladas pelo poder, portanto, a democratização do livro é objeto a ser atingido”. Por meio das ações culturais de mediação de leitura e demais atividades de divulgação, disponibilização e facilitação do acesso tanto do acervo da biblioteca quanto a demais informações que possam servir como peça chave para a atuação em sociedade, as bibliotecas públicas garantem às classes menos favorecidas o desenvolvimento de competências - por meio da formação do conhecimento - para a compreensão de seus lugares na sociedade, bem como os papéis a serem exercidos pelos governantes e os significados e consequências de ações e declarações por parte dos mesmos.

Porém, engana-se quem pensa que a garantia da democratização da leitura - e, por consequência, da informação - é dever exclusivo do Estado. Os bibliotecários atuantes nas bibliotecas públicas e em demais espaços desempenham também um papel fundamental neste quesito. Miranda (1978, p. 70) já nos dizia que “a ideologia que motiva as nossas bibliotecas é tipicamente de classe média”, e essa afirmação se mostra verdade ao repararmos no modo como a biblioteca é sentida na sociedade atualmente e como isso dialoga com a visão ideológica posta sobre a leitura. Há uma clara elitização do espaço e uma clara barreira cultural que impede a comunicação entre a unidade e a comunidade no entorno, bem como um desinteresse do Estado na formulação e manutenção de políticas públicas que tornem esses ambientes cada vez mais vivos e fortes.

Esse tipo de ideologia é extremamente perigoso para o exercício de nossas atividades. Como profissionais de mediação cultural e de leitura, ao adotarmos em nossas atividades as ideias de que “ler clássicos literários é melhor que leitura popular” e de que as pessoas que o fazem são melhores, estaremos esquecendo a dimensão social da profissão, bem como condicionando os leitores de nossas bibliotecas a terem em seu acesso itens que podem, muito facilmente, não serem de seu agrado. Além disso, a adoção desse ideal na formação e desenvolvimento de coleções de livros literários pode vetar o acesso e a circulação de obras do acervo, visto que o público leitor pode não se interessar pelo que a biblioteca tem a oferecer e acabar se afastando dela, o que só irá aumentar o abismo cultural já existente entre biblioteca e comunidade, em especial as mais carentes de recurso e que possuem maior dificuldade de acesso a equipamentos de cultura.

Levar em consideração os vieses sociais, ideológicos e políticos da leitura é o crucial para a realização de uma promoção eficiente da mesma. Compreender que ler não é decorar textos e que não deve ser medido pela quantidade de páginas que se lê; que os sujeitos não são obrigados a ler se não quiserem e que a literatura canônica não é superior aos outros tipos, e a adoção de políticas públicas de acesso à leitura são ações decisivas numa promoção da leitura. Mas, antes de tudo, é sempre importante lembrar que promoção da leitura está diretamente ligada à democratização da mesma:

Trata-se, portanto, de uma luta política, que passa pela conquista de melhores condições de vida para as classes trabalhadoras; melhores salários, pleno emprego, transporte barato e eficiente, moradia digna. Além disso: democratização do conhecimento que significa ensino público e gratuito em todos os níveis, expansão da rede de bibliotecas populares e produção de livros baratos, em grande escala, acessíveis a todos os cidadãos. (MELO, 1999, p. 81)

É lastimável que algumas concepções teóricas que arquitetam as discussões da leitura ainda sejam tratadas sob a égide de um misticismo, de uma percepção tradicional que cultuam as práticas de leitura atrelando-as quase que exclusivamente ao livro e a leitura literária, ponderando tais ações ao bom comportamento e desenvolvimento intelectual dos leitores. Perde-se de vista nas ações de promoção da leitura o fato de que ela ao longo dos tempos tem se configurado muito mais como um aparelho de dominação do que de libertação dos sujeitos e seus grupos, perde-se de vista, sobretudo a militância da leitura como um direito humano (BRITTO, 1999), uma vez que o leitor não se trata de um avatar extirpado do seu horizonte social, da sua classe, que descobre na ação de ler uma forma de salvação particular.

O que está em questão é o direito do cidadão de ter acesso (material e intelectual) à informação escrita e a cultura letrada e não um comportamento de avaliação subjetiva. Ninguém fica necessariamente bom porque lê, nem faz sentido apelos morais para que as pessoas leiam. Deste modo, em uma campanha social pela leitura, deve-se ter claro que o que se está postulando é um direito: o de ter uma gama maior de objetos de leitura à disposição para que leia quando melhor (e da maneira que) lhe convier. Trata-se de outra face da disputa político-social pelo poder, assim como a luta pela terra, por habitação, por trabalho, por saúde (BRITTO; BARZOTTO, 1998, p. 5).

Desse modo, a leitura, em todas as suas formas e práticas, constitui experiências de cidadania, o que Hannah Arendt (2009) considera ser “o direito a ter direitos”, fenômeno essencial para a consolidação de qualquer direito humano, “pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construto da convivência coletiva, que requer o acesso a um bem comum, [...] como o direito de pertencer a uma comunidade política - que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos (LAFER, 1997).

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Devemos, por fim, olhar a leitura como um ato social, ideológico e político, dependente das condições e relações sociais que os sujeitos estabelecem no decorrer da vida.

As práticas que desenvolveremos e os textos que escolheremos em nossa trajetória literária terão, inicialmente, influência direta do meio onde vivemos e convivemos. As relações com outros sujeitos, os espaços (des)ocupados e as vivências terão um forte efeito no modo em que a leitura é realizada. Para uma promoção eficiente da mesma devem ser levados em consideração os caminhos que o sujeito percorre, seus gostos pessoais além do aspecto literário e sua história. Que mundos esse sujeito leu? De quais contextos ele surge? Quais obras compõe o acervo de sua bibioteca vivida? Essas são perguntas que devem rondar as mentes dos promotores de leitura, de modo que possa ser fornecido ao sujeito aquilo que ele precisa, não o que se acredita ser bom para ele.

Também, devemos lutar e nos despir das ideologias que rondam a promoção literária. É necessário combater uma possível elitização da leitura para que seja evitada a segregação de determinados sujeitos. Tratar a leitura como um item de melhores e promovê-la como algo superior pode afastar indivíduos e serve como um sutil alimento de opressão. É necessário aproximar as camadas não-leitoras e de fragilidade social, mostrando-as que elas não são intelectualmente inferiores, tampouco culturalmente acéfalas ou socialmente medíocres; é importante que a leitura seja vista por elas como um elemento agradável - algo de convite e não de segregação. Primeiramente, é fazendo com que a leitura seja vista como algo que pode estar ao alcance de todos que ela será de fato democratizada, pois tornará viável uma aproximação mais pacífica e uma promoção mais eficiente.

Não obstante, ler também permite que os sujeitos se sintam inseridos dentro da dinâmica política de sua própria comunidade, e neste aspecto político, direito à leitura é direito à informação. Trabalhar para a criação de condições em que os sujeitos possam interagir com os objetos de leitura e fornecê-los as aptidões para que eles mesmos se sintam livres para procurar novos horizontes literários é uma tarefa de garantir direitos.

Entendemos, então, que promover leitura de modo dialógico é, de fato, promover democracia. É garantir o acesso amplo e indiscriminado à educação e a cultura; é fornecer possibilidades para a ascensão de classe e, dentre outras coisas, colaborar na criação de uma identidade social e nacional. Ao fazê-lo, estamos consequentemente promovendo o acesso à informação, de maneira a difundi-la dentre as camadas mais pobres da sociedade, propiciando um acesso livre e democratizando da mesma; estamos, portanto, promovendo os direitos humanos.

Desta forma, é necessário estar alerta. As ações governamentais que sucateiam secretarias e ministérios de cultura e educação, bem como a adoção de ideias fundamentalistas e conservadoras na disponibilização e disseminação de itens informacionais, de modo a vetar o acesso por questões individualistas de membros da elite que ocupam o poder, são atentados à democracia e a garantia do acesso à informação e a leitura como direitos. Vetar obras e sucatear entidades de disseminação e promoção da leitura é impedir que a população tenha em mãos as capacidades para se tornarem sujeitos ativos na sociedade. Tais ações servem como instrumento para manutenção da alienação e ordem social, e devem ser combatidas por profissionais de cultura e informação com veemência.

Ler é fazer parte de sua própria realidade e absorvê-la, criando uma nova vivência dentro de si e renovando-a a cada nova leitura; é exercer seu direito como cidadão e como sujeito pertencente a uma sociedade democrática e política; é ter acesso ao conhecimento e a informação; poder ter a liberdade de escolher o que vai consumir e de que maneira isso vai ocorrer, mas, principalmente, ler é exercer uma função básica que é direito a todo ser humano: a de vivenciar sua própria vida e se sentir pertencente a ela e a si próprio. Portanto, ler é também fazer política e promover a democracia.

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CONJUNTO DE DADOS DE PESQUISA

4 Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

Autor notes

Concepção e elaboração do manuscrito: H.M. Pajeú, W. A. de L. Santos
Discussão dos resultados: H.M. Pajeú, W. A. de L. Santos
Revisão e aprovação: H. M. Pajeú
Enrique Muriel-Torrado, Edgar Bisset Alvarez, Camila Barros.

Declaração de interesses

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